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“A visão realista de Rio Branco permitiu-lhe perceber, como outros de seu tempo, o
peso dos Estados Unidos na nova distribuição do poder mundial e o fato de que a
América Latina estava em sua área de influência. Dir-se-ia que o Brasil não tinha
alternativa ao estreitamento das relações com os Estados Unidos, descartando a
possibilidade de uma aproximação com alguma potência européia.”1
Por mais pragmáticas que tenham sido as bases do alinhamento com os Estados
Unidos a partir das primeiras décadas da República, ela não dispensava, no plano
interno, uma construção ideológica, que aliás já vinha sendo gestada nos últimos anos
do Império. O Manifesto Republicano, de 1870, afirmava o americanismo, criticando o
regime monárquico brasileiro em um continente de repúblicas. Mesmo parte dos
monarquistas admirava o desenvolvimento dos Estados Unidos e a inventividade do seu
povo, identificado com a “capacidade superior” dos anglo-saxões, em um momento em
que o darwinismo social começava a se difundir entre os letrados. A constituição e as
organizações políticas americanas eram vistas como exemplo, o que se revela de modo
claro no nome oficial assumido pela república brasileira, Estados Unidos do Brasil, e na
constituição de 1891, que seguiu um modelo federativo e liberal.
Em 1909, a Revista Americana viria a assumir um papel fundamental na
sustentação ideológica da nova tendência americanista da política externa brasileira. Em
suas páginas, letrados e diplomatas construíam a interpretação brasileira dos ideais
moroístas e panamericanistas, procurando estabelecer o papel do Brasil no concerto
americano e defendendo a orientação do governo. Os artigos de Joaquim Nabuco,
Tristão de Alencar Araripe Junior, João Dunshee de Abrantes, Manoel de Oliveira Lima,
Helio Lobo, Heitor Lyra e do próprio Barão do Rio Branco são exemplos do
pensamento americanista brasileiro no período, refletindo, ao mesmo tempo, a imagem
dos Estados Unidos no Brasil da primeira república e a imagem que o Brasil procurava
passar de si próprio no contexto internacional, pois muitos desses artigos eram
traduzidos para o inglês e o espanhol e circulavam nos meios acadêmicos e
diplomáticos estrangeiros.
1
CERVO, Amado. História da política exterior do Brasil. Brasília: EdUNB. 2008. P.185
Evidentemente a mudança de orientação na política externa brasileira encontrou
resistências internas. Parte dos letrados brasileiros, em especial os monarquistas, como
Eduardo Prado, não via com bons olhos a aproximação com os Estados Unidos,
entendida como prejudicial aos interesses nacionais. Em A ilusão americana, o autor faz
duras críticas ao americanismo e à posição subalterna do Brasil com relação aos norte-
americanos, defendendo as antigas relações com as potências européias. Outros, como
Serzedelo Correia, propunham um modelo autonomista, de acordo com o qual o Brasil
não deveria se alinhar com país algum, e sim perseguir um desenvolvimento próprio.
O objetivo desse pequeno ensaio é contrapor as visões americanistas da primeira
república – expressas na Revista Americana – às críticas de Eduardo Prado e Serzedelo
Correia, apresentadas, respectivamente, em A ilusão americana e O problema
econômico do Brasil. Mais do que uma discussão restrita à orientação da política
externa brasileira, creio que esse debate pode ajudar a compreender alguns dos
diferentes projetos de país propostos por pensadores sociais na passagem do século XIX
para o século XX..
“ Qual o governo, neste nosso continente, que primeiro aceitou a chamada doutrina
de Monroe?
Pode responder-se sem hesitação: - o governo Imperial do Brasil.”7
4
JUNIOR, Araripe. “A Doutrina Monroe” in: Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação
intelectual – edição fac-simile. Brasília: Funag. 2001 p.55
5
Idem. P.56
6
Idem. P.72
Além de não ser uma novidade da política externa republicana, as relações
privilegiadas entre Brasil e Estados Unidos correspondem, na visão do Barão do Rio
Branco, aos mais altos interesses brasileiros. Isso porque garantem a segurança do país
contra os interesses imperialistas das potências européias, e impedem que outras
repúblicas latino-americanas incitem o poderoso exército americano contra o Brasil,
como já tentaram fazer:
“ Basta lembrar que se a ocupação militar francesa de 1836 em Amapá cessou no ano
de 1840, para isso concorreram as representações do governo dos Estados Unidos
apoiando em Paris as do Brasil e Inglaterra.
