Você está na página 1de 2

Em 2045 cá estaremos

Por Helena Matos

http://jornal.publico.clix.pt/noticia/07-01-2010/em-2045-ca-estaremos-18534869.htm

O actual Governo reserva aos gays o papel que nos anos 40 do século passado o
poder reservou aos católicos portugueses

De 35 em 35 anos o casamento é um problema nacional: 1940, 1975 e 2010 são os


anos em que, através da legislação sobre o casamento, os governos
reequacionaram os direitos civis dos cidadãos. Para sermos justos, teremos de
dizer que em 1975 não se fez política brincando aos casamentos, antes pelo
contrário, corrigiram-se os proselitismos casamenteiros de 1940. Quanto aos
proselitismos de 2010, só o futuro dirá quem será o novo Salgado Zenha que nos
livrará deste enredo que a Assembleia da República se prepara para sufragar.
Mas comecemos por esse ano de 1940 em que o Governo celebrou a Concordata
que no seu artigo 24.º estabelecia para aqueles que contraíssem casamento
católico: "Os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que
por isso não poderá ser aplicado pelos tribunais civis aos casamentos católicos." Por
outras palavras quem casasse "pela igreja", como então se dizia, ficava impedido
de se divorciar, logo automaticamente diminuído nos direitos civis que eram
reconhecidos aos demais cidadãos portugueses. O legislador de 1940 não resolveu
problema algum dos católicos, antes pelo contrário, criou-lhes vários problemas
burocráticos e inúmeros dilemas morais: impedidos de se divorciar, os católicos que
punham fim aos seus casamentos tinham como estado civil um bizarro "casado,
separado de pessoas e bens" e diariamente confrontavam-se com absurdos vários
decorrentes desse limbo legal entre os quais sobressaía o registo dos filhos
nascidos fora do casamento.
Note-se que em 1940 os portugueses não tinham problema algum nem com o
casamento nem com o divórcio e não consta que entre os anseios dos católicos
estivesse o serem proibidos de se divorciar nos tribunais civis, perdendo direitos
por comparação com os portugueses não católicos. Mas foi isso que aconteceu e
aconteceu num regime que pretendia defender o catolicismo. Porquê? Em parte
porque, em 1940, o Governo português tinha para resolver com a Igreja Católica o
que Salazar definira como a "irritantíssima questão" - a saber, o problema dos bens
confiscados à Igreja pela I República -, para lá da gestão do papel das missões
católicas em África. O art.º 24 da Concordata, tal como o vistoso protocolo que
rodeava o clero católico nas cerimónias do Estado Novo, foi uma simbólica
contrapartida nessas negociações com o Vaticano, sobretudo se se tiver em conta
que materialmente a Igreja Católica recebeu bem menos do que aquilo que seria
expectável. O actual Governo reserva aos gays o papel que nos anos 40 do século
passado o poder reservou aos católicos portugueses: servirem com alegria e sem
dúvidas um poder político que os trata de forma utilitariamente paternalista e à
qual nem falta agora essa espécie de tribalização no que se designa como
comunidade homossexual.
Pessoalmente não me parece que seja por o desemprego estar a aumentar e a
dívida a crescer que esta questão deve deixar de ser discutida. Fizeram-no países
com quotidianos muito mais atribulados que o nosso, como é o caso de Israel. O
que está aqui em causa é simplesmente a urgência governamental que em nada
corresponde à urgência do assunto. Tal como aconteceu com a recente legislação
sobre o divórcio e o último Código de Processo Penal, arriscamo-nos a que se
decida em cima do joelho, deixando para depois o que tinha de ser estudado e
resolvido antes, caso de facto o Governo tivesse querido resolver os problemas das
pessoas e não, como fez e faz, servir-se das pessoas. Se as consequências do
Código de Processo Penal e da nova lei do divórcio já aí estão quer no aumento dos
problemas, quer nas promessas de revisão legislativa, em relação ao casamento
entre duas pessoas do mesmo sexo convém que se perceba que aquilo que for
agora decidido tem consequências muito mais amplas que simpaticamente alargar
o direito de casamento de papel passado que (malhas que a História tece!) voltou a
ser sinónimo de felicidade.
Como primeira consequência temos de nos preparar para reconhecer como
casamento as uniões polígamas. Basta que os ditos arranjem uns amigos
mediáticos! Quantas mulheres guineenses ficam em Portugal fora dos esquemas da
Segurança Social e dos contratos de arrendamento, simplesmente porque não são
reconhecidas como viúvas?
Em segundo e muito mais importante lugar vem a questão da adopção. Ninguém,
homossexual ou heterossexual, tem o direito a adoptar. As crianças sim é que têm
o direito a ser adoptadas. Daí que seja grave a proposta do Governo, não só por
deixar implícito que os casais heterossexuais têm esse direito, como por lançar uma
suspeição sobre a capacidade parental dos homossexuais, ao excluí-los à partida da
adopção. Note-se que não só existem homossexuais com filhos biológicos, como
homossexuais que individualmente adoptaram crianças. Seria importante perceber
o têm a dizer quer eles, quer os seus filhos. Infelizmente para isso não houve nem
tempo, nem interesse.
Em terceiro lugar temos a questão da identidade das crianças nascidas ou
adoptadas por homossexuais. Até agora a legislação foi no sentido de acabar com
as referências, no registo de nascimento das crianças, às circunstâncias da união
dos pais. Expressões como filho ilegítimo ou filho de pai incógnito foram banidas,
pois as crianças não eram nem ilegítimas nem incógnitas. Essas eram as
circunstâncias dos pais. Não dos filhos. Em igual sentido foi a legislação e o
discurso sobre o divórcio: os pais podem divorciar-se as vezes que quiserem, mas
os filhos têm um pai e uma mãe. Passarmos a possibilitar, tal como aconteceu em
Espanha, que nos registos de identificação das crianças surjam os nomes de duas
mulheres ou de dois homens é voltarmos a privilegiar as circunstâncias dos adultos
em detrimento do direito à identidade das crianças. Este é um passo demasiado
sério para ficar unicamente a cargo dessa abstracção chamada legislador.
Em quarto e último lugar vem a questão do referendo. Ainda se lembram que o
Tratado de Lisboa era para ser referendado e não foi? Num país onde todos os dias
se vitupera o desinteresse do povo pela política e pela participação cívica, num país
em que dificilmente se conseguem as 7500 assinaturas necessárias para criar um
partido político, 90 mil assinaturas recolhidas em tão pouco tempo querem dizer
alguma coisa. Noventa mil assinaturas chegam para constituir 12 partidos políticos,
lançar 12 candidaturas presidenciais e, traduzidas em votos, elegem um deputado.
Podemos gostar ou não do que essas 90 mil assinaturas querem dizer. Mas é no
aceitar dos resultados desagradáveis que as democracias se distinguem das
ditaduras.

Ensaísta

Você também pode gostar