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Retr Conrdenadere do Fora (de Cincin# Car EDITORA UF Eder Escava Coordnadre de Prose Conte Eder alo Alot Gomes Jove Heir iene Pave Morin Deere ebta Berge de Hlands Lia Canes ‘ea Cano elon Buagee de Hotinds Csidene, Cats Len, Fenndo Lato Cane, lm Sse, ier Veo, Maris de Sours Neves Beatriz Sarlo CENAS DA VIDA POS-MODERNA Intelectust, arte ¢vldeo-eultura se Argentina uadugio Seep Alcides Editora UFR) 1997 Cony © by 1994 Conia Bos Epes Calpe Ania S.A Fea Cui bond pee de | ees cane Ts BUFR Sumario ica xsi Be Sot, Sei ey ei: En UF 192 Woe pix Dem ee iautoges are Oahaatet (Capel T- Abundinciaepobress 13 con mat Cidade 13 aera Mercado 22 Jove 32 Sane Videgomes 42 Cr Me Captulo 1 - © sonbo acordado 53 Tio ee coon 33 pranieneeet Gravagao ao vivo 68 Pe Be si here Fete do Ri de ato Giagin 87 Capel - Cultus populate, velba novas 99 i de an Capiculo IV - lugar da arte 123 Seren 9s 9s tt Intentnes 127 aXe 2 542999 951397 Webel dlg-bao! y de Cp V-Inlesusis 159 Bibliografia 183, Perguntas Se nto me engano, 0 incmodo & semethante Aguele causado por declaragdes piblicas de atefsmo ¢, ultimamente, também de socia- lism: por que nfo guardar para si as con- viegdes sobre assuntos tho privades como Deus a ordem social? Roberto Schwarce EstaMos No Fit Do sécuto e na Argentina, Luzes e sombras definem uma paisagem conhecida no Ocidente, mas os contras- tes sobressaem, aqui, por dois motivos: nossa marginalidade {quanto 20 “primeiro mundo" (dato carter tributéro de muitos processos cujos centros de inicativa se encontram em outro lugar); € a solene indiferenga com que o Estado entrega 80 mercado a gestio cultural, sem estabelecer pata si uma politica de contrapeso. Como outras nagbes da América, a Argentina vive o lima do que se chama “pés-modernidade” no marco paradoxal de uma naglo fraturada © empobrecida, Vinte hi dlidrias de televisSo, em cingUenta cana, e uma escola desar- ‘mada, sem prestigio simb6lico nem recursos materia; pai sagens urbanas tragadas segundo o iltimo design do mercado internacional e servigos urbanos em estado critco, © mercado audiovisual distribui suas bagatelas e aqueles que podem con- 8. CENAS DAVIDA POS-MODERNA sumiclas se entregam a essa aividade como se fossem mora~ ores dos bairros ricos de Miami, Os mais pobres s6 podem conseguir © fastfood televisive; 0s menos pobres consomem este ealguns outros bens, enquanto se lembram dos bons tempos da escola piblica, a qual seus filhos jé no podem frequentar, ‘ou na qual seus filhos j6 ndo recebem 0 que eles receberam: ‘0s demas, como em qualquer parte, escolhem o que quiserem, ‘Ao que parece, é escassa a preocupacdo despertada por essa desigualdade, Aqueles que nfo he dio importancia aderem ‘os grandes grupos (em que militam inclusive intelectuas): os neoliberais convictos, para 0s quai 0s pobres no interessam, ji que tal imeresse thes obrigaria a um investimento pico de \eadugio problemitiea em termos de disputas eleitoras ou de “paz social"; © 8 neopopulistas de mercado, que pensam que ‘os pobrestém tantos recursos culturais que podem fazer literal- mente qualquer coisa com 0 fast-food da televisio. Ambos 03 ‘grupos se esquecem de que nem os velhos populistas nem os ‘ethos liberas jamais praticaram a indiferenga frente desig dade cultura, embora tenham sustentado diagnésticos e progra- ‘mas diferentes. [Nao surpreende que muito poueos se preocupem com um tema cujo mero enunciado resulta riséro em meio aesseclima: ‘lugar da arte eda cultura culta na vida social (e acrescentari: ‘lugar das humanidades na vradacivilizatSria tecno-cientfica). Parece um assunto fora de moda, 20 qual se dedicam apenas os universitrios especializados, ou os prOprios artists, anda que nem sempre interesse @ uns © outros. A questdo da arte — nio ‘como debate restrto a especialistas,e sim como debate intelee- tual pablico — nfo figura em qualquer agenda. [Nao obstante, muitos sabem que este foi um tema central para os dois séeulos que estamos deixando para tris. Prova- Pergntas 9 velmente essa contralidade desvaneceu-se para sempre. Ainds| assim, nio existe outra aividade humana que nos possa colocar diante de nossa condigfo subjtiva e social com @ mesina ine tensidade e riqueza de sentidos que a arte, sem que essa expe riéncia exija, como a religido, uma afirmagdo da tanscen- mondaine, prosituta de Almodévar, Como na fantasia camavalesca (que Madonna interpreta com deliberada Fidelidade), 0 prefixo trago bisico do estilo que aposta mais na reciclagem que na produsio do inteiramente novo, A originalidade € sintstica, ‘evoca 0 collage © nfo rejita uma estratégia de ready-made, +N. do T: Tras de um programa da televisto argentina semethante 0 Telesach brs, 34 CENAS DA VIDA POS-MODERNA ‘A garotaestévestida em dois tempos: hi um contraponto centre 0 corpo e sua fantasia. A roupa nko foi escothida ps favorecer 0 corpo, segundo um céleulo féeil que, antes, $6 permitia centas liberdades a certos corpos, quanto mais per- feitos mais livtes para escolher a moda que iria cobi-1os. Pelo contrério, a garota escolhe a fantasia © depois a poe sobre o corpo — em camadas, em faixas, em pinceladas — e 0 corpo tem que acetar a fantasia porque esta € mais importante do ‘que ele, ainda que o exiba generosamente. A garota nfo fez sua escolha considerando o que Ihe cairia melhor, vestiu a fantasia de que mais gosta ou, simplesmente, aquela que tna de vestir. 'A idéia do carnaval se imp6e sobre outras idéias: no carnaval, ‘0 que favorece a beleza dos corpos deve ceder diante do im- perativo de mostrar ot corpos tavestidos na fantasia. Existem ‘coisas que 86 sfo vistas numa discoteca: 0 vestido de festa, por sua vez, podia ser usado também para ir a0 teatro ou a um ‘Quando cantavam no teatro, as velhas estrelas pop mio se vestiam de modo diferente: exceto pela sobrecarga do ‘glamour, nem Doris Day nem Bing Crosby usavam um traje aque 0s distnguisse da idéia que a moda ocidental impunha nas passarclas e mas revistas. Quando Carlos Gardel ou Maurice Chevalier se vestiam de gaicho ou canotier parsiense ficava ‘muito claro que isso era s6 um acréscimo decorative que no ppoderia nem deveria ir além da cena Desde os anos sessenta, a cultura do rock, por sua vez, fexdo traje uma marca central de seu estilo, O rock foi mais que uma mésica; moveu-se desde 0 infcio com 0 impulso de uma ‘contracultura que se espalhou pela vida cotidiana. © rock se identficow de modo extramusical:sustentada pela misica, & cultura rock definiu os limites de um territério onde houve Abundincia¢pobresa 35 rmobilizacio, resisiéncia€ experimentagio. A droga, que tinha sido um hébito privado de burgueses curiosos, poetas deca- dentes, dindis e exploradores da subjetividade, foi parte da cultura do rock e, no interior dela, adquiriu um carster de reivindicagdo pblica e de fronteira transitavel, Até hoje, no imagindrio coletivo, ela € associada aos jovens de um modo ‘moralstae persecut6rio. O rock foi um éesafio juvenil (poss sivelmente 0 limo) € no se equivocaram aqueles que ass nalavam seu potencial subversivo fundado na emergéncia de ideologias libertrias. A rebeldia do rock anuncia um espirito 4e contestagdo que nio pode ser separado da onda juvenil que entra no cendrio politico em finais dos anos sessenta, Podiam ro ser os mesmos protagonistas, mas ainda que fossem di- ferentes, ainda que nem se conhecessem, eram parte de um lima cultural © rock cumpriu um de seus destinos possiveis: deixou 4e ser um programa para transformar-se num estilo, A