Você está na página 1de 83

INTRODUÇÃO AOS

ESTUDOS LITERÁRIOS
SOMESB
Sociedade Mantenedora de Educação Superior da Bahia S/C Ltda.

Presidente ♦ Gervásio Meneses de Oliveira


Vice-Presidente ♦ William Oliveira
Superintendente Administrativo e Financeiro ♦ Samuel Soares
Superintendente de Ensino, Pesquisa e Extensão ♦ Germano Tabacof
Superintendente de Desenvolvimento e>>
Planejamento Acadêmico ♦ Pedro Daltro Gusmão da Silva

FTC - EAD
Faculdade de Tecnologia e Ciências - Ensino a Distância

Diretor Geral ♦ Reinaldo de Oliveira Borba


Diretor Acadêmico ♦ Marcelo Nery
Diretor de Desenvolvimento e Inovações ♦ Roberto Frederico Merhy
Diretor Comercial ♦ Mário Fraga
Diretor de Tecnologia ♦ Jean Carlo Nerone
Diretor Administrativo e Financeiro ♦ André Portnoi
Gerente Acadêmico ♦ Ronaldo Costa
Gerente de Ensino ♦ Jane Freire
Gerente de Suporte Tecnológico ♦ Luis Carlos Nogueira Abbehusen
Coord. de Telecomunicações e Hardware ♦ Osmane Chaves
Coord. de Produção de Material Didático ♦ João Jacomel

EQUIPE DE ELABORAÇÃO/PRODUÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO:

♦ PRODUÇÃO ACADÊMICA ♦
Gerente de Ensino ♦ Jane Freire
Supervisão ♦ Jean Carlo Bacelar, Leonardo Santos Suzart,
Wanderley Costa dos Santos e Fábio Viana Sales
Coordenação de Curso ♦ Jussiara Gonzaga
Autor (a) ♦ Mônica Oliveira
♦ PRODUÇÃO TÉCNICA ♦
Revisão Final ♦ Carlos Magno Brito Almeida Santos
Márcio Magno Ribeiro de Melo
Equipe ♦ André Pimenta, Antonio França Filho, Amanda
Rodrigues, Bruno Benn, Cefas Gomes, Cláuder Frederico,
Francisco França Júnior, Herminio Filho, Israel Dantas,
Ives Araújo, John Casais, Márcio Serafim,
Mariucha Silveira Ponte, e Ruberval da Fonseca.
Editoração ♦ John Casais
Ilustração ♦ John Casais
Imagens ♦ Corbis/Image100/Imagemsource

copyright © FTC EAD


Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/98.
É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorização prévia, por escrito,
da FTC EAD - Faculdade de Tecnologia e Ciências - Ensino a Distância.
www.ftc.br/ead
Sumário

INTRODUÇÃO E GÊNEROS LITERÁRIOS 07

O QUE É LITERATURA

A literatura fala da literatura – Antoine Compagnon e os demônios 07


da teoria
Texto-mundo: a questão da representação em Platão e Aristóteles 12

Mimese e Verossimilhança 15

Ampliando a noção de “texto” 20

OS GÊNEROS LITERARIOS

A Lírica 21

O Épico 27

O Trágico 35

Bakhtin em seu Epos e Romance 38

EM TEMPO: OUTRAS QUESTÕES LITERÁRIAS 42

QUEM NARRA AQUI

Walter Benjamin: O narrador 42

A narração na pós-modernidade 46

Quem é o autor? 53

Intertextualidades: o labirinto da citação 56

3
OS ESTUDOS CULTURAIS

Introdução aos Estudos Culturais 59

Vozes da América Latina: a inserção de outras leituras 66

O Cânone 68

Revendo a noção de ‘literatura’ 71

Glossário 77

Referências Bibliográficas 79
Apresentação da Disciplina
Prezado aluno,

A disciplina Introdução aos Estudos Literários tem por objetivo levar você a mergulhar
no universo da crítica e das teorias da literatura e da cultura. Começamos o nosso passeio
refletindo sobre a noção de literatura e sobre a antiguidade clássica, com os primeiros
textos, na cultura ocidental, que tiveram por objeto de estudo a literatura. Mostraremos
que esses textos tinham objetivos bem diferentes daqueles que têm orientado a teoria da
literatura desde a sua constituição como disciplina, porque os autores desses primeiros
textos, os filósofos Platão e Aristóteles, possuíam uma perspectiva normativa e prescritiva
em relação à literatura, o que não é o objetivo da teoria literária. Procuramos, ao longo do
curso, mostrar que o texto literário é um eterno devir e que as reflexões em torno dele devem
sempre se pautar numa recusa a verdades e conceitos totalizadores que possam sufocar a
literatura, funcionando como “camisas de força” para o seu contínuo movimento de “dan-
çar” com o mundo, revelando-o e sendo revelada por ele. Vigilantemente numa posição de
“advogados do diabo” em relação a essas verdades, compartilhamos a mesma posição de
teóricos contemporâneos da literatura, como Antoine Compagnon, Eneida Maria de Souza,
Jonathan Culler e Silviano Santiago. Imbuídos desse espírito crítico e atentos ao nosso
tempo e ao mundo a nossa volta, revisitamos os conceitos de arte, de teoria da literatura, os
antigos conceitos de mimesis, verossimilhança, catarse, passamos pelos gêneros literários,
expusemos a questão do autor, questionamos a noção de cânone literário, colocamos em
pauta a literatura atual. O nosso porto de chegada são as discussões contemporâneas em
torno da literatura, principalmente a apresentação da perspectiva culturalista, que coloca a
literatura em diálogo com outras manifestações culturais, principalmente com a cultura de
massa, lançando novo desafio a nós, professores, alunos, estudiosos e críticos da literatura
a “oxigenar” e potencializar as nossas formas de ver e de viver a literatura.

Sorte, nos estudos e na vida!

5
INTRODUÇÃO E GÊNEROS
LITERÁRIOS

O QUE É LITERATURA

A literatura fala da literatura – Antoine Compagnon e os


demônios da teoria

Olá! Nas reflexões que iniciaremos acerca do universo da literatura, começaremos


com a questão da arte da escrita. O texto do escritor francês Gilles Deleuze, logo abaixo,
apresentará algumas rápidas questões para pensarmos sobre a língua, o ato de escrever,
dentre outras coisas, que nos fará perceber esse não-limite do literário, suas frestas, seus
sulcos, seu modo de ser e nos fazer delirar!

PRÓLOGO
(Gilles Deleuze)

Este conjunto de textos, dos quais alguns são inéditos, outros já publicados, organiza-
se em torno de determinados problemas. O problema de escrever: o escritor, como diz
Proust, inventa na língua uma nova língua, uma língua de algum modo estrangeira. Ele
traz à luz novas potências gramaticais ou sintáticas. Arrasta a língua para fora de seus
sulcos costumeiros, leva-a a delirar. Mas, o problema de escrever é também inseparável
de um problema de ver e de ouvir: com efeito, quando se cria uma outra língua no interior
da língua, a linguagem inteira tende para um limite “assintático”, “agramatical”, ou que
se comunica com seu próprio fora.
O limite não está fora da linguagem, ele é o seu fora: é feito de visões e audições
não-linguageiras, mas que só a linguagem torna possíveis. Por isso, há uma pintura e
uma música próprias da escrita, como efeitos de cores e de sonoridades que se elevam
acima das palavras. É através das palavras, entre as palavras, que se vê e se ouve.
Beckett falava em “perfurar buracos” na linguagem para ver ou ouvir “o que está escondido
atrás”. De cada escritor é preciso dizer: é um vidente, um ouvidor, “mal visto mal dito”, é
um colorista, um músico.
Essas visões, essas audições não são um assunto privado, mas formam as figuras
de uma história e de uma geografia incessantemente reinventadas. É o delírio que as
inventa, como processo que arrasta as palavras de um extremo a outro do universo.
São acontecimentos na fronteira da linguagem. Porém, quando o delírio recai no estado
clínico, as palavras em nada mais desembocam, já não se ouve nem se vê coisa alguma
através delas, exceto uma noite que perdeu sua história, suas cores e seus cantos. A
literatura é uma saúde.

7
Esses problemas traçam um conjunto de caminhos. Os textos aqui
apresentados, e os autores considerados, são tais caminhos. Uns são
curtos, outros mais longos, mas eles se cruzam, tornam a passar pelos
Introdução aos mesmos lugares, aproximam-se ou se separam, cada qual oferece
Estudos uma vista sobre outros. Alguns são impasses fechados pela doença.
Literários

Toda obra é uma viagem, um trajeto, mas que só percorre tal ou qual caminho exterior
em virtude dos caminhos e trajetórias interiores que a compõem, que constituem sua
paisagem ou seu concerto.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed.34, 1997.

O texto de Deleuze abre possibilidades de escrita e


rabisca a dificuldade de caracterizar de forma mais precisa
a literatura. Esse trabalho com a linguagem, seu modos
de fazê-la delirar, traçam redes que desembocarão em
questões híbridas (glossário): a literatura fala da literatura,
fala da vida, fala dos estudos literários, da sociedade, das
culturas.
Feito esse primeiro diálogo com o rápido texto de
Deleuze, viajemos, agora, ao lado de Compagnon.
O que este outro escritor-pensador nos oferece é
uma tentativa de historicizar o conceito de literatura e
suas questões, assim como demonstrar sua expansão
para outros âmbitos da vida. Vamos lá?

A LITERATURA
(Antoine Compagnon)

Os estudos literários falam da literatura das mais diferentes maneiras. Concordam,


entretanto, num ponto: diante de todo estudo literário, qualquer que seja seu objetivo,
a primeira questão a ser colocada, embora pouco teórica, é a da definição que ele
fornece (ou não) de seu objeto: o texto literário. O que torna esse estudo literário? Ou
como ele define as qualidades literárias do texto literário? Numa palavra, o que é para
ele, explícita ou implicitamente, a literatura?
Certamente, essa primeira questão não é independente das que se seguirão.
Indagaremos sobre seis outros termos ou noções, ou, mais exatamente, sobre a
relação do texto literário com seis outras noções: a intenção, a realidade, a recepção,
a língua, a história e o valor. Essas seis questões poderiam, portanto, ser reformuladas,
acrescentando-se a cada uma o epíteto literário, o que, infelizmente, as complica mais
do que as simplifica:
O que é intenção literária?

8
O que é realidade literária?
O que é recepção literária?
O que é língua literária?
O que é história literária?
O que é valor literário?
Ora, emprega-se, freqüentemente, o adjetivo literário, assim como o substantivo
literatura, como se ele não levantasse problemas, como se se acreditasse haver um consenso
sobre o que é literário e o que não o é. Aristóteles, entretanto, já observava, no início de sua
Poética, a inexistência de um termo genérico para designar, ao mesmo tempo, os diálogos
socráticos, os textos em prosa e o verso: “A arte que usa apenas a linguagem em prosa ou
versos [...] ainda não recebeu um nome até o presente” (1447a 28-b9). Há o nome e a coisa.
O nome literatura é, certamente, novo (data do início do século XIX; anteriormente, a literatura,
conforme a etimologia, eram as inscrições, a escritura, a erudição, ou o conhecimento das
letras; ainda se diz “é literatura”), mas isso não resolveu o enigma, como prova a existência
de numerosos textos inti¬tulados Qu ‘Est-ce que l’Art? [O que É a Arte?] (Tolstoï, 1898),
“Qu’Est-ce que Ia Poésie?” [O que É a Poesia?] (Jakobson, 1933¬-1934), Qu’Est-ce que Ia
Littérature? [O que É Literatura?] Charles Du Bos, 1938; Jean-Paul Sartre, 1947. A tal ponto
que Barthes renunciou a uma definição, contentando-se com esta brincadeira: “A literatura
é aquilo que se ensina, e ponto final.”1 Foi uma bela tautologia. Mas pode-se dizer outra
coisa que não “Literatura é literatura?”, ou seja, “Literatura é o que se chama aqui e agora de
literatura?” O filósofo Nelson Goodman (1977) propôs substituir a pergunta “O que é arte?”
(What is art?) pela pergunta “Quando é arte?” (When is art?) Não seria necessário fazer o
mesmo com a literatura? Afinal de contas, existem muitas línguas nas quais o termo literatura
é intradu¬zível, ou não existe uma palavra que lhe seja equivalente.
Qual é esse campo? Essa categoria, esse objeto? Qual é a sua “diferença específica?”
Qual é a sua natureza? Qual é a sua função? Qual é sua extensão? Qual é sua compreensão?
É necessário definir literatura para definir o estudo literário, mas qualquer definição de literatura
não se torna o enunciado de uma norma extraliterária? Nas livrarias britânicas encontra-se,
de um lado, a estante Literatura e, de outro, a estante Ficção; de um lado, livros para a escola
e, de outro, livros para o lazer, como se a Literatura fosse a ficção entediante, e a Ficção, a
literatura divertida. Seria possível ultrapassar essa classificação comercial e prática?
A aporia resulta, sem dúvida, da contradição entre dois pontos de vista possíveis e
igualmente legítimos; ponto de vista contextual (histórico, psicológico, sociológico, institucional)
e ponto de vista textual (lingüístico). A literatura, ou o estudo literário, está sempre imprensada
entre duas abordagens irredutíveis: uma abordagem histórica, no sentido amplo (o texto como
documento); e uma abordagem lingüística (o texto como fato da língua, a literatura como arte
da linguagem). Nos anos sessenta, uma nova querela entre antigos e modernos despertou
a velha guerra de trincheiras entre partidários de uma definição externa e partidários de uma
definição interna de literatura, aceitáveis às duas, mas ambas limitadas. Genette, que julga
“tola” a pergunta “O que é literatura?” - ela é mal colocada -, sugeriu, entretanto, distinguir dois
regimes literários complementares: um regime constitutivo, garantido pelas convenções, logo
fechado - um soneto, um romance pertencem de direito à literatura, mesmo que ninguém os
leia -, e um regime condicional, logo aberto, dependente de uma apreciação revogável - a
inclusão, na literatura, dos Pensées [Pensamentos] de Pascal ou de Ia Sorciere [A Feiticeira]
de Michelet depende dos indivíduos e das épocas2.
Descrevamos a literatura sucessivamente: do ponto de vista da extensão e da

1 BARTHES. Réflexions sur un manuel, p. 170.


2 GENETTE. Fiction et diction, p. 11.

9
compreensão, depois da função e da forma, em seguida, da forma do
conteúdo e da forma da expressão. Avancemos dissociando, seguindo
o método familiar da dicotomia platônica, mas sem demasiadas ilusões
Introdução aos sobre nossas chances de sucesso.
Estudos A EXTENSÃO DA LITERATURA
Literários