(...)
Todas as manobras empreendidas contra este país em Washington, desde 1823 até
hoje, encontraram sempre uma barreira invencível na velha amizade que felizmente une
o Brasil e os Estados Unidos, e que é dever da geração atual cultivar com o mesmo
empenho e ardor com que cultivaram os nossos maiores.”8
“ A pressão em favor da paz da América sobre a Europa é a maior pressão que pesa no
mundo para conter a guerra. A América, graças a doutrina Monroe, é o continente da
paz, e esta colossal unidade de paz, interessando profundamente outras regiões da Terra
– o Pacífico inteiro, pode-se dizer, - forma um Hemisfério Neutro e equilibra o outro
Hemisfério, que poderíamos chamar de Hemisfério Beligerante.”9
7
PARANHOS, José Maria da Silva (Barão do Rio Branco). “O Brasil, os Estados Unidos e o
Monroísmo”, in: Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação intelectual – edição fac-
simile. Brasília: Funag. 2001 p.125
8
Idem, pp.137-140.
9
NABUCO, Joaquim. “A parte da América na civilização” in: Revista Americana: uma iniciativa
pioneira de cooperação intelectual – edição fac-simile. Brasília: Funag. 2001 p.27
no artigo publicado na Revista Americana em 1912, é provável que ele tivesse enorme
importância nas considerações estratégicas do Ministério dos Negócios Estrangeiros,
pois a exportação de café era, como se sabe, a principal atividade econômica brasileira
no período da República Velha.
Apesar das negativas do Barão do Rio Branco, adequadas aliás ao discurso
diplomático, que tradicionalmente afirma a continuidade da orientação da política
externa, a maior parte dos analisas atuais considera que houve de fato uma inflexão
importante na política externa brasileira com a passagem do Império para a República.
Essa inflexão correspondeu, de um lado, aos interesses pragmáticos do Brasil, como a
garantia de suas fronteiras e do mercado americano para os seus produtos de exportação,
mas também representou uma identificação ideológica com a “Grande Nação do Norte”.
Os Estados Unidos se converteram em um espelho no qual os líderes republicanos
buscavam enxergar o futuro do Brasil, desviando o olhar do velho e decadente mundo
europeu. Joaquim Nabuco, sempre menos contido em seus escritos do que o Barão do
Rio Branco, revela esse pensamento com clareza em um artigo publicado no primeiro
número da Revista Americana: “... nunca pensaremos em esconder o nosso grande
orgulho em reconhecer nos filhos de Washington os modeladores da nossa civilização
americana.”10
10
Idem, p.36
É preciso notar, contudo, que as críticas feitas pelo autor ao americanismo da
política externa brasileira não negam a grandeza, a prosperidade e a importância
internacional dos Estados Unidos na passagem do século XIX para o XX. Observa-se,
aliás, uma clara admiração pela energia e inventividade do povo americano, assim como
pelo progresso material daquele país: “O solo mais rico do mundo, habitado pela raça
mais enérgica da espécie humana – eis o que são os Estados Unidos.”11 A ilusão
americana denuncia, sobretudo, a idéia de que as instituições norte-americanas – isso é,
o republicanismo – devam ser copiadas por outros povos, pois a prosperidade daquele
país não adviria de suas instituições, e sim do seu povo e das suas condições naturais.
Eduardo Prado se contrapõe, portanto, à tendência de vários letrados brasileiros, entre
eles Joaquim Nabuco e outros futuros colaboradores da Revista Americana, em buscar
inspiração na constituição americana para o processo de construção do Estado
Republicano no Brasil:
“ [A] escola fatal dos imitadores de instituições não atende ao contra-senso do seu
sistema, nem aos funestos resultados que produzem as leis transplantadas
arbitrariamente de um país para outro. (...) Copiemos, copiemos, pensam os insensatos,
copiemos e seremos grandes!”12
11
PRADO, Eduardo. A ilusão americana. São Paulo: IBRASA 1980. p.167
12
Idem. p.168
13
Idem. p. 24.
