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o L f T , C D O P A T M 6 N

6. Os jogos cruéis do esquecimento

À recordação é a embalagem, e o esquecimento, o conteúdo.


W. Benjamin, Mito e violência.

ilan Kundera conta-nos uma história na qual uma caixinha de

M recordações exerce de longe os mais cruéis efeitos', Tamina é


uma emigrada checa cujo marido morreu. Do seu amor, da
vida em comum com ele durante onze anos, o único vestígio material que
.subsiste é a fotografia do seu passaporte e um pacote, deixado em Praga,
contendo a sua correspondência mútua e os onze cadernos do diário de
Tamina. A parte disso, nada mais, nem sequer um túmulo, visto que as
cinzas do marido foram dispersas. Restam recordações, mas estas vão-se
apagando, e Tamina fica desesperada, porque o passado se vai tornando
cada vez mais pálido. A foto é o suporte, longínquo, destas recordações
que se desvanecem. Mas isso não basta, faltam cores, um volume, uma
matéria. Por outro lado, a cronologia dos 'onze anos passados juntos, a
sucessão das férias e das festas tornou-se-lhe incerta, lacunar. Tudo isso
ficou retido nas cartas e nos cadernos conservados lá na terra, em Praga,
em casa de uma sogra de quem ela não gosta e que não gosta dela. Todos
os esforços de Tamina se organizam então em torno desta procura das
memórias perdidas. Compra um caderno, divide-o em onze partes e tenta
reinscrever nele acontecimentos e situações, mas a sua sucessão temporal
escapa-lhe, pelo que este caderno, reflexo dos papéis de 'Praga, mantém-
-se quase vazio. Já não sabe particularmente atribuir datas aos nomes que
o marido lhe dava e assim estas alcunhas "voam fora do tempo, livres e
loucas, como pássaros escapados de um viveiro". Portanto, é preciso fazer
tudo, aceitar todos os sacrifícios, para recuperar os preciosos papéis. Mas

1 Le LilJ1edu rire et de l'oubli, quatriêrne partie, "Les lettres perdues", Gallimard,


1979. .

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tratar-se-á apenas de rememorar e de reinscrever estas recordações na sua um processo de recalcamento pelo inconsciente. A distinção entre estas
autêntica sucessão temporal? É o que crê Tamína no início; só que algo de duas formas de esquecimento não deixa aliás de levantar alguns proble-
muito mais cruel a faz sofrer: é que ela descobre progressivamente que o mas. Freud tendia a pensar que o esquecimento vulgar (esquecimento
verdadeiro valor destes escritos é o de se destinarem exclusivamente a ela, definitivo, sem qualquer tipode processo) não existe: "Desde que, tendo
de serem a esse título aquilo que a representa a si própria no seu amor, no voltado atrás num erro, deixámos de considerar os nossos esquecimentos
seu passado, em Praga. E daqui resulta todo um jogo de correspondências correntes como algo devido a uma destruição dos vestígios mnésicos,
entre aquele pacote de papéis e o seu próprio corpo. Quando fica a saber portanto ao seu aniquilamento, tendemos para esta concepção oposta:
que as cartas foram lidas (hipocritamente) pela sua sogra, ela resigna-se nada na vida psíquica se pode perder, nada desaparece do que se formou,
a deixar-se quase violar por um homem que lhe propõe (hipocritamente tudo se conserva de uma forma qualquer e pode reaparecer em certas
também) ajuda. O ultraje que sofre ajuda-a mesmo a apertar mais os laços circunstâncias favoráveis, como por exemplo ao longo de uma regressão
com as suas cartas desde então violadas: "Eram cadernos devastados e suficiente." (Ma/"estar da Civilização). Trata-se aqui não apenas de uma
violados, como ela própria, manchada; tinham, portanto, ela e as suas concepção arquívística do inconsciente - nos seus primeiros textos,
recordações, o mesmo destino fraterno. Ela amava-as ainda mais." No Freud designa simplesmente como memória aquilo a que seguidamente
fantasma de Tamina, as suas cartas e o seu corpo passam a ser um só; as chamará o inconsciente - mas da hipótese ainda mais forte, e afinal
cartas estão violadas mas vivas como o seu corpo, e o seu corpo encarna estranha, de um arquivamento total pelo aparelho psíquico'. Aliás, é
aqui mesmo as cartas ausentes. O mesmo esforço desesperado de encarnar verdade que o próprio Freud reconhece que, embora mantenha a sua
o seu marido morto no corpo do homem que abusa dela levou-a a tentar hipótese, não a consegue sustentar: "Talvez nos devêssemos contentar
"esculpir" sobre ele a imagem do seu marido. Mas quando se depara com com a pretensão de que o passado não está necessariamente exposto à
a recusa deste homem em desempenhar um papel de mediador - indo destruição. Talvez ainda, um grande número de elementos antigos se-
buscar as cartas a Praga - todos os seus esforços caem por terra, e é, ao jam a tal ponto apagados ou reabsorvidos que nenhum acontecimento
contrário, a imagem deste homem que expulsa a memória do seu marido: os possa doravante fazer reaparecer nem reviver ... Tudo isso é possível,
''Ah, sim! Meu Deus, a memória do desgosto é maior que a memória da mas' na verdade nada sabemos." (Op. cir.) Seja qual for a validade desta
ternura." Os laços que Tamina pacientemente tecera entre todas essas hipótese, continua a ser possível distinguir .duas formas polares (entre
coisas - o seu corpo, as suas cartas, o seu caderno, a fotografia, o corpo do as quais se estende um espectro contínuo de níveis de memória): o
outro - desfazem-se de uma só vez. Não voltará a telefonar para Praga. esquecimento que deixa escapar sem resistência uma multíplicídade
O que se mostra neste relato é o total desamparo do sujeito abando- de factos insignificantes (deixando assim de lado a questão de saber se
nado a um conjunto de memórias que, sendo cruciais para ele, todavia se não resta deles qualquer vestígio); e aquele que, pelo contrário, sendo
apagam, memórias que nenhum objecto pode materializar nem fixar como relativo a elementos importantes para a vida psíquica, se pode analisar
transferência para o futuro. Tamina sofre sob o peso das suas recordações
insuportáveis e, contudo, demasiado frágeis, as quais nada pode "recoser" 2 Curiosamente, Freud propõe uma analogia (a imagem de Roma sobrecarregada

à sua vida. Sossobra assim na melancolia pela ausência de um objecto com todos os seus monumentos dos quaisnenhum seria destruido) para seguidamen-
te a rejeitar, dado que ela não serve para a sua hipótese de 'arquivamento total: "O
memorial, esse objecto que adquire o seu valor singular ao articular os
desenvolvimento, por mais pacifico que seja, de qualquer cidade implica demolições
diferentes planos da memória. .
e substituições de construções; uma cidade é, pois, a priori, imprópria para qualquer
Mas, paradoxalmente, este valor singular acaba por ser, em última comparação que a assemelhe a um organismo psíquico." (Op. cit.) Pela nossa parte,
análise, um poder de esquecimento. Poder de esquecimento que é dife- somos tentados a seguir a analogia» o desenvolvimento do psiquismo na sua forma
rente, quer do esquecimento vulgar da consciência, quer dessa forma de mais calma, menos traumática, implica o esquecimento de numerosos elementos
esquecimento que a psicanálise qualifica como sintoma e que resulta de insignificantes.

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como recalcamento, como lesão da memória'. Naquilo que assim parece tem o esquecimento, mas,um esquecimento consentido simultaneamente
escapar à memória consciente, o inconsciente passa por trás e, em última em todos os níveis da memória. O objecto memorial não é, portanto, um objecto
instância, "tapa os buracos" da memória fraquejante. Mas, neste caso, o fetiche nem um objecto de colecção, pois estes são a marca de um recalcamento,
que causou o recalcamento arrisca-se a voltar sob a forma de sintoma. Daí uma marca deslocada e de certa forma extraviada. As cartas perdidas de
a alternativa fundamental em psicanálise entre rememoração e repetição; Tamina constituem esseobjecto memorial, e é a sua ausência que lhe proíbe
entre a reparação do "mau esquecimento", esquecimento negativo, por esquecer o luto do seu marido e que produz todos os deslocamentos para
um lado, e o retorno do recalcado sob a forma de sintoma, como efeito outros objectos signíficantes que tanto a fazem sofrer".
deste esquecimento negativo. A conservação memorial agrupa, portanto, todos os objectos que
O objecto memorial permite escapar a esta alternativa, e é o que lhe permanecem nos sítios do luto, permitindo assim outras tantas ab-reacções
confere o seu papel original e activamente "terapêutíco", Ele é por exce- atenuadas e espontâneas, ao passo que a conservação "deslocada" de ob-
lência o objecto do saber esquecer ao tomar o lugar do sintoma (eventual) e jectos fetiches ou de colecções ou confirma fixações neuróticas ou estados
ao desempenhar neste lugar um papel libertador, próximo nos seus efeitos melancólicos. Ela permite economizar o trabalho da anamnese, ou seja,
dos da anamnese analítica, que visa, ela também, em última instância, um recentramento da rememoração que possibilita um esquecimento sem
o esquecimento. lesão, já que ela autoriza directamente um esquecimento progressivo e que
Este papel libertador encontra curiosamente a sua origem na capaci- não deixa marcas extraviadas no inconsciente. O seu lugar na estratégia
dade de fixação, na capacidade de costura (em vários planos) do objecto do esquecimento define-se assim claramente. Ele não se situa nem no
memorial. Ele é, efectivamente e em simultâneo, objecto mnemónico e esquecimento neutro, que é o esquecimento das coisas insignificantes,
objecto de sutura; logo, em posição de religar, num ponto importante para nem no esquecimento negativo, que não passa de recalcamento e memória
a vida psíquica, os diferentes níveis de memória, isto é, de fixar o trabalho extraviada no inconsciente. Ele está no esquecimento positivo, aquele que
de luto na sua própria causa, causa esta cujo testemunho continua a ser o a cura analítica procura idealmente atingir, e que assim se obtém não sem
objecto, impedindo assim o consciente de esquecer e o recalcamento de trabalho, mas pelo menos sem desvios.
se produzir. O que quer ainda dizer que ele materializa um ponto singular Os objectos memoriais constituem, pois, o aparelho desse poder de
de coalescência, não permitindo ao inconsciente efectuar o trabalho de esquecimento de que fala Nietzsche e que é o único a abrir-se para o futuro.
deslocamento, segundo uma cadeia associativa de significantes que pode Pois, embora surjam como simples vestígios, eles não pertencem apenas
ressurgir sob a forma do sintoma neurótico. O objecto memorial surge a uma "memória dos vestígios" voltada para o passado. Eles articulam
assim como um meio de fixação, como um analisador, que permite efectuar esta memória com uma "memória das palavras", associando assim uma
o trabalho de luto sobre o próprio terreno onde ele ocorre. E neste terreno mnemotécnica, que pode ser cruel, com discursos que, escapando ao
próprio ele permite, enquanto objecto de sutura, levar (geralmente) a bom terreno fechado do passado, afirmam a autonomia, ou mesmo a irres-
termo esse trabalho, graças a todos os discursos de que pode ser pretexto. ponsabilidade de uma fala voltada para o futuro'. É no fundo a palavra
Pois estes discursos, desenvolvendo-se segundo uma autonomia relativa
(relativa, pois continuam carregados do lastro da sua causa original), permí- 4 O objecto memorial pode ser aproximado da recordação, particularmente da
recordação de infância, conservada no património mnésico. tem a mesma insignifi-
cância aparente, a mesma presença/ausência na memória, o mesmo isolamento no
3 Aquele cuja cura é o objectivo teórico da análise: "Se o objectivo prático do contexto (cf a análise de Freud de uma recordação de infância de Goethe). Mas a
tratamento é a supressão de todos os sintomas posslveis e a sua substituição por pen- recordação deforma-se, desloca-se,torna-se recordação-ecrã, deve ser interpretada, etc.
samentos conscientes, existe um outro, o objectivo teórico, que é a tarefa de curar as Falta-lhe a força de invocação mnemotécnica do objecto.
lesões de memória do doente." "Fragmenrs d'une analyse d'hystérie (Dera)" in Cinq S Sobre a distinção entre duas memórias em Nietzsche, cf. G. Deleuze, Niet:(,Sche et la
/Jsychanal,ses, PoU.F.,po 10. philosophie, PoUoF.,1970. Sobre o elo entre poder de esquecimento e mnemotécnica, cf

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extremas estende-se um cortejo de objectos que apresentam uma dupla completa se não fizerem antecipadamente a dádiva da sua própria vida à
dimensão, sendo esse particularmente ocaso de todos os objectos de luto. pátria, se for caso disso'.
Um túmulo é logo à partida um memorial colectivo, não da morte de tal No fosso que separa o luto individual ou ritual do luto colectivo, há que
homem particular, mas da morte em geral. Os monumentos aos mortos, reconhecer sobretudo a intervenção de poderes externos que tiram uma
surgidos discretamente antes da primeira guerra mundial e generalizados mais-valia de sentido do empobrecimento de uma simbólica. Ao colecti-
depois por iniciativa dos municípios (trinta mil monumentos foram vizarem os objectos memoriais e os rituais que lhes estão associados, eles
construidos entre 1920 e 1925), são memoriais colectivos municipais nos perturbam o curso normal da memória e do esquecimento, substituindo
quais se pode ler a marca do Estado. um passado vivido pelo imaginário de um passado eternizado. De tal modo
Esta fillação acompanha-se de uma mudança de estatuto. O memorial que estes objectos, ao passarem a ser colectivos, perdem o essencial da sua
colectivo" é enriquecido com significações novas, e protege real e simboli- eficácia simbólica: deixam de poder concluir o luto - particularmente
camente. Mas é também empobrecido. Pois ele não pode simbolizar senão quando eles próprios desaparecem. Carregados de significações novas,
de longe as memórias individuais, apenas resumindo o que elas partilham podem durar enquanto o Estado os proteger, porque este considera-os
em comum: o luto de cada um não pode ser reconhecido na sua inteira elementos úteis à sua própria semiótica. É por essa razão que o espaço
específlcídade, mas apenas através de alguns elementos representativos. social se satura de objectos comemorativos, de aniversários e de cerimó-
Reencontramos aqui a aporia (hegeliana) do reconhecimento do sujeito nias, sem que a memória colectiva fique mais rica com isso.
pelos outros e pelo Estado em particular.JPara além disso, não sendo a
colectividade nunca perfeitamente unânime, a instituição de um memorial
colectivo é com frequência conflituosa, laboriosa, e culmina em objectos
cujo simbolismo é pobre ou mesmo estereotipado.
Ao mesmo tempo ele é enviesado em proveito do Estado, garante da
colectivização, que inscreve no objecto memorial os signos da ideologia
dominante e da sua própria. Observamos, por exemplo, nos monumen-
tos aos mortos o aparecimento, mais ou menos discreto, dos signos de
uma nova aculturação: laícízação da sepultura, eliminação dos signos
culturais locais, unlversalízação do discurso. E sobretudo a aparição de
uma problemática subtil da divida, cuja reciprocidade é organizada pelo
monumento: os vivos contraíram uma dívida para com os mortos da qual
se podem libertar em parte através de rituais; mas esta libertação não será

6 Como com o fenómeno da colecção, a generalização destas trajectórias que co-


lectivizam objectos memoriais índívíduaís ou rituais, reflecte uma mudança cultural: a
generalização dos valores individualistas (e a sua imediata exploraçãopelos poderes). A
literatura atesta pela sua parte o aparecimento do objecto memorial no campo colecti-
vo. Chateaubrland, Stendhal, Baleac,Mallarmé interrogam-se já sobre as-relaçõesentre
objectos e memória e reconhecem a certos objectos de qualidade o valor de indutores
da recordação. Mas é com Maupassant e sobretudo, evidentemente, com Proust, que
o objecto vulgar, sem qualidades (nem estéticas, .nem rituais: objecto estritamente 7 Cf. Y. Hélías, "Pour une sérnlo-politique des monuments aux morts", Mémoire

pessoal) alimenta a recordação e o discurso, e se torna o herói do texto. de sciences pO!itiques, Universíté de Rennes, 1978.
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"que levanta voo" que liberta o objecto da sua função de luto. É por que tenha escapado à' destruição. Nestas condições, mesmo o mais insig-
isso que o verdadeiro objecto memorial é um objecto autónomo, um nificante dos destroços adquire valor de tesouro. Um vaso, um livro, uma
herói servido pelo discurso, como sublinha Michel de Certeau a pro- , maçaneta de porta adquirem uma significação exorbitante e tornam-se
pósito da camisa de cãnhamo à qual o livro de Pierre Jakez Hélias, Le relíquias. Tal comportamento inscreve-se muito exactamente-na procura
Cheval d'orgueil, é dedicado. Esta camisa que se vai passando de geração de um objecto memorial. Mas nestas circunstâncias excepcionais acontece
em geração, como a enxada, o guarda-fatos ou as vestes folclóricas que muitas vezes que os comportamentos dos habitantes tomem, ao mesmo
tiramos cá para fora nas grandes ocasiões, estes são os heróis do dis- tempo, um outro curso, para alcançar uma posição colectiva que trans-
curso: "O objecto é a relíquia de toda uma história, e esta história está cenda as buscas individuais. Esta posição colectiva pode inscrever-se de
lá encolhida dentro dele. Ao lado, pode haver alguém que fale, mas o diferentes maneiras. Por exemplo, na reedífícação de um monumento
seu discurso consistirá essencialmente em desdobrar o que está contido destruido. Ou até, como no caso, exemplar a este respeito, de Varsóvia,
no objecto. É portanto uma história injuntiva, quero dizer que há uma na reconstrução fiel e minuciosa do centro histórico da cidade. Ou ainda
lição desta história, contida no objecto: quem investe ou veste a camisa de na reactivação simbólica de um edifício poupado. O que é deste modo
cânhamo ou a enxada deve fazer isto ou aquilo. Afinal servimos o objecto reconstruido ou reanimado assume o valor de memorial, memorial per-
ou a sua própria história." (Míchel de Certeau, Faculdade de Psicologia, tencente simbolicamente a todos, significando colectivamente o luto,
Universidade de Genebra, 1978.) subsumindo todas as relíquias individuais. Da mesma maneira, quando
Mas tal objecto memorial passou a ter valor colectivo. Éuma relíquia a morte de uma pessoa provoca uma emoção colectiva, esta emoção pode
ritual, sendo o rito partilhado num espaço cultural determinado. Houve concretizar-se, com ou sem intervenção do poder politico, através de um
um deslocamento: da conservação privada! individual para a conservação memorial colectivo, ou vários ( o seu túmulo, um monumento, uma placa
privada/social; o objecto e a sua história não é apenas um elo (temporal) comemorativa, um nome atribuído a uma rua, etc.),
entre as gerações, como ainda um elo (espacial) entre os membros da co- Em todas estas situações, a emergência de um memorial colectivo
lectividade. Mais precisamente, o objecto apresenta uma dupla face: na sua explica-se por uma configuração particular de simetria das percepções
individualidade, ele é o objecto memorial da família e não é equivalente individuais. Cada qual está mergulhado num luto comparável ao luto
a nenhum outro; mas pelo seu género, é um signo cultural equivalente a dos outros. Um mesmo objecto pode assim memorializar aquilo que é
outros signos na mesma cultura. E quando o discurso surge num livro, comum a todos os lutos particulares; a sua significação pode ser partilhada
muda mais uma vez de estatuto, entra num museu escriturário e torna- por todos. Para retomar a terminologia sartriana, podemos dizer que o
-se signo (monumento) numa outra cultura que já não é tradicional. É luto põe o grupo em fusão, num ponto essencial. Tal situação, por muito
a estas trajectórias do objecto memorial individual para outros espaços dolorosa que seja, produz um beneficio secundário, sob a forma desta
mais colectivos que devemos agora prestar atenção. comunhão, desta congregação da colectividade em torno do monumento
memoriaL Este não é pois apenas o símbolo de um luto colectivo (um
único objecto para subsumir todos os objectos memoriais individuais);
o memorial colectivo ele é de forma mais latente o signo desta fusão (que só dura um momen-
to) que liga a colectividade num mesmo movimento de compaixão e de
Nas cidades destruí das pela guerra, a mesma cena patética repete-se: compensação do luto.
os habitantes procuram nas ruinas das suas casas um objecto qualquer Há por conseguinte uma flliação incontestável e directa entre o objecto
memorial individual e o memorial colectivo, um elo entre o destroço mais
J. Derrída,
De la grammatologie, Mínuít, 1967. Segundo este autor, a escrita surge como ínfimo e o monumento mais grandioso (o túmulo do soldado desconhe-
mnemotécnica e poder de esquecimento: o objecto memorial é, portanto, "escrita". cido, o centro reconstruido de Varsóvia, etc.). Entre estas duas situações

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POL!TICA D o PATRIMÓN o

7. Um luto interminável

C
onservação e passado parecem índíssoluvelmente ligados. Uma
vez que conservar é pôr qualquer coisa de parte numa tentativa
de a subtrair aos efeitos reais e simbólicos do tempo, isto significa
que os objectos conservados foram criados num passado mais ou menos
longínquo; ou então, se têm uma origem recente, são destinados a aparecer
como "objectos do passado" no futuro e passam a ser, a partir de agora,
tratados no modo do passado. A conservação inscreve-se-assim na aplica-
ção d~ relação com o passado ou mais exactamente com a passéité*, como
representação e materlalização do passado no presente e para o futuro, por
um lado; como tratamento do presente como futuro passado, por outro.
Conservação do passado, portanto. Aexpressão parece clara e judicio-
sa. Mas ela só é clara na medida em que a separação passado/presente/
futuro nos parece evidente. Ora, esta separação é largamente uma inven-
ção da modernidade, e é sem dúvida a partir desta invenção que se pode
compreender a paixão da conservação na nossa sociedade actual.
Portanto, se quisermos abordar a questão da conservação ao nlvel
social de um ponto de vista que não seja nem demasiado local nem
apenas puramente descritivo, há que evitar reduzi-la a uma dimensão
exclusivamente temporal. O passado conservado não é só o que existiu
há muito tempo; é o conjunto de todos os elementos que são postos de
parte porque deixaram de ser Operatórios na sociedade presente. Da mesma
maneira, o presente preservado hoje, porque se supõe ser o "passado"
de amanhã, é composto por elementos que se julga que "vão passar" , ou
seja, cessar em breve de ser operatórios.
Todas estas coisas são instituídas e tratadas como vestígios. Trata-se
efectivamente de conferir o estatuto de vestígios, pois esta noção não é
um dado adquirido. Do mesmo modo que um velho móvelnão é neces-
sariamente um móvel "antigo" riem muito menos um móvel "histórico",

• Ver nota, p. 33 (N. da T.).