expansio tardia do rock na cultura juvenil menos rebelde acompanha a reciclagem de mitos rominticos, sainicos, excéntrics. Como estilo, © mercado recorre a ele, saqueia seus pais fundadores, subtrai 0 que neles havia de misica pop. Esse movimento de assimilagdo, ali, nfo é novo: inscreve-se como uma forma de circulago do rock desde 0 eomego.Irmios e inimigos, 0 rock ‘© 0 pop marcharam por caminhos cruzados, inclusive nos mo= rmentos de maior qualidade esttica, Por iss, hoje, tudo pode ser remetido a0 rock, na medida em que este se tornou um filto {da cultura moderna, e com o desaparecimento de seus aspectos subversivos apés a morte de seus herSis ou na emergéncia de Aiscursos mais piedosos (ecologist naturists, espirtualistas, new age) adotados pelos remanescentes. ‘Convertido em estilo (0 que também aconteceu com as ‘vanguardas histricas), todas as variantes da cultura juvenil 0 36. CENAS DA VIDA POs-MODERNA citam, Se 0 rock, como os hippies, encontrou no traje uma rmarea de excepcionalidade, a idia do traje como diferenciagio entre tribos culturas se desenvolye em todas as suas peripécias. (Os tragos de estilo aparecem e desaparecem; voltam as jaquetas pretas por ume temporada, as luzes © as sombras do punk podem ser o ponto alto da maquiagem, as ferida dos skinheads so recicladas via tatuagem, o couro toma o lugar do jeans, 0 jeans toma o lugar do couro,topetes com gel ou nucas raspadas, ‘grotos que no fundo sio um tanto racistas vestem coltes tipo Bob Marley. © trae sobressai com o esplendor de sua estre- pitosa obsolescéncia e sua arbitrariedade soberana ‘Assim, a garota da discoteca dé o testemunho de uma forma de anestesi: ela despreza a origem dos estilos que com- bina em seu corpo. Sua fantasia nBo tem passado (Lampouco 0 {raje de “baiarina russa” indicava baile folcl6rico ou naciona- lidade russa}: no a distingue o significado dos elementos que ela combina, e sim a sintaxe com que cles se articulam. Pura forma, sua fantasia se diferencia da forma da moda “legitima” porno aspirar & universalidade e sim a uma fragfo particul ‘marea sua idade, sua condigio de jovem, e mio sua condiglo social ou seu dinheiro, Com a fantasia, a garota cumpre por 0 0 cielo de algo que jd comeyava a esbos inqienta: 0 “estilo jovem”. A juventude nto € uma idade e sim tama estética da vida cotidiana, ‘A infineia quase desapareceu, encurralada por uma ado- leseéncia precocistima, A primeira juventude se prolonga até depois dos trinta anos. Um tergo da vida se desenvolve sob 0 rotulo de juventude, t8o convencional quanto quaisquer outros rotlos. Todo mundo sabe que esses limites, aceitos como in- dicapses precisa, costumam mudar o tempo todo, Abundinciaepobresa 37 Em 1900, a mulher imigeante que jé tinha dois filhos ‘no se considerava tdo jovem sos dezessete anos; seu matido, ddez anos mais velho, era um homem maduro. Antes, os pobres 6 cram jovens excepcionalmente; em seu mundo, pastava-se ietamente da inféncia a cultura do trabalho, e 5 que nio seguistem por esse itinerdrio entravam na quilificagio de cexcepeionalidade perigosa: delingientes juvenis, evjas fotos rmastram pequenos velhos, como fotografias de meninos ra- ‘uiticos. Neste caso, a juventude, mais que um valor, podia ‘chegar a ser considerada um sinal de perigo (esse habito dou origem & criminologia, mas a policia o pratica a hoje). Entretanto, em 1918, os estudantes de Cordoba iniciaram ‘© movimento da Reforma universtira proclamando-se jovens! Ingenieros, Rod6, Palacios, Haya de la Torre acreditavam que estavam falando aos jovens e descobriram que o interlocutor {Jovem podia ser intiuido em beneficio de quem quisesseins- tituir-se como seu mentor. Também se reconheciam como jovens ‘0s ditigentes da Revolugdo Cubana e os que marcharam