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Umuarama, domingo, 1º de março de 2009 11

CRÔNICA
Sabes da Quaresma?
Monteiro Lobato
Encontra o Saci-Pererê
A preocupação com a preservação da cultura e folclore nacionais não Lobato que assina o livro sob o pseudônimo de Um
é nova. Em 1917, o grande Monteiro Lobato, criador do Sítio Demonólogo Amador. Para ajudar nas despesas
do Pica-Pau Amarelo, publicou uma pesquisa no Estadinho o escritor colocou anúncios especialmente
(apelido carinhoso da edição vespertina d’O Estado de desenhados com o tema Saci-Pererê pelo
São Paulo) e pediu para seus leitores lhe enviarem cartunista João Paulo Lemmo Lemmi, também
relatos de experiências com o Saci-Pererê. chamado de Voltolino.
Para tanto era só enviar uma carta com o De conteúdo simples de se ler,
seguinte questionário respondido: Como com um tema apaixonante e uma
o leitor havia descoberto o mito? Como é linguagem que varia conforme o grau
a crença nele nos dias atuais? E quais de instrução de quem escreve cada
experiências passadas pessoalmente ou história, o livro é um prato cheio para
ouvidas o leitor poderia contar? quem procura bons momentos de
O resultado desta enquête foi o conhecimento e prazer. Inclusive existem
livro Saci-Pererê, O Resultado de um lindíssimas passagens escritas com a
Acabou mais um carnaval e já estamos no quinto dia da Inquérito, publicado no ano seguinte, linguagem do matuto iletrado do interior, que
Quaresma. Pois é, aposto que você nem se lembrava mais disso, com quase 300 páginas cheias de são nada menos do que tesouros. Ainda mais
afinal na vida cotidiana da maioria das pessoas, esses quarenta histórias do endiabrado muleque se, assim como eu, você também ouvia essas
dias entre o carnaval e a páscoa não cheiram nem fedem, mas perereca. Alguns o descrevem como um histórias quando pequeno.
tem um monte de coisa interessante pra se saber a respeito. demoniozinho feioso, alguns como um moleque Inclusive esta obra não constava na
A Quaresma, do latim quadragesima, é o período litúrgico de sacana e perneta. Com gorro, com ou sem rabo, bibliografia oficial de Monteiro Lobato, que
quarenta dias que se inicia na Quarta-feira de Cinzas e vai até não importa, o que vale mesmo são as deliciosas ironizou o fato de sua estréia literária ocorrer
o Domingo de Páscoa. De origem Católica é quando os fiéis se histórias do tinhosinho sendo trazidas do por meio de uma obra não-assinada, pois ele
sintonizam com Deus e através de jejum, orações e abstinência esquecimento para a realidade. só organizou material de terceiros. Até que
de carne, preparam e purificam a alma para celebrar a A Primeira Guerra Mundial estava em seu em 1998, a Fundação Banco do Brasil e a
ressurreição e vitória de Cristo depois de seu martírio e morte. ápice em 1918, e Lobato usa essa obra para Odebrecht publicaram uma edição fac-similar,
Interessante é que nem sempre esse período foi de quarenta questionar o conceito de civilização nos moldes ou seja, idêntica à original, de cinco mil
dias. No início da Era Cristã o jejum era menor e mais severo: franceses que as elites brasileiras insistiam em exemplares para serem distribuídas à
os fieis não deveriam comer nada durante quarenta horas, reproduzir. Ele demonstrava a necessidade de se bibliotecas. Infelizmente esta edição está fora do
desde a tarde da Quinta-feira Santa até o Domingo de Páscoa. aprofundar os estudos sobre as lendas, crendices e costumes comércio. Mas não fiquem tristes, pois a Editora Globo, no início de
No séc. III, já se jejuava durante toda a Semana Santa. A brasileiros, para que pudéssemos conhecer mais sobre nossa cultura. 2008, publicou uma edição revisada e atualizada desta jóia do folclore
primeira referência aos quarenta dias de preparação foi feita no A tiragem inicial do livro foi de dois mil exemplares, bancados pelo próprio nacional. Livro mais bem recomendado é impossível. É imperdível.
Concílio de Nicéia, em 325 d.C., mas esse costume só veio a se
consolidar no séc. VII, com jejum obrigatório durante todo o
período, exceto aos domingos. Mas não se assuste, a gente
pode ficar tranquilo, pois desde 1966 só se é obrigado a jejuar
na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa.
O primeiro dia da Quaresma é a Quarta-feira de Cinzas, que
tem esse nome porque no ritual que precede a missa do dia o
sacerdote põe um pouco de cinza na testa dos leigos e na cabeça
dos clérigos. Estas cinzas são obtidas pela queima das palmas
bentas do Domingo de Ramos do ano anterior. Ao impor as
cinzas aos fieis é dito a frase que Deus disse a Adão quando o
condenou a comer o pão advindo de seu suor, no livro de
Gênesis, capítulo 3, versículo 19: “Lembra-te, homem, que és
pó, e que em pó hás de tornar”.
É também durante a Quaresma que a Cuipuna, árvore nativa
do Brasil, da família das Melastomáceas, gênero Tibouchina, se
enche com suas lindas flores de cor roxa. Ela é encontrada
próxima de cursos d’água, nas orlas dos brejos e capoeiras e
pelo seu período de florescência característico ela também é
chamada de Quaresmeira ou Flor-da-Quaresma. Coincidência
ou não, a cor roxa, que simboliza penitência e contrição é a cor
utilizada nos paramentos litúrgicos e nos tecidos que cobrem as
imagens dos santos nas igrejas durante a quaresma (pelo
menos algumas ainda fazem isso).
A mim, Quaresma lembra infância. Tive pouco contato com
esse lado litúrgico da coisa, mesmo estudando o primário em
colégio de freira lá em Cruzeiro do Oeste. O que rolava era um
medão que eu e toda a turma tínhamos desses dias antes da
Páscoa. Diziam que era quando os espíritos e assombrações
ficavam livres para ir e vir e aprontar diabruras, já que igrejas,
padres, santos, anjos, fieis e todo mundo estava cuidando cada
um de si.
É claro que isso era engodo pra manter as crianças matreiras
dentro de casa ou na igreja, junto com a família, pra ver se
pegavam gosto pela coisa. Mas eu, com nem dez anos de idade
completos, não queria nem saber de testar essa teoria, acatava “Capa da edição fac-similar do livro.”
qualquer conselho que me mantivesse longe de Sacis, Bruxas,
Curupiras, Mulas-sem-cabeça, Demônios, Fantasmas e toda
essa trupe sobrenatural.
Havia, naquele tempo, uma sensação sem igual de medo e
maravilhamento com esse mundo do inexplicável e da
imaginação, que por termos caído na ladainha da ciência e da
OS CARECAS Por Jefferson Silveira

maturidade já não se sente tanto. Dá saudade.

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Errata: O autor da crônica “Amor de Carnaval”, publicada
semana passada é Tiago Inforzato.

Cultura & Arte na Internet


Ficou com saudade daquele texto legal, ou só perdeu a
edição do Ilustrado de algum desses domingos? Seus
problemas acabaram! As páginas Cultura & Arte estão
disponíveis na internet, no meu blog, o Lobservando. É só
acessar www.lobservando.blogspot.com e estará tudo lá,
do jeitinho que saiu no Ilustrado.

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