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constituir um vestígio implica uma operação, individual ou colectiva, que
Pelo que as mutações na ordem da conservação hão poderão ser senão o
tem sempre Uma significação cultural.
reflexo das mutações na relação geral com a morte e com o írreverstvel,
Um vestígio é fundamentalmente o que o ser vivo deixa atrás de si, e consequentemente, com o tempo.
irreversivelmente, e em particular depois da sua morte. Conservar ves-
tígios é sempre guardar qualquer coisa que surge, através do sistema de
crenças ou de valores prevalecente, como o resto da vida. É aliás por isso Conservação simbólica
que um dos pólos de referência universal das práticas conservatórias,
talvez mesmo a sua origem mais longínqua, é constituído pelo cadáver e Quando uma sociedade não exclui os mortos, antes os aceitando como
pela sepultura. São estes restos da vida que simbolizam de maneira mais uma presença invisível no seu seio, também não acumula os vestígios deixa-
imediata, e mais brutal, o que ultrapassa o tempo da vida, o que escapa dos por eles. Isto não quer de modo algum dizer que a sepultura não exista
à morte. Suportes materiais de crença nas sociedades tradicionais, eles numa sociedade que reconhece essa presença invisível ou creia na conser-
continuam a povoar todo o pensamento do passado, toda a atitude con- vação da alma; Mas neste caso a sepultura remete para um Ser invisível, ela
servatória, na sociedade moderna.
participa da natureza transcendente do objecto sagrado que assinala uma
A conservação dos vestígios, sejam eles quais forem, apresenta pois presença divina. Ela surge como objecto de sutura - neste caso, colectivo
sempre uma dimensão funerária, ou seja, no fundo, uma função de protec- 0i:..
- entre o visível e nvisível, entre o presente e o passado irreversível.j"
ção dos vivos. Trata-se sempre de gerir um espaço e de organizar práticas Nas sociedades tradicionais, observa-se assim todo um jogo de tran-
que retenham. nele tudo o que possa exceder os limites da vida: memória, sições entre a vida e a morte, uma série de habitações para as estadias
discursos, história, obras, objectos. Um elemento inerte e aparentemente da alma, uma col cção de objectos domésticos (objectos consagrados,
insignificante para a cultura presente só se conserva na medida em que estatuetas do morto) que o incarnam. São estes objectos - particularmen-
ele continua ligado, directa ou indirectamente, a homens desaparecidos te as ossadas do defunto - que, pelo seu desaparecimento progressivo,
que, de certa forma, nos apresentam sempre o espelho do nosso próprio produzem a ternporalídade destas transições. Quando determinado
destino. Por isso, o que é conservado tem sempre em si a marca do tra- objecto consagrado desaparece, é sinal, por exemplo, de que a alma que
balho (da puISão), sobre aquele que conserva, da morte e do irreversível que o habitava se perde na colectividade dos antepassados comuns a toda a
afectaram (ou vão afectar) o outro. Marcas aparentes da morte passada, aldeia. Trabalho de luto, portanto, colectivo e ritualizado, conduzidocom
da morte do Outro: restos, materiais ou imateriais, reais ou lendários, que a ajuda de algumas relíquias'.
certos homens deixaram atrás de si, de um modo mais geral, tudo aquilo No Ocidente cristão, durante a Idade Média e na idade clássica, a
que tocado, ou simplesmente ameaçado, pela irr~versibilidade, deixa de sepultura é ainda reduzida a pouca coisa ou então ligada simbolicamente
funcionar ou deixará de funcionar na sociedade e na sua cultura viva. Mas, à igreja, por vezes mesmo situada dentro ou num espaço contíguo a ela.
sobretudo; marcas discretas da morte vindoura. Discretas - uma,morte "Sepulta i o meu corpo onde vos parecer melhor e não vos preocupais ...
esconde a outra, e o interesse apaixonado pelo passado não é mais do que Peço-vos unicamente que vos lembreis de mim, diante do altar do Senhor,
o eco do sofrimento presente perante a morte - mas essenciais, visto que seja onde for que vos encontreis", declara Mônica, a mãe de Santo Agos-
são elas que impõem as modalidades presentes da conservação. tinho, próxima da morte'.
E por isso que a conservação é afinal a inscrição pela so,ciedade pre-
sente, sobre aquilo que lhe foi legado, da sua representação da morte. , I Cf. R, Hertz, Etude sur la représentation collective de la rnort, in Mélanges de

Inscrição em camadas sucessivas, a última das quais pode modificar ou spciologie religieuse ezfolklore, Paris, Alcan, 1928. Trabalho notável, realizado cerca de
apagar todas as precedentes, das relações entre a vida e a morte, logo 1~1O,onde se encontra, a um nível antropológico, a análise do trabalho do luto.
2 Santo Agostinho, Les confessions, Livre IX, ch. 11. Citado por D. Urbain, ap.
entre o corpo e a alma, o material e o imaterial, o visível e o. invisível.
cu., p. 28.

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\;" em dia impensável (quem ousaria sugerir tal tratamento para a Catedral
Duma maneira geral; nas sociedades votadas a uma ordem simbólica, de Chartres ou para o Palácio de Versalhes?) não era da parte de Júlio
os restos da vida são essencialmente imateriais, invisíveis e a conservação Il um sinal de falta de respeito ou de interesse pela Antiguidade. A sua
circunscreve-se a alguns vestígios - sagrados, assombrados, lendários. São convicção eta de que assim ele não estava senão a restaurar São Pedro,
por exemplo pedaços caídos do corpo (unhas, cabelos) ou partes de cadá- pois a igreja era para ele uma entidade indestrutível cuja aparência física
veres de santos. Há uma autêntica paixão por estas relíquias, como é disso podia ser modificada sem que a sua essência fosse alterada.
testemunha, entre mil histórias semelhantes, a verdadeira desmontagem
que sofreu o cadáver de Teresa de Ávila,disperso em pedaços (mão, braço,
pé, coração, etc.) por vários mosteiros. Mas, em contrapartida, tudo o que Conservação hetero16gica
pode perdurar fora destes restos "fétiches" não tem qualquer significação
particular e não infunde nenhum respeito especial. Sendo a essência do Pelo contrário, numa sociedade homogénea como a nossa, em que a
Ser (e dos seres) imaterial e invisível, O que importa do passado (e do pre- transcendência e o invisível já não vêm habitar certos objectos, a conser-
I
sente) não pertence à ordem das coisas e do visívjl. Consequenternente, vação das coisas materiais toma a dimensão de uma verdadeira instituição
as coisas novas não podem, apesar de aparências por vezes contrárias, social na qual os objectos singulares da ordem antiga se diluem, perdendo
expulsar verdadeiramente as antigas. Uma multíplícídade de dispositivos a sua identidade. Os mortos já não assombram co~ sua presença invisível
assegura no interior destas sociedades a coexistência e a ímbricação do o mundo dos vivos.A sua integração no universo social do Ocidente actual
presente e de um passado que participa activamente na manutenção de opera-se pobremente através da conservação/relegação para os cemitérios
uma estrutura simbólica viva. Esta presença simbólica do passado liberta ou para os columbários, e da proliferação de monumentos e de signos que
da preocupação da sua conservação material. esta permite. De um modo mais geral, a nossa cultura moderna rejeita um
Podemos ler esta indiferença pelos restos materiais nas práticas ar- certo modo de presença do passado no presente e no mesmo movimento
quitectónicas, no Ocidente, ao longo de toda a Idade Média e, salvo vai acumulando os seus restos. Inconsolável civilização que recusa a alma
raras excepções, até ao fim do século XVIII. Mesmo o recrudescimento mas acumula os restos e os signos, que exclui mas ao mesmo tempo quer
de interesse pela Antiguidade que caracteriza o Renascimento não leva
tornar tudo visível.
à conservação (no sentido actual) dos seus vestígios materiais. "Quer se Esta separação, este movimento simultaneamente de rejeição e de
trate, no século XVI, de restaurar, de completar, de terminar uma igreja [amentação, representam uma singularidade na história das civilizações.
românica ou um edifício municipal gótico, os arquitectos não têm qual- Diferentemente de todos os outros, o mito da modemtdade edífica-se
quer preocupação quanto a estes estilos, a estes ilustres mortos; respei- sobre esta nova modalidade do crer segundo a qual a última instância
tam-nos, mas não tentam devolver-lhes a vida. Ao lado deles, criam seres do real é a sua materialidade (a sua visibilidade). O desenvolvimento do
vivos, e o que distingue as suas obras não é a estranheza da aproximação saber científico só é, aliás, possível e desejável na condição desta crença em
de coisas diferentes, mas a habilidade com que souberam combinar as que o essencial é visive(, legível,inteligível."Por sua própria conta, a histo-
adições modernas às partes antigas.'? O exemplo mais marcante deste riografia supõe que se tornou impossível crer nessa presença dos mortos
espírito é talvez a decisão do Papa Júlio II de destruir em 1505 a igreja de que organizou (ou organiza) a experiência de civilizações inteiras, sendo no
São Pedro de Roma, construtda por Constantino doze séculos antes, um entanto impossível "conformarmo-nos com isso", aceitara perda de uma
dos maiores e mais sagrados edifícios da cristandade. Para o substituir por solidariedade viva com os desaparecidos, admitir um limite irredutível.
. I
uma igreja mais bem adaptada ao espírito da época. Mas o que parece hoje O perecível é o seu pressuposto; o progresso, a sua afirmação. Um é a expe-
riência que o outro compensa e combate. A hístoriografía tende a provar
que o lugar onde ela se produz pode compreender o passado: estranho
3 P. Léon, Les Monuments hiscoriques, H. Laurens, Paris, 1917.

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procedimento, que admite a morte, corte amiúde repetido pelo discurso, transcendência, a eternidade. O trabalho de luto sobre esta perda abre-se
e que nega a perda, reservando ao presente o privilégio de recapitular o para, o abismo sem fim de uma ausência que a acumulação indefinida
passado num saber,"!
das coisas não conseguirá colmatar, Por muito que o território se cubra
Pode-se assim descobrir o trabalho da ausência e da separação na de vestígios e de espaços protegidos, ele mantém-se despovoado de um
acumulação dos conhecimentos sobre o passado. Por ter sido posto à passado que os aniversários, as festas folclóricas, a "animação" das cidades,
distância e separado do presente, o passado não cessa de nos fugir, e é como actualmente se diz, não podem ressuscitar.
precisamente esta fuga que relança o processo de acumulação. Constituído Nesta perspectiva, a gestação e o nascimento de uma política da con-
num "corpus" próprio, organizado em camadas sucessivas, é submetido servação inserem-se no vasto movimento ideológico que permite, antes
a um processo sistemático de ordenação e inteligibilidade. Crê-se assim mesmo da revolução industrial, uma mudança nas configurações do saber
estabelecer (restabelecer) a continuidade do presente com o passado, e do poder. Este movimento caracteriza-se por uma vontade de extrair da
mas, ao constituir-se este num objecto de estudo, mais não se faz do que totalidade da sociedade civil um máximo de informações, de as acumular
inscrever o presente - os seus métodos', os seus valores - naquilo que cre- num lugar:próprio de saber; de alimentar com elas dispositivos de controlo
mos captar da matéria bruta do passado. Ao trabalhar-se sobre o passado social que serão outras tantas matrizes do Estado moderno, mergulhado
para extrair dele uma representação inteligível, este é transformado no numa sociedade de tipo individualista. Pelos seus métodos e objectivos,
Outro da sociedade presente - o único Outro que lhe resta, à força de ter a política da conservação deverá assim ser reintegrada nessa região gene-
destruido, escondido ou normalizado tudo o que continha uma diferença ricamente delimitada pela abordagem enciclopedista, pelo nascimento
radical -j é tratado como um "passado selvagem" reduzido ao silêncio, da etnologia, pelos progressos da estatística geral,pelo desenvolvimento
mas que pode servir de campo de saber e de exploração. É neste sentido da clínica médica e da política sanitária, etc,
que a acumulação do saber moderno, no campo da história como nos Ela partilha com todos estes novos dispositivos de saber e de poder
das outras ciências humanas, é uma heterologta' - saber sobre o outro três capacidades fundamentais e estreitamente interdependentes: uma
- e é precisamente esta posição inicial de exrertorídade que torna possível capacidade de autonomia, uma capacidade de assimilação, uma capaci-
a sua acumulação.
dade de autodesenvolvimento.
A atenção conferida ao passado e a uma certa forma de conservação A autonomia é 0 resultado da posição de exterioridade relativamente à
já não surge assim como umfenómeno isolado; tão-pouco é uma vaga estrutura simbólica: certos elementos constítutívos da memória colectiva
reacção nostálgica contra o desencantamento da época moderna, como e da relação com o passado são extraídos do tecido social, permitindo a
poi: vezes gostamos de crer. Pelo contrário, ela inscreve-se perfeitamente construção de um do~ínio autónomo. Vulgarmente, tende-se a:crer que
na modernidade e no seu novo paradigma do ver e do saber. Se nada mais um interesse acrescido pelo passado, uma curiosidade súbita pelos vestígios
de transcendente se esco~de por trás das coisas e dos corpos, o referente e pelos documentos deixados pelo tempo, explicam suficientemente o
social passa a ser a materialidade visível, É esta que importa conservar nascimento, por volta de finais do século XVIII, e o desenvolvimento, ao
do passado e preservar para o futuro. O passado deve tornar-se visível longo de todo o século XIX, de uma política da conservação. Falta explicar
e o futuro previsível. A operação salda-se por uma perda:' acabou-se a a origem deste acréscimo de interesse; e, por outro lado, foi em parte o
contrário aquilo que aconteceu. No fim da idade clássica o homem está
4 M. de Certeau, L'écriture de l'histoire, Gallímard, 1975, p. 12. Outras ciências
órfão da história que imaginara, uma história universal que englobava na
humanas, a medicina moderna, a etnologia, a demografia, etc., desenvolvem-se da mesma historicidade as coisas, a natureza, a linguagem e as suas próprias
mesma maneira, a partir de uma dístanciação do seu objecto e de uma perda, a fim actividades humanas. São precisamente as novas configurações epistemoló-
de o constituir num "corpus" próprio, tornado visível e legível. gicas, as quais permitirão o desenvolvimento e a autonomização das ciências
5 M. de Certeau, op. cit., p. 10.
humanas, que quebram esta ficção de uma história unitária. Portanto, o

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novo interesse pelo passado, na realidade, é já produzido por essa neces- a atitude de conservação implica. O que o museu impõe - fechamento
sidade de reconstruir uma historicidade fragmentada que seja compatível do espaço, inserção num ambiente artificial de objectos intocáveis, orde-
com o novo paradigma do saber", E, por outro lado, é a invenção de uma nação, intenção pedagógica, etc. - pode reforçar este destino ou torná-lo
política autónoma da conservação que gera um interesse súbito pelo pas- caricaturalmente visível (é o caso do museu tradicional, tal como é con-
sado: descobre-se que ele pode ser "valorizado", isto é, que os seus vestígios cebido nomeadamente no século XIX), ou, inversamente, atenuá-lo ou
podem ser explorados como um material bruto destinado a acumular-se mascará-Ío. A museografia moderna, a que se inaugura provavelmente na
nos noVOSdispositivos (textuais ou institucionais, de saber ou de poder) Escandinávia, com o primeiro museu ao ar livre (o Skansen de Estocolmo,
desta política. Não é a valorização do passado que produz a conservação; criado em 1891 por Hazelius, longínquo antepassado dos eco-museus dos
é antes esta que dá ao passado o valor novo de operador social. nossos dias), define-se precisamente por se encontrar confrontada com esse
A assimilação resulta igualmente da extracção a partir da estrutura sim- problema insolúvel de conservar sem matar, ou seja, sem separar nem re-
bólica e das práticas sociais de elementos que só cumprem o seu sentido e duzir. Conservar "uma cultura viva", "uma memória da vida quotidiana",
as suas funções no interior desta estrutura e destas práticas. Um objecto pôr "o passado nas vitrinas do presente" são fórmulas que encontramos
tràdicional, tirado do seu contexto, separado dos gestos quotidianos que a toda a hora nos escritos dos conservadores actuais, que se debatem
acompanhava, dos discursos ou dos rituais de que era suporte, não é mais contra a própria lógica da conservação. Mas nenhum museu pode escapar
do que o indício material de uma cultura (a qual, por seu lado, pode ser completamente à redução que o funda. E é, aliás, esta lógica comum, em
repertoriada, estudada, descrita em texto e aproximada de outras culturas prática independentemente do dispositivo final de conservação seja ele
deste modo "textualizadas"). Torna-se assim comparável a qualquer outro qual for, que amalgama os próprios museus numa única categoria. Sejam
indício material de uma outra cultura. A posição heterológica produz tradicionais ou de vanguarda, todos os museus pertencem à mesma família
homogeneidade7: um objecto sagrado ou ritual torna-se um vestígio e não são senão as diversas hípóstases do Museu enquanto realização da
mesmo modo que um utensílio de cozinha. Desta capacidade de "reduzir".' própria essência. da conservação.
assim as culturas, a sua símbolicidade e até a sua transcendência próprias,: A conservação heterológica é, finalmente, votada a um desenvolvimento
silenciando os seus vestígios, o sistema da conservação retira o seu incrivel'::; sem limites. Por um lado, nenhuma estrutura simbólica vem já marcar
poder de homogeneizar num mesmo enquadramento os elementos mais ns fronteiras do insignificante ou do não-essencial, daquilo que pode
heterogéneos. ser destruido ou modificado sem prejuízo. Por outro, uma estrutura de
Qualquer museu ilustra, a diversos graus, este poder de amalgama, masCA acolhimento exterior ao tecido social homogeneíza todos os elementos
este não deve ser visto senão como um dos elos de todo o sistema da con-: .. de que se alimenta. Porém, a acumulação destes elementos assim torna-
servação. Pois, antes mesmo de irem para o museu e de serem submetídos .< .•••• dos homogéneos - o património - não conseguirá apagar a perda do
à lei própria do seu espaço, os objectos conservados estão já predestinados •...... simbólico.
a um destino museográfico, pela lógica de separação/redução que toda Se determinado objecto sagrado ou tradicional parece estar em con-
dlçôcs de colmatar o abismo que deixa no ser humano o sentimento do
6 O que se passa actualmente retoma à escala da sociedade inteira o que se pr9- ........•... Il'n~vcrslvele da morte, tal não se deve à sua materialidade, mas ao facto
duziu ao nível da história e da conservação "sábia" no final do século XVIII: a paixão .' .. 1Ií,!, de ser o indicador de uma estrutura simbólica: a ferida e o objecto
do passado generaliza-se precisamente no momento e na medida em que a memória < remetem directamente para o mesmo plano do simbólico. Por conseguinte,
mícro-social se decompõe." (IN objectos utilizados nas sociedades holistas não vão buscar a eficácia à sua
7 E reciprocamente. Numa cultura "heterogénea" (estrutura simbólica' e rec~
Importância ou ao seu número (são, pelo contrário, bastante raros); vão
nhecimento de um principio de transcendência) não há lugar para uma poslção:
heterológica de saber. Esta parece surgir apenas na medida em que a cultura se torna.
II\IN(~Ú.lLt à sua específícidade e à sua localização precisa na vida colectiva,
homogénea, (.'11\ que cumprem a função de ferrolhos simbólicos.

