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André Peres Fouttue Passo

A Visão

Prólogo
Algo esguichou.
“Oh, Senhor”, pensou o garoto de apenas seis anos, “será que isto é...?”
Sangue puro. O olfato da criança estava aguçado.
Brandiu a espada, na tentativa vã de se defender. Como a mesma era muito pesada, só
fez o menino se desequilibrar.
- Quer dizer que é você a chave para todo o mistério? – o grandalhão à sua frente
gargalhou ruidosamente. Tinha uma barba ruiva e parecia um pirata. – Que Alá me
perdoe, mas isso é ridículo!
Com uma coronhada da espada, atingiu a cabeça do menino. Sua visão foi se
escurecendo, enquanto ele sentia a bílis se formar em seu estômago naquela terra
banhada em sangue humano.

Capítulo I – Letras
- André, meu filho! Onde esse menino se meteu? – a mãe procurava sem sucesso seu
filho por entre as outras crianças na saída da escola. Se não fosse pela multidão que se
aglomerava, entraria ali e puxaria seu filho até a casa pelas orelhas. Menino levado!
Vinte minutos se passaram até que André saísse, com aquele rostinho maroto, serelepe,
e um brilho indefinível no olhar. “Encrenca”, pensou Marta.
- Por que essa carinha tão feliz? – Marta passou as mãos pelo cabelo do filho. Apesar de
tentar ser muito rígida, seu coração de mãe era mole feito manteiga. Foi só ver o filho
todo feliz que ela se esqueceu da espera e de toda a irritação que sentia. – Viu
passarinho verde, foi?
O menino meneou a cabeça sem tirar os olhos da mãe. Um sorriso matreiro se formara
em seu rosto.
- Mamãe, a professora me deu um presente – e estendeu o embrulho.
Marta desconfiou. O embrulho era pequeno. O que teria feito o menino ficar tão
interessado?
Quando a mãe desembrulhou o presente, foi como se este emitisse luz divina. André
ficou hipnotizado.
- Filho, mas... é um livro! – a mãe, espantada, culpou-se. Não era comum o hábito da
leitura em sua casa, de modo que André não tivera muito contato até então. “Isso
explica essa cara de bobo”. – Deixe-me ver... “A Grande Sala dos Relógios”, hein?
Você quer que eu leia para você? – “E por que você ganhou um livro?”. Decidiu deixar
a pergunta para depois.
O menino despertou do transe.
- Não! – quase arrancou o livro da mão da mãe. – Eu quero aprender sozinho. Quase
todas as crianças da minha idade já sabem ler, eu queria muito aprender. Por isso, a
professora me deu.
Ah, professora esquisita aquela. Usava uns óculos de tartaruga que Marta nunca tinha
visto antes, e a aparência austera da moça a deixava arrepiada.
- Tudo bem, então – a mãe concordou muito desconfiada. – Agora vamos logo para
casa. Daqui a pouco a Fabi chega e não tem ninguém para atendê-la.
Fabiana, a filha da vizinha, era uma mocinha de sete anos, com um cabelo pretinho
espetado e grandes olhos. Fabi era muito encrenqueira e adorava “tirar uma onda” com
o pequeno André, só porque ela sabia ler e já estava no Segundo Ano, estudando em
outra escola de pessoas mais velhas. O menino não deixava por menos: chamava a
menina de Esbugalho – devido aos grandes olhos.
“São duas jabuticabas!” gritava ela, com o orgulho ferido. Os dois sempre brincavam de
pega-pega no quintal – o menino era ligeirinho e a menina sempre queria dar-lhe uns
tabefes só por ser mais alta – deixando a mãe de André um pouco sossegada na cozinha,
território proibido para os dois, com suas louças e objetos cortantes.
O menino segurou o livro firmemente entre os braços, abraçando-o como se não
houvesse mais nada importante no mundo. A mãe tivera que puxar bruscamente o braço
de André para atravessar a rua diversas vezes, com muito esforço, de tamanha força
com que o menino segurava o livro.
“É um tesouro”, pensava extasiado.
Ao chegarem a casa, Fabi estava sentada na calçada, esperando. Como a mãe da