No sentido mais amplo, literatura é tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito),
são todos os livros que a biblioteca contém (incluindo-se aí o que se chama literatura oral,
doravante consignada). Essa acepção corresponde à noção clássica de “belas-letras” as
quais compreendiam tudo o que a retórica e a poética podiam produzir, não somente a
ficção, mas também a história, a filosofia e a ciência, e, ainda, toda a eloqüência. Contudo,
assim entendida, como equivalente à cultura, no sentido que essa palavra adquiriu desde
o século XIX, a literatura perde sua “especificidade”: sua qualidade propriamente literária
lhe é negada. Entretanto, a filologia do século XIX ambicionava ser, na realidade, o estudo
de toda uma cultura, da qual a literatura, na acepção mais restrita, era o testemunho mais
acessível. No conjunto orgânico assim constituído, segundo a filologia, pela língua, pela
literatura e pela cultura, unidade identificada a uma nação, ou a uma raça, no sentido
filológico, não biológico do termo, a literatura reinava absoluta, e o estudo da literatura era
a via régia para a compreensão de uma nação, estudo que os gênios não só perceberam,
mas no qual também forjaram o espírito.
No sentido restrito, a literatura (fronteira entre o literário e o não-literário) varia
consideravelmente segundo as épocas e as culturas. Separada ou extraída das belas-
letras, a literatura ocidental, na acepção moderna, aparece no século XIX, com o
declínio do tradicional sistema de gêneros poéticos, perpetuado desde Aristóteles. Para
ele, a arte poética - a arte dessa coisa sem nome, descrita na Poética - compreendia,
essencialmente, o gênero épico e o gênero dramático, com exclusão do gênero Lírico,
que não era fictício nem imitativo - uma vez que, nele, o poeta se expressava na primeira
pessoa - vindo a ser, conseqüentemente, e por muito tempo, julgado um gênero menor.
A epopéia e o drama constituíam ainda os dois grandes gêneros da idade clássica, isto
é, a narração e a representação, ou as duas formas maiores da poesia, entendida como
ficção ou imitação (Genette, 1979; Combe). Até então, a literatura, no sentido restrito (a
arte poética), era o verso. Mas um deslocamento capital ocorreu ao longo do século XIX:
os dois grandes gêneros, a narração e o drama, abandonavam cada vez mais o verso para
adotar a prosa. Com o nome de poesia, muito em breve não se conheceu senão, ironia
da história, o gênero que Aristóteles excluía da poética, ou seja, a poesia lírica a qual, em
revanche, tornou-se sinônimo de toda poesia. Desde então, por literatura compreendeu-
se o romance, o teatro e a poesia, retomando-se à tríade pós-aristotélica dos gêneros
épico, dramático e lírico, mas, doravante, os dois primeiros seriam identificados com a
prosa, e o terceiro apenas com o verso, antes que o verso livre e o poema em prosa
dissolvessem ainda mais o velho sistema de gêneros.
O sentido moderno de literatura (romance, teatro e poesia) é inseparável do
romantismo, isto é, da afirmação da relatividade histórica e geográfica do bom gosto,
em oposição à doutrina clássica da eternidade e da universalidade do cânone estético.
Restrita à prosa romanesca e dramática, e à poesia lírica, a literatura é concebida, além
disso, em suas relações com a nação e com sua história. A literatura, ou melhor, as
literaturas são, antes de tudo, nacionais.

10
Mais restritamente ainda: literatura são os grandes escritores. Também essa
noção é romântica: Thomas Carlyle via neles os heróis do mundo moderno. O cânone
clássico eram obras-modelo, destinadas a serem imitadas de maneira fecunda; o
panteão moderno é constituído pelos escritores que melhor encarnam o espírito de uma
nação. Passa-se, assim, de uma definição de literatura do ponto de vista dos escritores
(as obras a imitar) a uma definição de literatura do ponto de vista dos professores
(os homens dignos de admiração). Alguns romances, dramas ou poemas pertencem
à literatura porque foram escritos por grandes escritores, segundo este corolário
irônico: tudo o que foi escrito por grandes escritores pertence à literatura, inclusive a
correspondência e as anotações irrisórias pelas quais os professores se interessam.
Nova tautologia: a literatura é tudo o que os escritores escrevem.
Voltarei, no último capítulo, ao valor ou à hierarquia literária, ao cânone como
patrimônio de uma nação. No momento, notemos apenas este paradoxo: o cânone é
composto de um conjunto de obras valorizadas ao mesmo tempo em razão da unicidade
da sua forma e da universalidade (pelo menos em escala nacional) do seu conteúdo;
a grande obra é reputada simultaneamente única e universal. O critério (romântico) da
relatividade histórica é imediatamente contraposto à vontade de unidade nacional. Donde
a zombaria irônica de Barthes: “A literatura é aquilo que se ensina”, variação da falsa
etimologia consagrada pelo uso: “Os clássicos são aqueles que lemos em classe.”
Evidentemente, identificar a literatura com o valor literário (os grandes escritores)
é, ao mesmo tempo, negar (de fato e de direito) o valor do resto dos romances, dramas e
poemas, e, de modo mais geral, de outros gêneros de verso e de prosa. Todo julgamento
de valor repousa num atestado de exclusão. Dizer que um texto é literário subentende
sempre que um outro não é. O estreitamento institucional da literatura no século XIX
ignora que, para aquele que lê, o que ele lê é sempre literatura, seja Proust ou uma
fotonovela, e negligencia a complexidade dos níveis de literatura (como há níveis de
língua) numa sociedade. A literatura, no sentido restrito, seria somente a literatura culta,
não a literatura popular (a Fiction das livrarias britânicas).
Por outro lado, o próprio cânone dos grandes escritores não é estável, mas conhece
entradas (e saídas): a poesia barroca, Sade, Lautréamont, os romancistas do século
XVIII são bons exemplos de redescobertas que modificaram nossa definição de literatura.
Segundo T. S. Eliot, que pensava como um estruturalista em seu artigo “La Tradition et le
Talent Individuel” [A Tradição e o Talento Individual] (1919), um novo escritor altera toda
a paisagem da literatura, o conjunto do sistema, suas hierarquias e suas filiações:
Os monumentos existentes formam entre si uma ordem ideal que é modificada
pela introdução, entre eles, da nova (da verdadeiramente nova) obra de arte. A ordem
existente é completa antes da chegada da nova obra; para que a ordem subsista,
depois da intervenção da novidade, o conjunto da ordem existente deve ser alterado,
ainda que ligeiramente; e assim as relações, as proporções, os valores de todas as
obras de arte em relação ao conjunto são reajustados3.
A tradição literária é o sistema sincrônico dos textos literários, sistema sempre
em movimento, recompondo-se à medida que surgem novas obras. Cada obra nova
provoca um rearranjo da tradição como totalidade (e modifica, ao mesmo tempo, o
sentido e o valor de cada obra pertencente à tradição).
Após o estreitamento que sofreu no século XIX, a literatura reconquistou desse
modo, no século XX, uma parte dos territórios perdidos: ao lado do romance, do drama

3 ELIOT. Tradition and the Individual Talent, p. 38.

11
e da poesia lírica, o poema em prosa ganhou seu título de nobreza, a
autobiografia e o relato de viagem foram reabilitados, e assim por diante.
Sob a etiqueta de paraliteratura, os livros para crianças, o romance policial,
Introdução aos a história em quadrinhos foram assimilados. Às vésperas do século XXI,
Estudos a literatura é novamente quase tão liberal quanto as belas-letras antes da
Literários profissionalização da sociedade.

O termo literatura tem, pois, uma extensão mais ou menos vasta segundo os
autores, dos clássicos escolares à história em quadrinhos, e é difícil justificar sua
ampliação contemporânea. O critério de valor que inclui tal texto não é, em si mesmo,
literário nem teórico, mas ético, social e ideológico, de qualquer forma extraliterário.
Pode-se, entretanto, definir literariamente a literatura?

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo


Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

Espero que você tenha apreciado o texto durante sua leitura. Escolhemos este fragmento de
texto pelo fato de, nele, o autor colocar questões que já fazem parte de uma espécie de tradição
no mundo literário. Essas questões perseguem todos os alunos, professores, pesquisadores
de literatura que se debruçam sobre a árdua tarefa de continuar repassando e repensando os
conhecimentos literários. Tarefa que Compagnon faz com gosto e leveza: repensa a literatura dentro
de uma forma não-prescritiva, sem estancar os movimentos pelos quais ela passou ou tem passado,
sem fazer uso de uma predileção crítica ou teórica que exclua leitores menos preparados.
Ao distinguir literatura de ficção, o autor caminha com o cotidiano, propondo um diálogo
com o senso comum como aquele que também determina um status para a noção do literário,
ainda que essa determinação surja recheada de possíveis mitificações acerca do mesmo.
Para saber mais, visite o site abaixo. Nele, você encontrará uma entrevista bem interessante
com o escritor Gilles Deleuze. Fatores extra-literários nos ajudando a pensar a literatura...
http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=67&Itemid=51

Texto-mundo: a questão da representação em Platão e Aristóteles

A Grécia clássica se constituiu como base do pensamento ocidental não somente com
relação à Filosofia, mas, também, com relação à Poética. O estudo de filósofos como Platão
e Aristóteles é fundamental para que possamos discutir os conceitos de representação que
permeiam a noção de literatura no Ocidente. Iniciemos, pois, com Platão.

Mas, quem foi Platão?


Platão foi discípulo de Sócrates e é o autor de obras importantes para a
discussão sobre a literatura e a estética, tais como A República, O Banquete,
O Fedro, etc. Platão interpretou o universo como essencialmente espiritual e
obedecendo a um plano (uma idéia). Desenvolveu a doutrina das Idéias, em
que a Virtude tinha base no conhecimento. O racional, portanto, seria a parte
nobre e boa do homem, enquanto seu corpo se constituiria um obstáculo no

12
alcance das Idéias. Os artistas, de modo geral, e os poetas, em particular, não poderiam
fazer parte do Estado Ideal, a República, por imitarem o mundo das Idéias.

Segundo Platão, o universo obedece a uma ordem. Para tanto, Platão supõe a existência
de um criador, o Demiurgo, que modelou o mundo e todos os seres a partir das idéias já
existentes. O mundo, então, se constitui como o Mesmo, ou as Idéias; seu oposto, o nada,
é o Outro, algo que não são as idéias, portanto, imperfeito.
Platão afirmava que o homem percebe o mundo através dos sentidos, prefigurando
o mundo sensível. O mundo sensível se apresenta como o mundo das aparências, ou
seja, o modo como as coisas aparecem aos homens, portanto, o “não - real”, o imperfeito.
Nele, cada homem se apega àquilo que lhe parece real, resultando daí a ocorrência de
divergências de opiniões entre os indivíduos. A noção platônica, portanto, crê em mundos
diferentes: o mundo perfeito ou real, equivalente ao das Idéias; e o imperfeito, aquele que
reproduz as idéias a partir da percepção realizada pelos sentidos. O mundo das idéias e o
mundo sensível, embora separados, encontram-se relacionados, uma vez que as coisas
sensíveis representam “imitações” de idéias que lhe correspondem, do mesmo modo, por
exemplo, como um pintor imita a natureza, pintando-a. Entretanto, é também desta forma que
os homens poderão conhecer as idéias – como um modelo do qual lhe tiramos cópias.
Conhecer é assim reconhecer, lembrar-se das idéias que foram contempladas
pela alma, mas esquecidas por causa do apego do corpo às coisas sensíveis. (p.
51, Abrão, 1999)
A alma, imaterial, incorpórea, e impalpável, participa do mundo inteligível, ou das
idéias, e tem a capacidade de reconhecê-las, tornando-se, então, a conexão entre os dois
mundos. O corpo, entretanto, se constitui como um obstáculo para o espírito (ou alma),
uma vez que veicula as sensações pelas quais o ser assimila a doutrina das Idéias. Como
filósofo político, Platão, em seu livro A República, prega a construção de um Estado em
que a população estivesse distribuída em três classes: a classe mais baixa, formada pelos
artesãos, seria responsável pela produção e distribuição; a segunda classe ou intermediária,
pelos guardiões ou soldados, responsáveis pela defesa da sociedade; e finalmente, a classe
mais alta, a aristocracia, formada pelos dirigentes do Estado, devido à sua capacidade em
filosofar. Note-se, porém, que na República não havia lugar para os poetas.
Segundo Platão, os prosadores e os poetas reportam acontecimentos passados, presentes
e futuros através da simples narrativa ou imitação, ou através de ambas (Platão, p.115). Citando
Homero, Platão o critica da seguinte forma: quando ele profere um discurso como se fosse outra
pessoa, acaso não diremos que ele assemelha o mais possível o seu estilo ao da pessoa cuja
fala anunciou? (Platão, p. 117), ou seja, ao narrar um acontecimento, o narrador, no caso Homero,
estaria procurando assemelhar a sua fala à do sujeito que viveu o acontecido, configurando-se
assim em uma imitação de alguém que fala. Alegando que os artistas, de modo geral, e os poetas
e prosadores, em particular, poderiam fazer com que a população, especialmente os jovens, se
desviasse do mundo real (das idéias) e o confundisse com a imitação, Platão os impede de fazer
parte da República. E aconselha a vigiar também os outros artistas e impedi-los de introduzir
na sua obra o vício, a licença, a baixeza, o indecoro, quer na pintura de seres vivos, quer nos
edifícios, quer em qualquer outra obra de arte (Platão, p. 132).
Platão não foi o único filósofo a pensar a questão da representação, Aristóteles, que foi
seu discípulo, em seus primeiros textos apresenta uma forte influência de seu mestre. Entretanto,
Aristóteles, homem dedicado ao estudo da natureza e dos seres vivos, diverge de Platão no tocante
à observação das coisas que se apresentam aos sentidos, e amplia a teoria platônica buscando
a integração dos sentidos como meio de alcançar o conhecimento científico e filosófico.

13
Introdução aos
Estudos
Literários

Para Aristóteles, o conhecimento é um processo de abstração pelo qual o intelecto


produz conceitos universais que, ao contrário das idéias de Platão, não existem
separadamente das coisas e do intelecto. (p 56. Abrão,1999).
Aristóteles acreditava que o mais alto bem para o homem se constituía na auto-realização,
e para tanto, o homem deveria proceder com o controle das emoções, e a conservação do corpo
em boa saúde. Com relação à filosofia política, diferentemente de Platão, Aristóteles defendia a
idéia de um Estado governado por uma classe “intermediária” entre a aristocracia e a democracia,
a politéia, na qual haveria lugar para os poetas e os artistas, e onde a tragédia seria o gênero
preferido por levar o homem à catarse.Vejamos ,então, qual o significado da catarse.

Saiba mais !
O termo Katharsis, ou catarse, esteve ligado ao culto de Dionísio, ou Baco, pelo
fato de as danças realizadas neste culto levarem o indivíduo a uma liberação de temor
e malefícios, produzindo, assim, a cura no portador de doenças. O termo, portanto,
associa-se às ciências médicas. Entretanto, justamente devido à sua associação
com a liberação de emoções, a palavra passou a designar a liberação da emoção
causada pela apreciação de um objeto artístico de qualquer natureza. Para Platão,
a catarse surtia um efeito negativo; Aristóteles, porém, ligando a catarse à idéia de
música, aconselha-a com fins de “purificação”, fato que passou a gerar controvérsias
a respeito da significação do termo, uma vez que Aristóteles não a explica. A palavra
catarse, portanto, encontra-se traduzida como “purgação” no sentido médico, e como
“purificação” no sentido religioso.

A catarse tem como função liberar o indivíduo de uma emoção forte, geralmente o
terror ou a compaixão. Desse modo, Aristóteles associa a catarse à poesia trágica, já que na
tragédia, o prazer é o efeito causado pela liberação dos sentimentos de terror e compaixão
acumulados pelos espectadores durante a sua apresentação.
A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa; de certa extensão;
num estilo agradável pelo emprego separado de cada uma das suas formas,
segundo as partes: ação apresentada não com ajuda de uma narrativa, mas por
atores, e que suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação
dessas emoções (Aristóteles, p. 229).