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P o r T I C A o o P A T R M 6 N I o

Os objectos que se acumulam no património estão exilados deste regis-


to. No máximo, remeterão para o seu imaginário (trabalho de nostalgia).
A sua específícídade, a sua posição já não importam verdadeiramente,
pois eles deixaram de servir individualmente de âncoras. Então para
que servem? Para se integrarem num processo: processode redução, de
repetição, de acumulação. Pois é o próprio processo que faz sentido, que
8. O Estado e a revolução conservat6ria - #
acede ao plano do simbólico, seguindo nesse aspecto a lógica já encon-
trada da colecção, a qual apaga também o objecto na sua individualidade
fronteira que nos separa das sociedades tradicionais é fortemente
e se sustenta unicamente na sua extensão. A única eficácia simbólica do
património é o facto de se poder acumular indefinidamente.
Assim, o património que se acumula, ao mesmo tempo que imita a
conservação simbólica do passado, a qual nunca deixa de o perseguir su-
A desenhada pelo contraste entre as suas práticas de conservação
e de memória e as nossas, e pelo lugar que é deixado ao poder
político neste domínio. Em todas as culturas holístas, estas práticas de-
correm essencialmente da sociedade civil e da sua estrutura simbólica:
perficial e nostalgicamente, na realidade não está senão a afastar-se dele. são conservados materialmente ou salvaguardados do esquecimento os
Mas ao fazê-lo, reencontra o simbólico ... nas suas costas. Tal movimento objectos ou os factos que a tradição designa. Conservação e memória
é-nos familiar: é o que encontramos no processo da renovação do con- caracterizam a sociedade como uma modalidade principalmente interna
sumo, no da comunicação regulada e na acumulação de cientificidade. ao seu funcionamento e à sua reprodução.
Conservação, consumo, comunicação, produção de saber decorrem do Contudo, as instâncias de poder dísponíbilizam para si próprias, mes-
mesmo esquema fundamental; todas estas acumulações deixam um resto, mo nestas culturas, um espaço próprio e um papelespecífico nas práticas
essencial, cujo efeito induz a necessidade de novos "progressos". E este conservatórias. Mesmo nas sociedades sem verdadeiro poder político, o
ciclo indefinidamente repetido constitui o nosso último acesso a uma chefe desempenha um papel privilegiado na memória colectiva. É por
forma empobrecida e única do simbólico. exemplo o dever de palavra, obrigação e privilégio do chefe nas tribos índias
Animado por tal principio interno e desprovido de qualquer critério da América do Sul, o qual participa na manutenção e na transmissão da
de discriminação, o sistema da conservação só poderá, portanto, acumu- tradição. Em todas as sociedades que reconhecem um poder político, este
lar e amalgamar sem fim todos os vestígios que consegue recuperar. E simboliza a sua preeminência e faz valer o seu cunho pela criação e con-
procurar até alargar o seu campo próprio: do inerte ao vivo, do passado servação de alguns emblemas (monumentos, medalhas, arquivos, tombos,
ao presente, do material ao imaterial. Ao mesmo tempo que se aproxima etc.), fragmentos materiais da sua história. Deste traço resulta, aliás, uma
de outros sistemas heterológicos - o saber médico e a política sanitária, a aparente continuidade, da Antiguidade aos nossos dias, no que respeita
ecologia, etc. - com os quais partilha a posição de princípio, exterior. Ao a estes objectos emblemáticos e à história que neles se baseia. O museu,
mesmo tempo que implica cada vez mais cada indivíduo na sua lógica, já o monumento, o próprio documento jurídico contemporâneos parecem
que o individualismo não é senão o reverso da desestruturação simbólica assim possuir antepassados muito antigos e atestar uma continuidade
que a fundamenta. longa na história das relações entre poder e conservação e, de um modo
Deste desenvolvimento imperialista do património, a actualidade pro- mais geral, entre poder e memória.
põe-nos exemplos numerosos e significativos. Porém, se hoje a noção de Esta aparência de continuidade, que tem uma função ideológica muitas
património amalgama domínios cada vez mais vastos, tal acontece porque vezes explorada sistematicamente, camufla uma mudança radical de esta-
o sistema de conservação está votado, pela sua posição teórica de origem, tuto. Nas sociedades tradicionais, a conservação emblemática mantém-se
a esse desenvolvimento indefinido, e é isso que a análise histórica do seu local, mesmo que represente um papel relevante na política simbólica.
nascimento e do seu desenvolvimento confirmará. Ao passo que, no Ocidente, desde há dois ~éculos aproximadamente, a

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conservação tornou-se num vasto conjunto de ideologias, de instituições pertencentes a um património pessoal, e a atitude que passa a dominar
e de técnicas, uma verdadeira política, levada a cargo pelo Estado, e fun- a partir da Revolução em relação ao património tornado nacional.
cionando como méio, entre outros, de controlo e reprodução sociais. Exemplos desta ordem não devem no entanto levar à sobrestímação do
Nesta política subsiste um amplo lugar para certos emblemas do poder, .corte revolucionário, Em primeiro lugar, porque ele acaba por se limitar
mas quase mais nada do seu simbolismo anterior, substituído por uma ao plano das instituições. Ao nível das atitudes e das práticas sociais, a
função no interior do sistema da conservação. ruptura institucional só muito progressivamente começará a produzir os
seus efeitos. E mesmo ao nível do Estado, não encontramos um tempo
durante o qual a questão da conservação não se tenha levantado, um
o "corte" revolucionário tempo de vazio jurídico e institucional a que se sucedesse o tempo dos
regulamentos. As intervenções conservatórias devem ser substituídas por
o facto de o Estado ter recentemente tomado a seu cargo a conservação uma perspectiva mais longa e alargada, incluindo a lenta escalada dos
colectiva revela-se facilmente - muito facilmente - como um corte. Um aparelhos de Estado ao longo dos séculos XVII e XVIII.
corte que se torna particularmente legível no espaço francês, pois que Certas medidas de. protecção são com efeito bastante antigas. Aliás,
parece realizar-se em grande parte, em poucos anos, durante a Revolução. uma das primeiras foi mais propriamente uma reutílização de monumen-
Com efeito, embora simbolizada pela destruição que a inaugura, esta não tos - problema ainda na moda actualmente! - dado tratar-se da decisão
faz tábua rasa do passado como tentarão fazer mais tarde outras Revoluções tomada por Bonífácío IV, em 608, autorizando o uso dos templos antigos,
(na Rússía, em 19171,na China, com a Revolução Cultural). Afinal de em particular o do Panteão de Roma, para o culto cristão. A fé religiosa terá
contas, destruiu muito pouco, pouco construiu, mas conservou muito assim salvaguardado alguns vestígios da Antiguidade, mas no conjunto do
- ou pelo menos lançou as bases de uma selecção e de uma conservação Ocidente cristão deixou desaparecer com indiferença, ao longo de toda a
sistemáticas e públicas dos objectos e dos monumentos. Idade Média, a maior parte deles, pois para a Igreja apenas representavam
Em Fevereiro de 1788, Luis XVIassinava um edito que ordenava a a evocação de uma civilização pagã.
demolição ou a venda do Pavilhão da Muette e dos palácios de Madríd, As mais antigas medidas de conservação propriamente dita, de inicia-
Víncennes e Blois, porque estes não pertenciam a nenhuma proprieda- tiva de um poder central e de uma certa extensão, remontam ao Renasci-
de cujo rendimento pudesse cobrir a respectiva manutenção. Os dois mento italiano. Por volta de 1450, um funcionário da Cúria do Vaticano,
primeiros palácios, que eram construções importantes do século XVI, Poggio Bracciolini, estigmatiza e procura tornar mais lentas as destruições
desapareceram nos anos seguintes, mas a Revolução salvou as residências operadas pelos construtores do seu tempo. Pouco tempo depois, Aeneas
reais de Vincennes e de Bloís. Sylvius Píccolorniní (o papa Pio lI) , procura proteger os monumentos
Ilustração exemplar do contraste entre a atitude geral, na idade clássi- antigos da pilhagem e do desmantelamento através de uma bula de 28 de
ca, de boa consciência e indiferença relativamente à destruição dos bens Abril de 1462. Esta medida, que, aliás, não teve qualquer efeito (o próprio
papa não hesitou em mandar destruir muito), confirma a mudança de
1 Mas a revolução de 1917 conservará a. instituição do museu e apolar-se-ã nela
atitude relativamente aos vestígios monumentais, o nascimento de uma
para um vasto empreendimento didáctico: transformação das residências imperiais em
posição verdadeiramente arqueológica que a obra de Petrarca já anuncia-
"museus sociais", reconstituição da vida e dos locais do regime anterior, conservação das
obras de arte, etc, Esta museografla é facilmente legitimada: ela visa mostrar "a realidade ra. O movimento amplifica-se com a exploração da casa de Nero (1490),
dos processos históricos através de meios aceitáveis para as massas", "o impacto das a descoberta do Lacoonte (1506), a criação em Florença pelos Medícís
relações de produção e das ideologias de classe sobre as obras de arte". Em resumo, o do primeiro ensino público de arqueologia, o estudo dos monumentos
museu é concebido como a escola popular do marxismo. Cf. P. Gaudibert, "Muséologíe antigos, a sua reprodução ou restauro (Brunellesco, Bramante, Rafael,
marxiste ou socíologísme vulgaire 1", Histoire et critique eles Arts, no7-8, 1978. Miguel Angelo ...), etc. Em França, a decisão de Francisco I de salvar da

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destruição a Maison Carrée de Ntmes constitui provavelmente a primeira universal da Natureza (utilizando o objecto de arte como matéria da sua
medida de conservação pública. própria criação) e a possibilidade da sua conjuração. A ruína não é, pois,
Podemos ver, nestas primeiras intervenções, as primícias de uma um objecto conservado, mas um artefacto deliberadamente construído,
verdadeira política da conservação. Mas não. passam de antepassados um jogo com a temporalidade para manter em equilíbrio as forças de
formais. Pois trata-se de medidas isoladas que visam salvaguardar alguns destruição naturais e o acto de criação inicial.
elementos particularmente notáveis, iniciativas pessoais do Príncipe que Mas se não existe, antes de finais do século XVIII, uma verdadeira sen-
não formam uma política organizada de conservação. O que todavia dá sibilidade conservatória (no sentido moderno) e ainda menos uma noção
à redescoberta e à conservação dos vestígios antigos uma certa coerência de património colectivo, as bases de uma mudança estão já lançadas sob
é evidentemente a função cultural e ideológica que estas desempenham a forma de uma posição quase etnológica - e, já, heterológica. Posição de
no Renascimento, ajudando a relançar uma ordem antiga. Um passado é saber e de administração: conhecer melhor as populações, os seus costumes,
regloríflcado para expulsar outro passado. De resto, a partir de finais do os seus objectos e tomar medidas para melhorar as condições de vida. O que
século XVI, a indiferença relativamente aos vestígios materiais continuará, conduz já a elaborar inventários - (vários recenseamentos dos monumen-
com os seus efeitos destruidores. tos e edifícios notáveis foram feitos no século XVIII), a lançar inquéritos
Voltaremos a encontrar esta mesma lógica de substituição de um passado ao nível das paróquias (aliás pouco explorados), a integrar considerações
por outro, um pouco antes e sobretudo depois da Revolução, em França e higienistas nas primeiras medidas de controlo do espaço).
na Alemanha particularmente. Novo retorno à Antíguídade, mas também O abanão revolucionário dará a esta lenta escalada dos aparelhos
procura de raíses na Idade Média e até na cultura celtaê. E é provável que conservatórios do Estado uma forte aceleração. Seria muito exagerado
este interesse pelo passado se fosse progressivamente apagando, juntamen- pretender que ele pôs em prática uma política de conservação. Mas foi ele
te com a sua causa ideológica directa, se não se tivesse ancorado mais que - como para outras instituições, nomeadamente a escolar - estabele-
I ,
profundamente em certas instituições e numa representação do mundo ceu os seus princípios sob a forma de projectos, de decretos e de algumas
completamente diferente. Por detrás de uma repetição de superfície, uma realízações inaugurais: os Arquivos Nacionais criados em Setembro de
.verdadeira mudança de paradigma efectua-se no fim daidade clássica. 1790, o Louvretransformado em museu da República por um decreto de
A única atitude conservatórla que se manterá, de Petrarca aos român- 1791, e aberto ao público em 1793; o convento dos Petíts-Augustíns, que
ticos, é o gosto, ou até mesmo a paixão (em Inglaterra sobretudo) pelas serve de abrigo, a partir de 1791, aos monumentos e aos túmulos "deslo-
ruínas. Mas a "ruína" não é por si mesma um elemento conservado, é o cados" e se torna, em 1795, o Museu dos Monumentos Franceses. Esta
processo de destruição que se conserva porque ele materializa e resume proliferação súbita de textos e de instituições, ainda que não seja seguida
o combate da Natureza e da Cultura. num primeiro tempo por realizações conc;>tás de dimensão comparável,
No início, uma criação audaciosa do espírito: "Ruína diz-se apenas dos é, contudo, altamente significativa. -
palácios, dos túrnulos sumptuosos ou dos monumentos públicos. Não se Significativa desde logo de uma desestruturação/restruturação. De-
dirá ruína ao falar de uma casa particular de agricultores ou de burgueses; sestruturação da ordem política do Antigo Regime, aliás limitada, num
dír-se-á nesse caso edifícios arruinados" (Encyclopédie, t. XIV, 1765). Criação
que se conclui com as alterações do tempo - a ruína évista como mais bela
3 O que talvezilustra melhor, na nossa perspectiva, esta primeira atitude do Estado
do que o objecto primitivo -, simbolizando simultaneamente a hostilidade de tomar a seu cargo os homens e os seus vestígios, são os decretos de 1763 e 1776,
assim como as realizações que se seguirão, que darão aos cemitérios o seu espaço e a
z A ponto de se falar em celtomania a propósito de alguns eruditos como [ean- sua organização modernos: trata-se, por razões decorrentes explicitamente da higiene,
Baptiste Bullet (1699-1775), que 'procurava provar que a língua celta era a língua demunicipalizar os cemitérios que pertenciam à Igreja e de normalizar aconservação
primitiva. destes vestígios eminentemente simbólicos.

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primeiro tempo, ao desaparecimento de algumas das suas peças-chave A "invenção" revolucionária
simbólicas e das suas instituições. A ideologia burguesa nascente exagerará
a importância desta: desestruturação, dramatízá-la-ã, para melhor a explorar Esta assunção de responsabilidade pelo Estado permite rapidamente
em seu proveito. Antes mesmo de se produzirem os efeitos maciços de' descobrir (ou confirmar) que todo o objecto submetido à museografia
desenraizamento decorrentes da expansão industrial e urbana, o povo é muda de estatuto: desinserido de uma estrutura simbólica onde desem-
já muitas vezes representado como uma massa instável, perigosa, porta- penhava um papel activo, ele perde o essencial das suas significações
dora de todas as potenciais desordens. Como uma criança, cujo ardor anteriores para integrar um dispositivo onde se limita a cumprir determi-
revolucionário há decerto que reconhecer, mas que não atingiu ainda a nadas funções. Um monumento na cidade, por exemplo, avisa - é o seu
sabedoria. A ideologia da Revolução leva assim a admitir que é preciso sentido etimológtco - e simboliza; num museu, é apenas arquivo, meio
rapidamente colmatar os buracos institucionais, reestruturar o espaço e a pedagógico, "monumento histórico" (o termo é introduzido por Millin
ordem simbólica, para enquadrar a multiplícidade incoerente e a instruir em 1790). É a descoberta desta mudança de estatuto e a sua aplicação
dos seus novos deveres. Dai um impulso decisivo dado a dispositivos que prática generalizada que travam o caminho de destruições que a Revolu-
se tinham desenvolvido segundo ritmos especificos e por vezes a partir de ção, num primeiro tempo, tinha posto em marcha (nomeadamente com
raízes muito antigas. Todos os progressos já realizados durante o século o decreto de Setembro de 1792 que previa "a destruição dos monumentos
XVIII em matéria de estatística (num sentido lato), de polícia, de arte susceptíveis de evocar a feudalídade e o aniquilamento de tudo o que é
militar, de higiene, de experimentação de alguns tipos exemplares de equi- propício a fazer sobreviver a lembrança do despotismo"). Depressa se
pamento colectivo, são potenciados, e alguns aplicados a grande escala. A compreenderá, com efeito, que os elementos arquitectónicos, emblemas
partir de uma "libertação", muito parcial e habilmente transformada em ou obras de arte do Antigo Regime encontram no museu novas funções,
espectáculo, de uma ordem simbólica dominante, a burguesia revolucio- , perdendo, em todo o caso, o essencial do seu estatuto simbólico antigo
nária provoca um salto em frente da tecnologia ínstitucional, lançando e, portanto, de alguma maneira, a sua vida e a sua virulência'.
as bases de um aparelho estatístico, administrativo, jurídico e policial De um modo mais geral, descobre-se que é bastante fácil atribuir
moderno. É a partir deste aparelho que os levantamentos, a fixação, o novas significações a todos estes elementos do passado, modificando-os
emprego, o controlo sanitário, etc., das populações, poderão desenvolver-se marginalmente ou reutílízando-os de modo diferente. Perdem o seu valor
e servir seguidamente de suporte à expansão industrial.
No mesmo momento, esta desestruturação simbólica "libertou" igual-
mente uma multíplícídade de objectos dos seus proprietários - a realeza, o 5 É exactamente a mesma operação que será aplicada, sessenta anos mais tarde,
à "cultura popular", através da criação, pelo Mlnístério da Polícia Geral, de uma
clérigo, a nobreza emigrada. Será com a mesma rapidez, em três ou quatro
"comissão de exame dos livros de venda ambulante" (30 de Novembro de 1852). A
anos, que no interior do novo aparelho do Estado serão elaboradas as ins-
censura policial que daqui resulta torna precisamente possível a conservação,e o estudo
tituições e as regras que permitirão inventariar, classificar e conservar estas desta literatura cujo perigo é doravante eliminado. Esta dupla intenção de controlo e
populações de objectos. Enquanto monumentos, as obras de arte eram de conservação é abertamente confessa no prefácio do primeiro livro dedicado a esta
naturalmente protegidas pelos seus proprietários, nada podia legitimar literatura (Histoire eles livres populaires et ele la !ittérature de colportage por Charles Nísard,
efectivamente uma intervenção da parte do Estado. "Esta razão superior, secretário desta comissão): "Se, no interesse das pessoas de sedução fácil, como são
autorizando e obrigando o Estado a estender a sua mão protectora sobre os operários e os habitantes dos campos, a Comissão não devia deixar de interditar a
o património artístico da Nação, é a Revolução que a introduz", venda ambulante a três quartos destes livros, esta proibição não afectaria as pessoas
à prova das más leituras... Pelo que me pareceu fazer uma coisa agradável para uns e
outros, ao reunir todos estes livrinhos sob um único ponto de vista, e ao salvá-los em
4 Frédéríck Rücker, Les Origines de la conservation des monuments historiques en France,
massa do naufrágio onde acabariam por perecer isoladamente." Citado por M. de
Jouve et Cíe, Paris, 1913, p.9. Certeau, La cu!ture au p!urie!, 10/18, Paris, U. G. E., 1974, p. 64.