Também no campo comercial, a aproximação entre Brasil e Estados Unidos é
contestada por Eduardo Prado. Embora não ignore que o país represente o principal
mercado para o café brasileiro, o autor afirma que esse comércio atende principalmente
aos interesses dos Estados Unidos, e questiona os tratados comerciais assinados por
ambos os países, concedendo benefícios alfandegários em setores específicos:
“ Os americanos não compram café por amizade, nem por filantropia. Compram
porque querem bebê-lo, e, não o tendo em casa, procuram-no onde encontram, e o país
produtor que mais lhes convém é o Brasil. Mas, ainda em relação ao café, é força
confessar que a feição dos mercados europeus é mais favorável ao Brasil do que o
mercado de Nova Iorque. Seja pelo que for o motivo, a tendência constante dos
mercados europeus é para alta e Nova Iorque é para baixa.”14
“ Nunca dos Estados Unidos veio o mínimo auxílio para as nossas indústrias, para a
nossa lavoura ou para a nossa viação férrea. Há perto de quatrocentos mil contos de réis
da Inglaterra empregados no Brasil (...) E o povo inglês é tão superior que, em 1865,
estando o Brasil de relações rotas com a Inglaterra, por motivos da questão Christie (...)
conseguiu levantar em Londres um empréstimo, na ocasião em que iniciávamos uma
guerra terrível.”15
14
Idem. p.165
15
Idem. p.162
política externa. Afinal, a monarquia também não seria uma instituição “importada”?
Não estaria o autor buscando inspiração no modelo das monarquias européias para a
formação das instituições brasileiras? Seriam os europeus parceiros tão melhores para o
desenvolvimento do Brasil do que os norte-americanos?
A ilusão americana sem dúvida propõe um modelo de política externa e
organização institucional radicalmente diferente do defendido nos artigos da Revista
Americana, mas, curiosamente, esses dois pólos se aproximam quando consideramos
que ambos advogam em favor de uma postura de alinhamento com as grandes potências
do fim do século XIX e início do século XX, variando apenas com relação a qual
potência deve ser definida como central para os interesses brasileiros – os Estados
Unidos ou a Inglaterra. A perspectiva de um desenvolvimento independente sequer é
aventada com seriedade, pois o mercado interno brasileiro é visto como débil, e o povo
como despreparado e incapaz. Eduardo Prado, portanto, desvia o olhar do espelho norte-
americano, mas faz dos ingleses o seu exemplo de sociedade e civilização.
“ A solução dada à crise do café, ou, em sentido mais geral, à crise da lavoura, é
parcial e não terá o alcance desejado se não adotarmos uma política econômica que
defenda os interesses de nossa produção, que incremente e avigore as nossas indústrias,
que desenvolva a navegação nacional, que ampare o comércio brasileiro, que, enfim,
faça com que fiquem no país uma grande parte dos lucros, dos proveitos de toda
atividade econômica.”16
“ O que quero, o que desejo, o que entendo que devemos fazer é a nacionalização
lenta e segura de todas essas forças; é a incorporação contínua de todos esses elementos,
que nos vem do exterior, por um conjunto de medidas que criem óbices à remessa para
fora do país de todas as nossas economias, e que tenham o poder de ir aclimatando aqui
parte dos lucros, que, por sua atividade, estrangeiros e portugueses tem sabido criar.”17
16
CORREIA, Serzedello. O problema econômico no Brasil. Brasília: Senado Federal, 1980. p.21
17
Idem. p.72.
investidores são americanos, ingleses, alemães ou argentinos, eles estabeleceriam
relações desfavoráveis para o Brasil de qualquer forma. Tendo isso em vista, a
prioridade do país deveria ser a criação de uma economia independente, que não se
limitasse a exportar produtos agrícolas, de baixo valor, para o mercado internacional e
importar em contrapartida bens de valor mais alto. O conceito de “colonização
econômica” proposto pelo autor diz respeito exatamente ao desequilíbrio na balança
comercial brasileira, que teria saldo negativo com uma série de países:
18
Idem. p.23
Conclusão – a vitória do modelo americanista
PARANHOS, José Maria da Silva (Barão do Rio Branco). “O Brasil, os Estados Unidos
e o Monroísmo”, in: Revista Americana: uma iniciativa pioneira de cooperação
intelectual – edição fac-simile. Brasília: Funag. 2001