14
Para Aristóteles, a catarse exerce uma função de controle, uma vez que impede
o excesso passional nos indivíduos, “purgando-os”, e, conseqüentemente, levando-os
a uma clareza racional.
Indicação de site:
http://www.espirito.com.br/portal/artigos/diversos/filosofia/a-arte-poetica.html

Mimese e Verossimilhança

Platão, em A República, considera os artistas como imitadores do “terceiro grau”. O que


significa isso? Platão situa os seres em três categorias, ou graus, e, tomando como exemplo
uma mesa, estabelece o seguinte critério: em primeiro lugar estaria Deus, Criador da idéia;
em segundo lugar estaria o artíficie, o materializador da idéia; e em terceiro grau e último grau
encontra-se o artista, como por exemplo, um pintor, pelo fato de copiar ou imitar a realidade,
no caso através da pintura. O interesse de Platão residia em identificar a utilidade do poeta, ou
do artista de modo geral, e o efeito da sua arte, ou seja, o efeito da tragédia no espectador.
Mas ainda não formulamos a mais séria acusação contra a poesia. O que nela há de
mais terrível é a sua capacidade de fazer danos aos homens de real valor, e poucos são os
que escapam à essa influência. (Platão)
A concepção platônica pressupõe um efeito negativo da arte sobre o seu apreciador,
pois a emoção causada pela obra de arte, a catarse, prejudicaria o indivíduo no entendimento
da verdade. O platonismo concebe a arte como mimesis, ou seja, a reprodução de algo
que existe na realidade, e que deve ser reconhecido pela razão. As imitações são danosas
aos indivíduos por não se tratarem de objetos reais na essência, mas por se constituírem –
segundo a ótica platônica - de uma visão espelhada da realidade, uma aparência ilusória,
levando os cidadãos ao engano.
Por outro lado, Aristóteles, embora influenciado por
Platão, afasta-se da concepção platônica e, considerando
a arte não somente como imitação da realidade – imitatio-
identifica a mímesis como a imitação da ação humana,
ou seja, uma representação. Por exemplo, na tragédia, a
representação de um drama envolve a ação do(s) ator(es)
e do texto representado, e que gera uma reação no público
espectador. O objeto artístico, portanto, supõe uma interação
entre o autor e o receptor, considerando que a obra só se
realiza pelo efeito causado no receptor (público).
Enquanto Platão considera a obra de arte como apenas uma imitação, Aristóteles
amplia esta noção considerando a arte não apenas uma mera imitação da realidade, mas

15
também como uma imitação do imaginário, ou daquilo que poderia ser,
instituindo, portanto, o conceito de verossimilhança. A verossimilhança é o
resultado do processo artístico da mimese. Conceitualmente, diz respeito
à realidade, mas à realidade ficcional. Para Aristóteles, a mimese na obra
Introdução aos
de arte se daria tanto pela sua semelhança com o mundo real, como pelo
Estudos
seu afastamento dessa mesma realidade.
Literários

Não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu, mas sim o que poderia ter acon-
tecido, o possível, segundo a verossimilhança ou necessidade (Aristóteles, p.306).

Mostrando a diferença entre o historiador e o poeta em A Poética, Aristóteles aponta


para o fato que a história tradicional se caracteriza pelo discurso científico e objetivo, no qual
encontra-se documentado a realidade empírica; a obra de arte, todavia, possui a equivalência
da verdade, isto é, mesmo não sendo verdadeira, tem na sua verossimilhança a característica
responsável pela possibilidade de algo vir a ser ou acontecer.

E a literatura?

A literatura é ficção, algo que existe na imaginação de seu


criador, e, portanto, não pode ser submetido à uma verificação extra-
textual (fora do texto).
A literatura cria seu próprio universo, semanticamente autônomo
em relação ao mundo em que vivemos. Ela traz seus seres ficcionais,
seu ambiente imaginário, seu código ideológico, sua própria verdade:
pessoas metamorfoseadas em animais, animais que falam a
linguagem humana, tapetes voadores, cidades fantásticas, amores
incríveis, situações paradoxais, sentimentos contraditórios, etc.4
A realidade criada pela ficção poética tem relação significativa
com o real, uma vez que a criação não parte de um vazio, e sim de algo
que já existe. As estruturas lingüísticas, sociais, e ideológicas, reais,
fornecem o material para que o artista crie o mundo imaginário.
É importante observar que mesmo a literatura de cunho realista é, contudo, fruto da
imaginação do artista, que faz um recorte da realidade que pretende mostrar, mesmo quando
4 - Autor desconhecido. Fonte: Apostila de Teoria da Literatura I-A. Ufba. Profas. Lívia Ma. Santos e Viviane Freitas, 2004.

16
não tem consciência disso e pretenda uma reprodução fidedigna da realidade. Embora o
texto de Aristóteles não avance a tal ponto, admite-se que a diferença entre o texto “ficcional”
e o “histórico” ou “científico” reside no fato que na ficção existe a consciência do real como
“construção”, enquanto que no segundo, se crê estar reproduzindo os acontecimentos com
fidelidade. Ambos os discursos são, digamos assim, “construções”: enquanto o artista
“constrói” a realidade de forma consciente, o historiador tradicional crê estar se reportando
à realidade dos acontecimentos.

Verossimilhança Interna e Externa


Com relação ao texto artístico podemos observar dois tipos de verossimilhança,
de acordo com o grau de “semelhança” ou “afastamento” da obra diante do mundo
físico, caracterizando, assim, a verossimilhança como interna ou externa. Quando há a
predominância, na obra, de aspectos físicos que se relacionam com o mundo em que vivemos,
chamamos de verossimilhança externa. Por exemplo, Manuel Bandeira, no poema Evocação
do Recife retrata a cidade do Recife, mesmo que em outra época, a partir de lugares reais,
aproximando-se do contexto de realidade e provocando a verossimilhança externa:

Evocação do Recife
Manoel Bandeira

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstaad dos armadores das Índias Ocidentais
Não Recife dos mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa
de Dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
Nos longes da noite
Um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antonio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu e saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ver o fogo

17
Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Introdução aos
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
Estudos
... onde se ia fumar escondido
Literários Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
Capibaribe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas com o xale
vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
Que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia nem
Terras que não sabiam onde ficavam...
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.
Rio, 1925.

18
A verossimilhança interna diz respeito à linguagem no que tange a elaboração formal
do texto, aos elementos estruturais e a concepção de que a linguagem utilizada é a criadora
do universo ficcional. Neste caso, observa-se um maior “afastamento” do mundo exterior e o
autor criará seu universo ficcional. Como exemplo disso, podemos citar o gênero fantástico,
situado por Todorov como entre o estranho e o maravilhoso, como O asno de ouro, de
Apuleio, ou A Metamorfose, de Kafka. Nessas obras, seres não humanos são inteligentes,
têm sentimentos, mas não fazem parte do mundo real, e sim do universo ficcional. Vejamos,
como exemplo, o início do texto de A Metamorfose, de Kafka:
Quando certa manhã Gregor Samsa despertou, depois de uma noite mal dormida,
achou-se em sua cama transformado em um monstruoso inseto. Estava deitado sobre a
dura carapaça de suas costas, e ao levantar um pouco a cabeça, viu a figura convexa de
seu ventre escuro, sulcado por pronunciadas ondulações, em cuja proeminência a colcha
mal podia agüentar, pois estava visivelmente a ponto de escorregar até o solo. Inúmeras
patas, lamentavelmente esquálidas em comparação com a grossura comum de suas pernas,
ofereciam a seus olhos o espetáculo de uma agitação sem consistência.
Que me aconteceu?6

Observem que em ambas as concepções de verossimilhança, interna e externa,


o receptor, ou leitor encontra-se envolvido no reconhecimento. Podemos verificar que
a verossimilhança de caráter externo é comum nas obras realistas, cujas descrições de
cenário e personagens se afinam mais ao senso comum, ao universo que nos é conhecido.
A verossimilhança interna, contudo, é facilmente encontrada nas obras ditas de “vanguarda”,
e pressupõem um leitor já familiarizado com a linguagem utilizada na obra. Exemplos de
verossimilhança interna podem ser verificados na poesia concreta e em enredos que envolvem
elementos sobrenaturais, fluxo de consciência, etc. Assim, quando a descrição do cenário
está mais próxima da realidade, denominamos de verossimilhança externa; a verossimilhança
interna por sua vez é construída através da linguagem.

6 - KAFKA, Franz. A Metamorfose Um Artista da Fome Cartas a Meu Pai. São Paulo: Martins Claret, 2001.p.17.

19
Ampliando a noção de “texto”

Após um primeiro contato com a teoria literária, alguns textos críticos e


Introdução aos o diálogo rápido que tivemos com a antiguidade clássica grega, precisamos
Estudos reler todas essas ‘impressões’ para pensarmos o presente. Em que instância
Literários a noção de literatura estaria situada na contemporaneidade? Qual seria o
âmbito do literário? Quais seriam as formas de se ‘ler’ o tempo do agora?
Diante do numeroso leque que nos foi oferecido por Compagnon para pensarmos o
que seria essa instância do literário, podemos perceber que, se a literatura fala da vida,
ela se expande para as mais diversas formas de movimentação cultural. Textos diversos,
imagens do cotidiano, grafites, músicas, paisagens, fotografias, arquitetura, enfim, todos
esses elementos seriam focos de interesse do literário. A literatura se aproveita de todos
esses “textos”, pois eles narram a sociedade, o homem, sua relação com o mundo.
A seguir, trazemos para você uma história em quadrinhos de Robert Crumb. O autor
norte-americano apresenta uma narrativa via imagens que historicizam o caminho que a
América vem fazendo e que representa uma das grandes questões que enfrentamos na
atualidade. Para tanto, o que predomina na sua história não é a linguagem escrita, tal como
estamos habituados, mas uma linguagem plástica, que caminha pelo sensível dos detalhes.
E que se torna extremamente bem sucedida em sua comunicação. Leia, atentamente, a
história a seguir para podermos ‘visualizar’ sua linguagem, tentando pensar, para a literatura,
uma noção de texto que se expande.

Feita essa leitura da HQ de Crumb, percebemos o quão intensa é sua narrativa, mesmo
que esta não seja permeada de ‘palavras escritas’. A noção de texto se amplia para outras
formas que ventilam as palavras e atribuem novos sentidos ao espaço da enunciação. Um
filme mudo, a imagem estática de um objeto, o caminhar silencioso de cada um pelas ruas...
todos eles formam um grande texto. A literatura faz dobras na sua forma e, no espaço da
contemporaneidade, qualquer manifestação artística nos ajuda a compreender as instâncias
da arte, da cultura. Pensando uma noção de texto para além das palavras, o olhar da literatura
alcança o longe e fragmentado cotidiano.

Atividades
Complementares
1. Lidos os dois textos, o de Deleuze e o de Compagnon, como você caracterizaria
a literatura, suas formas, seu sentido? E, voltando à pergunta de Compagnon: é possível,
finalmente, definir a literatura? Por quê?

20
2. Comente a postura de Platão e a de Aristóteles em relação à mimesis. O que você
pensa sobre a concepção de cada filósofo? Como você consegue pensar essa noção de
mimesis sendo transformada até os dias de hoje?

OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Os Gêneros Literários são as várias formas de trabalhar a linguagem, de registrar


a história, e fazer com que a essa linguagem seja um instrumento de conexão entre os
diversos contextos literários que estão dispersos ao redor do mundo. Desde a antiguidade,
os gêneros literários são conhecidos e geralmente são divididos, segundo Aristóteles, como:
Lírico, Narrativo ou Épico e Dramático.
Neste segundo bloco, estudaremos cada um dos gêneros literários em particular e as
relações mantidas entre eles. Veremos a lírica, o épico e o dramático, assim como suas
particularidades e, posteriormente, veremos como cada gênero não se estabiliza em uma
fórmula única e totalizante.

A lírica

Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem.


Manoel de Barros.

Ao longo dos anos, o termo “lírica” tem sido


associado à poesia. A etimologia do vocábulo “lírica”
encontra-se ligada à palavra canção. A associação
entre a palavra e a canção deu origem à poesia
cantada, datada da Grécia clássica, e que permaneceu
como tradição até a Renascença quando entrou em
desuso. Entretanto, a partir do século XIX a lírica
passou a ser utilizada para denominar um conteúdo
relacionado com a subjetividade, o “eu”.
Podemos, então, sintetizar e dizer que a lírica se
refere à expressão subjetiva do poeta: suas alegrias,
suas dores, suas incertezas, sua consciência de si
mesmo, sua visão de mundo. O poeta lírico é acima
de tudo um ser solitário; o mundo que o circunda não o importa. Seu interesse reside

21
antes de tudo na sua vivência interior; os elementos exteriores servem
como mero pretexto para o poeta explicitar o seu íntimo.
Mesmo quando exprime a natureza, esta não passa da sua própria
Introdução aos visão do que se constitui aquela paisagem, que, por sua vez, dependerá
Estudos do “estado de alma” do poeta. Deste modo, portanto, um soneto será lírico
Literários não porque é um soneto, mas por conter uma dada experiência e uma dada
postura mental perante a realidade do mundo.7
Segundo Hegel, a verdadeira poesia lírica, como toda a verdadeira poesia, tem por
missão o conteúdo autêntico da alma humana. Porém, enquanto líricos, até os conteúdos
mais positivos, mais concretos e mais substanciais devem ser o reflexo de sentimentos,
intuições, idéias ou reflexões subjetivas.8
A poesia lírica se conceitua como a poesia da subjetividade, da emoção, e do “eu”, e
como decorrência da autocontemplação do poeta tem a sua mais forte característica no conteúdo
ambíguo. O esforço do poeta em traduzir em palavras toda a carga emocional que invade o seu
interior culminará em reduzi-la, valendo-se, constantemente, de metáforas, que, por sua vez,
acarreta uma distorção no seu conteúdo, tornando-o incerto, com mais de um sentido.

Um poema puro seria aquele em que as palavras abandonassem seus significados


particulares e suas referências a isto ou aquilo, para significar somente o ato de poetizar-
exigência que acarretaria o seu desaparecimento, pois as palavras não são outra coisa
que significados de isto ou aquilo, isto é, de objetos relativos e históricos. Um poema
puro não poderia ser composto de palavras e seria, literalmente, indizível. Ao mesmo
tempo, um poema que não lutasse contra a natureza das palavras, obrigando-as a ir
mais além de si mesmas e de seus significados relativos, um poema que não tentasse
fazê-las dizer o indizível, permaneceria uma simples manipulação verbal.9

As palavras de Octavio Paz, acima, definem o poema como algo que, não podendo
prescindir da palavra para se tornar possível, procura sempre transcender o seu sentido
semântico; esta definição confirma o conceito hegeliano em que as palavras não dão conta
daquilo que o poeta pretende dizer, embora, concomitantemente, aponte para o fato que as
palavras são os recursos dos quais se vale o poeta para poder se exprimir.
Assim, diante da impossibilidade de estabelecer um conceito exato e definitivo sobre
poesia, resta-nos mostrar o que ela representa. Mauro Faustino10 , em seu texto Que é
poesia?, considera que a maneira mais próxima de se conceituar a poesia seria dizer que se
trata simplesmente de uma forma de literatura, a arte da palavra, ou a maneira de organizar
palavras em padrões lógicos, musicais e visuais. A poesia, portanto, é uma excitação dos
sentidos: visuais, auditivos e, sobretudo, um exercício de pensamento. A polis ou a cidade,
ambiente que propiciou o nascimento da poesia para os gregos, permanece como referencial
para os poetas modernos. Contudo, embora os poetas gregos se relacionassem com o
mundo exterior, se distinguiram de seus sucessores, pelo fator “subjetividade.” Enquanto no
mundo grego o poeta narra o mundo do ponto de vista da onipotência, o poeta romântico
acreditava na poesia como expressão da sua subjetividade, do seu “eu”; o poeta moderno,
por sua vez, percebe que a sua relação com o mundo é relativa, justamente porque passa
pelo filtro da subjetividade: o poeta moderno sabe perfeitamente que qualquer recorte do
mundo será apenas linguagem.11
7 - MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974. p. 306.
8 - HEGEL. Estética. Poesia. 1964.
9 - PAZ, Octavio. A consagração do instante.
10 - FAUSTINO, Mauro. Que é poesia? In: Poesia e experiência. São Paulo: Perspectiva, 1977. p.60
11 - CARA, Salete de Almeida. O lirismo moderno. In: A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1995. p. 40.