104
lOS
de memória desejada (aquando da sua criação) para adquirirem um valor ideologia da desapossessão, facto perfeitamente expresso por Ruskin: "A
de memória atribuída ou de simples antiguidade". conservação dos monumentos do passado não é uma mera questão de
Parece assim que todos estes objectos podem ser utilizados, através das conveniência ou de sentimento. Nós não temos o direito de lhes tocar.
. novas estruturas institucionais nas quaisse inserem, para educar e forjar Eles não nos pertencem. Pertencem em parte àqueles que os construíram,
um povo. O monumento tomar-se-à texto para recordar a lei e exaltar a em parte a todas as gerações que virão depois de nós."!
Revolução e este texto deverá excluir as línguas vernáculas (cf o primeiro Esta desapossessão pode ser ligeiramente disfarçada realçando a ideia
relatório Grégoire sobre as inscrições, que recomendará o uso exclusivo de uma compensação da pobreza individual: "A ornamentação que as
da língua francesa para as inscrições dos monumentos). "É necessário Belas Artes concedem às cidades constitui uma propriedade comum para
atingir o espírito da multidão por intermédio dos objectos exteriores ... aqueles que são pobres em bens pessoais ... O legislador não SÓ quis fazer
Juntemos às instruções da palavra a linguagem enérgica dos monumen- do povo o proprietário das obras de arte, como ainda e sobretudo torná-lo
tos."? Esta linguagem associa-se perfeitamente à da Festa Revolucionária, apto a conhecê-las e desfmtá-las."? O cidadão torna-se proprietário imagi-
na mesma perspectiva de educar um povo, e a Festa não se concebe sem nário mas já vinculado ao seu património nascente, a sua nova liberdade
monumentos ou, pelo menos, sem uma remodelação do espaço. Donde obriga-o a amar os objectos que o constituem e à respeitar o saber que os
a extraordinária proliferação de uma arquitectura efémera. E é acima de envolve: "Os bárbaros e os escravos detestam as ciências e destroem os
tudo uma vontade de pedagogia que se pode ler nos textos e disposições monumentos das artes; os homens livres amam-nos e conservarn-nos.Y'?
regulamentares. Aliás, as comissões encarregadas da conservação são colo- E a luta contra o vandalismo - a palavra, criada por Grégoire no seu rela-
cadas sob a autoridade do Comité de Instrução Pública, e é esta vontade tório de 179411, rapidamente se banalizará em todas as linguas europeias
de instrução pública que está na origem do texto (2 de Dezembro de _ acaba por não ser apenas a luta contra as destruições, é também a luta
1790) sobre a criação de museus, nome dado aos depósitos que deverão preventiva contra os vândalos que um povo se arrisca a gerar, se não souber
ser organizados em cada um dos 83 departamentos (apenas 22 foram ainda gerir com sensatez o património das suas novas riquezas.
efectivamente criados). Encontramos a mesma pedagogia da cidadania É por isso que as boas intenções pedagógicas 'serão imediatamente
sobre os campos de. batalha: em Valmy eríge-se um monumento que tem reforçadas por um aparelho jurídico e repressivo. O decreto de 4 de Junho
pela primeira vez inscritos os nomes dos. soldados mortos ... de 1793, que pune com dois anos de prisão quem quer que degrade os
A partir de uma mesma origem '- um enfraquecimento das estrutu- monumentos dependentes das propriedades nacionais, inaugura uma
ras simbólicas - e através dos mesmos meios, os aparelhos de Estado -, longa série de textos jurídicos especificamente dedicados à conservação.
surgem assim novas formas de gestão das populações de indivíduos e das A partir desta primeira legislação revolucionária, o acréscimo intensivo e
populações de objectos. E para melhor se atingiremos objectivos preten- extensivo dos poderes regulamentares do Estado prosseguirá regularmente,
didos, há que tecer laços entre estas duas populações, é preciso que os com a dimensão repressiva sempre presente. O actual código de urbanismo
homens guardem os objectos, tal como os objectos guardam os homens, prevê, por exemplo, para além das multas, uma pena de um a seis meses
instruindo-os. Para isso, é preciso antes de mais elaborar a noção - mesmo de prisão, em caso de reincidência, por obras ou ~gloaificações efectuadas
que o termo ainda não exista - de equipamento colectivo e sobretudo sem autorização num sitio classificado ou até mesmo no campo de visibiLidade
a ideologia associada de apropriação colectiva, aqui essencial já que ela
está directamente na origem da noção de bens nacionais, e mais tarde 8'). Ruskín, ThesevenLamps of Architecture, Londres, 1849, trad. française, Laurens,
de património nacional. Trata-se, com efeito, e sobretudo aqui, de uma Paris, 1916.
9 F. Benott, L'artj'rançais sous la Réliolution et l'Empire, Paris, 1897.

6 Sobre esta distinção entre memória desejada é memória atribuída, cf. A.Riegl, . 10 H. Grégoire, Rapport sur les destructions, 11 janvier 1794.

Le eulte du monumento sa nature, son éliolution, Paris, 1903. 11 "[e créai le mot pour tuer la chose" [Criei a palavra para matar a coisa], escreve

7 A. G. Kersaint, Discours sur lesmonuments publics, Didot l'Atné, Paris, 1791,p. 33. com candura o bispo de Blois nas suas memórias.

106 107
de um monumento classificado. Que o texto jurídico possa assim conferir e por isso mesmo apropriado, identificado, sujeitado ... Assim, o grande
ao Monumento a capacidade de ameaçar com a prisão quem construir no desígnio de uma história metálica do reino visa constituir uma memória
seu campo visual, é suficientemente ilustrativo daquilo em que se tomou o . do Rei transcendente ao tempo, a sua história monumental."y
culto dos vestígios do passado e o panoptismo repressivo que eles exercem. A Esta pro-dução de um passado etemizado e de uma memoria trans-
instituição de uma Monumentalidade dá ao poder político a capacidade de cendente do Rei é facilitada pelo facto de a medalha, sendo uma espécie
definir e gerir o que deve durar e funda um conjunto de novos deveres. de moeda, partilhar o seu uso público e o seu valor aceite por todos. É
facilitada também por esse laço estreito que ela estabelece entre o que é
escrito (legendas, divisas) e o que é mostrado (o desenho gravado). O que
Esboço de uma genealogia
é visto autentifica o que é lido, pelo que as medalhas constituem assim
um livro exemplar que não pode mentir.
Toda esta aparelhagem ínstítucíons], introduzida no' final do século Com o fim do Antigo Regime, a pro-dução da memória do poder,
XVIII e que será continuamente aperfeiçoada, servirá para trazer uma embora continue a obedecer aos mesmos princípios gerais, deixa de ser
resposta nova e mais bem adaptada a um velho problema. O problema artesanal. Já não bastará representar uma história lacunar - um rosário
da pro-dução (no sentido etírnológico de tomar visível, fazer aparecer) do de actos notáveis realizados pelo Rei -, sendo necessário circunscrever,
passado - e também da cultura ou da arte - e mais particularmente o da primeiro a traços largos, depois de modo cada vez mais preciso, a totalidade
pro-dução de uma memória do poder (ou ao serviço do poder).
de um passado e mesmo de uma cultura para uma nação; mas sempre
Este último objectivo estava já atingido no século precedente, por al-
guns dispositivos limitados (colecções particulares, monumentos, história
d\ um ponto de vista único, o do poder. Após um período flutuante
cll.l~fnte o período revolucionário - em que a ausência de emblemas é
escrita pelo historiógrafo real) e sobretudo por esses monumentos, ou antes , compensada pela multiplicação das cerimónias, das festas, das constru-
esses "moniments" que são as medalhas: "O nome geral de moniment, que ções efémeras ... e das destruições com valor de símbolo -, os dispositivos
vem do latim "monitor'', para significar qualquer coisa que admoeste os instltucionais criados vão, progressivamente, entrar em funcionamento
ausentes tanto de lugar como de tempo, da Memória de qualquer sujeito, efectivo e produzir sistematicamente uma memória autorizada pelo grupo
parece tanto mais necessário neste discurso, quanto o outro nome de social domtnante",
Monumento se encontra demasiado restringido pelo uso comum (que é
o senhor da linguagem) à significação particular de sepulcros dos mortos, 14 L. Marin, op. cit,
que são igualmente feitos para a memória."12 Admoestar os ausentes de 15 Através de múltiplos conflitos: a constituição de uma memória autorizada é
lugar ou de tempo: levar a posteridade presente a pensar-se "como tendo evidentemente um foco das lutas sociais. Mas esta memória funciona' como um dispo-
estado ausente do tempo e do lugar do Príncipe" 13,transformar o que é sitivo colectivo algo particular. As diferenças, as oposições irredutlveis aparecem nela
neutralizadas pelo tempo; mesmo um passado de lutas aproxima aqueles que continuam
passado e local num passado etemizado (fora do tempo) e universal. "O
em confronto. Além disso, a ideologia liberal tentou fazer deste.disposltívo o espelho
acontecimento, constituído como passado pela sua própria inscrição, é
no qual uma sociedade poderá conjurar a sua irredutivel fragmentação, dando assim a
ao mesmo tempo presente, presente fora do tempo, duração imóvel, ar- aparência de uma certa pacificação social. De tal modo que as lutas relativas à memória
quitectural. O tempo-memória é neutralizado no monumento da história colectiva foram, até agora, violentas mas circunscritas em torno de alguns pontos com
uma forte importãncia simbólica. Porém, no seu conjunto, a produção de uma memória
autorizada opera-se de forma mais subterrânea, integrando-se numa topografia de
12 Antoine Rascas, De la nécessité de l'usage des Médailles dans les Monnoyes, Paris,
relações sociais que tende, seja a preservar (o passado garante do presente), seja a des-
1611, p. 5, citado por L. Marin, "L'inscription de la mémoire du Roi", Documenrs de
travail, Université d'Urbino, n. 0,90, 1980. construir (o passado garante do futuro). Neste caso, uma modificação da relação com o
13 L. Marin, op. cit., p. 9. passado é o sintoma de uma modificação no futuro. Pode-se mesmo pensar que, quase
sempre, o futuro se anuncia primeiramente por uma recombinação do passado.

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109
Escusado será dizer que esta memória autorizada não passa de uma contingências económicas e sociais que pesam sobre o espaço. Por este
fracção apenas da memória colectiva. O essencial da memória "imaterial" facto, eles desempenharam um papel essencial na organização e na mernõ-
(sem suporte exterior. oralidade, práticas) escapa-lhe, e ela estende-se tam- ria das cidades. Foi em seu torno que se desenvolveram, desde a primeira
bém ao campo da memória "material". Por outro lado, num dispositivo medida de protecção tomada por Ouizot em 1830 ao actual código de
de memória podemos geralmente distinguir uma função discursiva e uma urbanismo, textos regulamentares, instituições, técnicas de protecção e
função não discursiva. Se a primeira tem carácter dominante, teremos de inventário. Desenvolvimento intensivo mas sobretudo extensivo, que
um documento; se é a segunda que domina, um monumento. A memória conduziu a pôr sob protecção uma parte não negligenciável do território
autorizada articula-se assim em torno de dois pólos, a escrita da história e (35 000 monumentos e sítios classificados ou catalogados em França) e
o sistema da conservação. Foi neste sistema que se estabeleceram os novos que culmina também na integração desta linha arquitectónica e urbana
dispositivos de memória autorizada, a fim de submeterem, em interdepen- no sistema de eco-conservação e da política do património.
dência com os dispositivos de escrita, os vestígios do passado (em particu-
lar) a um processo de conservação/destruição e de ordenação/ encenação,
privilegiando o cruzamento, que a medalha havia já experimentado, do
texto com a imagem (ou com a rnaterialídade) que o autentífica: os mo-
numentos são portadores de texto, provocam-no ou prolongam-no; os
lugares e os objectos comportam nomes ou efígies (topo nímia das cidades,
cartazes, selos, etc.).
Neste sistema da conservação, parece-me que se pode distinguir dois
ramos relativamente distintos: aquele que tem como origem o museu,
e o que é oriundo do monumento (no sentido vulgar). O primeiro de-
fine-se pelo fechamento de um espaço e pelo isolamento dos objectos
conservados; o segundo pela manutenção de elementos arquitectónicos
no espaço da vida quotidiana. ,JI
OS dispositivos museográfi~s asseguraram muito rapidamente o seu
lugar nas funções sociais da memória autorizada, mas a sua eficácia mante-
ve-sedurante muito tempo localizada (em certos objectos e em certas classes
sociais). Deixaram-se, de alguma forma, adormecer sobre a sua eficácia
certa mas restrita, conhecendo um desenvolvimento histórico pacífico. /
Só há alguns anos foram reactivados (pelo menos em França). Tentou-se
então fazer sair o museu das suas paredes para se tornar particularmente
/
capaz de captar pelo menos uma parte da memória imaterial. O museu
tradicional dilui-se assim no sistema muito mais vasto da eco-conservação
e do património. I
Os dispositivos monumentais e arquitectónicos conheceram uma
evolução histórica muito mais movimentada. Não estando, por nature-
za, protegidos num espaço fechado, foram directamente submetidos aos
abalos políticos, às relações de força entre classes sociais, e sobretudo às

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" 1
POLITICA D o P A T R M 6 N I o

9. O efeito Concorde

A
conservação parece ocupar um lugar de compensação face à des-
truição que acompanha o desenvolvimento industrial. Aos fluxos
rápidos de degradação e de desaparecimento das mercadorias,
construções e paisagens (para darem lugar, no processo de consumo e de
produção, a outros objectos e a outras infra-estruturas), parecem responder
os movimentos lentos de acumulação e conservação, que vão deixando
sedimentar-se uma multiplicidade de restos numa constelação de museus
e de espaços preservados.
A produção/destruição industrial sub-produzírá nas suas margens a
conservação, de tal modo que a estratégia do efémero e a estratégia do
perdurável se imbricarão. E tudo leva a crer que o facto de subtrair alguns
elementos à lei comum da destruição, de os pôr em evidência e de fazer
deles um espectáculo, seja uma maneira de garantir que a nossa cultura
centrada sobre a acumulação tenha ainda assim um sentido.
Estes movimentos estão efectivamente ligados, mas não basta dizer que
as destruições espectaculares e maciças da fornalha industrial só são social-
mente aceites na medida em que existem mecanismos compensatórios que
permitem a uma multiplícidade silenciosa de objectos acumularem-se fora
ou para lá do processo económico da obsolescência. Aliás, o desenvolvimen-
to das práticas conservatórias apenas segue de longe (com desfasamentos e
reacções particulares em certos domínios) a história da ordem industrial e
das suas mutações. As ligações são múltiplas e a sua análise deve ser porme-
norizada, distinguindo no modo de produção a componente que melhor
manifesta a sua dimensão de obsolescência, ou seja, o consumo.

o imaginário do colectivo

Entre consumo privado (mercantil) e conservação colectiva (não


mercantil), pode-se logo à partida estabelecer uma dupla relação de opo-

113
sição: todas as representações negativas associadas ao primeiro parecem engodo que disfarça este ciclo e como valores em si mesmos (em particular para
encontrar na segunda as suas imagens invertidas. Esta oposição tem um garantir uma certa estabilidade da sua identidade social). Os equipamentos
valor de garantia: as dimensões do colectivo, por um lado, da duração e colectivos fornecem estes valores de uso seguros. Pela simples razão de que não
do passado, por outro, garantem um limite aos efeitos do individualismo põem em jogo o desejo do utente e, consequentemente, só oferecem valores
e da efernerídade do presente. de uso (puros). Esta é de resto a sua fraqueza - os utentes, que geralmente
É sabido o quanto a ideologia (algo ameaçada actualmente) dos equi- não analisam os efeitos sociais negativos destes equipamentos, não deixam
pamentos colectivos beneficiou desta oposição. Esta apareceu, aliás, no de se aperceber fortemente do aborrecimento deles resultante - e, ao mesmo
momento em que as primeiras criticas contra o consumo e o crescimento tempo, a sua força. Mas esta força é essencialmente proveitosa para os bens
assinalavam o inicio do desgaste dos mecanismos mercantis. Viu-se nesses privados. Assim, determinado equipamento colectivo servirá indirectamente
equipamentos o antídoto contra a maior parte das disfunções da economia de elemento valorativo do bem privado correspondente: o autocarro ou o
capitalista e os efeitos perniciosos da sua ideologia individualista'. Na comboio (que não desejamos!) servem de "cofre" para o automóvel que dese-
realidade, os equipamentos colectivos só muito parcialmente cumprem jamos, visto que confirmam o valor de uso do transporte (de tal modo que as
esse papel, mas a sua imagem social globalmente positiva mantém toda formas de publicidade de bens colectivos, ao mesmo tempo que preconizam
a sua pregnâncía. Mesmo aqueles que reconhecem, face à evidência, o a substituição, são contraditoriamente outras tantas formas de publicidade
seu carácter normalizador, segregador, serializante, etc., reservam as suas indirecta para os bens privados correspondentes). De um modo mais geral,
críticas aos equipamentos actuais para salvar o princípio do colectivo. o sistema colectivo no seu conjunto tende a provar que existem locais onde
Este imaginário forte pode ser interpretado como o sintoma de uma as necessidades (de transporte, de saúde, de cultura, etc.) são reconhecidas
função social igualmente forte. Os equipamentos colectivos são evidente- como necessidades (e nada mais), e satisfeitas enquanto tais. Ele sustém o
mente muito mais do que aparelhos de reprodução social e ideológica (e a sistema do consumo ao escorat o seu suporte mais frágil.
representação de que beneficiam não é somente o feliz efeito de uma mani-
pulação ideológica do Estado). Eles asseguram, relativamente ao consumo
mercantil, uma função de restabilízação social. Para irmos ao essencial, digamos o presente no modo do passado
o seguinte: o objecto de consumo tem um valor de uso (no sentido lato, em
que pode, inclusivamente, produzir uma identidade social) pondo, ao mesmo Feito este desvio, regressemos à conservação e aos seus equipamentos,
tempo.em movimento o desejo do consumldo~. Como, a este nível, ele não que não são, aliás, senão um caso particular, exemplar além do mais; como
consegue evidentemente colmarar o fosso da carência, forçosamente falhará qualquer bem colectivo, o museu, o monumento, o centro histórico salva-
a satisfação. Esta falha faz a força do consumo privado, dado que induz a guardado beneficiam por um lado de uma ideologia que lhes é globalmente
sua repetição e mantém o consumidor em posição de sujeito desejante. Mas favorável; por outro, põem em jogo os mecanismos que acabam de ser
este sente necessidade de valores de uso atestados, simultaneamente como descritos. Por entre os valores de uso que atestam, encontra-se a cultura e
o saber (nomeadamente graças à função pedagógica exorbitada do museu).
Para d~r apenas um exemplo, a biblioteca, entre outras funções, consolida
I Quando eles se começaram a desenvolver em França (nos anos 60), foram apre- a ideia (quase uma ficção hoje em dia) de que os livros não são compra-
sentados como espaços onde se concretizaria uma "ideia menos parcial do homem" dos simplesmente para serem possuídos mas também para serem Iídos'!
(P. Massé), onde a lógica do lucro já não se imporia, deixando desenvolver-se, em vez
da corrida às posições sociais de cada um, as práticas colectivas, eventualmente até de
convivência. A ideologia das funções colectivas esteve assim na origem da ideologia 2 Mesmo que nem todos os livros de uma biblioteca sejam lidos: certos livros an-

da "qualidade de vida" e da imagem de um Estado paternalista e razoável que limita tigos cujas páginas hão estão cortadas, na Bíblíoteca Nacional, têm um valor elevado
os excessos da economia capitalista. no comércio. Basta que alguns sejam lidos. .,

