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*O casal perfeito*

A solidão dos homens tem a medida da solidão de suas


mulheres. Isso eu disse e escrevi - e repito - em dezenas de palestras
por este país afora. Aí me pedem para escrever sobre o casal perfeito:
bom para quem gosta de desafios.

O casal perfeito seria o que sabe aceitar a solidão inevitável


do ser humano, sem se sentir isolado do parceiro - ou sem se isolar
dele? O casal perfeito seria o que entende, aceita, mas não se
conforma, com o desgaste de qualquer convívio e qualquer união?
Talvez se possa começar por aí: não correr para o casamento, o namoro,
o amante (não importa) imaginando que agora serão solucionados ou
suavizados todos os problemas - a chatice da casa dos pais, as amigas
ou amigos casando e tendo filhos, a mesmice do emprego, chegar sozinha
às festas e sexo difícil e sem afeto.

Não cair nos braços do outro como quem cai na armadilha do


"enfim nunca mais só!", porque aí é que a coisa começa a ferver.
Conviver é enfrentar o pior dos inimigos, o insidioso, o silencioso, o
sempre à espreita, o incansável: o tédio, o desencanto, esse inimigo
de dois rostos.

Passada a primeira fase de paixão (desculpem, mas ela passa, o


que não significa tédio nem fim de tesão), a gente começa a amar de
outro jeito. Ou a amar melhor; ou, aí é que a gente começa a amar. A
querer bem; a apreciar; a respeitar; a valorizar; a mimar; a sentir
falta; a conceder espaço; a querer que o outro cresça e não fique
grudado na gente.

O cotidiano baixa sobre qualquer relação e qualquer vida, com a


poeira do desencanto e do cansaço, do tédio. A conta a pagar, a
empregada que não veio o filho doente, a filha complicada, a mãe com
Alzheimer, o pai deprimido ou simplesmente o emprego sem graça e o
patrão de mau humor.

E a gente explode e quer matar e morrer, quando cai aquela


última gota - pode ser uma trivialíssima gota - e nos damos conta:
nada mais é como era no começo. Nada foi como eu esperava. Não sei se
quero continuar assim, mas também não sei o que fazer. Como a gente
não desiste fácil, porque afinal somos guerreiros ou nem estaríamos
mais aqui, e também porque há os filhos, os compromissos, a casa, a
grana e até ainda o afeto, é preciso inventar um jeito de recomeçar,
reconstruir. Na verdade devia-se reconstruir todos os dias. Usar da
criatividade numa relação. O problema é que, quando se fala em
criatividade numa relação, a maioria pensa logo em inovações no sexo,
mas transar é o resultado, não o meio. Um amigo disse no aniversário
de sua mulher uma das coisas mais belas que ouvi: "Todos os dias de
nosso casamento (de uns 40 anos), eu te escolhi de novo como minha
mulher".

Mas primeiro teríamos de nos escolher a nós mesmos


diariamente. Ao menos de vez em quando sentar na cama ao acordar,
pensar: como anda a minha vida? Quero continuar vivendo assim? Se não
quero, o que posso fazer para melhorar? Quase sempre há coisas a
melhorar, e quase sempre podem ser melhoradas. Ainda que seja algo bem
simples; ainda que seja mais complicado, como realizar o velho sonho
de estudar, de abrir uma loja, de fazer uma
viagem, de mudar de profissão.
Nós nos permitimos muito pouco em matéria de felicidade,
alegria, realização e sobre tudo abertura com o outro. Velhos casais
solitários ou jovens casais solitários dentro de casa são
terrivelmente tristes e terrivelmente comuns.

É difícil? É difícil. É duro? É duro. Cada dia, levantar e


escovar os dentes já é um ato heróico, dizia Hélio ellegrino. Viver é
um heroísmo, viver bem um amor mais ainda. O casal perfeito talvez
seja aquele que não desiste de correr atrás do sonho de que, apesar
dos pesares, a gente, a cada dia, se
escolheria novamente, e amém.

Lya Luft

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