22
Isto equivale a dizer que o poeta moderno reconhece a sua incapacidade de apresentar
o mundo de forma verdadeira e inquestionável, ou, ainda, na sua totalidade; o poeta sabe
que a sua visão de mundo é parcial e segmentada.
Observem o soneto abaixo:

Correspondências
Baudelaire
Como longos ecos que de longe se confundem
numa tenebrosa e profunda unidade,
vasta como a noite e a claridade,
os perfumes, as cores e os sons se correspondem.

Baudelaire é o poeta da modernidade por excelência, e conceituou o poema como


uma relação de sons, ritmos e imagens. É o poeta dos boulevares, do novo, da nova
configuração da cidade, é também o poeta do “feio” e do “transitório” em oposição à beleza
e à eternidade cantada pelos dos seus precursores. Tratando-se, historicamente, de uma
época cuja principal característica se apresenta como a transformação concretizada através
da construção de novas vias públicas (boulevares) e novas descobertas tecnológicas e
científicas, a modernidade e as mudanças decorrentes deste processo ocasionaram também
a degradação, incluindo, por conseguinte, o que se torna feio e grotesco. À medida que o
progresso se instalou na modernidade, os meios de comunicação evoluíram e o predomínio
da técnica influenciou a arte de modo geral. Na poesia, a linguagem expressiva foi sendo
percebida como mediação entre poeta e realidade, perdendo o seu caráter de verdade e
desestabilizando a função do poeta.12
A fotografia como a mais moderna técnica de linguagem na ocasião (1829) veio a
influenciar a arte de modo decisivo, no que tange ao modo de captar “a realidade”. A fotografia
desloca o papel do artista revelando-lhe uma nova forma de desvelar o mundo: através de
uma visão pessoal, recortada e, sobretudo, inventiva, de um instante perenizado.

Dica:
Para ver fotos de escritores, entre no site de Lygia Fagundes Telles e vasculhe seu baú!
http://portalliteral.terra.com.br/ligia_fagundes_telles/bau/fotos.shtml?bau

12 - CARA, Salete de Almeida. Op. cit. loc. cit. p. 43.

23
Evidentemente, a influência exercida pela fotografia predominou no
âmbito da arte pictórica, entretanto, a possibilidade de escolher sob qual
perspectiva se queria revelar o mundo inspirou, inegavelmente, também a
escrita, no caso, a poesia. Ilustrando a situação do poeta versus a nova
Introdução aos
cidade, o poeta português, Cesário Verde escreveu:
Estudos
Literários
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia,
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,


O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Donde antes natureza e a sua conciliação com o sujeito, na modernidade, a cidade


surge como paisagem predominante: ruas e lojas engolfam o poeta e seu mundo. Solto na
grande cidade, o poeta moderno busca na História sentido para a sua condição atual, e,
espelhando a sua perplexidade diante do mundo novo, surge uma linguagem alegórica e
fragmentada a dialogar com a tradição. Nessa busca, elementos característicos da poesia
como o ritmo, a sonoridade, a ambigüidade de sentidos, a organização de idéias e associações
criativas, abandonam os antigos modelos e regras, se expandindo e emancipando.
O sujeito lírico moderno não mais existe como referente, ou alguém em particular;
torna-se oculto quanto poeta e como leitor, na medida em que a sua existência surge com
o texto, e o leitor participa através do ato de leitura.
Na lírica moderna, a fala do sujeito lírico não reflete necessariamente a voz do autor;
o sujeito lírico se encontra imbricado na trama do texto poético. ...sua existência brota da
melodia, do canto, da sintaxe, do ritmo: o sujeito lírico é o próprio texto,e é no texto que o
poeta real transforma-se em sujeito lírico13.
A partir do Simbolismo, o sujeito lírico moderno passa a perceber que a subjetividade
pode também ser ilusória, já que o espaço da poesia não se constitui nem do espaço da
realidade nem do “eu”, dando lugar à “precariedade do sujeito”, estabelecida pela via da
própria linguagem. Vejamos o que Fernando Pessoa nos diz sobre o poeta:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Fernando Pessoa

A poesia lírica moderna vem abarcar, portanto, todos os tipos de digressões da “alma”
e do “eu”. Suas audácias resultam num conceito de poesia que se assemelha à transgressão
lógica e num direcionamento à utopia e ao mundo do desejo, uma vez que o poeta liberta-
13 - CARA, Salete de Almeida. Op. cit. loc. cit. p. 46.

24
se de regras e modelos pela via do poema alcançando um outro espaço, o espaço possível
da liberdade e do sonho.
Tomando como exemplo alguns poetas modernos brasileiros poderemos perceber que
o texto se constitui como uma fotografia ou uma pintura, em que o sujeito lírico é o elemento
que une as escolhas de linguagem que forma o texto em si.

Pensão familiar14
Manoel Bandeira

Jardim da pensãozinha burguesa,


Gatos espapaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.
Os girassóis
amarelo!
resistem.
E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais,

Um gatinho faz pipi.


Com gestos de garçom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
– É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

É pela construção do texto que se revela o sujeito do/no texto, ponto de encontro com o leitor,
elemento indispensável para que o efeito leitura-tradução seja realizado, e tenha significação.
Algumas outras questões a respeito da poesia ainda merecem destaque, como as
suas características e a diferenciação de outros gêneros literários. Vamos ver?
Ezra Pound15 resume os aspectos representativos da poesia em melopéia, logopéia
e fanopéia, em que cada um desses aspectos corresponde às características rítmicas,
organização/combinação de palavras (forma), e visuais, respectivamente. A fanopéia consiste
na projeção do objeto na imaginação visual; a melopéia se refere à musicalidade ou ritmo; e
a logopéia designa a arte de combinar palavras, dando-lhes forma e conteúdo, e provocando
efeitos e associações através das duas características anteriores, a fanopéia e a melopéia.
Mauro Faustino ainda ressalta dois aspectos importantes na poesia: o prosaico e o
poético. Ambos estão contidos de modo implícito na escrita, considerando que não haveria uma
literatura que, por mais prosaica que fosse, como por exemplo, um relatório, não contivesse
sequer uma palavra, ou uma organização de palavras que não se configurasse como “poética”;
por outro lado, não haveria uma poesia tão pura que não abordasse algo prosaico.
Todavia, esclarecemos que a distinção entre a prosa e a poesia se faz por alguns outros
aspectos, a saber: do ponto de vista formal citamos os aspectos concretos, ou exteriores,
da poesia como a sua representação gráfica. Acrescente-se também o fato que o poema
possui um caráter mais musical que a prosa – lembremos que no que pese a poética ter se
desvinculado da música, esta ainda se faz presente, marcando a poesia através do ritmo e da
rima, fluindo e configurando o poema. Considerando a prosa e a poesia, ou especificamente
prosa e verso, como idéias contrastantes, observamos que ambas as formas se distinguem

14 - BANDEIRA, Manoel. Op.cit.loc.cit. p. 27.


15 - POUND, Ezra. Apud MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974. p. 316 e 323.

25
como expressão verbal, e, embora nitidamente reconhecidas por parte do
leitor, são de difícil restrição a este ou aquele campo de delimitação entre o
prosaico do poético.
Observemos que, neste caso, a definição de “prosaico” diz respeito
Introdução aos
ao arranjo de palavras que narram, ou descrevem o objeto, enquanto
Estudos
que poético denomina o arranjo das palavras em padrões que sintetizam,
Literários suscitam, apresentam, criam e recriam o objeto16 .
Quando o escritor se vale de palavras que descrevem, comentam, personificam, ou
analisam o objeto de sua criação, estará adentrando a seara da prosa. Entretanto, quando o
escritor se utiliza de palavras que inovam e recriam o objeto de sua criação, estará se inserindo
no campo da poética. Ou em outras palavras, prosaico é o discurso e poético é o canto17 .
A prosa é clara; a poesia é ambígua. A poesia é dependente da palavra, e a linguagem
poética, portanto, delas se utiliza para criar e/ou recriar; é no seu uso que o poeta faz e refaz
o objeto de sua criação.
Dando-lhes um novo sentido, o poeta cria imagens que
ampliam o conteúdo semântico desses vocábulos; entretanto, à
medida que as imagens expandem e transcendem o significado
das palavras, promovem também uma multiplicidade de
interpretações nas quais o leitor, e a sua experiência pessoal,
estará inevitavelmente envolvido. A imagem nunca diz só isto; a
imagem diz isto e aquilo, ao mesmo tempo; ou ainda: a imagem
diz que isto é aquilo.
As imagens são produtos imaginários, designadas pelas
palavras organizadas em um conjunto de frases, que, unidas,
compõem um poema. Essas expressões verbais, classificadas pela
retórica, são chamadas de comparações, metáforas, símiles, jogos
de palavras, paronomásias, símbolos, alegorias, mitos, fábulas, etc,
tendo todos em comum a pluralidade de significados. Os elementos
que constituem uma imagem não perdem seu caráter concreto e
específico, entretanto, na constituição da imagem podem provocar
uma significação contrária ou até mesmo paradoxal, como, por
exemplo, quando o poeta afirma: “as pedras são plumas”. Sabemos que as pedras são
pesadas e que as plumas são leves, entretanto, ao lançar mão desses vocábulos para criar
uma imagem, opõe seus significados alcançando outra significação que não as próprias dos
elementos, individualmente. Daí dizermos que o poema não diz o que é, e, sim, o que poderia
ser. O poeta, através da imagem suscitada, cria e recria realidades que faz sentido para ele. A
imagem poética reproduz a pluralidade da realidade e, ao mesmo tempo, outorga-lhe unidade18.
Vejamos a poesia a seguir e reflita:

O sertanejo falando19
João Cabral de Melo Neto

A fala a nível do sertanejo engana:


As palavras dele vêm, como rebuçadas

16 - FAUSTINO, Mauro.Op. cit. loc. cit.. p.61.


17 - FAUSTINO, Mauro.Op.cit.loc.cit.p.66.
18 - PAZ, Octavio. A imagem. In: O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p.131
19 - MELO NETO, João Cabral de. In: A Educação pela Pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p.16.

26
(palavras, confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.

Enquanto que sob ela, dura e endurece


O caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
Dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
Incapaz de não se expressar em pedra.
2
Daí porque o sertanejo fala pouco:
As palavras de pedra ulceram a boca
E no idioma pedra se fala doloroso;
O natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
Tem de pegar as palavras com cuidado,
Confeitá-las na língua, rebuçá-las;
Pois toma tempo todo esse trabalho.

Visite o site:

http://www.ufrgs.br/proin/versao_2/paz/index01.html

Neste endereço você encontrará um texto do escritor mexicano Octavio Paz, no qual
ele pretende construir uma suave distinção entre poesia e poema pelas vias metafóricas e
abstratas. O texto vale a pena ser lido, pois a partir dele você terá maior acesso às teorias
que demarcam esse assunto, se entrosando mais e mais com o tema e com essa linguagem
que coloca em suspensão diariamente, a vida e o tempo.

O épico

O gênero épico, já mencionado algumas vezes


durante as explanações temáticas, é um gênero
mais objetivo que os demais. O mundo objetivo é
emancipado da subjetividade do narrador que não
exprimirá seu estado de alma, mas narrará o estado
de alma dos seres que povoam a obra. O narrador
épico participa da obra na medida em que está
sempre presente no ato de narrar, mesmo quando
os personagens dialogam é o narrador que indica as
ações e que lhes descreve as reações (por exemplo,
João disse, exclamou, gritou, etc). O narrador épico
deseja comunicar alguma coisa a alguém, e como o seu desejo de contar histórias não
envolve a expressão do seu estado de alma, ele possui o distanciamento necessário a fim
de tornar a sua narrativa objetiva.
O épico tem como característica o tratamento de “um vasto assunto”. Daí ocorrendo
a sua linguagem ser menos sintética do que os demais gêneros, e a menor utilização de
recursos sonoros e rítmicos, como por exemplo, na Lírica. Por este motivo também, o

27
narrador épico dispõe de tempo para contar a sua história com maior calma
e lucidez. O gênero épico é constituído por dois “horizontes”: o maior, ou do
narrador, e o menor, ou dos personagens, ambos de pleno conhecimento
do narrador a história já decorreu, o que vem a diferenciar, mais uma vez,
Introdução aos
este gênero da Lírica.
Estudos
Mesmo na narração em que o narrador conta uma estória acontecida
Literários a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte maior que o eu narrado e ainda
envolvido nos eventos, visto já conhecer o desfecho do caso.
A distância do narrador também o possibilita a não necessitar se metamorfosear
nos personagens dos quais narra os destinos; poderá imitá-los, fingir estar presente nos
acontecimentos, conhecer os sentimentos dos protagonistas, mas nunca se transforma neles.
Estará sempre mostrando, ou ilustrando, as ações dos personagens.
A epopéia e o poema épico, embora vistos como sinônimos, apresentam uma característica
curiosa: nem todo poema épico é, necessariamente, uma epopéia; entretanto, uma epopéia será
sempre um poema épico. Isto se explica pelo fato de que, quando um poema épico torna-se
representativo da história de um povo, torna-se, concomitantemente, uma epopéia. O poema
épico, contudo, não conseguiu se alçar à altura de se realizar como uma epopéia, ou como uma
lenda histórica de uma comunidade. Isto pode ocorrer tanto pela falta de criatividade, ou “engenho
e arte”, ou por estar concentrado em um recorte: um acontecimento secundário, historicamente,
como, por exemplo, Caramuru, O Uraguai, etc. As epopéias podem ser anônimas, ou de criação
coletiva, como, por exemplo, A Odisséia, Ilíada, A Canção de Rolando, El Cid, e a essas se
denomina de epopéia natural, folclórica ou primitiva. As epopéias de autoria conhecida como
Eneida e Os Lusíadas são denominadas de epopéia erudita ou artifical20.
O personagem central da epopéia, o herói representa o destino de uma comunidade,
e passa por uma série de provas ou aventuras das quais sairá consagrado pela comunidade.
O herói representa os valores éticos do povo ou nação a que a lenda se refere.
A epopéia, como gênero, encontra-se caracterizada por Bakthin por três traços: o
primeiro, pelo passado nacional épico, objeto da epopéia; o segundo, a lenda nacional,
e não a experiência pessoal, atua como fonte da epopéia; e o terceiro, é que o mundo
épico é o tempo do autor e dos ouvintes, distante.
O primeiro traço diz respeito ao passado nacional, isto é, ao mundo da origem da
história de uma nação, constituído pelo que houve de “primeiro” e de “melhor”. O tempo da
epopéia é sempre o passado, inacessível, que atua como referência e orientação para os
descendentes de uma nação, ou povo.
Qualquer que tenha sido a sua origem, a epopéia que chegou até nós é a forma de
um gênero acabado de maneira absoluta e muito perfeita, cujo traço constitutivo é a relação
do mundo por ela representado no passado absoluto das origens e dos fastígios nacionais.
O passado absoluto é uma categoria (hierarquia) de valores específicos. Para a visão do
mundo épico, o “começo”, o “primeiro”, o “fundador”, o “ancestral”, o “predecessor”, etc.,
não são apenas categorias temporais, mas igualmente axiológicas e temporais, este é o
grau superlativo axiológico-temporal que se realiza tanto pela atitude das pessoas, como
também pela atitude de todas as coisas e fenômenos do mundo épico: neste passado tudo
é bom, e tudo é essencialmente bom (o “primeiro”) unicamente neste passado. O passado
épico absoluto é a única fonte e origem de tudo que é bom para os tempos futuros. Assim
afirma a forma da epopéia.
A epopéia tem como objeto o tempo e, como única fonte, a lenda. Podemos afirmar,
portanto, que a força da epopéia reside na memória de um tempo remoto, inacessível, e

20 - MOISÉS, Massaud. Op. Cit.p. 188.