pelas ruas de Paris em maio de 1968. Tendo a mesma idade, os lideres dda Revolugio Russa de 1917 nio eram jovens. A juventude revolueionsria do comego do sécalo supuna ter mais deveres 1 cumprir do que direitos a eclamar, seu messianismo, como 0 «das guerilhas latino-american imperativo politica que obrigava os jovens a atuat como prota- onistas mais audazes e livres de qualquer vinculo tradicional, (Os romintcos, por sua vez, tinham descoberto na ju- vventude um argumento estético © poltco. Rimbaud inven- tou, a prego de siléncio¢ exilio, o mito moderno da javentude, transexual, inocente e perversa, As vanguardas argentinas da <écada de vinte praticaram um estilo de intervengio que logo {oj considerado juvenil, Berold Brecht, por sua ver, nunca foi 38 cENAS DA VIDA Fos-MoDERNA jovem, nem Benjamin, Adorno, Roland Barthes. Os rtratos de Satz, Raymond Aron e Simone de Beauvoir {de idade apenas, mostram a pose grave com a qual seus modelos pretendem dissipar qualquer idéia da imaturidade que fescinava ‘4 Gombrowice. Examos joven, afirma Nizan, mas que ninguém re venha dizer que os vinte anos sfo a melhor época da vida, avid Vifas nfo era tao jovem quando, aos vinte € sete anos, Girgia a revista Contorno, onde a categoria de “jovem” foi cestigmatizada por Juan José Sebreli, dois ou trés anos mais ‘novo gue Visas, Quando falaram de uma termos foram usados como marca de diferenga ideol6gica que, para completar-se, dispensava qualquer recurso a uma rei- vindicaglo de juventude. va geragio", esses Orson Welles nfo era tio jovem quando, aos vinte quatro anos, filmava 0 Cidaddo Kane. Nem Buel, nem Hitchcock, nem Bergman jamais fizeram qualquer “cinema jo- vem", como Jim Jarmusch ou Godard. Greta Garbo, Louise Brooks, Ingrid Bergman, Maria Félix, nunca foram adoles- centes: sendo 120 jovens, sempre pareceram 36 jovens. Avdrey Hepburn foi a primeira adolescente do cinema americano: mais {Jovem que ela, 6 as eriangas prodigio. Frank Sinatra ou Miles Davis nio foram jovens como os Beatles. Nem Elvis Presley sacava da juventude como seu capital mais valioso: enquanto apaixonava um piblico adolescente, sua subversio era mais sexual do que juvenil. Jimmy Hendrix nunca pareceu mais Jovem que 0 eterno jovem, velho jovem, adolescente conge- ado, Mick Jagger. Aig o jeans a minissaia nfo existiv uma moda jovem, nem um mercado que a pusesse em circulaglo, Mary Quant, Lee e Levi's so a academia do novo design. Até 1960, os jovens imitavam,estilizavam ou, no méximo, parodiavam o que Abundinciaepobreca 39 ra, simplesmente, a moda, Assim, as fotos de atores bem jovens, jogadores de futebol ou estudantes universitérios no fevocam, até entio, a iconografia de coroinhas perversos ou roqueiros dispostos a tudo, 0 que agora é lugar-comum. Essa iconografia tem apenas um quarto de século. As modelos da publicidade imitavam as atrizes ou a classe alta; hoje, imitam as modelos mais jovens. As atrizes & que imitam as modelos, Somente no caso dos homens a maturidade conserva algum ‘magnetismo sexual. Madonna & um desafio original porque ‘dota a moda retrd sem incorporar a ela clichés juvenis; com ‘ela, passou a existir uma fantasia 56 usada pelos jovens, que complica o significado dos sinais de adolescfncia somados a luma moda que exibe a acumulagio de tragos desta vitima metade de século. Hoje a juventude é mais prestigiosa do que nunca, como ‘convém a culturas que passaram pela desestabilizagio dos prin- cipios hierérquicos. A infancia j4 ndo proporciona uma base adequada para as ilusbes de felicidade, suspensio tranquiliza- dora da sexualidade ou inocéncia, A categoria de “over”. por sa vez, garante um outto set de ilusdes com a vantagem de poder trzer cena a sexualidade e, a0 mesmo tempo, desven: cilhar-se mais