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,~
~
Encontra-se também esse valor de uso, hoje de primeira importância objectos industriais modernos. Este ridículo, que a noção de gadget bem
económica, que é o turismo. Aqui a questão é imediata e directamente exprime e conjura relativamente aos objectos I miúdos, ameaça sempre
vísível: cada pais, cada cidade exibe o seu património, mesmo o mais atacar coisas de aparência mais séria, se não forem, do ponto de vista
pobre e aborrecido, para vender viagens aos estrangeiros. É certo que o industrial e económico, desclassificados a tempo (pois as coisas industriais
património não é directamente rentável nesta função turística (as receitas estão sempre em risco de desclassificação, mas o consumidor não se deve
directas não cobrem as despesas da sua conservação), mas é-o certamente / aperceber disso). No museu, o Concorde reencontra a sua se~iedade: volta
se estabelecermos um orçamento alargado. Pois a viagem e o turismo, a ser uma obra-prima tecnológica e sobretudo um grande momento da
que estão no cerne do modelo de consumo e do seu jogo de engodo do "sociedade de consumo" e do crescimento triunfanteJ-/r: este museu
desejo, têm uma fortissima necessidade de valores culturais atestados (o deveria ser o Beaubourg (ou em rigor o novo museu de la Villette, se este
turista apercebe-se disso confusamente, "legitimando" a sua viagem com souber aproveitar a lição de Beaubourg), para que o "efeito Concorde"
a "volta" dos museus, correndo o risco de se aborrecer, tanto mais que se cruze com o II efeito Beaubourg". Pois este museu vai buscar, em parte,
na sua terra nunca os frequenta)./J o seu sucesso ao facto de ter sabido tratar o passado recente (como aliás
Mas há mais: para lá dos serviç6s cujo valor de uso é seguro, um valor a arte ou a cultura) como o nosso presente o impõe. E antes de mais
suplementar paira sobre todos os equipamentos do património, o da pere- tratando este passado recente, que é quase o nosso presente (cf a galeria
nidade. E deste ponto de vista, também a conservação surge globalmente de actualidades do Centro de Criação Industrial} no modo do passado: pois
contra-dependente da produção-consumo, marcada pelo efémero e pela Beaubourg até pode assemelhar-se a um supermercado ou a uma refinaria,
obsolescência, Não se trata de uma contra-dependência vaga, frequente- mas continua a ser um museu que tem agarrados a si o imaginário vigo-
mente descrita como uma mera reacção de lachísmo ou de rejeição diante roso (tem raizes milenárías) e o poder de Estado desta instituição (e se a
da aceleração do desgaste do quotidiano. É, pelo contrário, uma Joqlía, sua' aparência resume a sua essência, não é porque um museu moderno
maravilhosamente subtil e eficaz, de tornar aceitável esta aceleração. ,\1' é parecido com um supermercado, mas porque um supermercado pode
O mecanismo é perfeitamente ilustrado pelo desenvolvimento (d qua- ser tratado como um museu). Quando apresenta objectos banais de um
se-nascimento, em França; e este atraso pode explicar-se por uma mais passado recente, pondo-os em evidência, na vizinhança dos vestigios da
forte resistência das estruturas tradicionais e uma certa rejeição da cultura alta cultura tradicional, estes objectos têm garantido retroactivamente
industrial no nosso pais) em todos os países industrializados de uma ar- o seu valor de uso e passam assim a ser garantes do valor dos objectos
queologia industrial e, de um modo mais geral, de museus do quotidiano. presentes ou vindouros. Apenas se limita a inverter a temporalidade da
Se os objectos utilizados ainda ontem e agora obsoletos (porque cessaram, publicidade para o mesmo efeito: esta esforça-se por garantir o valor
írreversívelmente, de serem fabricados, industrialmente em particular) vão de uso do objecto que se deve comprar; o objecto conservado atesta
para o museu, é um sinal irrefutável de que afinal eram duradouros; que retrospectivamente o seu valor. E o museu como aparelho de propagan-
tinham um verdadeiro valor de uso (cultural, estético, prático). Há tam- da retrospectiva é muito mais eficaz. Aqui já não há nenhum produtor
bém, neste caso, efeitos da nostalgia e efeitos, algo surrealistas, induzidos para acusar de manipulação. Na verdade, é o espectador que provê a si
pela mudança de contexto; mas a função social maior destes dispositivos próprio (como aliás quase sempre na publicidade comercial, qual viático
de conservação continua a ser a de atestara valor de uso de uma cultura
industrial através das suas máquinas e dos seus produtos.
3 Não me refiro aqui ao fracasso comercial do Concorde, que é (quase) uma his-
É por isso que pôr o Concorde no museu seria, e será certamente, o
tória completamente à parte. Para que o símbolo fosse perfeito, era melhor que o
símbolo mais perfeito da política do património. Pois o Concorde é um
Concorde tivesse sido um grande sucesso comercial. Os enormes carros americanos
dos objectos cuja função de uso era de tal modo frágil que ameaçava acabarão certamente também no museu ... Já em Milwaukee está exposta uma estação
ridicularizar não só o próprio Concorde como um grande número de de serviço dos anos 30.

tl6
tt7
que o consumidor reclama para sustentar a sua crença) desta ficção que destas atitudes, mas aqui, ainda, os principais têm a ver com o desgaste do
o tranquiliza: os objectos são-lhe caros. modelo económico industrial, com a sua perda de eficácia semiológica.
Perda doenraizamento, da identidade social, da estabilidade das
significações, produzida antes de mais pelo forte acréscimo da mobilida-
Ocofreú/ecrã do passado de geográfica e profissional, depois pelo desenvolvimento do consumo
privado e pela confusão dos signos que lhe estão associados. Vigas à
Isto observa-se ainda; a um nível mais individual e mais quotidiano, mostra, relógios de parede rústicos, louças antigas, fazem penetrar uma
através desta "retromania" que se tornou, de há alguns anos a esta parte, totalidade cam.ponesa perdida, ou reivindicam uma identidade familiar,
um fenómeno de sociedade. Os objectos antigos, e mais frequentemente em interiores urbanos, no resto, uniformizados. Da mesma maneira,
ainda aqueles que são simplesmente "desclassificados" ou fora de moda esforçamo-nos por conservar ou até por devolver ao local ou regional a
(marcados como objectos do passado por um facto industrial ou socioló- sua específícldade, quando esta já não existe senão no passado: regresso às
gico) ganham uma importância crescente no consumo, como o atesta o .tradições e a práticas anteriores ou antes à imagem que os "rurbanos",
desenvolvimento da troca e do comércio de antiguidades e de objectos em esses duplamente exilados do campo e da cidade, constroem delas. É nas
segunda-mão. Enquanto isso, esvaziamos os sótãos em busca de quaisquer e
classes médias, sobretudo na nova pequena burguesia intelectual, que a
objectos menmónicos ou simplesmente portadores de nostalgia, para ideologia do património local é mais forte. Aqueles que mais foram abala-
fazermos deles vestígios visíveis aos olhos de toda a gente -visíveis, mas dos e vigarizados pelo crescimento económico e pelas suas contingências
ao mesmo tempo emudecidos", Os patrimónios individuais amontoam-se procuram no passado e nas suas figuras estabilizadas uma ancoragem e
e exibem-se da mesma maneira que 6 património nacional. uma identidade um pouco mais sólida. A falta de encontrarem, ao longo
Todos estes objectos, embora permaneçam no espaço doméstico, são das suas migrações impostas, uma história da sua presença, esforçam-se por
um tanto museográfícos, antes de mais porque objectos semelhantes a fazer ressurgir em cada espaço uma presença da história. Ameaçados de
eles são rapidamente acolhidos no museu (tendo em conta a evolução atopia, refugiam-se na utopia de um passado inventado a partir de alguns
que se evocou); além disso, porque escapam largamente às leis vulgares restos, de alguns rituais que autentificam a invenção", Tendo em conta a
da economia (osmercados de segunda-mão e de antiguidades não são de importância destas classes médias e do papel fortemente aculturante que
modo algum mercados vulgares) e mesmo da transacção comercial (troca, elas desempenham, não é de espantar que a ideologia do património e a
heranças). Surge assim uma espécie de museus pessoais (auto-geridos) sua função de restabilização social se manifestem vigorosamente em toda
através dos quais vamos fazendo o "brícolage" da nossa história, do nosso a colectividade (mais de seis mil associações de defesa do património em
passado, das nossas raizes. Vários factores podem explicar a generalização França), tendo como limite ideal a mobílização total, cada qual assumindo
o estatuto de conservador associado, tornando-se o guardião escrupuloso
* No original écrin (algo que tapa, mas deixa adivinhar que há valores dentro), do património local'',
que joga com écran (que tapa, não deixa ver, embora se saiba que está a tapar algo).
(N. da T.) 5 A autenticidade é, aliás, muitas vezesduvidosa. Basta afinal de contas que alguns
4 A1l coisas que antigamente se amontoavam nos sótãos tinham uma função restos certifiquem aos olhos de todos uma crença para que estes funcionem bem no
preciosa. Eram sinal de um recalcamento e de uma resistência; elas materializavam imaginá tio dos habitantes e dos turistas.
aquilo que tinha sido operatório e já não o era, o que tinha perdido o seu sentido, Só 6 Esta evolução é fortemente encorajada pelo Estado: "A arma perfeita contra
o estrangeiro estava em condições de fazer ressurgir esse sentido. Deste ponto de vista, as depredações de todo o género é o interesse que os utentes assumem pelos "seus"
estas reservas, como aliás as dos museus; evocam a função do íaconsctente. O facto de edifícios, mesmo modestos. É possível esperar, graças à actividade dos grupos de res-
estarem submetidas ao imperativo moderno da visibilidade retira-lhes definitivamente ponsáveis, a criação de uma" consciência artística" local, que seria a ajuda mais segura
essa dimensão essencial de apenas terem sentido para outrem. para a Administração, e sobretudo um dos modos de acesso das massas à cultura".

118 119
Para lá destas funções de enraizamento e de identificação, os objectos apesar disso, resistido às provas do tempo, adquirem um valor irreversível
móveis e os imobiliários vêm dar apoio às produções industriais. É mais ou crescente, servindo de alguma forma de caução, de reserva de ouro, à
uma vez o "efeito Concorde", mas segundo um movimento inverso que o emissão inflacionista dos "objectos-papel" produzidos industrialmente.
faz sair das paredes do museu; pois trata-se sempre de trazer uma credíbí-
lídade de duração às produções industriais ameaçadas .de insignificância
por um ciclo de obsolescência acelerada. O que já se observa no museu, o inferno de um espaço sem memória
uma certa vizinhança entre objectos vulgares do passado recente e vestígios
tradicionais da alta cultura, prolonga-se nos interiores contemporâneos, Fenómenos muito comparáveis são postos em jogo quando a polí-
onde os objectos anrigos, artesanais ou simplesmente "desclassificados" tica do património semeia pelo território sítios classificados e sectores
se misturam com os vulgares objectos funcionais. Embora os primeiros salvaguardados. Os fragmentos de arquitectura antiga tentam quebrar a
provoquem algum choque entre os segundos, esse é precisamente um uniformidade e a insignificância do território submetido à industrialização
dos aspectos da sua sedução. O outro é a sua capacidade de se fundirem e à urbanização modernas", Estes só muito parcialmente atingem tal ob-
estreitamente com os objectos funcionais modernos. Ao ponto de serem
jectivo, mas representam localmente um ponto de paragem num sistema
ressuscitados funcionalmente, reencontrando o seu uso antigo, de maneira arquitectónico que parece, ele também, atacado pela vertigem do desgaste
que a amalgama dos objectos se prolonga numa amalgama de práticas. e da obsolescência industriais. Não é tanto a sua singularidade ou a sua
Aqui ainda esta mistura funciona a favor dos objectos industriais (aliás, qualidade arquitectónica que faz o seu valor social; é o facto de surgirem
encontramos explicitamente a mesma mistura nas formas de publicidade, como algo que saiu definitivamente das vulgares leis da economia que
que aproximam um produto fabricado original das produções de última lhes confere uma singularidade absoluta que nenhuma arquitectura mo-
geração), extraindo-os da sua realidade industrial, que os vota à desclassifi- derna pode, neste plano, igualar. Embora muitas vezes tornem perceptível,
cação e a um desaparecimento rápido quase certo, para os recolocar numa por contraste, a mediocridade desta (como o demonstram os inquéritos
continuidade artificialmente reconstrutda'. Os objectos antigos, particu- sobre este assunto), eles sugerem a ideia de uma continuidade possível,
larmente os mais vulgares, por terem sido desclassificados e por terem, e acabam por valorizar ao contrário as realizações modernas. O habitar

Y. Beauvalot, "L'inventalre général des monuments et des richesses artistiques de la


France", nota roneotada, Ministério da Cultura, 1 de Junho de 1977. Observaremos B " ••• Temos cidades que são praticamente cidades sinistradas do urbanismo. Os
que, desde os primeiros textos do período revolucionário, o tom não mudou nada. danos causados pelos sucessivos planos de ordenamento são muito mais graves do
Citemos ainda, da mesma fonte: "Novas medidas de coacção legal ou regulamentar que os causados pela guerra. O urbanismo destruiu mais do que a guerra." (Excerto de
seriam pouco eficazes se não fossem acompanhadas de uma verdadeira inquisição entrevista, M. Houlet, inspector geral dos Monumentos Hístórícos.)
patrimonial. A melhor solução é sem dúvida a que consiste em revelar a existência "Um vago mal-estar, uma insatisfação latente, habitam os observadores mais
daquilo que, para a maioria, não passava de um elemento banal da vida quotidiana. sensíveis do nosso meio construído, Com a certeza confusa de que "antigamente era
A conservação, para não dizer o renascimento, tornam-se por conseguinte assunto de diferente", de que a arquitectura não pára de se desvalorizar, de se aviltar, o público
todos." A. Chabaud, "Une nouvelle conception du patrimoine natlonal", p, 18. - todos os públicos - refugia-se numa busca friorenta pelos signos do passado ..." (M.
Esta "participação" inscreve-se no desenvolvimento do trabalho social informal (ou Champenois, Le Monde, 22-8-79, "Desejo de Arquitectura".)
trabalho informal de Estado) que conclui uma longa evolução histórica visando fazer "A uniformidade representa actualmente, do ponto de vista da estética, um grave
da família o domicílio disseminado do Estado, constituindo o segmento autogestío- perigo para a qualidade de vida. De que serve percorrer um país <;luir até aos antipodas,
nário da normalização social.
nem que seja por um dia, se vamos encontrar por todo o lado a mesma arquitectura
7 A oposição durável! efémero é muitas vezes reforçada por uma oposição original!
com os mesmos materiais, as mesmas roupas, os mesmos objectos, as mesmas paisa-
reprodução, em que o objecto artesanal faz esquecer que o objecto industrial não passa gens modeladas a "bulldozer" e, por conseguinte, os mesmos costumes." "Uma nova
de um "cópia" multiplicada a larga escala.
concepção do Património Nacional", A. Chabaud, op. cito p. 18.

120
121
antigo sustenta por exemplo a ficção de que o habitat moderno não Para isso, estamos todos prontos a tornarmo-nos construtores de utopia,
representa um corte radical, o qual todavia é imposto, irreversivelmente, pois a espessura de um passado que imaginamos a partir de uns quantos
pelas contingências 'económicas. restos parece-nos o último espaço ainda habitável.
Aliás, é notável observar a evolução que se desenha no domínio da
conservação arquitectónica e que apenas reproduz o que se passou nos
interiores domésticos. Estes tinham noutros-tempos um pequeno mime- Consumação e conservação
ro de objectos antigos, valorizados separadamente. Hoje multiplicam-se
os objectos de um passado recente,que são misturados com todos os o consumo é dominado pela ideia da consumação, essa forma hoje ar-
outros. Do mesmo modo, na arquitectura, começou-se por conservar al- caica mas que continua a ser, paradoxalmente, o fantasma da conservação.
guns elementos monumentais e isolados, 'passando-se depois para centros Se a realidade vulgar do consumo é uma certa mesquinhez, calculadora da
históricos, igualmente isolados. A tendência, já actualmente anunciada melhor relação preço/qualidade e indutora de repetições, a sua verdade é a
(mesmo que arquitectonicamente contestável, ela representa a linha de consumação, cujas formas correntes são o desperdício, a despesa luxuosa,
maior pendor sociológico) é de disseminar os elementos conservados, ao a destruição. Uma verdade que o sujeito percebe quando, ao destruir o
mesmo tempo que se intensifica a salvaguarda de realizações relativamente objecto ou ao negar o seu valor de uso (negação que, por exemplo, o des-
banais e recentes. A conservação de centros históricos bem delimitados perdício assinala), ele acede à realidade do seu desejo, que é justamente o
produz com efeito uma dicotomia do território de que sofrem as duas ./ de não se satisfazer com um valor de uso, mas de implicar o Outro e, por
partes separadas: de um lado, um espaço signíficante mas sem vida; do conseguinte, a dimensão do simbólico. É nesta medida que a consumação
outro, vida mas insignificância do espaço", As cidades novas particular- é mesmo assim indispensável ao consumo. Na palavra de ordem publicitária
mente, sejam quais forem os esforços para "animar" a sua arquitectura, "Gastem!", há uma verdade literal, dissimulada de tão ostentada que é,
sofrem da ausência de vestígios antigos que sirvam.de suporte a uma e que permanece assim o motor invisível que anima de longe todas as
memória - facto que actualmente se tenta remediar "hlstortcízando-as" de repetições consumistas'". É aliás a sua ausência no equipamento colectivo,
urgência. Pelo contrário, a ímbricação de elementos antigos no tecido das sempre "razoável" para o utente e aquém de qualquer jogo do desejo, que
realizações modernas inscreve-se na lógica profunda de uma conservação o aborrecimento irremediável ligado ao seu uso assinala.
que procura colocar o presente num simulacro de continuidade. A um primeiro nível, a conservação é exactamente o contrário da
Este imperativo da conservação, que ultrapassa largamente a instituição consumação: ela simboliza o contrário da destruição e do desperdício
do museu, semeia pelo território sítios classificados e sectores salvaguarda- (pela sua própria origem histórica, ela contrasta com as destruições do
dos, e prolonga-se nos comportamentos indíviduais, reflectindo no fundo Antigo Regime) e garante o valor da acumulação burguesa.
a nossa relação com a ordem técnico-industrial. Ele exprime em primeiro Contudo, devemos observar esta questão mais de perto. E distinguir
lugar o nosso desejo de que esta ordem deixe outros vestígios para além primeiramente os elementos prestigiosos do património nacional. A
de detritos e daqueles vestígios que, sendo irreversíveís, estão ligados às
ameaças ecológicas (note-se, aliás, o fascínio ambívalente associado a uns
10 Um motor que não deve ser demasiadamente acelerado: o desperdício puro não
e outros). Que ela deixe outros vestígios, de algum modo comparáveis passaria de sol de pouca dura, curro-circuito no sistema. O salto em frente da produção
aos dos séculos anteriores, para que possamos continuar aacreditar nela. teria como preço a destruição do mecanismo do seu crescimento controlado. O desper-
dício deliberado deve limitar-se a algumas transgressões excepcionais escondidas sob a
rotina do consumo razoável. É desta maneira que o jogo a dinheiro, como despesa e
9 Esta oposição sígniflcante/ínsígnifícante é geralmente reforçada por uma opo-
risco puros, é reprimido pela sociedade capitalista, que s6 o tolera localizado e.sobretudo
sição legível/ilegível, em que a legibilidade urbana tradicional é ameaçada por um
fiscalizado e reduzido a uma escala razoável para o jogador-contribuinte.
urbanismo que faz desaparecer o alinhamento, a rua, a contiguidade ...