21 - BAKTHIN, Mikhail. Epos e Romance. In: Questões de Literatura e de Estética (Teoria do Romance).São Paulo: Unesp, 1998. p.407.

28
referencial para as futuras gerações de um grupo social, apresentando valores inquestionáveis
para este grupo. A tradição se apresenta como sagrada. Chamamos de “passado absoluto”
o tempo que não possui nenhuma ligação com o presente; é circular, perfeito, concluído.
A epopéia apóia-se numa lenda nacional; seu discurso é enunciado em forma de lenda. O
mundo épico é longínquo, distante e acabado, não deixando brechas para contestação, ou
avaliação, nisto residindo a sua perfeição. Por isso, exemplos clássicos de epopéia são A
Ilíada e A Odisséia.

O passado épico é uma forma particular de percepção literária do homem e do


acontecimento. Ela coincidia quase que completamente com a percepção literária e com
a representação em geral. A representação literária é uma forma “sub specie aeternitatis”.
Representar e imortalizar pelo discurso literário só é possível e viável para aquilo que é digno
de ser comemorado e mantido na memória dos descendentes; e é no plano antecipado de sua
longínqua memória que ele assume a forma. Para os seus contemporâneos, a atualidade (que
não virá a ser memória) é comemorada em argila, e aquela que visa o futuro (a posteridade)
é comemorada em mármore e bronze22.
De acordo com excerto acima, podemos inferir que as epopéias se constituem de fatos
notáveis para um dado grupo social na sua origem, e que por sua vez, irão se configurar em
uma lenda, ou uma representação literária, que, sobrevivendo na memória dos descendentes
do grupo será comemorada e valorizada de forma inquestionável pela comunidade.
A epopéia e o poema épico, embora vistos como sinônimos, apresentam uma
característica curiosa: nem todo poema épico é, necessariamente, uma epopéia; entretanto,
uma epopéia será sempre um poema épico. Isto se explica pelo fato que um poema épico
que torna-se representativo da história de um povo, torna-se uma epopéia. O poema épico,
contudo, não conseguiu se alçar à altura de se realizar como uma epopéia, ou como uma
lenda histórica de uma comunidade. Isto pode ocorrer tanto pela falta de criatividade, ou
“engenho e arte”, ou por estar concentrado em um recorte: um acontecimento secundário,
historicamente, como, por exemplo, Caramuru, O Uraguai, etc.
As epopéias podem ser anônimas, ou de criação coletiva, como, por exemplo, A
Odisséia, Ilíada, A Canção de Rolando, El Cid, e a essas se denomina de epopéia natural,
folclórica, ou primitiva. Às epopéias de autoria conhecida como Eneida e Os Lusíadas
denomina-se de epopéia erudita ou artifical23.
O personagem central da epopéia, o herói representa o destino de uma comunidade, e
passa por uma série de provas ou aventuras das quais sairá consagrado pela comunidade.
O herói representa os valores éticos do povo ou nação a que a lenda se refere.

22 - BAKTHIN, Mikhail. Op.cit. p. 410.


23 - MOISÉS, Massaud. Op. Cit.p. 188.

29
O Romance & o Conto

O gênero épico consiste em uma narrativa seqüenciada, na qual o agente


é o narrador, que possui o distanciamento necessário a fim de apresentar o
Introdução aos
mundo narrado de forma objetiva.
Estudos
O romance se constitui de uma narrativa longa, com vários personagens,
Literários e uma pluralidade de conflitos que se desdobram a partir da história do
narrador. O modelo da narrativa origina-se na oralidade, no contar de experiências individuais.
É herdeiro da epopéia clássica, no que pese ser uma forma “híbrida”, pois, como a épica, o
romance trata de um “vasto assunto”, e como na lírica, o narrador apresenta um ponto de
vista individual, diferindo do “heroi” da epopéia que representa um grupo social; também
possui a dialógica do drama através da polifonia de estruturas, e pode englobar outras
formas narrativas, como, por exemplo, o diário, vide Robinson Crusoé, que, segundo alguns
teóricos se apresenta como um divisor de águas neste gênero narrativo, por já manifestar
características de hibridismo; outros autores consideram Dom Quixote como precursor do
gênero por apresentar um questionamento de mundo.
No romance moderno, os valores coletivos anteriormente confirmados pelo herói épico
passam a ser questionados; o herói do romance é um sujeito perplexo diante do mundo
que vive, e que busca o sentido da vida, conforme explica Georg Lukács, em Teoria do
Romance. O herói do romance moderno busca valores; o herói da epopéia já os tinha,
apenas confirmava-os. O protagonista principal do romance, ou herói, é “problemático”, se
questiona e está dividido entre a vida interior e exterior; o narrador narra de acordo com a
sua perspectiva, como mostra o delírio de Dom Quixote no texto abaixo:
(...) é mister andar pelo mundo buscando as aventuras como escola prática, para
que, saindo com alguns feitos em limpo, se cobre nome e fama tal, que, quando depois, se
chegar à corte de algum grande monarca, já o cavaleiro seja conhecido por suas obras, e
que, apenas o houverem visto entrar pelas portas da cidade, os rapazes da rua o rodeiem
e acompanhem, vozeando entre vivas: “Este é o Cavaleiro do Sol”, ou da “Serpente”, ou de
outra qualquer insígnia, debaixo da qual houver acabado grandes façanhas.”Este é”, dirão, “o
que venceu em singular batalha o gigante Brocabruno da Grande Força; o que desencantou
o grande Mameluco da Pérsia do largo encantamento em que tinha permanecido quase
novecentos anos”; e assim de mão em mão irão pregoando os seus feitos; e logo, com o
alvoroto dos rapazes da rua, e de todo outro gentio, sairá às janelas do seu real palácio o
rei daquele reino; e assim que vir o cavaleiro, conhecendo-o pelas armas, ou pela empresa
do escudo, forçosamente há de dizer: “Eia! Sus! Saiam meus cavaleiros, quantos em minha
corte são, a receber a flor da cavalaria que ali vem;”24
O conto representa um momento de crise, no sentido que é o momento que “assinala
o encontro decisivo de forças em conflito”. O registro de histórias em forma de conto inicia-
se na França, no século XVII, com a transcrição dos contos chamados “fada”por Charles
Perrault, seguido por outros autores como os Irmãos Grimm e La Fontaine, culminando com
o conto moderno no século XX por Edgar Alan Poe. O conto é uma história condensada,
um momento de “crise”, que se caracteriza por “seqüestrar” o leitor pelo tempo da narrativa.
Recorta um episódio significativo que tem um efeito sobre o leitor, “seqüestrando-o”.

O Menino
Lygia Fagundes Telles

Sentou-se num tamborete, fincou os cotovelos nos joelhos, apoiou o queixo nas mãos e
ficou olhando para a mãe. Agora ela escovava os cabelos muito louros e curtos, puxando-os
24 - CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. São Paulo: Nova Cultural, 2003. p. 130.

30
para trás. E os anéis se estendiam molemente para em seguida voltarem à posição anterior,
formando uma coroa de caracóis sobre a testa. Deixou a escova, apanhou um frasco de
perfume, molhou as pontas dos dedos, passou-os nos lóbulos das orelhas, no vértice do decote
e em seguida umedeceu um lencinho de rendas. Através do espelho, olhou para o menino. Ele
sorriu também, era linda, linda, linda! Em todo o bairro não havia uma moça linda assim.
– Quantos anos você tem, mamãe?
– Ah, que pergunta! Acho que trinta ou trinta e um, por aí, meu amor, por aí... Quer se
perfumar também?
– Homem não bota perfume.
– Homem, homem! Ela inclinou-se para beijá-lo. – você é um nenenzinho, ouviu bem?
É o meu nenenzinho.
O menino afundou a cabeça no colo perfumado. Quando não havia ninguém olhando,
achava maravilhoso ser afagado como uma criancinha. Mas era preciso mesmo que não
houvesse ninguém por perto.
Agora vamos que a sessão começa às oito, avisou ela, retocando apressadamente
os lábios.
O menino deu um grito, montou no corrimão da escada e foi esperá-la embaixo. Da
porta, ouviu-a dizer à empregada que avisasse ao doutor que tinham ido ao cinema.
Na rua, ele andava pisando forte, o queixo erguido, os olhos acesos. Tão bom sair
de mãos dadas com a mãe. Melhor ainda quando o pai não ia junto porque assim ficava
sendo o cavalheiro dela. Quando crescesse haveria de casar com uma moça igual. Anita
não servia que Anita era sardenta. Nem Maria Inês com aqueles dentes saltados. Tinha que
ser igualzinha à mãe.
– Você acha a Maria Inês bonita, mamãe?
– É bonitinha, sim.
– Ah! tem dentão de elefante.
E o menino chutou um pedregulho. Não, tinha que ser assim como a mãe, igualzinha
à mãe. E com aquele perfume.
– Como é o nome do seu perfume?
–Vent Vert. Por quê, filho? Você acha bom?
– Que é que quer dizer isso?
–Vento Verde.
– Vento Verde, vento verde. Era bonito, mas existia vento verde? Vento não tinha cor,
só cheiro. Riu.
– Posso te contar uma anedota, mãe? Posso?
– Se for anedota limpa, pode.
– Não é limpa não.
– Então não quero saber.
– Mas por que, pô!?
– Eu já disse que não quero que você diga pô.
Ele chutou uma caixa de fósforos. Pisou-a em seguida.
– Olha mãe, a casa do Júlio...
Júlio conversava com alguns colegas no portão. O menino fez questão de cumprimentá-
los em voz alta para que todos voltassem e ficassem assim mudos, olhando. Vejam, esta
é minha mãe!, teve vontade de gritar-lhes. Nenhum de vocês tem uma mãe linda assim! E
lembrou-se deliciado que a mãe de Júlio era grandalhona e sem graça, sempre de chinelo
e consertando meia. Júlio devia estar agora roxo de inveja.
– Ele é bom aluno? Esse Júlio.
– Que nem eu.
– Então não é.

31
O menino deu uma risadinha.
– Que fita a gente vai ver?
– Não sei meu bem.
– Você não viu no jornal? Se for fita de amor, não quero! Você não viu
Introdução aos
no jornal, hein, mamãe?
Estudos
Ela não respondeu. Andava agora tão rapidamente que às vezes o
Literários menino precisava andar aos pulos para acompanhá-la. Quando chegaram
à porta do cinema, ele arfava. Mas tinha no rosto uma vermelhidão feliz.
A sala de espera estava vazia. Ela comprou os ingressos e em seguida, como se tivesse
perdido toda a pressa, ficou tranqüilamente encostada a uma coluna lendo o programa. O
menino deu-lhe um puxão na saia.
– Mãe, mas o que é que você está fazendo?! A sessão já começou, já entrou todo o
mundo, pô!
Ela inclinou-se para ele. Falou num tom muito suave, mas os lábios se apertavam
comprimindo as palavras e os olhos também tinham aquela expressão que o menino conhecia
muito bem: nunca se exaltava, nunca elevava a voz. Mas ele sabia que quando ela falava
assim, nem súplicas nem lágrimas conseguiam fazê-la voltar atrás.
– Sei que já começou, mas não vamos entrar agora, ouviu? Não vamos entrar
agora, espera.
O menino enfiou as mãos nos bolsos e enterrou o queixo no peito. Lançou à mãe um
olhar sombrio. Por que é que não entravam logo? Tinham corrido feito dois loucos e agora
aquela calma, espera. Esperar o que, pô?!...
– É que a gente já está atrasado, mãe.
– Vá ali no balcão comprar chocolate ordenou ela, entregando-lhe uma nota
nervosamente amarfanhada.
Ele atravessou a sala num andar arrastado, chutando as pontas de cigarro pela frente.
Ora, chocolate. Quem é que quer chocolate? E se o enredo fosse de crime, quem é que
ia entender chegando assim começado? Sem nenhum entusiasmo, pediu um tablete de
chocolate. Vacilou um instante e pediu em seguida um tubo de drágeas de limão e um pacote
de caramelos de leite, pronto, também gastava à beca. Recebeu o troco de cara fechada.
Ouviu então os passos apressados da mãe que lhe estendeu a mão com impaciência:
– Vamos, meu bem, vamos entrar.
Num salto, o menino pôs-se ao lado dela. Apertou-lhe a mão freneticamente.
– Depressa que a fita já começou, não está ouvindo a música?
Na escuridão, ficaram por um instante parados, envolvidos por um grupo de pessoas,
algumas entrando, outras saindo. Foi quando ela resolveu.
– Venha vindo atrás de mim.
Os olhos do menino devassavam a penumbra. Apontou para duas poltronas vazias.
– Lá, mãezinha, lá tem duas, vamos lá!
Ela olhava para um lado, para outro, e não se decidia.
– Mãe, aqui tem mais duas, está vendo? Aqui não está bom? insistiu ele, puxando-a elo
braço. E olhava aflito para a tela, e olhava de novo para as poltronas vazias que apareciam
aqui e ali como coágulos de sombra. Lá tem mais duas, está vendo?
Ela adiantou-se até as primeiras filas e voltou em seguida até o meio do corredor.
Vacilou ainda um momento. E decidiu-se. Impeliu-o suave, mas resolutamente.
– Entre aí.
Licença? Licença? ... ele foi pedindo. Sentou-se na primeira poltrona desocupada que
encontrou, ao lado de uma outra desocupada também. Aqui, não é, mãe?
– Não, meu bem, ali adiante murmurou ela, fazendo-o levantar-se. Indicou os três
lugares vagos quase no fim da fileira. Lá é melhor.