liveemente de suas obrigagSes adultas, entre elas 44 de uma definigio taxativa do sexo, Assim, a juventude € ‘um terrtério onde todos querem viver indefinidamente, No centanto, os “jovens” expulsam desse terstério os impostores, ‘que no cumprem as condigées da idade e entram numa guerra _geracional bansli2ada pela cosmética, a eteridade quinglena das ciruepias estéticas © das terapias new age. ‘A cultura juvenil, como cultura universal ¢ tribal a0 ‘mesmo tempo, constri-se no marco de uma insituigso tradi- cionalimente consagrada aos jovens, que esta em crise: a escola, 40 caNas OA VIDA FOS-AcODERNA ceujo prestigio se debilitow tanto pela queda das autoridades tradicionais quanto pela conversio dos meios de massa n0 espago de uma abundincia simbélica que a escol As estratgias para definir © permitido © 0 proibido entraram fem tise. A permanéncia, que era um trago constitutivo da autoridade, foi rompida pelo fluir da novidade. Se & quase impossfvel definie 0 permitido e © proibido, a moral deixa de Set um territério de conflitos signficativos para converterse rum elenco de enunciados banais: a autoridade perdeu seu aspecto terivele intimidatério (que potencializava a rebelito) © 56 € auloridade quando exerce a forga repressiva (como ‘costuma Fazer, com indeseve freqéncia). Onde antes se podia ‘enfrentar a proibigdo discursiva, hoje parece restars6 a pol (Onde ha poucas décadas estava a politica, apareceram depois (0 movimentos sociais © hoje avangam as neo-eligibes (© mercado ganha relevo e corteja a juventude, depois de instiui-la como protagonista da maioria de seus mitos. A es- 4uina onde se encontram a hegemonia do mercado ¢ 0 peso decadente da escola ilustra bem uma tendéncia: os “jovens” ‘passam da novela familiar de uma inftncia cada vez mais breve ‘para o folhetim hiperrealista que ple em cena a danga das rmercadorias frente aos que podem pagar por elas e também frente aqueles outros consumidores imaginérios, aqueles que sido mais pobres, aos quais a perspectiva de uma vida de tra- batho e sacrffcio nfo atinge com a mesma eficécia que a seus av6s, entre outros motives porque eles sabem que no cconseguitio sequer 0 que seus avés conseguiram, ou porque ‘nfo quetem conseguir 56 0 que estes buscavam. ‘Consumidores efetivos ou consumidores imaginsrios, (0s jovens encontram no mercado de mercadorias e bens sim- blicos um depésito de objetos e discursos fast preparados Abundincia pobresa 4 especialmente. A velocidade de circulago e, portant, a obso- lescéncia acelerada se combinam numa alegoria de juventude: ‘no mercado, as metcadorias devem ser novas, dever ter @ estilo da moda, devem captar as mudangas mais insignificantes do ar dos tempos. A renovagio incessante necessria ao mer- ceado captalsta captura 0 mito da novidade permanente que ‘também impulsiona a juventude, Nunca as necessidades do ‘mercado estiveram afinadas io precisamente ao imaginério de seus consumidores. (© mercado promete uma forma do ideal de lberdade e, ra sua contraface, uma gartntia de exclusio. Assim como 0 racismo se desnuda na entrada de algumas discotecas, cujos porters sio especialistas em diferenciagGes sociais, 0 merca do escolhe aqueles que estario em condigies de, no seu inte- rior, fazer suas escolhas. Todavia, como precisa ser universal, cle enuncia seu diseurso como se todos, nele, fossem iguais. Os meios de comunicagio reforpam essa idéia de igualdade na liberdade que € parte central das ideotogias juvenis bem pensantes, as quais desprezam as desigualdades reais a fim de armar uma cultura estatifieade porém igualmente magneti- zada pelos eixos de identidade musical que se convertem em espagos para aidentidade de experiéneias, $6 muito abaixo, nas rmargens da sociedade, esse acdmulo de eamadas se