122 123
restauração ao mesmo tempo perfeccionista e largamente inautêntica do pôr em cena uma continuidade com o passado, quando a conservação
palácio de Versalhes não representará uma espécie de potlatch * instírucío- é precisamente o local de uma ruptura radical com ele, ruptura que ela
nalizado? Isto leva-nos aínda'à vizinhança de certas realizações tecnológicas está, pois, condenada a dissimular perpetuamente'ê.
de prestígio cujo défíce é coberto pelo Estado. Aqui ainda com a dimensão Triste vocação a do património que não pode senão simular de longe e
perturbadora de pegar nas formas entretanto incongruentes de consumo afinal falhar irremediavelmente o júbilo da despesa pura. "A esta clivagem
dos aristocratas do Antigo Regime. O que dá à conservação do prestigioso entre gastar e conservar correspondem grandes opções culturais e políticas:
a aparência de ser simultaneamente a negação reformista (burguesa) do no limite, é a opção da nação revolucionária, que prefere, aos seus bens,
desperdício e a negação radical (aristocrática) da despesa utilitária. Mas o risco de existir, ou ainda a dos grupos conservadores cujo receio de pôr
esta consumação, simulada em formas antigas, está duplamente degradada em risco a sua herança leva a fetichizar a felicidade que estão precisamente
e já nem sequer o é propriamente. em vias de perder ... Quem quer conservar está preso na dependência de
Logo à partida porque a despesa envolvida para preservar o património uma ordem, de uma posse ou de uma ciência, e sujeito à lei (a do lucro
é infíltrada de diversos objectivos de rentabilidade, nomeadamente os que ou do seguro) que elimina, com o risco, a felicidade que ela promete.
se ligam ao turismo. Se a munificência do rei lançava os seus súbditos na Aliena-se. Da felicidade não 'resistem' senão representações. Pois não
indignidade era precisamente por ela ser gratuita, pura de qualquer pre- parece existir felicidade senão lá onde o outro é a condição do ser, lá onde
conceito de rentabilidade financeira. E mesmo que estes preconceitos não se faz a festa, lá onde a conservação dos bens é alterada por uma despesa
sejam percepcionados pelos três milhões de visitantes anuais do palácio feita em nome dos outros, de um alhures ou do OutrO."l3
de Versalhes, o luxo que aí se ostenta não remete para nenhum sujeito
que se possa glorificar da despesa. Em tudo isto, o Estado é o mestre de
uma tripla simulação: ao ressuscitar formas antigas; ao fazer como se um
sujeito soberano, que não pode ser senão o povo, ainda as habitasse!',
finalmente, apresentando a despesa como excessiva quando ela é apenas
avultada e, afinal de contas, rentável. O Estado é apenas o gestor desta
operação que só faz sentido por demonstrar que ele tem o monopólio
deste tipo de despesa, que lança na indignidade outros elementos do
património e, desse modo, toda a colectividade.
A questão da consumação não põe senão em evidência, mais uma
vez, 'a própria ausência. A ausência de um Outro simbólico que dava
sentido ao que era construido e destruido sumptuosamente no passado.
Todo o paradoxo da política do património vem daí: ela esforça-se por
.oísa que consegue tazer Bastante l5em uma vez que as aparêffcias-a-favore""-~-------~"""'-
• Termo de origem americana relativo a cerimónías em que os participantes cem: quanto mais se aprofunda o corte com o passado, mais se desenvolve o culto
oferecem presentes, em competição pelo prestígio que tal confere no interior de um dos seus vestígios. Exemplo de discurso ingénuo: liA nossa faubourg Sant-Antoi~e
sistema hierárquico pré-clasststa, sistema de trocas em que existem tais cerímónias, fabrica mais mobiliário Luís XVI do que mobiliário moderno. Que tempo, antes do
(N. da T.) nosso, tinha vivido nos móveis dos seus antepassados? O século das máquinas é o
lJ Se apesar de tudo subsiste uma dimensão de potlach, ela será apenas interna- primeiro a reencontrar todo o passado dos homens. Na nossa civilização, o futuro
cíonal, O que simboliza aliás bastante bem a redução da consumação que foi operada não se opõe ao passado. Ressuscita-o." A. Malraux, Discurso na Assembleia Nacional,
é o facto de a restauração de Versalhes ter sido parcialmente financiada pela lotaria Julho de 1962.
nacional. 13 M. de Certeau, La culcure au pluriel; 10/18, U.G.E., Paris, 1974, p. 51-52.

124 125
p o r T , o o P A T R M Ó li

10. O museu dê Babel

o Passado: eis o Inimigo. Atearíamos fogo às bíblíotecns I' HI.li1


museus, pois que para a humanidade tal não seria uma perdn, Inuú
proveito e glória.
Jules Vallês, te Nltlnjwll,é.

N
o centro do sistema da conservação ergue-se, como urna pnH,'1I
forte, o museu. Foi a partir deste espaço separado, tornado n :j(~U
cargo pelas instituições públicas, simbolicamente marcado \'t)llH.1
equipamento colectivo, equipamento do poder, que se c!csenvoIV\'!'1I111
historicamente as práticas, um saber e uma ideologia da conscrvuçãn,
Há algumas décadas, o museu resumia, aliás, a quase totalidade lll1 ~'IIII
servação. Continua a ser uma forma exemplar, mas que já é só actual nW!'IJ('
uma componente da política do património, no meio de um e~pl'l:IT\j
contínuo desenhado por novas instituições e práticas conservatórius,
Tais práticas visam salvaguardar elementos materiais ou imn(l'rlal;l
ameaçados de perda, sem que eles deixem, pelo menos em parte, (j N~'II
espaço cultural e socío-econórnico 'quotidiano. Esta conservação em \$-
paço aberto diz sobretudo respeito a elementos imobiliários, plli~ilgl'ft:i
ou habitats que, pela sua natureza, não podem ser isolados (ncilm\:l1t't.\ l'
são' ameaçados de degradação pelos processos de produção e consumu,
Mas de uma maneira mais geral, esta nova forma de conservação ViNil
preservar in situ objectos móveis sem os separar da sócio-cultura e dtlli
práticas quotidianas que lhes estão ligadas. Trata-se, enfim, ele l,)l'\\lt~l:C"
estes mesmos equilíbrios socío-culturaís, num meio aberto a influCmduN
fortemente exógenas, é pois uma problemática próxima das da l~l~(lIOHi:t
e daetnologia.
O campo museográflco divide-se assim em duas regiões. De um ludo.j
"museo-conservação", encerramento de objectos particulares, geral 11Il'J Ih'
destinados pela sua origem a tal isolamento. Do outro, uma "eco-coma-r-

127
vação" que visa uma preservação global e aberta de vastos conjuntos e de tão essenciais e contudo tão desconhecidas 1. Há aqui como que um lon-
práticas culturais. Decorrentes' de diferentes modalidades de funciona- ginquo eco da transcendência que tocava as oferendas feitas aos deuses:
mento, oriundas de genealogías relativamente distintas, estas duas formas objectos consagrados que se amontoavam nos templos, que não podiam
de conservação estão no entanto estreitamente ligadas. nem ser vendidos nem reutílizados e que, se fossem deteriorados, deviam
É, aliás, impossível traçar uma fronteira nítida entre elas, pois a eco- ser destruídos e sepultados ritualmente. Esta dimensão de consagrado
conservação é sempre um pouco artificial, um pouco infiltrada de aspectos e de irreversível, por muito deslocada que possa parecer, pois que já não
museográficos. Em certas cidades americanas, onde a evolução económica decorre de uma exigência simbólica, mantém-se ainda ligada ao museu
apagou todos os vestígios de um passado recente, podem-se no entanto moderno e ao estatuto que este confere aos seus objectos. "Um objecto
encontrar no museu reproduções fiéis e em tamanho natural de bairros de museu": há sempre uma conotação de irrisório e de funerário nesta
antigos. Mas a (falsa) cidade antiga no museu não está assim tão afastada expressão, mas também a evocação de uma exclusão, de uma solidão e,
de certos centros históricos restaurados e esvaziados das suas actividades enfim, de uma espécie de dignidade.
tradicionais. Práticas, instituições, ideologias misturam-se ao longo de um Esta clausura, no espaço real e no espaço simbólico, do museu, é a
espectro que vai da ecologia à museologia. condição permissiva inicial, o acta fundador de uma constituição. Através
da selecção, da ordenação, da hieratquízação dos lugares e dos objectos,
qualquer museu dispõe de uma larga margem de manobra para impor
Uma lei invisível (deliberadamente ou não) uma representação, e realizar assim objectivos
ideológicos ou didácticos. Do passado em particular, os museus dão
A força dos dispositivos museográficos está em constituírem sistemas uma imagem singularmente empobrecida e caricaturizada, ordenada em
fechados. Física e simbolicamente. O facto de ser um espaço fechado e torno de alguns elementos exageradamente valorizados e desorbitados,
protegido começa logo por fazer do museu um espaço tecnicamente có- uma imagem depurada da sua espessura de desordens e conflitos. Deste
modo de gerir, no qual os objectos, isolados de qualquer uso e quase de ponto de vista, o museu integra-se idealmente no vasto dispositivo colec-
qualquer contacto, são relativamente fáceis de preservar das degradações; tivo de produção do passado posto em prática pelo Estado na sociedade
do roubo, etc. Esta comodidade é essencial, pois é muitas vezes graças moderna.
a ela que é possivel salvar os objectos de um desaparecimento rápido: o Mas a instituição museográfica impõe a lei da sua organização interna
museu ou a morte, tal é a alternativa mais corrente. Subsídíaríamente, às colecções que apresenta de uma maneira especifica e original. Preso
tal dispositivo presta-se, como qualquer equipamento colectivo, a uma nesta lei, como uma palavra num texto, cada objecto é reduzido, senão ao
normalização tecnocrática, a uma gestão administrativa e financeira cen- silêncio, pelo menos a um sentido unívoco, muitas vezes sublinhado pela
tralizada - cujo primeiro símbolo foi a decisão de criar um museu por nomeação e pelo comentário que o pregam ao contexto. Este controlo
departamento [administrativo] durante o periodo revolucionário. que o museu exerce sobre a representação, embora seja perfeitamente
Mas é o facto de ser um espaço simbólico fechado que faz do museu um analisável, vai buscar a sua eficácia ao facto de apenas confusamente
equipamento singular. Qualquer coisa conservada está já, como dissemos, ser apercebido pelos visitantes. Pois os objectos ostentam o discurso da
separada da vida quotidiana, e o museu mais não faz que consagrar esta cultura dominante, criando ao mesmo tempo distracção:' eles dlstrncm
separação. Mas confere-lhe uma certa solenidade, uma aura de irreversivel.
Os objectos entram no museu mas não saem (em geral, e a não ser em
1 Cf. J. Clair, "Le rite et le reste", Trallerses, n° 11, 1978. A reserva 8Urllo Ullhli \llll
caso de acidente como o roubo; mas o roubo é uma homenagem presta- dos últimos locais que ainda escapam ao imperativo moderno de vlHlhlltdmh' tlil'lIl.
da, quase ritualmente, à dimensão autentífícadora e carceral do museu); Espaço ainda enfeitiçado, onde paira a presença do invisível eduHlllrrlldll, I' \,11' qll\'
amontoam-se nas reservas, essa parte submersa do museu, de funções parece estabelecer a derradeira e frágil continuidade com ti passad«,

128 129
os espectadores da lei do museu. O olhar captado pelas coisas mostradas Esta nova política dos museus actualiza um dispositivo que tinha parado,
já não vê as paredes que os encerram', o museu parece deixar de fora em grande parte, no século XIX, devolvendo-lhe, com um público alargado
toda a estrutura social, política e ideológica, apesar de ser dela o resumo (vários milhões de visitantes por ano no milhar de museus enumerados
materializado. É um operador social cujo mecanismo permanece invisível, em França), uma eficácia ideológica mais directamente operatória.
pois está escondido por detrás do que mostra. A maior parte dos visitantes
sentem o mal-estar que não pode deixar de produzir, em muitos museus,
a pesada carga didáctica ou o eclectismo de classe; mas, não conseguindo Uma museografia de segundo grau
definir-lhe a origem, acabam normalmente com um vago sentimento de
culpabilidade. O que leva a que o museu continue sendo, sem se des- Contudo, estas inovações não estão à medida da procura social que
mascarar, um equipamento extremamente segregador, frequentado na se manifesta, muito particularmente no domínio da conservação. Esta
realidade pela classe social já aculturada à cultura que ele apresenta. Os procura tem como origem evidente a tendência pesada que conduz as so-
outros, espontaneamente, abstêm-se. Ai; análises de Bourdieu e Darbel ciedades industriais e urbanizadas para a destruição acelerada de elementos
(em L'Amour de ['art) podem estender-se à maioria dos dispositivos mu- materiais, e sobretudo de equilíbrios naturais ou ecológicos milenares.
seográflcos. formalmente abertos a todos, na verdade apenas acolhem Mas esta causa primeira está longe de explicar tudo. Num passado recente,
aqueles que já adquiriram por outras vias um capital de conhecimentos a destruição fazia-se também a ritmo acelerado sem provocar o mesmo
e de interesse pela arte, pelo passado, pela ciência, etc. sentimento de urgência. A percepção social desta destruição também
O museu é por conseguinte um equipamento que assegura com vigor mudou, particularmente sob o efeito da desterritorialização crescente e do
e eficácia as suas funções de isolamento e redução sobre os objectos, e de desgaste do modelo de consumo. E foi também o dispositivo institucional
reprodução ideológica sobre os seus visitantes. Mas a sua eficácia funcional que mudou, estando hoje em condições de fazer face a esta procura, de a
resulta da sua estrita localização no espaço físico e social, e ela mantém essa canalizar e até de a pôr ao serviço das suas próprias estratégias.
eficácia do museu. A sua força faz a sua fraqueza: ele não pode abordar O Estado encontra-se confrontado com um conjunto de reacções que
senão o que é transportável, e praticamente só se dirige àqueles que já têm lugar no movimento e na sensibilidade ecológicas, mas ele dispõe
estão aculturados aos seus valores. Na sua forma mais tradicional, o museu da base segura que representa toda a herança de uma política da conser-
fecha-se sobre si mesmo, numa estreita faixa da cultura e do público. O vação com dois séculos de existência. Podemos observar actualmente a
fechamento e a segregação que ele impõe decorrem de uma ideologia que recuperação parcial, hesitante, do protesto ecológico. Este debate-se fron-
deixou de estar adaptada aos meios e objectivos modernos de fixação das talmente com a lógica económica e com inúmeros interesses particulares,
massas. É por isso que novas formas se desenvolvem rapidamente, nas eles próprios sujeitos a esta lógica. Ai; instituições não podem explorar
quais a lei interna de organização, igualmente invisível, senão mais, se estas contradições senão pontualmente, marginalmente, pela instaura-
adapta à ideologia do presente: relativo apagamento da vontade pedagó- ção de novos controlos, e. contentando-se com instáveis compromissos.
gica, amálgama cultural, abertura para a actualidade e o quotidiano, etc. Em contrap artida , no campo da conservação stricto sensu, o Estado pode
multiplicar os dispositivos para diluir e disfarçar as contradições, para
Z Não se deve reduzir esta captação do olhar a um mero jogo de curiosidade ou de criar espaços à parte onde as contingências económicas são suspensas. A
interesse. Tentei (cf Elegedu désardre, p. 136-145) decompor este mecanismo de captação partir destes espaços de recolhimento, e dos dispositivos jurídicos e tecno-
em dois tempos: o que é dado a ver, em particular o objecto ostentatório (quadro, lógicos que estão agora ligados a eles, o Estado encontra-se em excelente
monumento), é o suporte de um olhar; este grande "imaginado" no campo do Outro
posição para retomar por sua conta um discurso fundado na apologia
é a causa de uma jubilação, na própria base da pulsão escópica. Para lá das obras dos
museus, todos os vestígios historicizados que se destacam na paisagem participam de da conservação, ao mesmo tempo que vai aumentando os seus poderes
um sistema panóptico através do qual, quase literalmente, o passado nos olha. regulamentares e as suas intervenções autoritárias.