mocinha trabalhava o dia inteiro, ela ficava na casa de Marta, que trabalhava como
tradutora.
- Hei, se não é o magrelinho! – deu um grande beijo no menino, que ficou
profundamente enojado. – Como vai meu namoradinho?
Marta riu.
- Eu nunca namoraria você! – disparou o moleque. – Isso é nojento! – e limpou o rosto
lambuzado com a baba de Fabi.
As duas mulheres continuaram rindo da expressão de André e entraram em casa. Fabi
notou que o menino estava mais calado do que de costume. Ao observá-lo, viu o
pequeno livro envolto pelas fortalezas do braço de André, e provocou:
- Para que serve esse livro, afinal? – Fabi, num átimo, puxou o livro com toda a força
dos braços do menino. - “A Grande Sala dos Relógios”? Livrinho besta. Mesmo assim,
até para você não serve! Nem sabe ler ainda, bebê!
André avançou para cima dela, que colocou o livro com os braços para cima do nível da
cabeça, de modo que o menino não pudesse alcançar.
- Nenê vai chorar, é? Por que não vem pegar? – disparou, dando gargalhadas.
André se armou de toda a força que tinha e esmurrou a barriga de Fabi, que se dobrou e
largou o livro.
O menino rapidamente o recuperou, abraçando-o com mais firmeza ainda.
Com lágrimas nos olhos e pálida de dor, Fabi simplesmente virou as costas e foi até a
cozinha, trancando-se lá dentro com a mãe de André.
Finalmente, silêncio!
O menino foi rapidamente a seu quarto, seu coração alegre e afoito batendo forte no
peito, e encostou a porta atrás de si. Deitou-se no tapete, inquieto, e abriu o livro.
Respirou fundo ao ver os números e as letras, inconformado.
“Pratique sempre, André”, a voz de sua professora ecoava em seus ouvidos. Por sua
dificuldade na leitura, a professora sempre reservava os 30 minutos finais para ler com
ele. Com o progresso crescente do menino, a professora o presenteara com o livro.
“Se conseguir ler por inteiro, sentirá a recompensa”.
No auge de seus seis anos, André nem notou os significados dessas palavras. Fechou os
olhos, clareou a mente e tentou novamente.
Assim se estendeu toda a tarde. Na hora de dormir, o menino estava na vigésima página.
- Mamãe, me deixe terminar de ler! – Implorou depois da oração.
A mãe estava muito brava com o filho por causa da reação violenta com Fabi. Foi
categórica:
- Está de castigo por ter batido na Fabi. – apesar de ser mais alta e mais sapeca, Fabi era
delicada, e estivera totalmente desprotegida na hora do golpe. Chegou a vomitar,e ficou
pálida até o momento em que sua mãe chegou.
Marta sabia que não era só dor física. Era raiva, angústia, ciúmes e surpresa pela reação
inesperada do menino.
- O livro está confiscado até que peça desculpas à Fabi. – pegou o livro e saiu do quarto,
deixando um menino frustrado.
“Não posso ficar sem ler”, pensava André, diante de todo o êxtase da história que se
desenrolava diante de seus olhos. Era uma história medieval que se passava na sala dos
mil relógios de um senhor feudal, um homem mau que venderia a própria alma em troca
de posses.
Com sua pouca idade, André achava a história o máximo, com heróis e vilões –
literalmente. Queria muito ser um vassalo e lutar por seu senhor.
Decidido a terminar a história a todo custo, André esperou os pais dormirem. Foi até o
esconderijo da mãe – há muito ele sabia que ali ela escondia suas coisas – e pegou o
livro em mãos, sentindo grande satisfação. Ao chegar a seu quarto, André percebeu que
o livro brilhava. Ingênuo, ele pensou que este fosse mágico, não percebendo que era o
luar incidindo em sua janela.
Curioso, André abriu o livro, e viu todas as letras no lugar que havia deixado com
nitidez. “Um livro mágico! E vou poder ler no escuro, sem levantar suspeitas...”. Sua
leitura se estendeu ávida por várias horas, até que ele adormeceu.
Bem no capítulo sobre o filho de um servo.

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