32
Ele resmungou, pediu “licença, licença?”, e deixou-se cair pesadamente no primeiro
dos três lugares. Ela sentou-se em seguida.
– Ih, é fita de amor, pô!
– Quieto, sim?
O menino pôs-se na beirada da poltrona. Esticou o pescoço, olhou para a direita, para
a esquerda, remexeu-se:
– Essa bruta cabeçona aí na frente!
– Quieto, já disse!
– Mas é que não estou enxergando direito, mãe! Troca comigo que não estou enxergando!
Ela apertou-lhe o braço. Esse gesto ele conhecia bem e significava apenas: não insista!
– Mas, mãe...
Inclinando-se até ele, ela falou-lhe baixinho, naquele tom perigoso, meio entre os dentes
e que era usado quando estava no auge: um tom tão macio que quem a ouvisse julgaria que
ela lhe fazia um elogio. Mas ele sabia o que havia debaixo daquela maciez.
– Não quero que mude de lugar, está me escutando? Não quero. E não insista mais.
Contendo-se para não dar um forte pontapé na poltrona da frente, ele enrolou o pulôver
como uma bola e sentou-se em cima. Gemeu. Mas por que aquilo tudo? Por que a mãe lhe
falava daquele jeito, por quê? Não fizera nada de mal, só queria mudar de lugar, só isso... Não,
desta vez ela não estava sendo nem um pouquinho camarada. Voltou-se então para lembrar-
lhe que estava chegando muita gente, se não mudasse de lugar imediatamente, depois não
poderá mais porque aquele era o último lugar vago que restava, “olha aí, mamãe, acho que
aquele homem vem pra cá!” Veio. Veio e sentou-se na poltrona vazia ao lado dela.
O menino gemeu, “ai! Meu Deus...”Pronto. Agora é que não haveria mesmo nenhuma
esperança. E aqueles dois enjoados lá na fita numa conversa comprida que não acabava mais, ela
vestida de enfermeira, ele de soldado, mas por que o tipo não ia pra guerra, pô!... E a cabeçona
da mulher na sua frente indo e vindo para a esquerda, para a direita, os cabelos armados a
flutuarem na tela como teias monstruosas de uma aranha. Um punhado de fios formava um
frouxo topete que chegava até o queixo da artista. O menino deu uma gargalhada.
– Mãe, daqui eu vejo a mocinha de cavanhaque!
– Não faça assim, filho, a fita é triste... Olha, presta atenção, agora ele vai ter que fugir
com outro nome... O padre vai arrumar o passaporte.
– Mas por que ele não vai pra guerra duma vez?
– Porque ele é contra a guerra, filho, ele não quer matar ninguém sussurrou-lhe a mãe
num tom meigo. Devia estar sorrindo e ele sorriu também, ah! que bom, a mãe não estava
mais nervosa, não estava mais nervosa! As coisas começavam a melhorar e para maior
alegria, a mulher da poltrona da frente levantou-se e saiu. Diante dos seus olhos apareceu
o retângulo inteiro da tela.
– Agora sim! disse baixinho, desembrulhando o tablete de chocolate. Meteu-o inteiro
na boca e tirou os caramelos do bolso para oferece-los à mãe. Então viu: a mão pequena
e branca, muito branca, deslizou pelo braço da poltrona e pousou devagarinho nos joelhos
do homem que acabara de chegar.
O menino continuou olhando, imóvel. Pasmado. Por que a mãe fazia aquilo?! Ficou
olhando sem nenhum pensamento, nenhum gesto. Foi então que as mãos grandes e morenas
do homem tomaram avidamente a mão pequena e branca. Apertaram-na com tanta força
que pareciam querer esmagá-la.
O menino estremece. Sentiu o coração bater descompassado, bater como só batera
naquele dia na fazenda, quando teve de correr como louco, perseguido de perto por um
touro. O susto ressecou-lhe a boca. O chocolate foi-se transformando numa massa viscosa
e amarga. Engoliu-o com esforço, como se fosse uma bola de papel. Redondos e estáticos,
os olhos cravaram-se na tela. Moviam-se as imagens sem sentido num sonho fragmentado.

33
Os letreiros dançavam e se fundiam pesadamente, como chumbo derretido.
Mas o menino continuava imóvel, olhando obstinadamente. Um bar em
Tóquio, brigas, a fuga do moço de capa perseguido pela sereia da polícia,
mais brigas numa esquina, tiros. A mão pequena e branca a deslizar no
Introdução aos
escuro como um bicho. Torturas e gritos nos corredores paralelos da prisão,
Estudos
os homens agarrando as portas de grade, mais conspirações. Mais homens.
Literários A mão pequena e branca. A fuga, os faróis na noite, os gritos, mais tiros,
tiros. O carro derrapando sem freios. Tiros. Espantosamente nítido em meio do fervilhar
de sons e falas e ele não queira, não queria ouvir! O ciciar delicado dos dois num diálogo
entre os dentes.
Antes de terminar a sessão, mas isso não acaba mais, não acaba? , ele sentiu, mais do
que sentiu, adivinhou a mão pequena e branca desprender-se das mãos morenas. E, do mesmo
modo manso como avançara, recuar deslizando pela poltrona e voltar a se unir à mão que
ficara descansando no regaço. Ali ficaram entrelaçadas e quietas como estiveram antes.
– Está gostando, meu bem? perguntou ela, inclinando-se para o menino.
– Ele fez que sim com a cabeça, os olhos duramente fixos na cena final. Abriu a boca
quando o moço também abriu a sua para beijar a enfermeira. Apertou os olhos, enquanto
durou o beijo. Então o homem levantou-se embuçado na mesma escuridão em que chegara.
O menino retesou-se, os maxilares contraídos, trêmulo. Fechou os punhos. “Eu pulo no
pescoço dele, eu esgano ele!”
O olhar desvairado estava agora nas espáduas largas interceptando a tela como um
muro negro. Por um brevíssimo instante ficaram paradas em sua frente. Próximas, tão
próximas. Sentiu a perna musculosa do homem roçar no seu joelho, esgueirando-se rápida.
Aquele contato foi como ponta de um alfinete num balão de ar. O menino foi-se descontraindo.
Encolheu-se murcho no fundo da poltrona e pendeu a cabeça para o peito.
Quando as luzes se acenderam, teve um olhar para a poltrona vazia. Olhou para a
mãe. Ela sorria com aquela mesma expressão que tivera diante do espelho, enquanto se
perfumava. Estava corada, brilhante.
– Vamos, filhote?
Estremeceu quando a mão dela pousou no seu ombro. Sentiu-lhe o perfume. E voltou
depressa a cabeça para o outro lado, a cara pálida, a boca apertada como se fosse cuspir.
Engoliu penosamente. De assalto, a mão dela agarrou a sua. Sentiu-a quente, macia.
Endureceu a ponta dos dedos, retesado: queria cravar as unhas naquela carne.
– Ah, não que mais andar de mãos dadas comigo? Hein, filhote?
Ele inclinara-se, demorando mais do que o necessário para dobrar a barra da calça
rancheira.
– É que não sou mais criança.
– Ah, o nenenzinho cresceu? Cresceu? Ela riu baixinho. Beijou-lhe o rosto. Não anda
mais de mão dada?
– O menino esfregou as pontas dos dedos na umidade dos beijos no queixo, na orelha.
Limpou as marcas com a mesma expressão com que limpava as mãos nos fundilhos da
calça quando cortava as minhocas para o anzol.
Na caminhada de volta, ela falou sem parar, comentando excitada o enredo do filme.
Explicando. Ele respondia por monossílabos.
– Mas que é que tem, filho? Ficou mudo...
– Está me doendo o dente.
– Outra vez? Quer dizer que fugiu do dentista? Você tinha hora ontem, não tinha?
Ele botou uma massa. Está doendo murmurou, inclinando-se para apanhar uma folha
seca. Triturou-a no fundo do bolso. E respirou abrindo a boca. Como dói, pô. Assim que
chegarmos você toma uma aspirina. Mas não diga, por favor, essa palavrinha que detesto.

34
– Não digo mais.
Diante da casa de Júlio, instintivamente ele retardou o passo. Teve um olhar para a
janela acesa. Vislumbrou uma sombra disforme passar através da cortina.
– Dona Margarida.
– Hum?
– A mãe do Júlio.
Quando entraram na sala, o pai estava sentado na cadeira de balanço, lendo o jornal.
Como todas as noites, como todas as noites. O menino estacou na porta. A certeza de
que alguma coisa terrível ia acontecer paralisou-o atônito, obumbrado. O olhar em pânico
procurou as mãos do pai.
– Então, meu amor, lendo o seu jornalzinho? – perguntou ela, beijando o homem na
face. Mas a luz não está muito fraca?
– A lâmpada maior queimou, liguei essa por enquanto, disse ele, tomando a mão da
mulher. Beijou-a demoradamente. Tudo bem?
– Tudo bem.
O menino mordeu o lábio até sentir gosto de sangue na boca. Como nas outras
noites, igual. Igual.
– Então, filho? Gostou da fita? Perguntou o pai, dobrando o jornal. Estendeu a mão ao menino
e com a outra começou a acariciar o braço nu da mulher. Pela sua cara, desconfio que não.
– Gostei, sim.
– Ah, confessa, filhote, você detestou, não foi? Contestou ela. Nem eu entendi direito,
uma complicação dos diabos, espionagem, guerra, máfia... Você não podia ter entendido.
– Entendi. Entendi tudo! – Ele quis gritar e a voz saiu num sopro tão débil que só ele ouviu.
– E ainda com dor de dente! – Acrescentou ela, desprendendo-se do homem e subindo
a escada. Ah, já ia esquecendo a aspirina!
O menino voltou para a escada os olhos cheios de lágrimas.
– Que é isso? Estranhou o pai. – Parece até que você viu assombração. Que foi?
O menino encarou-o demoradamente. Aquele era o pai. O pai. Os cabelos grisalhos.
Os óculos pesados. O rosto feio e bom.
– Pai... murmurou, aproximando-se. E repetiu num fio de voz: Pai...
– Mas meu filho, que aconteceu? Vamos, diga!
– Nada. Nada.
Fechou os olhos para prender as lágrimas. Envolveu o pai num apertado abraço.

O trágico

Assim como na Lírica, em que não há oposição


entre o sujeito e objeto, no gênero Dramático
também este aspecto se faz característico.
Entretanto, enquanto na Lírica o mundo é
subjetivado, ou seja, o poeta “abarca” o mundo, no
gênero Dramático se dá o contrário: o mundo não
se encontra relativizado pelo sujeito, independe
do poeta. Neste gênero podemos dizer que o
narrador, comum no gênero épico, é absorvido
pelos personagens tanto quanto o “eu” da lírica.

35
Tratando-se de gêneros literários, Anatol Rosenfeld25 , autor aqui escolhido
como referência, diverge da concepção hegeliana a respeito do Drama, entre
outros aspectos, devido ao fato de Hegel colocar o gênero Dramático como uma
síntese dos outros gêneros, e estabelecer uma hierarquia em que este gênero seria
Introdução aos
superior ao Lírico e ao Épico. Rosenfeld, por sua vez, não advoga a superioridade
Estudos
de nenhum gênero e os classifica de acordo com a relação do mundo imaginário
Literários para com o “autor”, sujeito fictício de quem emana o texto literário.
Ainda segundo Rosenfeld, na Lírica, o mundo é conteúdo do “eu lírico”, enquanto que
na Épica, embora o narrador se encontre afastado do mundo objetivo ainda se encontra
presente, situado como um mediador deste mundo. No gênero dramático não existe quem
apresente os acontecimentos como nos gêneros anteriormente citados; os acontecimentos se
apresentam como fato, sem a interferência de mediador, daí resultando a força deste gênero.
Os personagens se manifestam sem dialogar com o “autor” – se apresentam, simplesmente,
em cenários que se tornam ambiente, e com atores que desaparecem para dar lugar aos
personagens. No gênero Dramático não há um narrador nem oposição entre sujeito e objeto.
Os fatos se apresentam sem mediador.
Associada à noção de Drama
encontra-se a Tragédia, já mencionada
aqui quando falamos de Aristóteles e a
concepção de verossimilhança. A Tragédia
consistiria em imitação de ações sérias e
praticadas por indivíduos de uma classe
elevada, idéia que permaneceu até o
século XVIII, quando, inspirados pela
Revolução Industrial, instituiu-se o drama
burguês. A tragédia clássica apresentava a
seguinte estrutura: o prólogo, em forma de
diálogo; o “párodo” ou entrada do coro; os
episódios, em número de três; e o êxodo,
ou desfecho da peça. Durante os séculos
seguintes, o Drama passou por diversas modificações e, finalmente, a partir do século XIX
passou a apresentar três atos. Ou seja, tudo o que retardava a ação foi, gradativamente,
removido. A Tragédia, na contemporaneidade, não é mais encenada com as suas características
originais, e, segundo especialistas, só se pode rotulá-la como tal em algumas obras de Henrik
Ibsen, ou em algumas peças características do Teatro do Absurdo.
A Comédia, oriunda também da Tragédia, era considerada uma forma “menor” de
entretenimento. Na Grécia clássica, a comédia se desenvolveu em três fases diferentes, de
acordo com o assunto abordado: a “comédia antiga” dizia respeito aos assuntos políticos ou
sociais; a “comédia mediana” tratava de mitologia, ou de assuntos literários; e finalmente, a
“comédia nova” que discorria sobre temas amorosos como a paixão.
O Drama obedece a uma hierarquia estabelecida de acordo com a classe social dos
indivíduos representados nas peças: classe alta, Tragédia; classe inferior, Comédia. O teatro
“cômico” se consagrou a partir da Renascença, inaugurando uma nova era para o Drama
com Gil Vicente (Portugal), Calderon de La Barca (Espanha), Shakespeare (Inglaterra),
Moliére (França), entre outros.
As situações apresentadas na Comédia e na Tragédia se distinguem pelas ações dos
indivíduos: enquanto na tragédia os indivíduos, pertencentes à aristocracia ou à uma classe
privilegiada, eram movidos por temas de acordo com a sua esfera de ação, na Comédia

25 - ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985.

36
essas ações estavam circunscritas à cenas cotidianas, próximas à gente vulgar, comuns
aos indivíduos de classes “inferiores”.
Um dos traços mais marcantes da Dramática é o fato de seu autor não “aparecer” na
obra, confundindo-se muitas vezes com os personagens ou com o próprio texto. Isto, porém,
incorre em algumas exigências a fim de que o seu desenvolvimento ocorra de forma adequada,
como, por exemplo, o recorte dado ao tema. Uma vez que não existe a intermediação do
narrador que inicie um “desenrolar” de um enredo, faz-se necessário que a peça se inicie já
dentro de um contexto, histórico. No Drama a ação se desenrola no presente, no “agora”,
não havendo um narrador que a situe no tempo, nem que a faça tornar ao passado, muito
menos ao futuro. O tempo da ação é sempre o presente, e o futuro desconhecido. A evocação
do passado só pode ser realizada através dos diálogos travados pelos personagens, já que
o tempo no Drama é linear e sucessivo, como na realidade.
A ação dramática acontece agora e não aconteceu no passado, mesmo quando se
trata de um drama histórico. Lessing, na sua Dramaturgia de Hamburgo (11o capítulo), diz
com acerto que o dramaturgo não é um historiador; ele não relata o que se acredita haver
acontecido, mas faz com que aconteça novamente perante os nossos olhos. Mesmo o
novamente é demais. Pois a ação dramática, na sua expressão mais pura, se apresenta
sempre “pela primeira vez”. Não é a representação secundária de algo primário. Origina-se,
cada vez, em cada representação, “pela primeira vez”; não acontece “novamente” o que já
aconteceu, mas, o que acontece, acontece agora, tem a sua origem agora; a ação é “original”,
cada réplica nasce agora, não é citação ou variação de algo dito há muito tempo.26
Na ação dramática a catarse é gerada pela verossimilhança, cuja ocorrência se dá pelo
funcionamento da peça, que, como um organismo, todas as partes interagem dinamicamente
e são determinadas pelo todo. As funções de coro, prólogo e epílogo no contexto do drama
se manifestam como uma intervenção do autor, no sentido que deslocam cenas e sugerem
um mediador, insinuando uma função lírico-narrativa. Na ausência de um narrador, a ação se
realiza pelo diálogo; Rosenfeld aponta para o fato que o diálogo constitui a Dramática como
literatura e como teatro declamado (apartes e monólogos não afetam a situação essencialmente
dialógica)27 . Os diálogos representam a tensão suscitada pelo entrechoque de vontades que
caracterizam o conflito, afirmando o seu caráter dialético como propulsor da afirmação e réplica
através dos choques de intenção. Caracterizando a função lingüística dos gêneros literários,
Rosenfeld racionaliza que se o pronome da Lírica é o “eu”, e o do Épico, “ele”, o do Drama seria
o “tu” ou “vós”. Portanto, a sua linguagem, preponderante, seria “apelativa”, diferentemente da
expressiva e comunicativa da Lírica e da épica, respectivamente.
Por não possuir um mediador que componha, descrevendo, seus personagens em seus
aspectos físicos nem psicológicos, nem tampouco o ambiente que a peça se situa, o texto dramático
necessita de um palco, ou local que o complete cenicamente. As representações visuais, as rubricas,
a coreografia, a música e a pantomima assumem as funções do narrador, situando a platéia acerca
do contexto da peça e seus personagens. O paradoxo da literatura dramática é que ela não se
contenta em ser literatura, já que, sendo “incompleta”, exige a complementação cênica.
O teatro como representação, portanto, depende fortemente de um público presente,
mesmo quando o ato de representar aparentemente não se dirija a ninguém presente. Na
realidade, na maioria das vezes, a platéia inexiste para os personagens. Os atores sabem
da existência do público, porém, desempenham os seus papéis como se ignorassem a
platéia, porque estão metamorfoseados em seus personagens. É importante ressaltar que as
observações aqui realizadas dizem respeito ao Drama “puro”, ou peças “fechadas”; quanto
mais distante a obra dramática se situar da Dramática “pura”, mais se aproximarão do que
chamamos de épica, ou lírica-épicas, ou “abertas”.
26 - ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985.p.31.
27 - Op. Cit. p.34.

