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Michel de Certeau Dados Internacionais de Cat (Cémara Brasileira = COMIN) Nova ediodo, estabelecida e apresentada por Luoe Glad ‘agin ge oes y EDITORA VOZES Petropolis caPfruLo x A ECONOMIA ESCRITURISTICA “*Somentepalavas que and, pasando de boca em “YoRs MERE eos HO Ae UM pals, ante vivo 0 pore’ ~~ NFS. GRUNDTVIG! A epigrafe de Grundtvig, poeta e profeta dinamarqués, cujos caminhos vao todos na direcao da “palavra viva” (det levende ord), Graal da otalidade, autoriza hoje, como o faziam antigamente as Musas, a busca de vozes perdidas e que voltam hoje a nossas saciedades “escrit icas”. Procuro ouvir esses frdgeis efeitos de-corpi fia Iingua, vozes miltiplas, afastadas pela triunfal conquisfa da economia que, a partir da "modern. dade". (séculos. XVI XVM, se titularizou sob o nome de ura, 'd€> fas Tiodificada por tres ou 221 quatro séculos de trabalho ocidental. Nés ndo acreditamos, como Grundtvig (ou Michelet), que, por trés das portas de nossas cidades, no pr6ximo distante dos campos, existam vastas pastagens poéticas e “pags” onde falem ainda os cantos, 05 nntos e o proliferante sussurro da folkelighed (termo intradu- zivel porque o seu equivalente em nossa - de", foi também desvalorizado pelo uso que enquanto ele é para “povo” o andlogo de “nacior io se fazem mais ouvir, a no ser dentro emas escrituristicos onde reaparecem, Elas circulam, do e passando, no campo do outro. moderna indissociavel da “reprodugao” possibil prensa foi acompanhada pelo duplo isolamento do “Povo” (em relagdo a “burguesia”) e da “voz” (em relagio a escri conviegio que, lone, bem longe dos poderes econé: administrativos, “o Povo fala”. Palavra ora sedutora ora p g0sa, tinica, perdida {malgrado constituida em “Voz do povo” por sua prépria repressao, objeto de nostalgias, controles e sobretudo imensas campanhas que a yearticularam sobre a escritura por meio da escola. Hoje, “registrada” de todas as maneiras, normalizada, audivel em da a parte, mas uma ver “gravada”, mediatizada pelo radio, pela televisdo ou pelo disco, e “depurada” pelas técnicas de sua difusio, Onde ela mesma se infitra, ruido do corpo, torna-se muitas vezes a imitagdo daquilo que a midia produz e reproduz dela ~ a c6pia de seu artefato. InGtil portanto sair em busca dessa voz simultaneamente colonizada e mitificada por uma hist5ria ocidental recente. Nao existe aliés voz. “pura”, porque ela é sempre determinada por um sistema (familial, social etc.) e codificada por uma recepgao. Mesmo que as vozes de cada grupo componhiam uma paisagem sonora - um sitio sonoro - facilmente reconhecivel, um dialeto = um sotaque - se destaca por seu tragado numa lingua, como uum perfume; mesmo que uma voz particular se distinga entre mil por acariciar ou irritar o corpo que ouve, instrumento de miésica tocado por essa mao invisivel, ndo hé tampouco unici- 222 dade entre os ruidos da presenga, cujo ato enunciador influen- cia uma lingua quando a fala. Devesse por isso renunciar & ficgdo que reine todos esses ruidos sob 0 sino de uma “Voz", cultura prépria” - ou do grande Outro. A oralidade seinsinua sobretudo como um desses fios de que STH, Ta” Ei peiaandlse dessa economia, de sua implantagao histori- ca, de suas regras e instrumentos do seu éxito - enorme programa que vou substituir por uma hist6ria em quadrinhost = que convém comecat para detectar insinuagdes vocais no grande livro de nossa lei. Eu gostaria de simplesmente dese- har a configuracdo histérica criada entre nés pela disjungao entre escritura e oralidade, para indicar alguns de seus efeitos para destacar af alguns deslocamentos atuais que assumem a forma de tarefas. Referirse & escritura 2.3 oralidade-quero-precisar Togo de— saida, no postula. dois termos opostos, cuja contratiedade poderla ser ‘Superada or um terceiro, ou cuja hierarquizago re as quais Jacques Derrida dizia com razo que “tém como tiltima referéncia (...) a presenga de um valor ou de um sentido que seria anterior & diferenga”.’ No pensamento que as instaura, essas an postulam o principio de uma origem Sinica (uma arqueo! (um conceito teleol , ¢ portanto um discurso baseado nessa unidade Pelo contrério, sem que seja aqui 0 lugar para explicé-lo, suponho o plural como algo que a diferenca é constituinte de seus termos; ¢ que a lingua esté fadada a esconder indefinidamente por uma simbélica 0 tratialho estrufuranté da divisso Na perspectiva de uma antro- pologia cultural, néo se poderia aliés esquecer: 1) que essas “unidades” (por exemplo, escritura e oralida- de) sio 0 efeito de distingdes reciprocas dentro de cont bes historicas-sucessivas'e itibricadas. ‘tu. 223

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