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JESSIE: Tenho uma caixa com coisas que quero deixar às pessoas.

Vou buscá-la para te


dar. Tu... fica aqui um bocadinho.
MÃE: Jessie, como é que eu posso viver aqui sem ti? Eu preciso de ti! È suposto
dizeres-me para andar direita, o quanto o vestido cor de rosas me fica bem e para beber
leite. È suposto andares a ver se está tudo bem para que estejamos seguras durante a
noite. E quando eu acordar é suposto estares a fazer-me o café e a ver-me envelhecer
cada dia e é suposto ajudares-me a morrer quando chegar a altura. Eu não consigo fazer
isso sozinha, Jessie. Não sou como tu, filha. Detesto o sossego, não quero morrer e não
quero que vás, Jessie. Como é que... Como é que eu posso levantar-me todas as manhãs
sabendo que tu tiveste que te matar para acabar com o sofrimento, que eu estive aqui o
tempo todo e nunca me apercebi. E então deste-me esta oportunidade de melhorar as
coisas, de te convencer a viver e não consegui. Como é que eu posso viver comigo
depois disso, Jessie?
JESSIE: Eu só te disse para te poder explicar, para que não te culpasses, para que não te
sentisses mal. Não há nada que pudesses dizer para me fazer mudar de ideias. Não
queria que me salvasses. Só queria que soubesses.
MÃE: Fica comigo durante mais algum tempo, só mais alguns anos. Já não me resta
assim tanto tempo, Jessie. Assim que eu morrer, podes fazer o que quiseres. Talvez
nessa altura tenhas toda a tranquilidade de que precisas, aqui em casa. E talvez plantes
begónias no passeio e chova o suficiente para elas se aguentarem todo o verão. E o
Ricky já deve estar casado, por essa altura e vai-te dar netos, e podes dar-lhes
guloseimas às escondidas quando o Papá não estiver a ver e ficar muito contente quendo
eles forem embora e te deixarem de novo na tua tranquilidade.
JESSIE: Mamã, tu não percebes que tudo o que eu faço acaba assim? Como é que eu
pude pensar que tu ias perceber? Como é que eu pude pensar que tu ias querer arranjar
as unhas? Podiamos estar de mãos dadas uma hora e depois eu podia dar um tiro na
cabeça. Desculpa o que aconteceu esta noite, mamã, mas é por isso mesmo que eu o vou
fazer.
MÃE: Se tens a coragem de te matar, Jessie, também tens a coragem de ficar viva.
JESSIE: Eu sei. È só uma questão de onde é que eu prefiro estar.
MÃE: Olha, eu posso não conseguir pensar no que deverias fazer, mas isso não
significa que não haja alguma coisa que possa ajudar. Encontra-a. Pensa nisso. Tenta.
Podes ganhar coragem e continuar a tentar. Não precisas de desistir!
JESSIE: Eu não estou a desistir! Esta é a alternativa que eu estou a tentar. E tenho a
certeza de que há outras coisas que poderiam resultar, mas poderiam resultar já não é
suficiente. Preciso de alguma coisa que resulte mesmo. Isto resulta mesmo. Foi por isso
que tomei esta decisão.
MÃE: Mas pode acontecer alguma coisa. Alguma coisa que mude tudo. Quem sabe o
que poderá ser, , mas pode ser que valha a pena esperar. Tenta por mais duas semanas.
Podemos ter mais conversas como a de hoje.
JESSIE: Não, mamã.
MÃE: Eu dou-te mais atenção. Vou responder a verdade quando me fizerres uma
pergunta. Deixar-te ter a tua opinião.
JESSIE: Não, mamã. Nós não poderiamos ter mais convrsas como a de hoje, porque o
que se segue é que tornou esta conversa tão boa, mamã. Não, mamã. Esta é a forma de
eu dar a minha opinião. Esta é a forma de eu dizer o que penso sobre tudo e eu digo que
não. Ao Dawson e à Loretta e à epilepsia e ao Ricky e à Cecil e a ti. E a mim. E à
esperança. Digo que não! Deixa-me ir com calma, mamã.
MÃE: Como é que eu posso deixar-te ir?
JESSIE: Podes porque tens que o fazer. Foi o que sempre fizeste.
MÃE: Tu és minha filha!
JESSIE: Eu sou aquilo em que a tua filha se transformou. Encontrei uma velha
fotografia minha, de quando eu era bebé. Era outra pessoa, não eu. Era alguém rosado e
gordinho que nunca tinha ouvido falar de doença ou solidão. Alguém que chorava e era
alimentado, alguém que estedia os braços e era abraçado. Que dava pontapés sem
magoar ninguém, que adormecia quando queria, só precisava de fechar os olhos.
Alguém que essencialmente ficava estendido ali e se ria das cores que balaçavam sobre
a sua cabeça, que mordiscava o boneco de uma baleia. Que acordava e aprendia uma
