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Uma reflexfio sobre a pessoa portadora de

deficiencia visual e a danca


Valeria Maria Chaves de Figueiredo *
Maria da Consolagao Cunha Tavares * *
Silvana Venancio * **

Resumo Abstract
Como seria a danca sem a How would this same dance be
referencia da visao? Não seria without visual reference? Would it
mais danga? Seria diferente? still be dance? Would it be
Faltariam oportunidades? A partir different? Would there be a lack of
de nossa experiencia, levantamos opportunities? We are raising
reflexOes a respeito da danca e reflections, from our experience,
pessoas portadoras de deficiencia about dance, the body and the
visual. visually handicapped people.

Unitermos: Danca, Deficiéncia Keywords: Dance, Visual Handicap


Visual

* Mestre em Artes, Institute de Artes da Unicamp. Professora da Universidade Federal de Goias,


Faculdade de Ed ucacao Fisica.
** Prof.a Dr.a da Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educacao Fisica.
*** Prof. a Dr a da Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educasao Fisica.
Motrivilkncia
Introducfio filantrOpicas e protecionistas existem
e sao tambern responsaveis pela luta
Temos percebido, nestes na garantia da sobrevivencia. A partir
Ciltimos anos, uma crescente busca dos anos 50 deste seculo, com a
na tentativa de melhorar a qualidade criacao da bengala de Hoover, o
de vida das pessoas portadoras de individuo portador de deficiencia
deficiencias. Os investimentos visual passou a ter mais liberdade,
destinados a essa populacao ainda pois esse artefato possibilitou-lhe
sao pequenos, se consideramos maior independencia, influindo
que 10% da populacao mundial positivamente no seu acesso ao
portadora de algum tipo de mercado de trabalho. Dessa maneira,
deficiencia.' A maior participacao ele Ode conquistar uma posicao
desse grupo na sociedade, alem de mais expressiva em todos os setores
romper com antigos paradigmas, da sua vida e, de uma certa
possibilita maiores trocas de perspectiva, a igualdade e o exercicio
experiencias, enriquecendo signifi- de seus direitos ampliaram-se, tanto
cativamente as relacties humanas. nos aspectos legais como nos
ambitos politico, educacional,
Segundo Bieler (1990), ate os cultural e social.
meados dos anos 70, a questa° da
deficiencia no Brasil era E evidente que as pessoas
encaminhada por tecnicos ou portadoras de deficiéncia buscam
pessoas responsaveis pelo assunto: participar das atividades como urn
"os especialistas" da area. A tOnica todo: trabalho, escola, lazer, entre
das reivindicaceies firmava-se no outros, mas, na maioria das vezes,
paternalismo, no assistencialismo e deparam corn diversas dificuldades:
na tutela. a faith de oportunidades, os espacos
inadequados, profissionais despre-
A compaixao sedimentou, assim, parados, enfim, falta-lhes urn
os lugares da rejeicaO e da exclusao. espectro de possibilidades que lhes
Ainda percebemos todas estas proporcione condicOes adequadas
posturas impregnadas na sociedade e igualithrias. Tambern na area da
em geral e, a despeito dessa danca, este quadro pouco se
ambivalencia, nao podemos negar diferencia, existindo muitos
sua intervene d - o. As atividades

' Dado fornecido pela OMS - Organizasäo Mundial da SaUde. CORDE. Brasilia, Ministerio da Asäo
Social, 1992.
2
Ano XI, n 12, maio/1999

preconceitos e poucas oportuni- Entrando na danca


dades.
Nossa linguagem corporal é "0 olhar deseja sempre mais
construida a partir dos nossos do que the e dado a ve
sentidos, atraves da pesquisa, Adauto Novaes2
percepcao, sensibilidade e reflexao
sobre a acao, que se traduzem em
movimento. Como poderia uma Os sentidos significam nossa
pessoa cega elaborar e criar uma cornpreensao do mundo e sem eles
danca sem o referencial do mundo nao ha como percebe-lo. Eles
como o conhecemos e entendemos? definem os limites da nossa
0 que significaria para ela essa existencia. A visa() representa a
experiencia? sensibilidade mais utilizada para
nossas referencias e relacties corn
Foi a partir dessas reflexOes que
o mundo que nos cerca, e os
comecamos a compreender melhor
indivicluos portadores de deficiencia
urn contelldo ate entao por nos
visual estao privados dessa
desconhecido. Vivenciamos este
sensibilidade, parcial ou totalmente.
corpo que danca de uma maneira
diferenciada, ou seja, que olha para a Experimentam vivéncias cor-
danca corn urn significativo mundo porais diferenciadas, devido ao
de sentidos, recuperando as texturas impedimento sensitivo, basic° para
dos movimentos, muito alem daquilo o movimento. Segundo Bobath
que nossos olhos enxergam, uma (1978), a visa() é o sentido que mais
danca que questiona os modelos, os nos oferece informacOes, sendo urn
tradicionalismos, as regras impostas fator dominante em nossas reacaes
e os ideais do corpo. Essas pessoas motoras. Sabemos que a atividade
nos ensinaram a repensar a danca e corporal é fundamental para nos,
adquirir novas experiencias. sao nossas experiencias de mundo
e de nos mesmos. E o modo como
somos e como desabrochamos.
Segundo Morais (1992), somos urn
corpo como forma de presenca no
mundo e isto diz tudo. 0 que