racha. As rachaduras, de todo modo, tm suas pontes simbolicas: 0 video- clipe e a mdsica pop eriam a ilusio de uma continuidade na {qual as diferengas se fantasiam de escolhas que parecem indi- viduals isentas de motivagao social. Se € certo, como se disse, {que se ama uma estrela pop com © mesmo amor com que se toree por um time de futebol, o carder trans-social desses afetostranquiliza a conscincia de seus portadores, ainda que ‘les mesmos, depois, diferenciem cuidadosamente € alé com 42. cENAS DA VIDA FOS-MODERNA certo prazer esnobe os negros dos louros, segundo a légica que também os classifica na portaria das discotecas. O impulso igualtiio que &s veres se ex€ encontrar na cultura dos jovens tem seus limites nos preconceitos sociais e racias, sexuais € ‘A debilidade do pertencimento a uma comunidade de valores sentidos é compensada por um cenério mais abstrato porém igualmente forte: a insisténcia de um imagindrio sem asperezas, brilhante assegura que a propria juventude € a fonte dos valores com que esse imaginério interpela 0s jovens. O cfreulo se fecha de modo quase perfeito. Videogames Entro num lugar com barulho de discotecae iluminagio de bar da zona portuéria. Os frequentadores parecem safdos de tum colégio, uma favela ou um esert6rio onde trabalhariam na faixa mais baixa de especializagio e salir, Cada um na ‘sua, sem que os olhares se eruzem por um instante sequer, De ‘quando em quando, um ou outro vai até © baleBo do fundo © faz alguma transagio, O balconista desconfia dos clientes © evita qualquer contatoalém do indispenssvel. Sou aqui a dnica ‘mulher. Mais tarde, entram duas garotas, ue pareeem amigas de um dos estudantes, ‘As paredes do sallo est pintadas de cores acids, verde ‘magi, amarelo, violeta. Sobre os painéis coloridos reeaem as Iuzes que vém do teto, com a reverberagio adicional de alguns rafismos em neon, raios,estrelas, esprais. Seja como for, rninguém otha para as paredes ou para o tefo; ninguém tem tempo para desviar a vista, Todos sabem que hf pouco a ser visto, © ruido da misica — uma percussio que se repete sem variagdes, contra @ fundo de uma melodia brevissima, bem Abundinciaepobresa 83 simples, que também € repetida e invaridvel — mistura-se a outra série de sons: apts, golpes metilicos, golpes surdos, stibitas ondas eléticas, matracas, acordes de sintetizador, tiros, vozesirveconhecveis, boing, ong, clash, a wilha sonora do desenho animado. ‘A luz fia se mistura a outas luzes: clarbes,raios, es curecimentos até o brev total, mudangas de planos de cor, auréolas que se chocam contra a parede € os corpos. So efeitos de luz que se mostram a si mesmos, valem pelo que sfo ¢ no ‘pelo que permitem ver ao redor. Sto como coisas que preen- chem 0 espago e o transformam num holograma, Sem a luz © © som, 0 lugar ficaria vazio, porque na verdade seus méveis so esses mesmos efeitos: trata-se de um cenério de luzes onde ‘cada metro quadrado apresenta uma disposigio nitidamente Aelimitada de cores ruidos. Por isso, cada um pode isoar-se e ficar na sua ‘Se me aproximo de algum dos freqientadores, meio de lado, para vero que esté fazendo, ele nko desvia os olhos; essa falta de contato me permite supor que nio estou incomodando muito. Seus olhos estio abstraidos num video, suas mos se- paradas manejam as slavancas ¢ os botdes de um painel. As vezes, um movimento da cabega dé a idéia de surpresa, con- tariedade ou alegria, mas em geral essas pessoas nio sio de dar na vista, esto ensimesmadas, abstafdas na configuragio visual do video que muda conforme os resultados instantineos de seus atos ow as decisbes inescrutéveis dos chips. ‘A cada ts, quatro ou cinco minutos, retorma-se a0 prin- cpio: letras no video indicam que, apesar de tudo parecer Idénticoe infinito, nfo € bem assim, o contador zerou de nove, 6 hora de comegar & contagem outra vee. As méquinas sfo um Infinit periddico, em que cada tanto encerra um ciclo ¢inic 44. cB4ns DA VIDA FOS-MODERNA outro, basicamente igual, mas ao mesmo tempo caracterizado ‘or variagSes. Como um infnito periddico, ipnotizam e indu- z2em busea de um limite inaleangével acima do qual 0 jogador venceria a méquine. Do outro lado do sali existe um mundo mais arcaico, Pingis verticais © horizontais, armados conforme a estética ‘pop do grafitmo dos anos cinglenta, oferecem uma superficie povoada de abstéculos (cogumelos, pontes, buracos, barreiras, Iabirintos, arcos) por onde circula uma bola de metal: avanga, retrocede e deseparece. Avanga,retrocedee desaparece, mas a0 fazé-lo produz misica: a misica que o jogader joga, com as ios nas laterais do painel horizontal, impedindo que a esfera ceaia no pogo de onde jf nBo sai até que tudo recomece mais uma vez. Observo que os jogadores golpeiam, inclinam, em- purram os pés eas laterais da maquina, que nao & operada so- ‘mente eom as mos, mas com todo 0 corpo. No painel vertical, as luzes iluminam diferentes setores, desenhos de animes, andes, roletas, naves espaciais, grils, florestas, praias, pi cinas, mulheres, soldados, dinossaures, atletas. Os desenhios sio verdadeiros desenhos (a0 contrério das figuras geome- trizadas da maioria dos videos); os sons também tém algo de teal porque a esfera em movimento bate fisicamente nos ‘cogumelos ou nas barriras de metal Essas méquinas (@s que no tém video) lembram um cassino: Las Vegas no espago de dois metros por um. Ndo estou {querendo dizer simplesmente que os cassinos de Las Vegas cstio cheios dessas méquinas e de videos como os do outro lado, Cada uma dessas méquinas sintetiza 0 rufdo ¢ a ilumi- nagio de um eassino, a repetigio, a concentragio, 0 infinito petiédico de um cassino, Além disso, copiam a esttica de Las ‘Vegas (ou quem sabe seria melhor dizer que Las Vegas ¢ estas maquinas tém a mesma estética?) Abundanciae pobreza 4S Dou uma volta em U e chego & safda. Ali, a cada lado ‘da porta, hd dois grandes tlbes nos quas se reprodus um jogo de bola; como na televisio, o resultado aparece na base do video, identficando os times pela cor de suas camisetas. Um hhomem otha, como eu, para essa partida realmente infinita e petiddica, vai até 0 baleSo e retoma com ums ficha, disposto a intervie para mudar a ordem da miquina, Em outro lugar como esse, havia um cenério de fundo, com escadaria cascata,teto decorado © pintado de dourado, com uma fonte que jorra égua de verdade. Provavelmente nes- ses ambiciosos restos de decoragio estaré a metéfora que procuro para entender o jogo em questio, Esse salgo era um cinema. Hoje, 0 cinema foi dividido, como uma imagem de {elevisto processada por computador, em mais de cem cubi- culos. Onde a escuridio ¢ o siléncio admitiam uma s6 super- ficie iluminada e uma s6 fonte de som, agora hi cem super- ficies ¢ cem sons. No entanto, nada tem o futuro assegurado: ‘em pouco tempo mais, a realidade virtual acabaré com as felas de videogame © $6 0s roqueiros nostélgicos ou os ar- tistas do revivalismo freqUentario 0s poucos fliperamas que ‘io tiverem sido tansformados, como as velhas juke-boxes, em pegas de decoragio ret pop. [As casas de videogames mio podem evitar 0 “efeito espelunca” — nem mesmo as mais luxuosas, que combinam o Kitsch ¢ um cero ar East Side novaiorquine com excadas de {erro e biombos de metal drive, ou grafismos de publicidade _pés-moderna com as cores fosforescentes que se usavam hi dez anos. Melhor dizendo, suportam esse efeito como uma das conseqliéncias de sua cenografia. Nos bairros, algumas mies {que acompanham seus filhos parecem completamente fora de lugar, porque nio