37
Bakhtin em seu Epos e Romance

Depois de termos visto a questão dos gêneros literários e a especificidade


Introdução aos de cada um deles, veremos agora um pouco do seu hibridismo, ou seja, como
Estudos cada gênero não funciona de forma totalizante e encerrada em si mesma. Pensar
Literários o épico como uma narrativa permeada de fatos heróicos não nos impede de
encontrar em sua estrutura alguns lances que, possivelmente, podem soar
trágicos ou que contenham um lirismo intenso. O que é preciso perceber é o que predomina em
cada gênero, percebendo sua escrita, sua estrutura, a forma como se é contada a história, para,
daí, tirar as inferências sobre se tal história seria épica, trágica ou um poema lírico.
No texto a seguir, a autora trabalha com alguns pensamentos
de M. Bakhtin, refletindo sobre o nascimento do romance a partir
da épica e suas transformações. Para Bakhtin, o romance é
um gênero que se constitui em forma de expressão inacabada,
apresentando um ciclo contínuo do homem. Em seus estudos, o
autor aborda o romance como “gênero que está por se constituir,
levando-se em conta o processo de evolução de toda a literatura
nos tempos modernos...” (1988, p. 403). Assim, desenvolve uma
análise comparativa entre o romance e a epopéia e, a partir daí, vê
esta última como forma de expressão da memória e o romance como forma de conhecimento,
já que nele o herói passa por um processo de conhecimento de si mesmo no momento atual,
no contato com as pessoas da época e suas opiniões, revelando-se como uma quebra da
representação do mundo do modo fechado e definido do épico.

Vamos a algumas reflexões propostas pelo texto que segue abaixo:

A TEORIA DO ROMANCE E A ANÁLISE ESTÉTICO-CULTURAL DE M. BAKHTIN

Irene A. Machado (professora da PUC-SP e autora de Analogia do dissimilar


(Editora Perspectiva)

(...)
Considerando que o processo de interação dialógica, desenvolvido nas diversas esferas
da atividade humana, gera infinitas modalidades comunicativas, são igualmente infinitas
as espécies de gêneros discursivos que Bakhtin reuniu. Dentre esta variedade de gêneros
discursivos, destacam-se os gêneros do discurso literário, mais especificamente a prosa
romanesca. É nesta modalidade de discurso que Bakhtin vai encontrar elementos concretos
para a explicitação da forma significante, a que aludira no ensaio anterior, pois acreditava
que nos gêneros do discurso literário se acumulam, durante séculos, formas de compreensão
de determinados aspectos do mundo, cujos sentidos explicitam o caráter de uma época e
seu desdobramento futuro. E, segundo Bakhtin, o único gênero que soube representar toda
a dinâmica desse grande tempo foi o romance. Suas reflexões sobre o romance estão de
tal modo tomadas pela preocupação de desvelar, na forma enunciativa, o dimensionamento
ideológico, que se tornaram um verdadeiro manifesto sobre a cultura de nossa era. Bakhtin
empreende uma leitura entusiástica e apaixonada do romance, pois entende ser ele não só a
síntese das representações culturais formadas ao longo do tempo, como também um embrião
de procedimentos para composições futuras. O romance é um gênero que, ao debruçar-se
sobre o presente, descobre um tempo que não é o seu. Este diálogo transtemporal estimula
o fascínio de Bakhtin e o leva a elaborar uma das mais notáveis teorias do romance, cujos
pontos principais se concentram neste ensaio.

38
A idéia central desta teoria é a noção de romance como um gênero em devir. Além de
desestabilizar a clássica teoria dos gêneros poéticos, assentada sobre formações precisas
e estruturas canônicas, esta concepção de Bakhtin polemiza com algumas tendências
atuais que entendem o romance como um gênero que viveu a plenitude de suas formas no
século XIX, encontrando-se definitivamente morto neste século. Bakhtin não compactua
com esta tendência e considera o inacabamento da estrutura composicional do romance
o traço maior de sua poeticidade. Daí a inoperância da estilística tradicional na apreensão
deste tipo de formação poética. O estilo do romance é antes uma combinação de estilos
agenciados, sobretudo, pela diversidade social de linguagens que organizam artisticamente
sua composição, dificultando, assim, a consolidação de uma estrutura canônica, premissa
elementar dos gêneros poéticos. Aliás, a verdadeira premissa da prosa romanesca é,
para Bakhtin, a estratificação interna da linguagem, que torna o romance um fenômeno
pluriestilístico, plurilíngüe e plurivocal. É por estas vias que Bakhtin envereda no sentido de
apreender os níveis de poeticidade da palavra no romance.
Bakhtin reconhece que o romance trouxe um dilema para a estilística e filosofia do
discurso, colocadas, assim, diante de um impasse: ou reconheciam o romance e a prosa
literária que gravita em torno dele como gêneros não-literários, ou seriam obrigadas a rever
de maneira radical a concepção de discurso poético. Bakhtin parte exatamente de uma
revisão da noção de gênero, pois entende que a poeticidade do discurso literário, depois
do surgimento do romance, não podia ser pensada fora do contexto da dialogia interna da
linguagem. A dialogia supera o símbolo poético do tropo e torna-se, conseqüentemente, o
traço distintivo deste discurso a que Bakhtin chama prosa poética. Um discurso moldado
pelo arranjo de vozes através das quais ressoa a voz do poeta prosador. O discurso poético
assim concebido não é mais emanação de um ‘Eu lírico’ individual e soberano, que oculta
a vida plena de dialogia em que o poeta vive.
É importante ressaltar que ao eleger o romance como um discurso poético privilegiado,
Bakhtin não depõe contra a poesia (poema), nem a nega enquanto discurso, como pode parecer à
primeira vista. O problema é que Bakhtin opera com um aspecto não-previsto pela clássica teoria
dos gêneros poéticos. Tornar a dialogia da prosa como um traço distintivo do discurso poético
significa reverter totalmente as regras do gênero. Para Bakhtin, o poema que exclui a interação
entre discursos e em que o poeta não acede ao pensamento de outrem não é poesia. Poesia
é manifestação de uma consciência poética que vê, imagina e compreende o mundo, não com
os olhos de sua linguagem individual, mas com os olhos de outrem. Por isso, a linguagem dos
gêneros poéticos canonizados é, para Bakhtin, autoritária, dogmática, conservadora.
Tudo isso levou Bakhtin a considerar a poesia como um discurso monológico, a temer
a linguagem única da poesia e a condenar com veemência o conceito de linguagem poética
defendido pelos poetas simbolistas (Balmont, Ivanov), pelos futuristas (V. Khliébnikov) e
se tornado a chave do formalismo russo. Devemos esclarecer, contudo, que pelo menos
no que se refere a Khliébnikov, o temor de Bakhtin não procede, visto que a poesia zaúm
assumiu a poeticidade articulada na (in)tensa vivência da palavra no contexto dinâmico da
língua e num universo pluralista de linguagens. Embora este exercício de linguagem tenha
escapado a Bakhtin, ele não deixou de perceber a riqueza dialógica do discurso poético de
Horácio, Villon, Heine, Laforgue, Ânienski e de Púchkin, de quem analisa alguns fragmentos
do notável Evguiênin Oniêguin. Estas poucas páginas, que ocupam dois capítulos do ensaio
sobre o discurso no romance (pp. 85-133), merecem uma leitura particular daqueles que
desejam entender o conceito de poesia que Bakhtin tinha em mente ao se propor estudar a
poética da prosa romanesca (...)
A romancização, o metacriticismo e o drama da evolução literária
Quando Bakhtin atribui ao romance a característica de gênero em devir, seu objetivo
principal é apresentar uma estrutura poética cujas possibilidades plásticas ainda não foram

39
totalmente exploradas. Quer dizer, o romance é um gênero novo, constituído
a partir das línguas vivas e das novas formas de recepção advindas da
escrita e do livro. Este dado novo provoca o interesse de Bakhtin pelas
relações entre a épica e o romance, com objetivo de delimitar com maior
Introdução aos
rigor a “metodologia do estudo do romance”, preocupação central do ensaio
Estudos
“Epos e romance”, escrito em 1941 (pp. 397-428).
Literários Operando contra o pano de fundo da épica, Bakhtin observa que o
romance não é um gênero entre outros, mas o único que está evoluindo em meio a outros
gêneros já consolidados (p. 398). Sua convivência com estes gêneros é, contudo, conflituosa,
não há harmonia; pelo contrário, o romance serve-se da paródia para denunciar os graus
de convencionalidade das composições estáveis, reinterpretá-las e até mesmo eliminá-las.
O romance, enfim, põe em crise o próprio conceito de gênero como formação estável e se
apresenta como antigênero, um metagênero, em desacordo com normas e cânones; reconhece
a arbitrariedade e convencionalidade de todas as formas, inclusive de si próprio.
Este olhar corrosivo e ao mesmo tempo criativo, que o romance dirige aos outros gêneros,
prefigura a performance do romance na História literária. O romance, quando surge, romanciza
os outros gêneros. Romancizar não significa, contudo, subjugar para mais facilmente impor um
cânone estranho aos dominados, pois o próprio romance está privado deste cânone. Trata-se
de liberá-los (os gêneros subjugados) de tudo o que é convencional, necrosado, empolado
e amorfo, impedindo sua evolução (p. 427). O fenômeno da romancização, apontado por
Bakhtin, não é apenas uma implicação direta do caráter paródico que reina na estrutura
interna do romance; é sintoma das alterações e, conseqüentemente, da reordenação dos
fenômenos literários dentro de um novo quadro num determinado momento do processo
evolutivo. Ou seja, quando o romance se estabelece como gênero predominante, toda a
literatura é afetada por uma espécie de criticismo de gêneros. Esta revisão de posições ante
um novo quadro é que permite a reformulação dos constituintes dos gêneros poéticos.
(...) “O romance tornou-se o principal personagem do drama da evolução literária na
era moderna precisamente porque, melhor do que todos, é ele que expressa as tendências
evolutivas do novo mundo; ele é, por isso, o único gênero nascido naquele mundo e em tudo
semelhante a ele” (p. 400). Na verdade, todas estas propriedades do romance estudadas
por Bakhtin ainda não tiveram, a meu ver, a devida acolhida nos estudos literários, que não
contam com um instrumental teórico para tratar de formações inacabadas e em evolução.
(...)Colocando o romance na perspectiva da épica, Bakhtin procura valorizar aqueles
aspectos que ficam fora de qualquer comparação. Por exemplo, enquanto a épica -¬ a mais
sublime expressão dos gêneros elevados - só se dignificou ao representar o passado épico
único, distante e glorioso, o romance se alimenta do presente vulgar, instável, transitório.
É isso que o situa na perspectiva direta dos gêneros inferiores, as sátiras populares, que
fizeram da instabilidade do presente e do sujeito que nele vive o objeto de sua representação.
O gênero sério-cômico torna-se, para Bakhtin, a primeira etapa da evolução do romance
enquanto gênero em devir, em prejuízo, inclusive, da épica. É nas representações burlescas
que a atualidade entra pela primeira vez como objeto de representação literária. “Quando o
presente se torna o centro da orientação humana no tempo e no mundo”, estes “perdem seu
caráter acabado”. “O tempo e o mundo tornam-se históricos” (p. 419). O tema do herói que
tudo vence perde, assim, terreno no romance, cujos temas gravitam em torno da inadequação
do homem ao seu destino; o personagem, ao invés de glorioso e invencível, é um ideólogo em
potencial, como já foi referido anteriormente. E o que é mais importante: a épica não suscita
nenhum questionamento, ao passo que o romance, travestido de Sherazade, “especula sobre
categorias da ignorância”, mantendo aceso o interesse pelo que vem depois. As respostas
adiadas são perguntas em formação nem sempre resolvidas no final.

40
BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto


de François Rabelais (tradução de Yara Frateschi Vieira). São Paulo, Hucitec; Brasília,
Ed. da Universidade de Brasília, 1987.
_________. “Arte y responsabilidad”. In Estética de la creación verbal (tradução
de Tatiana Bubnova). México: Siglo Veintiuno, 1982.
_________. Problemas da poética de Dostoiévski (tradução de Paulo Bezerra).
Rio de Janeiro: Forense- Universitária, 1981.
_________. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (tradução de
Aurora F. Bernardini e outros). São Paulo: Hucitec e Fund. para o Desenv. da Unesp, 1988.

Este texto foi retirado do site de pesquisa:


http://www.usp.br/revistausp/n5/fmachadotexto.html

Neste texto, tivemos um breve contato sobre a forma bakhtiniana de pensar os


gêneros literários. A proposta de Bakhtin pode ser uma tendência dentro da perspectiva
contemporânea, quando se pretende pensar em teorias que não se aplicam de forma
vasoconstritora e que propõem um diálogo com desdobramentos outros de formas de narrar
que se mantém extremamente fluidas. Para tanto, é necessário o conhecimento acerca das
teorias que ele coloca em diálogo, assim como o entendimento de que, o que ele propõe,
antes de tentar romper com alguma reflexão feita anteriormente, seria mais uma tentativa
de compreender as teorias que vêm junto com seu tempo. Ele sugere, assim, uma leitura
do passado a partir do presente. Reconhece os formatos antigos e propõe um outro olhar
sobre as mudanças que esse ‘antigo’ sofrera.

Atividades
Complementares
Após termos estudado a teoria dos gêneros literários neste bloco, escolha um gênero e tente
refletir sobre seu desdobramento na atualidade. Para efetivar essa reflexão, cite exemplos que
demonstrem, com as respectivas marcas textuais, a situação que você pretende insinuar acerca
deste gênero, como um processo de desdobramento e/ou transfiguração. Você pode, ao escolher
a lírica, traçar um breve comentário sobre como a lírica se configurava e como poderia ser visto,
hoje, um poema concretista como uma continuidade da lírica clássica na contemporaneidade.