2 NOVAES, Adauto et al. 0 (Aar. Sâo Paulo: Companhia das Letras, 1988.
218 MotrivivAicia
atualmente. Mas sobrevivemos de podemos aprender sobre as funcOes
maneira fragmentada, injusta e corn e acOes de nossos corpos, mas o
poucas possibilidades de crescimento que nos sustenta como sere viver
em comunidade. Assim, urn novo em nos mesmos os nossos
olhar para o corpo nos possibilitar6 momentos, a cada instante.
reconquistar o elo perdido entre o ter A experiencia de sermos nosso
e ser. Revisar esses paradigmas que
corpo e o que testemunha esta
permeiam a danga a emergente. Da outra visa. ° de ser sujeito; os
mesma forma, possibilitar a pessoas movimentos sào nossa expressäo
portadoras de deficiencia visual urn primeira, conjugam e exalam a vida
universo mais humano, corn do homem.
possibilidades e oportunidades
equivalentes, nos permitir6 conhecer, A pessoa portadora de
aprender, sentir, trocar experiencias e deficiencia visual restringe suas
exprimir nossos desejos indistinta- experiencias, pois o mundo the 6
mente; a comunhao corn o outro, repleto de barreiras e limitacães.
corn suas diferencas, e o que Atraves da vivencia corn a danca,
realmente traduzimos em uma surge para ela a possibilidade de
cidadania do corpo. Urn corpo redimensionar seus limites e suas
coletivo e livre porque comunga, dificuldades, explorando melhor
porque respeita as diferencas, suas potencialidades. 0 movimento
porque a igual em oportunidades. favorece uma busca mais ampla de
Falamos da consciencia de ser a inter-acdo,ou seja, uma conjugacâo
vida. entre o ser e o estar no mundo, uma
compreensäo de totalidade da
prOpria existéncia.
Por outro lado
No momento em que a danca
Neste momento, transparecem percebida enquanto essencia,
as experiéncias nas quais, no enquanto origem, transforma-se
decorrer da edstencia, o corpo busca num caminho rico para descobertas
a sua essencia. Säo as experiencias e reconhecimento corporal. Rompe
pessoais de crescimento e da barreiras, estigmas e valores, tais
humanizacdo da prOpria vida. como: do desempenho fisico, do
modelo, das formas e das regras
Somos nosso principio e de impostas, possibilitando ao
fundamental misted° e muito individuo buscar na danca o seu
Ano XI, n 5 12, maio/1999

corpo, a sua danca, uma expressäo movimento coletivo que, antes de


que tern carater prOprio, mais mais nada, encontra-se dentro de
legitima e original . Nâo é nos. Corn a danca, os movimentos
propriamente urn estilo o que individuais se fortalecem nas trocas,
determina os padrOes, mas a visa() na comunicacâo e na expressáo do
que temos dele. gesto. 0 movimento é sempre urn
0 legado da danca moderna processo individual e coletivo ao
mesmo tempo. "E como aprender
proporcionou inGrneras possibi-
urn outro caminho", assim disse
lidades, incluindo — e nä° excluindo —
Eugen Bavcar. 3
do campo da danca as pessoas
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comuns" (nao-dancarinas). Perce- Pensar no corpo da pessoa
bemos, atualmente, ampliarem-se portadora de deflciencia visual que
cada vez mais os horizontes da danca danca, nos trouxe novas
dos "excluidos" — pessoas carentes, perspectivas e muitas possibilidades
gordos, magros, portadores de para instigar o olhar a olhar.
deficiencias, etc. Pensamos ser urn Redescobrimos as fronteiras do ser
aprendizado dialetico, corn disposicâo individual e coletivo quando
baseada na discussâo e nas trocas. tentamos ultrapassar os limites e it
ao encontro dos caminhos que nâo
A danca se enriquece ainda mais
conheciamos, desejando descobri-
nesse ambiente, gerando novos
los.
processos de criacâo e novos
olhares para os sujeitos, sem A danca pode romper as regras
receitas pre-concebidas, mas corn e recria-las corn outra sabedoria.
experiencias intimeras que refletem Olhar para o corpo que danca a ver
os universos de cada pessoa, toda alem do que os olhos podem
sua individualidade e coletividade. enxergar, é viver e criar corn a
danca. Todo ser, na existencia de
A reconstrucâo de novos
uma coletividade, participa real e
paradigmas na danca significa o
ativamente como criador de sua
desenvolvimento de homens mais
prOpria obra.
integrados na esséncia dela. Este
resgate, elaborado a partir do
potencial de cada ser humano, é urn

3 0 Estado de Säo Paulo, Caderno 2, 1996. Eugen Bavcar foi professor de Estetica na Universidade
de Paris e fotOgrafo, tendo ficado totalmente cego aos doze anos.
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