sabem como se portar, como evitar 0 golpe 46. ceNAs DA VIDA FOS-MODERNA 4 tuz ou do som: levaram seus filhos a um lugar inevitével porém perigoso ¢ acreditam que sua presenga ali poderd sal- ‘vélos de um vicio que consideram terrivel justamente por- ‘que retira sous filhos daqueles espagos imaginérios ou reais ‘onde se pode exercer a vigilincia. Seus filhos, tendo os con- troles & mio, sio mais habeis do que clas. E também mais inteligentes, porque lo se perdem no labirinto grifico, pelo ‘ual elas ndo se interessam, jf que no compreendem, ov no ‘compreendem, j& que nfo as interessa. Essas mies nfo ameni- zam 0 “efeito espelunea”; alifs, 0 ressltam: estio ali como ‘quem acompanha um alcodlatra até o bar, com a finalidade inaleangével de que ele tome uns copos « menos. ‘Muito mais que a mectnica dos jogos, 0 “efeito espe- presenga de uma subcultura cujos: membros valorizam feitos que o resto da sociedade nio considera tanto, or exemplo, ganhar da méquina, o que significa vencer al- ‘guém que nio & teoricamente igual, mas sim realmente dife- rente; por exemplo, ganhar sem obter outra recompensa além da simbélica. (Nos cassinos, quando se ganha das méquinas as recompensas sio, evidentemente, materiais. Numa ou noutra ‘cata de videogames cheguei a ver apostas, mas isso & franca- ‘mente excepcional). 0 “efeito espelunca” também tem, entre- olado para definit seu destino num combate singular com a méiquina, © € & mé- gquina, endo aos outros, que se deve demonstrar destreza, impavider, perspicécia arojo ¢ rapidez. Se € certo que maitas méquinas permitem 0 desafio entre dois jogadores, 0 mais ‘comum, nos lugares pablicos,é o enfrentamento individual do jogador com sua méquina. Como no cassino, alguns observa- dores podem assistir a performance dos jogadores mais habili- ddosos ou mais sortados, mas, também como nos eassinos, as Junea” marea| tanto, algo de cassino: cada jogadore: Abundinciae pobreca 87 ‘maneiras adequadas impdem sua regra de bom tom: no olhar de modo a levar 0 outro a sentir-se olhado e vice-versa, nfo fazer os gestos de quem sabe que esté sendo olhado, O curioso rmetido © 0 exibicionista se distinguem negativamente na paisagem dos videogames. (0 “efeito espelunca” também tem a ver com a presenga ‘minoritéria de mulheres. Algumas vio atrés dos namorados; ‘outas, mais inclinadas a0 jogo, em geral se restringem aos Videogames geométricos, que sio menos surpreendentes na proliferagio de sons, mas impdem dificuldades mais intelec~ tuais, O limo Tetris tridimensional apresenta verdadeiros de- safios & previsto de configuragées espaciais sobre trés planos ‘eum quarto eixo temporal que pauta a velocidade de queda dos Volumes. Seja como for, as mulheres so poueas e ninguém otha para elas. Nio sio ignoradas por serem mulheres, e sim porque o habito induz a cruzar a menor quantidade possivel de cothares sobre os espagos reais; os espagos reais embotam 0 colhar e tram sua acuidade e sua capacidade de enfoque refi- nado, necessirios para enxergar bem os espagos das telas de video. Obviamente, hi mais mulheres nas casas de videogames situadas nos bairos residenciais (mais families, menores & mais pobres na sua oferta téenica)e nos enormes videsdromos do centro, que interrompem a decadéncia de algumas ruas, antes tradicionais, com uma decoragio generosa e a presenga de segurancas, que muitas vezes so apresentados como um dos servigos especiais oferecidos pela casa. Quando se descobre 1 presenga de um desses segurangas, o “efeito espelunca” au- ‘menta imediatamente. ‘As miquinas esto para além de tudo o que se disse. Na verdade, so um conjunto de elementos de temporalidades versas: as alavancas e os botBes de controle pertencem & era

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