habilidade diferente quase todos os dias, que se rebolava e babava os lençóis e sentia a
tua mão a puxar as mantas para me cobrir de novo. Foi assim que eu comecei e isto é o
que resta. É disso que se trata. É de alguém que eu perdi, está certo, é de mim própria.
Alguém que nunca fui. Ou que tentei ser mas nunca consegui. Alguém por quem esperei
mas que nunca veio. Que nunca há-de vir. Por isso não interessa muito o que é que vai
acontecer mais no mundo ou mesmo nesta casa. Sou aquilo por que valeu a pena
esperar, mas não consegui. Eu... quem poderia ter feito a diferença para mim... Eu não
me vou fazer notar, portanto não há razão para ficar a não ser para te fazer companhia e
isso... não é uma razão suficientemente forte porque eu... não sou muito boa
companhia... pois não?
MÃE: Não. Nem eu.
JESSIE: Tive um pensamento estranho, bem, se calhar não é assim tão estranho. Bom,
depois do Natal, depois de eu ter decidido fazer isto, às vezes pensava, o que é que me
poderia fazer ficar, porque é que poderia valer a pena ficar, e sabes o que foi? Talvez se
houvesse alguma coisa de que eu gostasse realmente, como se eu gostasse realmente de
arroz doce ou de corn flakes ao pequeno almoço ou alguma outra coisa, isso poderia ser
suficiente.
MÃE: Arroz doce é bom.
JESSIE: Para mim não.
MÃE: E não tens medo?
JESSIE: Medo de quê?
MÃE: Eu tenho medo, por mim. Uqnado chegar a minha hora, eu sei que vai chegar,
mas...
JESSIE: Não sabes quando. Como num filme de terror.
MÃE: Sim, aparecer de repente, como um assassino à solta, escondido no quintal, só à
espera de me apanhar desprevenida. E como é que eu me protejo se não sei o aspecto
dele, e não sei com o que é que se parece quando me aparecer pelas costas dessa
maneira, ou se vai doer ou demorar muito tempo, ou o que eu não vou conseguir fazer
antes disso.
JESSIE: Ainda tens muito tempo.
MÃE: Neste momento não sei bem para quê.
JESSIE: Para o que acontecer, não sei. Para o resto da tua vida. Para que a Agnes
incendeie mais uma casa ou o Dawson fique careca.
MÃE: Jessie. Eu não posso simplesmente ficar sentada e dizer, muito bem, mata-te se é
isso que queres.
JESSIE: Claro que podes. Acabaste de o fazer. Diz lá outra vez.
MÃE: Jessie! Como é que te atreves? Como é que te atreves? Achas que te podes ir
embora assim, quando queres, como estás a ver televisão aqui? Não, não podes, Jessie.
Fazes-me sentir uma tola por estar viva, filha, tu estás tão enganada! Eu gosto de estar
aqui e vou ficar até que me façam ir, até que me arrastem aos gritos a guinchar para o
meu túmulo, e és muito esperta por ires embora antes disso, porque, meu amor, tu nunca
ouviste um barulho como esse na vida. Estou a falar para quem? Já te foste embora, não
já? Conheço-te tão bem! Não te posso impedir porque tu já te foste embora. Deves
pensar que agora vão todos falar de ti! Deves pensar que isto os vai deixar mesmo
confusos. Claro, desde o Natal tens estado a rir para dentro e a pensar “Bem, vão ter cá
uma surpresa.”. Pois olha que ninguém vai ficar surpreendido, querida. Isto é mesmo
típico de ti. Fazer as coisas da forma mais difícil, aí está a minha filha. Sabes de quem é
que eles vão sentir pena? De mim! E esta? Não é de ti, é de mim! Vão ter vergonha de
ti. Sim. Vergonha! Se alguém perguntar alguma coisa ao Dawson ele vai mudar logo de
assunto. Vai falar da fortuna que tem que pagar para estacionar o carro, hoje em dia.
JESSIE: Deixa-me em paz.
MÃE: É verdade!
JESSIE: Devia era ter-te deixado um bilhete!
MÃE: Sim! Não. Não. Assim eu não tinha pensado em todas as coisas que tu disseste.
JESSIE: Tudo bem, mamã. Lembro-me que gostaste daquele padre que fez o do papá,
por isso, se lhe quiseres pedir para fazer o funeral eu não me importo.
MÃE: Quê
JESSIE: E escolhe algumas músicas de que gostes, ou deixa a Agnes escolher, ela há-de
saber quais são as melhores. Ah, e mandei limpar o vestido que usaste no do papá.
Ficava-te mesmo bem.
MÃE: Não me lembro, querida.
JESSIE: E não vai ser assim tão mau quando os teus amigos começarem a chegar ao
velório. Provavelmente vais ver pessoas que já não vias há anos, mas eu pensei no que
podias dizer para te ajudar a superar aqueles nervos de quando as pessoas estão a entrar.
MÃE: Entrem.

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