131
1:iIO
Pode em particular desenvolver a acumulação estatística, consubst~~~:,WU'?; as wntingências da competição internacional, a intervenção do Estado
cial a qualquer poder político, sob a forma de inquéritos, de arquivaçâ{;/,.'I!" apenas pode ser secundária e compensatória, atenuando ou disfarçando
sistemática, de inventários, de bancos de dados. Todos os meios tecri~f;;iH$! os efeitos mais difíceis de suportar. Vista como útil, mas sempre insufi-
lógicos modernos da informática e do audio~isual são aqui convocad6$',:\',"> ciente, a intervenção pública é assim simultaneamente apreciada posi-
para duplicar os monumentos com documentos, gravar relatos, tradiçóe$";", tivamente e votada a um entorpecimento sem fim. O desenvolvimento
e práticas em filmes ou bandas magnéticas, pôr em reserva aquilo qü~Ü.!i do Estado não está senão a alimentar-se, aqui como noutras partes, de
dos elementos materiais ou imateriais, se pode amontoar facílmentê uma contradição estrutural. Também muitas vezes acontece as acções
em arquivos, pinacotecas, cínematecas'. Esta polícia dos objectos e da~' públicas servirem' de base a um novo processo de valorização e de in-
práticas, de origem histórica muito antiga Qá em finais do século XVIII, vestimento, acelerando assim a espiral sem fim do desenvolvimento do
em França, se manifestava um interesse pela cultura popular na intenção' Capital e do Estado.
mais ou menos explícita de a reduzir), pode desenvolver-se hoje ilimita- Um exemplo: para fornecer uma compensação para a degradação
damente e ajudar a resolver muitas contradições, Pois, afinal de contas. que ameaça uma paisagem urbana, um bairro é classificado como área
tudo se pode arquivar, é possível conservar um objecto como testemunho protegida. Mas esta compensação, já parcial na sua origem, pode ser
e destruir todo o resto (cf o que aconteceu aos pavilhões de Baltard das esvaziada da sua substância pelo facto de o dispositivo regulamentar das
Halles de Paris). áreas protegidas produzir um espaço privilegiado de valorização económica:
Finalmente e sobretudo, as instituições públicas podem aperfeiçoar, a os imóveis são adquiridos pelos investidores, remodelados, alugados ou
partir da sua base museográfica, estratégias mais englobantes, tentativas vendidos a preços muito mais elevados do que anteriormente à classifi-
para recuperar uma procura social de natureza, mais ecológica: eco-mu- cação; a operação salda-se pela partida das populações presentes e por
seus, museus disperssos por várias unidades, sectores protegidos, parques uma desestruturação profunda do ambiente vital anterior. A conservação
naturais, todos estes novos dispositivos de eco-conservação são formas de reduz-se neste caso a uma pura materialidade de fachada, que serve de 11

compromisso, intermediárias entre respostas museográfícas manifestamen- suporte, graças a uma injecção de capital, a novas hierarquias do território I,i
te inadaptadas e respostas ecológicas radicalmente impossíveis. Embora e segregações sociais. Itl
saídos do museu, estes dispositivos procuram demarcar-se dele, servindo-se O mecanismo em jogo neste exemplo é geral: num mundo submetido
até dele como contraste, a tal ponto é verdade que o museu é visto hoje a uma destruição massíça, a conservação de alguns elementos isolados
como algo de mortífero. Mas por outro lado, quando se trata de bairros, .forçosamente acarretará a sua valorização económica. Quando um objecto
paisagens ou práticas socio-culruraís, estes dísposítívos em meio aberto vai para o museu, todos os objectos vizinhos são assim valorizados nos
só muito parcialmente podem suspender as contingências económicas, mercados de arte ou de antiguidades. Quando um espaço é protegido
e a tendência pesada da destruição predomina. porque é visto como "antigo", "tradicional" ou "natural", adquire valor,
Esta fraca eficácia da intervenção pública está na própria origem do tal como a sua vizinhança. E esta valorização faz quase sempre falhar
seu desenvolvimento indefinido, segundo uma configuração clássica que profundamente o propósito visado - ou aparentemente visado - pela
liga o desenvolvimento do Estado ao da economia. Como está fora de conservação. Assim, quando a administração grega decide "proteger" I11

questão, nos países industriais, pôr em causa a acumulação do capital e certas ilhas Cíclades, pois elas representam uma cultura tradicional (em "I
vias deextinção, como as espécies animais!), que ainda por cima atrai os
turistas, o resultado é uma subida dos preços dos terrenos e das casas. Os
J Foi assim que o inventário geral em França foi submetido a uma intensa norma-
habitantes têm dificuldade em suportar as contingências administrativas
lização: "Na hora da !nformática, está já fora de questão dar livre curso à inspiração
e à fantasia no estud~ dos monumentos e das obras de arte." Y. Beauvalot, op, cit., que visam a manutenção do habitar tradicional, e preferem .cornprar
p.22. estúdios em Atenas. Nesta perspectiva, poder-se-à mesmo conceber que

132 133
,I
I
"ai

I
o Estado subsidie os indígenas para que permaneçam e façam de confa misturar com acçõessociais. Extraí-o de um artigo recente" cujo título:
'I
que ainda estão ligados a um modo de vida que deixou de fazer sentido "O passado em cassetes", e subtítulo: "Um velho que morre é um museu I
para eles. Nestas condições, a cadeia destruição-conservaç~o-valorização i
que arde" não traem: "Em Setembro de 1979, o museu da Aquitânia, de
conduz directamente ao simulacro. ' Bordéus, saiu de casa para ir à procura da memória colectiva da região de
Para paliar estas dificuldades e estes fracassos, as estratégias museográ-
li
Périgord. A experiência tinha um duplo aspecto: investigação etnológica
ficas tornam-se mais complexas, misturam-se com objectivos económícos e animação social junto da terceira idade. A este título, ela era apoiada ,I
·jl
ou sociais, crescem desmesuradamente. Ao nível do discurso, os exemplos e financiada conjuntamente pela cidade de Bordéus, relativamente ao 'li
n:
deste imperialismo da conservação multiplicam-se. Há que conservar tudo, museu, e pela D.D.A.S.S. (Direcção departemental da acção sanitária e
as coisas, os homens, a própria alma, pois - é o não-dito mal velado de social) da Dordonha ... Concepção algo nova de museu: a noção de pa-
todos os discursos - tudo isto precisamente nos escaparia se o Estado trimónio tende a incluir o testemunho directo. O etnólogo entra com os
não se encarregasse disso: "O que me parece primordial na reabilitação dois pés no quotidiano e a palavra torna-se objecto de museu. O objecto
das velhas pedras é conservar os antigos habitantes de modo a conservar apresentado será agora comentado e animado por aquele que o utilizou,
bairros com vida, pois estes antigos habitantes são também a alma de dando-lhe assim o seu sentido. Procedimento indispensável quando é
uma cidade." (R. Poujade, presidente da câmara de Díjon, entrevistado na sabída a velocidade com que trabalha o esquecimento. Muitos jovens 11ifl

France-Inter a 9 de Junho de 1980). A formulação pode parecer excessiva,


metafórica. Mas não o é assim tanto: alguns dias depois, no seguimento de
citadinos já não fazem ideia de para o que é que servia uma charrua ... O
museu apresentará estes testemunhos sob a forma de montagens audioví- !
uma emissão televisiva sobre o património (17 de Junho de 1980) que mais suais. A palavra far-se-áacompanhar de fotografias tiradas no local ou de
ou menos amalgamara tudo nesta noção - os monumentos; a paisagem, o objectos vindos das colecções do museu, mas ela terá o papel principal,
pão, o vinho, a caça ao pombo, etc. - os telespectadores telefonavam para sendo o resto apenas para a ilustrar."
afirmar: "O patrímónio somos nós." Por outras palavras: "Conservem-nos Está fora-de questão criticar aqui esta etnologia de urgência de que
a.nós também; estende i sobre nós a solicitude patrimonlal." recentem~~te falava Lévi-Strauss, nem esta forma aberta e inteligente de ii~;
Objectivo que a nossa sociedade de conservação procura realizar tra- museología, aliás mais desenvolvida noutros países. Pois não há outra
tando o que é vivo como Um grão de memória. Dois exemplos significativos, jl:tternativa: o desaparecimento e o esquecimento, ou esta forma de salva-
propostos pela actualidade: guarda que, graças aos novos meios técnicos, permite conservar elementos
Q artesanato francês, pelo menos nas suas formas tradicionais, está a muito preciosos que os museus tradicionais deixavam que se perdessem:
desaparecer, ou sofre a ameaça de um rápido desaparecimento. Há uma sons, gestos, maneiras de falar, toda uma arquivistica do quotidiano.
série de razões económicas e sociais que levam o Estado a defender este Além disso, estas formas modernas de museografia, ao mesmo tempo
sector. Uma delas O papel de conservatório permanente de saber-fazer e
é
que alargam o dominio das coisas conservadas, enfraquecem as suas.es-
de tradições que o, artesanato desempenha, e que assim faz a sua entra- truturas didácticas, criam espaços mais abertos e mais familiares, onde um
da no património. É provável que este objectivo não venha a constituir jogo de significações múltiplas volta a ser possível. Não se limitando já à
um grande peso face às habituais contingências económicas. Mas é no acumulação de objectos inertes, estes museus evocam, sem as enquadrar
entanto significativo que ele seja explicitamente enunciado entre outros nem as esvaziar, culturas populares e locais, criando assim espaços onde
objectivos, conduzindo assim à ideia de uma conservação de segundo volta a ser possível vaguear e sonhar.
grau: travar as evoluções económicas para preservar um património de Mas umas quantas intervenções compensatórias, por muito justas ill,1
III
memória e de cultura vivas. que sejam nás suas intenções e engenhosas nas suas realizações, não ga-
O segundo exemplo ilustra melhorainda a capacidade das instituições 'Jli:
de utilizar todo o espectro dos seus procedimentos museográfícos e de os 4 Le Monde, 31 de Agosto de 1980, artigo assinado por Olivier de Laroussilhe.

134 135
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rantirão a sobrevivência de uma cultura e de uma memória colectiva. O
aparecimento do etnólogo é o sinal de que elas já não possuem os meios
para se defenderem-por si próprias. No seu conjunto, os dispositivos de
conservação apenas guardarão nas suas redes, com mais ou menos sorte,
alguns fantasmas do passado. Podem oscilar entre a museo-conservação e 11. Memórias dos monumentos e das cidades
a eco-conservação ou misturar as duas estratégias; confrontar-se-ão sempre
com um impasse, pois nada do que é vivo, nada do que é simbólico resiste
ao encerramento, ao isolamento e ao artificial. Mesmo em espaço aberto, useus e monumentos são os símbolos da conservação e da me-
tudo o que é protegido ou salvaguardado acaba por se transformar num
simulacro, pois a abertura paga o preço de uma artíficíalídade de segundo
grau, quase invisível mais ainda assim presente. O espaço social encontra-
-se ao mesmo tempo demasiado saturado de normalização e demasiado
M .
mórla, Eles constitúem os pontos de ancoragem de um sistema
a partir dos quais se desenvolvem formas mais abertas de con-
servação e políticas arquitectónicas e urbanas.
Evidentemente é impossível separar conservação e memória. A dis-
submetido à lei do valor para que a conservação possa ser algo mais do tinção entre monumento da história e monumento da arte não tem, por
que uma transformação. Para lá da aparência das palavras e das fachadas, exemplo, nenhuma pertinência teórica. No entanto, um objecto num
a conservação é a produção em massa dos simulacros a partir de alguns restos museu recebe primeiramente o seu sentido e o seu valor pela lei do
cuja função é legitimar a autenticidade do conjunto. lugar onde está fechado e pela do. campo científico ou artístico em que
Tal é pelo menos o ideal consumado do Estado: estender até aos se insere. Museu e saber desenraízam e transportam os objectos para um
seus limites extremos, não a realização - evidentemente excluída - mas a lugar próprio onde são tratados disciplinarmente e onde perdem, em
obsessão da conservação e fazer participar nela todos os cidadãos. Sob a parte, as suas temporalidades históricas próprias. Contrariamente, com
capa de um termo passe-partout e com a ajuda da etnologia, da ecologia e os monumentos, a envolvente construída, as paisagens, são os valores
da museologia nas suas formas mais avançadas, trata-se de fazer admitir de memória que dominam e por vezes dissimulam significações mais
/
o imperativo de conservação como dimensão do social, de submeter a específicas. É por isso que este domínio se presta particularmente bem à
sociedade inteira à museografia. Fantasma de um Museu total, fragmen- análise das relações entre conservação e memória.
tado, disseminado, autogerido até, mas generalizando, enfim, o espaço
já experimentado sob a forma das reservas de índios. No meio desta
obsessão da conservação, o museu tradicional adquire uma função nova Máquinas da memória, artes da memória
e inesperada: ele serve para fazer esquecer, por contraste, que todo o
social está hoje ínfilrrado de museologia, ou pelo menos para levar a crer Os objectos são os mais preciosos auxiliares da memória longa (entre
que esta museologia sem museu conjuga as vantagens da conservação as gerações). Sem eles, a memória do vivido é curta e transmite-se mal,
tradicional e da liberdade: conservar sem artíficializar. Infelizmente, é o sobretudo ao nível de uma colectividade alargada. O passado de um pais,
contrário que se realiza. por exemplo, está inteiramente contido em documentos e alguns monu-
mentos. É assim reduzido a uma infima fracção do que poderia ser. Já '1I
ao nível individual, ter um passado não é considerar a matéria bruta de
tudo o que aconteceu (é impossível e não tem interesse); é "reter" alguns :111\

elementos porque eles têm um sentido ou para que ganhem um sentido


no presente. Do mesmo modo, quando se fala do passado da França não

137
136
pensamos no conjunto, fora de qualquer definição precisa, de tudo o .' A primeira organiza-sea partir dos documentos e dos monumentos, pro-
que aconteceu no passado com respeito à França e aos franceses. Este iduz-see difunde-se atravésdas "máquinas de memória" situadas nas instâncias
conjunto é colectivo (é o mesmo para todos, dado que envolve tudo) mas do saber e do poder. É esta que aprendemos na escola, nos manuais e nos
não constitui senão uma reserva comum de que podemos extrair quantas media, onde se apresenta como o bem colectivo por excelência (falsamente,
representações desejarmos. É porque os franceses reconhecem a França visto que é o desejo de memória que é colectivo e não uma memória particular
como entidade que querem crer na possibilidade de uma representação entre uma infinidade de outras memórias possíveis'). O que a caracteriza
comum. Não são somente experiências comuns vividas no passado que sobretudo é a vontade de atribuir um sentido unívoco às coisas do passado.
fundam a colectividade enquanto entidade, mas também, reciprocamente, Como qualquer posição heterológica, esta memória sustém-se impondo a
a colectividade que se esforça por produzir um passado comum. Este, sua lei própria à matéria do passado, da mesma maneira que a museografia
retomado novamente nas vivências individuais, poderá contribuir para impõe a sua lei aos objectos. Memória sem espessura, injunctiva, dura, mas
as aproximar em torno de uma representação ulterior, etc. A produção também frágil, pois ela não se enraíza na colectividade.
da história resulta, portanto, de uma dialéctica infinita entre trajectórias A memória simbólica, pelo contrário, apresenta-se como um entrança-
individuais e operadores colectivos (o mito e a tradição nas sociedades do que cruza os diferentes níveis da colectividade; ela imbrica em particular
holistas, os dispositivos de saber e de poder na sociedade moderna), que a memória familiar na da comunidade de vida (a aldeia). É a memória
destas trajectórias retiram apenas raros elementos, transformando-os e longa descrita, por exemplo, por Françoise Zonabend e Yvonne Verdier na
combinando-os para construir a ficção de um passado colectivo. aldeia de Minot na Borgonha'. Ela ignora amplamente a memória here-
Este termo "ficção" traduz simultaneamente a natureza construída do rológica e contrasta com ela por uma certa imprecisão, uma incapacidade
passado e a vontade de crença que anima essa construção. Pois a ideia de constítutiva de fixar com precisão o passado. É que ela tem a espessura de
Um passado comum é para a consciência individual um asilo privilegiado, uma multíplicidade de sentidos, pois acolhe todas as interpretações, todas
a promessa de que o tempo não dispersará completamente toda a recorda- as leituras oriundas da vida quotidian~Memóría espessa e essencialmen-
ção. Reencontramos o modelo hegeliano de Estado: o passado de cada te imaterial, murmurante, que reserva o primeiro lugar à oralidade e às
homem não pode ser "retido" por todos os outros; para não ser totalmente práticas; os seus "monumentos" próprios (a camisa de cânhamo de que
aniquilado, não tem outro recurso senão o de se dissolver na história da fala Hélías, por exemplo) são produzidos por discursos, por lendas; ou por
colectívídade, tal como o Estado, em particular, a organiza. ritos, que por sua vez vão gerando perpetuamente novas artes de dizer e
Há assim uma dimensão funerária nesta vontade de crença e particu- de fazer. Quanto aos monumentos da memória heterológica, ela retoma-
larmente em todos os restos que a materializam. Para lá das significações os no seu próprio registo, desviando-os das significações unívocas, para
mais precisas que lhes possam estar ligadas, eles são os túmulos do passado lhes devolver, nas suas costas, a espessura de sentido que eles perderam
desconhecido, os signos através dos quais a colectividade garante pelo e assim os reinscrever nas práticas quotidianas.
menos a perenidade de um passado abstracto e colectivo.i, São estes jogos das diferentes formas de memória com a materíalídade
A partir deste" desejo de história", que toma nas sociedades modernas conservada que é possível esclarecer em certas situações particulares. E antes
o
a forma de um reconhecimento perante Estado de um certo monopólio de mais no caso extremo em que, quaúdó o monumento passa a ser emblema
da memória, são elaboradas ficções que, a diferentes níveis e através de da nação, a sua conservação se torna uma questão de grande política.
consensos e mais frequentemente de conflitos, se atribuem à história da
colectividade. Nesta elaboração, há que distinguir os diferentes estratos I Esta memória não exísre, "a priori", tal como não existe a opinião pública. Uma
da memória (da família à nação) e sobretudo duas posições distintas; Para e outra são artefactos construidos.
retomar termos já empregues para a conservação, pode-se distinguir uma 2 F. Zonabend, La mémoire longue, P.u.P., Paris, 1980; Y. Verdier, Façom de dire,
memória heterológica e uma memória simbólica. façoTlS de faire, Gallimard, Paris, 1979. .

138 139
o monumento nacionalista irrisória tentativa de simular o passado pela minuciosa reconstituição '-
\ de uma parada em Persépolis... '
Não saberrios bem por que é que estamos apegados ao nosso Outra história de ruínas, as do Zimbabwe. Descobertas pelos portugue-
passado, mas sabemos bem que lhe estamos apegados e que todas as ses no início do século XVI, tornaram-se o suporte de múltiplas lendas.
nações se apegam hoje ao seu.
Aí se viu a Ofir da Bíblia construída pelos fenícios, o palácio da rainha
A. Malraux, de Saba, uma fortaleza para guardar as minas de ouro do rei Saio mão, etc, !
I
discurso na Assembleia Nacional, Julho de 1962.
Para os arqueólogos do fim do século XIX, tratava-se ainda de construções
'Aquele que controla o passado controla o futuro, aquele que
realizadas vários séculos antes de Cristo por povos vindos do Norte. Mais
tarde, a partir de 1905, arqueólogos mais sérios (Randall Mac Iver, Caton
I :
controla o presente controla o passado.
Thomas, Peter Garlake) aniquilaram as hipóteses precedentes, afirmando
G.Orwell, 1964. :1
tratar-se de construções com quinhentos Ou seiscentos anos construídas
pelos indígenas. Esta visão das coisas foi acolhida como uma heresia racial I,I
A produção do passado, de um certo passado feito para estar na mon- e vivamente combatida pelo governo da Rodésia, Os nacionalistas negros,
tra, tornou-se uma actividade essencial dos Estados modernos, talvez a pelo contrário, fizeram dela um símbolo. Actualmente, estas ruínas deram II
componente mais segura da sua política do espectáculo. Alguns exemplos o seu nome à nova nação africana ... 1

servirão aqui de primeiro levantamento. Outro exemplo ainda, o das ruinas de Massada em Israel, perto da
margem ocidental do Mar Morto. Praça forte, reforçada por Herodes °
Em 1933 foram descobertas nas escavações de Persépolis as tabuinhas Grande, situada sobre um rochedo quase inacessível, foi todavia tomada,
em ouro de Dario I, rei da Pérsía e construtor deste palácio. Reza Shah alguns anos após a queda de Jerusalém, pelo procurador romano Flavius
Pahlavi, que se proclamarà rei quatro anos antes, tirou imediatamente Silva, depois de o milhar de judeus que aí se havia refugiado decidir suici-
proveito desta descoberta, apresentando-a como O signo de um elo entre dar-se, matando-se uns aos outros. Após este trágico episódio, a fortaleza
o primeiro grande Império Persa e o novo Estado iraniano. As tabuinhas e a sua história caíram progressivamente num esquecimento quase total.
foram transferidas para Teerão, associando assim a nova capital ao que Mas em 1963-64, YígaelYadín, arqueólogo e político ísraelita, convidando
se tornara no símbolo da grandeza da Pérsía antiga. Através da encena- trabalhadores voluntários de todo o mundo, limpou o conjunto do sítio
ção ideológica e política que se seguiu a esta descoberta (por exemplo a e reconstruiu-o parcialmente. Segundo ele, Massada devia "representar
retoma de certos elementos arquitectónicos de Persépolis nos edifícios para nós em Israel um símbolo de coragem, um monumento em honra
públicos, o desenvolvimento das escavações arqueológicas, a publicação das grandes figuras nacionais, dos heróis que preferiram a morte a uma
de livros, a criação de institutos de investigação), o poder procurou fazer vida de escravatura física e moral'", Efectivamente, Massada tornou-se,
admitir uma continuidade com o passado no preciso momento em que depois desta espécie de renas cimento, um monumento e um fragmento
o Irão conhecia uma mudança económica e social sem precedentes. histórico de primeira importância no património nacional de Israel.
I.
O filho e sucessor de Reza Shah prosseguiu a política de conservação Mas é a "restauração" - quase uma mutilação de facto - de Roma por
do seu pai (criação do conselho para a preservação das antiguidades, Mussolini que ilustra'aínda melhor como, sob a capa de conservação his- !
abertura de numerosas escavações arqueológicas, etc.) com o objectivo tórica, uma transformação pode ser imposta a um sítio para o pôr ao serviço
declarado de criar, através da imagem de um passado prestigioso comum, do imaginário de um poder. Os monumentos da Roma antiga desempe-
o sentimento de nação entre populações pertencentes a etnias e culturas nharam um importante papel na propaganda política de Mussolini através
muito diversas. Tudo isto culminou no grandioso esbanjamento que
foi a celebração do 2 500 aniversário da fundação do Estado e.a sua
0
3 Citado por E. R. Chamberlin, Preserving cite pssr,Londres, 1979, p. 14.

140 141
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dos seus discursos, das suas inaugurações e decisões cuidadosamente en- presente conturbado no imaginário de uma continuidade com um passado
cenadas, das suas obras. A ideia directriz era simples e explícita: conjugar rranquilizador, e sobretudo esquecer o passado recente.
a grandeza com a necessidade (as carências de uma cidade em expansão) Estes exemplos de arqueologia política mostram como algumas ruínas,
e valorizar exclusivamente os monumentos que simbolizam a grandeza, algumas construções pertencentes a uma cultura perfeitamente morta,
ou seja, os da Antíguídade". Neste espírito foram limpos e restaurados podem ser transformados em operadores ideológicos eficazes. Eles ilus-
os grandes restos da Roma imperial: o Capitólío, o Fórum, o túmulo de tram o uso que pode ser feito, em situações nacionais instáveis, dos restos
Augusto, o Coliseu, etc. Sem se preocuparem com custos extremamente históricos, no quadro de uma politica da monumentalidade.
elevados, realizaram-se restaurações tecnicamente espectaculares: para Todos os países têm uma politica deste tipo. Não há nação sem monu-
recuperar as galeras de Calígula, secou-se o lago Nemi, para reerguer o mentos-emblema, prolongando o simbolismo das bandeiras, dos hinos,
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altar da Paz de Augusto, congelou-se o terreno pantanoso onde ele estava das festas, etc. Por outro lado, não há passado sem monumentos. Tal é o
enterrado. Pode-se incluir ainda no crédito do regime fascista a decisão de caso, desde logo ao nível individual, de certos objectos que simbolizam
proteger os templos do Largo Argentina e a reabilitação urbana em torno do passado aquilo que melhor se harmoniza com o projecto presente. Do
do Fórum de Trajano. Mas, por detrás da fachada das restaurações gran- mesmo modo, "se as sociedades humanas são históricas, tal não provém
diosas, descobre-se o passivo desta arqueologia do fausto e da pretensão: unicamente do facto de terem um passado, mas do facto de o retomarem
a título de monumentos"6. A monumentalidade histórica resulta assim de
nenhum plano urbanístico coerente para responder aos problemas da
demografla e da circulação, expulsão das classes populares, agravamento da uma dupla necessidade: simbolizar a colectividade e sobretudo simbolizar
especulação fundiária. O estrato antigo foi valorizado em detrimento dos o passado. A força do monumento - relativamente ao documento, espe-
outros e à custa de uma cirurgia que destruiu os bairros antigos e populares cialmente - é de dar à ficção do passado, que as máquinas de memória
em torno de ruínas recuperadas e muitas vezes refeítass. Em Makstar na escolheram sustentar, a caução da sua material idade e da sua visibilidade.
Civilização, Freud divertia-se a imaginar uma Roma sobrecarregada com Um monumento não pode mentir, visto que escapa à linguagem, da qual
todos os seus excessivos monumentos, a presença simultânea de todas as a mentira é uma dimensão constitutiva - aqui reencontramos o efeito que
camadas do passado num mesmo espaço, sugerindo a espessura do tempo conferiu às medalhas a sua eficácia. Mas, correlativamente, não tendo um
e da memória. A política de Mussolíní visa materializar a imagem oposta sentido unívoco, ele pode servir de apoio a diferentes ficções do passado.
de uma Roma que apresentasse apenas uma só camada do seu passado, Em particular, os restos muito antigosrf's despojos isolados desinseridos
tendo esmagado o tempo entre o seu presente e a imagem carícaturizada da cultura do presente, são tratados como matrizes vazias nas quais o
da sua antiguidade. Dever-se-à certamente ver em tudo isso os fantasmas poder aloja a sua própria representação. Não há, apesar das afirmações
pessoais de Mussolini, que se representava a si próprio como o sucessor contrárias do discurso, o mínimo "respeito'} pelo passado nesta utilização
dos Césares, mas é também verosímil que esta ficção fosse ao encontro política da conservação arqueológica. Trata-se unicamente de harmonizar
de uma certa sensibilidade popular, que lhe conferia eficácia polítíca", a representação histórica com o projecto politico, de pôr o passado ao
Este recurso obsessivo ao mito dos antigos romanos permitia recolocar o serviço da credibilidade do presente.
Para este efeito, e sem a caução longínqua da neutralidade arqueoló-
gica, as máquinas da memória multiplicam as seduções. Antes de mais,
4 "Tudo o que surgiu durante os tempos de decadência deve ser afastado e os construindo um passado comum, o que em si constitui um asilo 'para
monumentos milenares da nossa história devem reaparecer no seu esplêndido isola- o sujeito das sociedades modernas, que encontra nesta construção a
mento." Discurso de Mussolini de 21 de Abril de 1924, citado por E. R. Chamberlin, garantia de uma memória mínima e de um espaço próprio. Já vimos o
op. cit., p. 46.
5 E. Fachínelli, La [receia ferma, tre tentativi di annulare di tempo, VErba voglio,

Milano, 1979. 6 J.-P. Sartre, op. cit., p. 581.

'43
'42
quanto a ideologia do património local era uma reacção contra fenómenos de um terço destas estátuas parisienses são consagradas a militares ou
de anomia e de atopia. Seguidamente, compondo do passado um retrato políticos. Também não será desinteressante observar como o governo
lisonjeiro, livre das suas manchas e dos seus períodos de decadêncía.t Dai de Vichy, graças à lei de 10 de Outubro de 1941 sobre a recuperação
uma divida do sentidoatribuido pelo poder, dívida contraída pelo homem dos metais de utilidade militar, procedeu a uma depuração dos "maus
vulgar e que o pode ligar a este poder por uma cumplicidade inconfessa- espíritos", expulsando alguns revolucionários, liberais ou anri-clericais.
da; a história mostrou os monstros que essa cumplicidade podia gerar. Raspail, Arago, Ledru-Rollin, Marat, Camille Desrnoulins, Louis Blanc,
Sobretudo no caso de povos humilhados pela história recente: um passado Zola, Fourier, Voltaire, Waldeck Rousseau, Dolet, etc ..
complacente encenado pelo poder contra uma complacência relativamen- Inquéritos sobre a toponímia das cidades mostram que as ruas do
te à sua ideologia presente. A utilização desavergonhada do património centro têm, na sua grande maioria, nomes de personalidades (notários,
pode servir um tal contrato implícito para consolidar todos os mitos do presidentes da câmara, médicos, doadores, vítimas da' guerra) ligadas à
poder: a sua legitimidade, a sua grandeza reencontrada, até mesmo a sua cidade. Pelo contrário, as ruas das periferias, e em particular os loteamen-
dimensão fascista. Ou pelo menos para assegurar, em situações menos tos, têm sobretudo nomes sem memória (nomes de plantas, de países ou
extremas, ideologias cómodas, como a de uma sociedade sem conflitos de cidades, etc.).
ou reunífícada, a de uma dívida moral entre as gerações, etc. Estas hierarquias culturais e espaciais, atentamente geridas por
múltiplas instâncias, desenham uma topografia rigorosa cujos valores
são explícitos; topografia que deixa também transparecer pela ausência,
Memórias da cidade menos nitidamente, as regiões do esquecimento: as mulheres, as profis-
sões manuais, as artes populares, como a canção, ou as novas, como o
Porém, não se deve reduzir as estratégias do poder a estas encenações cinema, etc.
espectaculares (frequentemente reforçadas por uma censura ou por uma Esta memória autorizada, querendo fazer do espaço e da cidade em
destruição de elementos do passado recente) que anamorfoseiam brutal- particular um texto, semeado de citações, não se interessa pelas denotações
mente a memória colectiva, para produzirem representações lineares, fal- mas somente pelas conotações que ele exprime. Ela apresenta as aparências
sificadas e, afinal, frágeis. Elas podem desempenhar um papel transitório, de uma memória precisa do passado, mais tais aparências não passam
geralmente funesto, mas ficam ligadas a situações excepcionais. Fora destas de um álibi reforçado por certas práticas modernas: o turismo, os guias
situações, a política da memória elabora, a partir de restos mais modestos e modernos, muito diferentes dos do passado que eram sobretudo relatos
de vulgares monumentos comemorativos, representações do passadcmais de passeios", etc. Na realidade, tal memória não visa senão fazer passar,
discretas, mas mais insidiosas, e que acabam por ser mais duradouras. É sob este acondicionamento cómodo, valores ideológicos e culturais gerais.
um verdadeiro monopólio de uma certa memória autorizada que se exerce Ela abranda assim a evolução das representações, desempenhando um
através de um manancial de documentos (manuais, dicionários, arquivos), papel activamente conservador.
monumentos (estátuas, placas comemorativas, sepulturas.centros históri- Porém, ela não pode impor completamente a sua lei (como num
cos) e através de diversas toponímias. Esta memória organiza o passado e museu); pois a cidade continua a viver, a cumprir múltiplas funções;
o espaço minuciosamente; o seu impacte sobre as representações é tanto é investida de uma memória vulgar que é o meio de uma apropriação
mais forte quanto mais despercebida ela passar.
É necessário fazer uma listagem fastidiosa para descobrir que há uma 7 A influência que as máquinas da memória não pararam de estender desde há
centena de estátuas repartidas aproximadamente por igual em seis bairros dois séculos sobre a cidade é particularmente legível no contraste entre os guias do
de Paris (V, VI, VII, VIII, XVI, XVII) e somente quarenta e cinco em século XVlIl, pretextos de lendas, anedotas, relatos de habitantes, considerações
todos os restantes (nenhuma no Xl ~ no XX). Para descobrir que mais morais, etc., e os guias de hoje, tornados museus escriturários.

144 145
simbólica pelos seus habitantes. Pacientemente tecida ao longo dos maios vemos: "De entre outras particularidades de que se podem gabar
dias, é a memória longa que faz de um bairro uma aldeia, de fronteiras os monumentos, a mais marcante é, paradoxalmente, o facto de não se
simultaneamente indecisas e certas, como se o resto da cidade fosse um dar por eles. Nada no mundo é mais ínvisível/"
espaço índíferenciado e radicalmente diferente. Ela é a forma de usar de E assim o monumento falha os objectivos que se finge atribuir-lhe:
um espaço, feito de uma infinidade de pequenas regras, de itinerários, de fixar a atenção, suscitar a reflexão ou sentimentos de respeito, enquanto
abordagens, de familiaridades que fazem com que aqui nos sintamos em existirem. E esta falha parece tão natural que é a situação inversa que parece
casa, protegidos, num território próprio. Apropriação também quando ela inverosímil. Lembramo-nos da comparação de Freud entre os monumentos
é a memória instantânea de um viajante que grava na sua lembrança alguns e os sintomas histéricos: "Esses monumentos em Londres são "símbolos
.'~iM

pormenores, algumas impressões, que lhe dão subitamente o sentimento comemorativos" como os sintomas histéricos. A comparação é... sustentável
de "conhecer" a cidade. Esta memória que cada qual deve modelar à sua até aí. Mas que diríeis vós de um habitante de Londres que, hoje ainda, se
medida é indispensável se alguém quiser verdadeiramente habitar um detivesse melancolicamente diante do monumento do cortejo fúnebre da
bairro ou apropriar-se simbolicamente de uma cidade. Pois uma cidade é rainha Leonor, em vez de se ocupar dos seus assuntosl'"
sempre a priori um labirinto incompreensível, uma aglomeração de coisas O monumento é pois o suporte de um esquecimento normal, relativa-
opacas; mas todas estas coisas inertes evocam antes de mais a presença de mente ao que todavia supostamente deve comemorar, e mascarado por
uma multidão, seja esta visível ou não; uma multidão ameaçadora, pois tal suposição. Se retirarmos a máscara, o objecto comemorativo parece
ela é sempre prenhe de um sentimento de solidão e de estranheza. A incompreensível e difícil de justificar: "O que parece incompreensível
memória-manual de utilização é então muito mais do que um catálogo é que, sendo as coisas o que são, se ergam monumentos precisamente
de meios que permitem utilizar convenientemente a cidade. Ela é o ins- aos grandes homens. Não será isto uma perfídia calculada? Como já
trumento do domínio simbólico de uma materialidade complexa e da não os podemos prejudicar em vida, precipitamo-los, com uma pedra
multidão ameaçadora que a habita, uma maneira de estabelecer pontos comemorativa ao pescoço, para o fundo do oceano do esquecimento."'o
de referência num espaço, para dar à consciência um refúgio, um asilo na O paradoxo é apenas aparente. Ele manifesta o poder de esquecimento que
opacidade das coisas. Esta memória surge assim como o desvio necessário qualquer objecto memorial serve. Este poder que se exerce a partir de
para estabelecer um elo com o Outro. Ela é, aqui ainda, o que permite qualquer objecto susceptívelde tranquilizar a consciência é materializado
esquecer a sua presença, a sua ameaça eventual. na cidade pelo monumento, que é ao mesmo tempo o álibi e o esqueci-
A memória longa da cidade fazum duplo uso simétrico do que a memó- mento do esquecimento.
ria heterológíca apresenta como conservação imutável e memorização fiel. Mas, para lá deste esquecimento normal, há algo que resta: os monu-
O monumento suporta assim um duplo álibi: o seu valor comemorativo mentos, protegidos pela memória heterológica, já não desaparecem como
disfarça o conservadorismo da memória heterológíca, estando ao mesmo outrora, ou como os objectos memoriais individuais. Eles integram-se ná
tempo ao serviço do poder de esquecimento da memória simbólica. paisagem. Uma relação de familiaridade, de afectuosa indiferença, subsiste
entre os restos históricos de uma cidade e os seus habitantes.
Pois todos estes restos acabam por remeter, indiferenciadamente, para
Monumentos invisíveis um Passado sentido como colectivo, simbolizando metonimicamente a

Os monumentos de comemoração, para lá de eventuais períodos de luto, SR. Musil,Oeuvres pré-posthumes, p. 78, Seuil, Paris, 1965.
não produzem com efeito qualquer rememoração na vida quotidiana. 9 S. Freud, Lições sobre a psicanálise (l-lição), 1904, publicada no American }ouma!
Para os transeuntes que os vêem, não é para uma memória autorizada of Psycholcgy, 1908.
que eles remetem, mas para signos portadores de outra significação. Aliás, 10 Op. cit., p, 83.

147
146
cidade e a sua comunidade de vida. Não importa, nesta perspectiva, Índice
saber-se datar determinado velho edifício ou determinado monumento;
basta que eles estereotipem o passado, formando, em bloco, um texto que o
simboliza". Neste texto, eles são relativamente interrnutáveis, é a repetição
do mesmo valor simbólico - presença do passado - qu~ é significante. Breve apresentação do autor e do seu livro.
Perda da rranscendência e "fuga em frente" na civilização moderna 7
Fazem assim pensar naquelas palavras ou formas de expressão que
9
pontuam como escórias a fala, ao repetirem-se mais ou menos. Não signi- 1. Apresentação
18
ficam nada em especial a não ser a perturbação daquele que fala ou o seu 2. Alguns tópicos para entar no livro .
desejo de reter a atenção dos outros, mas ao mesmo tempo caracterizam
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o locutor como uma assinatura. A sua presença não é útil, mas sem eles a Prefácio do autor à edição portuguesa
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fala fíca constrangída. Da mesma maneira, certos monumentos "assinam" Introdução
uma cidade, ao tornarem-se os seus estereótipos representativos e ao serem
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reproduzidos infinitamente (postais, miniaturas-brinquedo, insígnias, re- 1..0s objectos da memória
1. A conservação como palimpsesto
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cordações, etc). Por muito inúteis ou feios que sejam, está fora de questão 49
destruí-los. Estes monumentos caricaturizam, ao levá-lo ao seu extremo, 2. As quatro formas da conservação
57
o valor de estereótipo que se agarra a qualquer resto histórico. 3. Da colecção
Colecção e repetição
57
Este valor não é, aliás, apenas índice de 'Uma significação fraca e vaga, 60
o repisar do Passado. Este repisar nas formas mais convencionais está na Colecção e mu.seu
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origem de um não-dito de outra natureza, acabando por produzir um efeito 4. Objectos de sutura
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paródico. Ao mesmo tempo que pode significar um piedoso respeito pelo 5. Os trabalhos da memória
Objectos mnemónicos, objectos memoriais
71
passado, produ-lo também como objecto de irrisão. Atesta assim a nossa 73
Luto, melancolia, nostalgia
relação ambivalente - respeito e receio, apego e desgosto - com os traços 77
6. Os jogos cruéis do esquecimento
deixados pelo passado. Pois no fundo é a morte que habita estas figuras 82
O memorial colectivo
repetitivas da conservação estereotipada. "Nada me parece assemelhar-se
tanto a um bordel como um museu ... Num e noutro sítio, estamos, de 87
11. O Museu de Babel
certa maneira, sob o signo da arqueologia", escreve Mlchel Leírís'ê. A 89
7. Um luto interminável
maneira do prazer sexual, que não pode dizer-se, apenas evocar-se, parti- 91
Conservação simbólica
cularmente através de uma repetição obsessiva e codificada dos termos ou 93
Conservação heterológica
das imagens, o passado e a morte exprimem-se pelos ritos e pelas paródias 99
8. O Estado e a revolução conservatória
que os seus vestígios suscitam. 100
O "corte" revolucionário
A "invenção" revolucionária 105
108
Esboço de uma genealogia
113
9. O efeito Concorde
113
O imaginário do colectivo
11 Estereotipar (tipografia), converter em pranchas sólidas de um só bloco páginas 115
O presente no modo do passado
previamente móveis. Fíg. Tornar imutável, fixo. 118
O cofre/eerã do passado
12 M. Leiris, L'âge d'homme, Folio, Gallimard, Paris, 1939, p, 61.

149
148
o inferno de um espaço sem memória 121 Títulos da colecção CAMPO DAS CIÊNCIAS
Consumação e conservaçãO 123
10. O museu de Balsel 127
Uma lei invisível 128 1· Isaac Asimov
Uma museografia de segundo grau 131 Guia da Terra e do Espaço
11.Memórias dos monumentos e das cidades 137
Máquinas da memória, artes da memória 137 2 • Daniel Cohen
O monumento nacionalista Os Genes da Esperança
140
Mem6rias da cidade 144
Monumentos invisíveis 3 • José María Lozano lrueste
146
Dicionário Abreviado de Economia

4 Antónío Teixeira Fernandes


Para uma Sociologia da Cultura

5 • Francisco Queiroz
Introdução à Psicologia da Escrita

6 • [ean Chavaillon
A Idade de Ouro da Humanidade

7 • Cipriano Justo
Saúde, uma Utilidade sem Valor de Troca

8 • Ríchard Webster
Freud Estava Errado. Porqué?

9 • Jorge Massada
Vale a Pena Ser Cientista?

10 • Carlos Gonçalves Gomes


Economia do Sistema Comunitário

11 • Mare Guíllaume
A Política do Património

ISO

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