41
EM TEMPO:
OUTRAS QUESTÕES
Introdução aos
Estudos LITERÁRIAS
Literários

QUEM NARRA AQUI

Walter Benjamin: O narrador

De acordo com Walter Benjamin28 , as figuras arcaicas de narradores estão representados


por dois grupos: o marinheiro comerciante e o camponês sedentário, que transmitiam suas
diferentes experiências: de viagens e mundos desconhecidos pelo marinheiro comerciante,
e a vivência da terra pelo narrador sedentário, o camponês. Com o surgimento das oficinas
na Idade Média, os dois grupos se fundiram trocando histórias e experiências narradas ao
longo da jornada de trabalho passada nas oficinas.
O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina;
cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no
estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar,
foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das
terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido
pelo trabalhador sedentário.29
Walter Benjamin, no texto O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov
enfatiza a importância da troca de experiências nas narrativas de tradição oral, nas quais
a palavra do narrador aglutinava e transmitia valores sociais e morais ao(s) ouvinte(s). Ao
narrar a experiência sua ou alheia a figura do narrador se confundia com o próprio discurso.
A riqueza em sabedoria manifestada nessas narrativas foi se apagando ao longo do tempo,
à medida que o indivíduo se distanciou de valores coletivos, e passou a buscar respostas
particulares, isoladas. Destituído dos antigos pactos sociais, o narrador clássico desapareceu,
dando lugar ao romancista questionador, perplexo, desorientado.
Vamos ler alguns trechos do texto O narrador, de Walter Benjamin para termos uma
maior compreensão sobre os fatos que ele nos apresenta.

O NARRADOR
Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov
(Walter Benjamin)

Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre
nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais.

28 - BENJAMIN
BENJAMIN, Walter
Walter. O Narrador
Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov
Leskov. In: Arte e Política
Política. Ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.
29 - Op. Cit. p. 199.

42
Descrever um Leskov*30 como narrador não significa trazê-Io mais perto de nós, e sim,
pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele. Vistos de uma certa distância,
os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor,
esses traços aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem
num rochedo, para um observador localizado numa distância apropriada e num ângulo
favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e
desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de
extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando
se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como
se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a
faculdade de intercambiar experiências.
Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em
baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta
olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que
da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo
ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. Com a guerra
mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra,
observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos,
e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois,
na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência
transmitida de boca em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve
experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela
guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo
pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda
fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem
em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo
de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.
2
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os
narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem
das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem
dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se
torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem
muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem
de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente
sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos
concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos
dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário e outro pelo marinheiro
comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas
respectivas famílias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer dos
séculos, suas características próprias. Assim, entre os autores alemães modernos
Hebel e Gotthelf pertencem à primeira família, e Sielsfield e Gerstäcker à segunda. No
entanto essas duas famílias, como já se disse constituem apenas tipos fundamentais.

30 - (*) Nikolai Leskov nasceu em 1831 na província de Orjol e morreu em 1895 em S. Petersburgo. Por seus interesses e simpatias
pelos camponeses, tem certas afinidades com Tolstoi e por sua orientação religiosa com Dostoievski. Mas os textos menos duradouros
de sua obra são exatamente aqueles em que tais tendências assumem uma expressão dogmática e doutrinária - os primeiros romances.
A significação de Leskov está em suas narrativas, que pertencem a uma fase posterior. Desde o fim da guerra houve várias tentativas
de difundir essas narrativas nos países de língua alemã. Além das pequenas coletâneas publicadas pelas editoras Musarion e Georg
Müller, devemos mencionar, com especial destaque, a seleção em nove volumes da editora C. H. Beck.

43
A extensão real do reino narrativo, em todo o seu alcance histórico,
só pode ser compreendido se levarmos em conta a interpenetração
desses dois tipos arcaicos. O sistema corporativo medieval contribuiu
Introdução aos especialmente para essa interpenetração. O mestre sedentário e os
Estudos aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina; cada
Literários mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua

pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres


da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo
associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o
saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário.
3
Leskov está à vontade tanto na distância espacial como na distância temporal.
Pertencia à Igreja Ortodoxa grega e tinha um genuíno interesse religioso. Mas sua
hostilidade pela burocracia eclesiástica não era menos genuína. Como suas relações
com o funcionalismo leigo não eram melhores, os cargos oficiais que exerceu não foram
de longa duração. O emprego de agente russo de uma firma inglesa, que ocupou durante
muito tempo, foi provavelmente, de todos os empregos possíveis, o mais útil para sua
produção literária. A serviço dessa firma, viajou pela Rússia, e essas viagens enriqueceram
tanto a sua experiência do mundo como seus conhecimentos sobre as condições russas.
Desse modo teve ocasião de conhecer o funcionamento das seitas rurais, o que deixou
traços em suas narrativas. Nos contos lendários russos, Leskov encontrou aliados em
seu combate contra a burocracia ortodoxa. Escreveu uma série de contos desse gênero,
cujo personagem central é o justo, raramente um asceta, em geral um homem simples
e ativo,’ que se transforma em santo com a maior naturalidade. A exaltação mística é
alheia a Leskov. Embora ocasionalmente se interessasse pelo maravilhoso, em questões
de piedade preferia uma atitude solidamente natural. Seu ideal é o homem que aceita
o mundo sem se prender demasiadamente a ele. Seu comportamento em questões
temporais correspondia a essa atitude. É coerente com tal comportamento que ele tenha
começado tarde a escrever, ou seja, o com 29 anos, depois de suas viagens comerciais.
Seu primeiro texto impresso se intitulava: “Por que são os livros caros em Kiev?”. Seus
contos foram precedidos por uma série de escritos sobre a classe operária, sobre o
alcoolismo, sobre os médicos da polícia e sobre os vendedores desempregados. (...)
5
O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o
surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da
narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado
ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A
tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta
da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de
prosa - contos de fada, lendas e mesmo novelas - é que ele nem procede da tradição
oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira
da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E
incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-
se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente
sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe
dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o

44
incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa
riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. O primeiro
grande livro do gênero, Dom Quixote, mostra como a grandeza de alma, a coragem e
a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias
ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria.
6
Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis
aos que presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios.
Poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram
mais lentamente. O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de
centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis
a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa começou pouco a
pouco a tornar-se arcaica; sem dúvida, ela se apropriou, de múltiplas formas, do novo
conteúdo, mas não foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verificamos
que com a consolidação da burguesia - da qual a imprensa, no alto capitalismo é um
dos instrumentos mais importantes - destacou-se uma forma de comunicação que,
por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a
forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o
romance; mas é mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance.
Essa nova forma de comunicação é a informação. (...)
Cada manhã recebemos notícias de todo mundo. E, no entanto, somos pobres
em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados
de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da
narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está
em evitar explicações. (...) O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior
exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para
interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude
que não existe na informação. (...)

Trouxemos para você a seleção das partes que julgamos ser as mais interessantes para
darmos continuidade à nossa conversa sobre o narrador. Repare como Benjamin fala, no
início do texto, de dois tipos de narradores: o marinheiro viajante e o camponês sedentário.
Todos abraçam o estereótipo do narrador que o autor quer traçar como sendo aquele que
repassa a história, os ensinamentos, a experiência. Um narra sua experiência de viagem e
o outro narra sua experiência de observação. Os dois, em mar ou em terra, fazem o papel
do sábio, daquele que pode falar e dar conselhos porque viveu, porque pode recorrer ao
acervo de toda uma vida: a sua própria e a do outro que ele também conhece muito bem. O
narrador, trazido à cena por Walter Benjamin, prima por uma leveza baseada muito mais na
concepção prática da vida do que na abstração de uma moral pura e simples. Ele tem suas
“raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais”. E a narrativa construída a partir
dessa raiz, tira de dentro de si o substrato com o qual unificará um discurso cuja fabricação
conta com o tempo da memória.

45
A narração na pós-modernidade

Depois de termos lido o texto de Walter Benjamin sobre o narrador,


Introdução aos voltemos um pouco os olhos para a contemporaneidade para pensarmos
Estudos como esse narrador se desdobraria no agora. O texto a seguir, escrito
Literários por Silviano Santiago, ilustra um pouco a forma como esse narrador
contemporâneo se configura.

O narrador pós-moderno
(Silviano Santiago)

Os contos de Edilberto Coutinho servem tanto para colocar de maneira exemplar


como para discutir exaustivamente uma das questões básicas sobre o narrador na pós-
modernidade. Quem narra uma história é quem a experimenta, ou quem a vê? Ou seja: é
aquele que narra ações a partir da experiência que tem delas, ou é aquele que narra ações
a partir de um conhecimento que passou a ter delas por tê-Ias observado em outro?
No primeiro caso, o narrador transmite uma vivência; no segundo caso, ele passa
uma informação sobre outra pessoa. Pode-se narrar uma ação de dentro dela, ou de
fora dela. É insuficiente dizer que se trata de uma opção. Em termos concre¬tos: narro a
experiência de jogador de futebol porque sou jogador de futebol; narro as experiências de
um jogador de futebol porque acostumei-me a observá-Io. No primeiro caso, a narrativa
expressa a experiência de uma ação; no outro, é a experiência proporcionada por um
olhar lançado. Num caso, a ação é a experiência que se tem dela, e é isso que empresta
autenticidade à matéria que é narrada e ao relato; no outro caso, é discutível falar de
autenticidade da experiência e do relato porque o que se transmite é uma informação
obtida a partir da observação de um terceiro. O que está em questão é a noção de
autenticidade. Só é autêntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser
autêntico o que eu narro e conheço por ter observado? Será sempre o saber humano
decorrência da experiência concreta de uma ação, ou o saber poderá existir de uma forma
exterior a essa experiência concreta de uma ação? Um outro exemplo palpável: digo
que é autêntica a narrativa de um incêndio feita por uma das vítimas, pergunto se não é
autêntica a narrativa do mesmo incêndio feita por alguém que esteve ali a observá-Io.
Tento uma primeira hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é aquele
que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou
de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente
ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na
biblioteca; ele não narra enquanto atuante.
Trabalhando com o narrador que olha para se informar (e não com o que narra
mergulhado na própria experiência), a ficção de Edilberto Coutinho dá um passo a mais no
processo de rechaço e distanciamento do narrador clássico, segundo a caracterização modelar
que dele fez Walter Benjamin, ao tecer considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. É o
movimento de rechaço e de distanciamento que torna o narrador pós-moderno.
Para Benjamin os seres humanos estão se privando hoje da “faculdade de
intercambiar experiência”, isso porque “as ações da experiência estão em baixa, e
tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”. À medida
que a sociedade se moderniza, torna-se mais e mais difícil o diálogo enquanto troca
de opiniões sobre ações que foram vivenciadas. As pessoas já não conseguem hoje
narrar o que experimentaram na própria pele.
Dessa forma, Benjamin pode caracterizar três estágios evolutivos por que passa

46
a história do narrador. Primeiro estágio: o narrador clássico, cuja função é dar ao seu
ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência (único valorizado no ensaio);
segundo: o narrador do romance, cuja função passou a ser a de não mais poder falar
de maneira exemplar ao seu leitor; terceiro: o narrador que é jornalista, ou seja, aquele
que só transmite pelo narrar a informação, visto que escreve não para narrar a ação da
própria experiência, mas o que aconteceu com x ou y em tal lugar e a tal hora. Benjamin
desvaloriza (o pós-moderno valoriza) o último narrador. Para Benjamin, a narrativa
não deve estar “interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma
informação ou um relatório”. A narrativa é narrativa “porque ela mergulha a coisa na
vida do narrador para depois retirá-la dele”. No meio, fica o narrador do romance, que
se quer impessoal e objetivo diante da coisa narrada, mas que, no fundo, se confessa
como Flaubert o fez de maneira paradigmática: “Madame Bovary, c’est moi”.
Retomemos: a coisa narrada é mergulhada na vida do narrador e dali retirada;
a coisa narrada é vista com objetividade pelo narrador, embora este confesse tê-Ia
extraído da sua vivência; a coisa narrada existe como puro em si, ela é informação,
exterior à vida do narrador.
No raciocínio de Benjamin, o principal eixo em torno do qual gira o “embelezamento”
(e não a decadência) da narrativa clássica hoje é a perda gradual e constante da sua
“dimensão utilitária”. O narrador clássico tem “senso prático”, pretende ensinar algo.
Quando o camponês sedentário ou o marinheiro comerciante narram, respectivamente,
tradições da comunidade ou viagens ao estrangeiro, eles estão sendo úteis ao ouvinte.
Diz Benjamin: “Essa utilidade [da narrativa] pode consistir seja num ensinamento moral,
seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer
maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos.” E arremata: “O conselho
tecido na substância viva da experiência tem um nome: sabedoria.” A informação não
transmite essa sabedoria porque a ação narrada por ela não foi tecida na substância
viva da existência do narrador.
Tento uma segunda hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é o que
transmite uma “sabedoria” que é decorrência da observação de uma vivência alheia
a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência.
Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma ação que,
por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da
verossimilhança, que é produto da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno
sabe que o “real” e o “autêntico” são construções de linguagem.
A perda do caráter utilitário e a subtração do bom conselho e da sabedoria,
características do estágio presente da narrativa, não são vistas por Benjamin como
sinais de um processo de decadência por que passa a arte de narrar hoje, como
sugerimos atrás, o que o retira de imediato da categoria dos historiadores anacrônicos
ou catastróficos. Na escrita de Benjamin, a perda e as subtrações acima referidas são
apontadas para que se saliente, por contraste, a “beleza” da narrativa clássica – a
sua perenidade. O jogo básico no raciocínio de Benjamin é a valorização do pleno a
partir da constatação do que nele se esvai. E o incompleto - antes de ser inferior - é
apenas menos belo e mais problemático. As transformações por que passa o narrador
são concomitantes com “toda uma evolução secular das forças produtivas”. Não se
trata, pois, de olhar para trás para repetir o ontem hoje (seríamos talvez historiadores
mais felizes, porque nos restringiríamos ao reino do belo). Trata-se antes de julgar
belo o que foi e ainda o é – no caso, o narrador clássico –, e de dar conta do que
apareceu como problemático ontem – o narrador do romance –, e que aparece ainda
mais problemático hoje – o narrador pós-moderno. Aviso aos benjaminianos: estamos

47
utilizando o conceito de narrador num sentido mais amplo do que o
proposto pelo filósofo alemão. Reserva a ele o conceito apenas para
o que estamos chamando de narrador clássico.
Introdução aos (...) De maneira ainda simplificada, pode-se dizer que o narrador
Estudos olha o outro para levá-Io a falar (entrevista), já que ali não está para
Literários falar das ações de sua experiência. Mas nenhuma escrita é inocente.

Como correlato à afirmação anterior, acrescente¬mos que, ao dar fala ao outro, acaba
também por dar fala a si, só que de maneira indireta. A fala própria do narrador que se
quer repórter é a fala por interposta pessoa. A oscilação entre repórter e romancista,
vivenciada sofridamente pelo personagem (Hemingway), é a mesma experimentada,
só que em silêncio, pelo narrador (brasileiro). Por que este não narra as coisas como
sendo suas, ou seja, a partir da sua própria experiência?
Antes de responder a essa pergunta, entremos num outro conto espanhol de
Edilberto Coutinho, “Azeitona e vinho”. Em rápidas linhas, eis o que acontece: um velho
e experiente homem do povoado (que é o narrador do conto), sentado numa bodega,
toma vinho e olha um jovem toureiro, Pablo (conhecido como EI Mudo), cercado de
amigos, admiradores e turistas ricos. Olhando e observando como um repórter diante
do objeto da sua matéria, o velho se embriaga mais e mais tecendo conjeturas sobre
a vida do outro, ou seja, o que acontece, aconteceu e deveria acontecer com o jovem
e inexperiente toureiro, depositando nele as esperanças de todo o povoado.
Os personagens e temas são semelhantes aos do conto anterior, e o que importa
para nós: a própria atitude do narrador é semelhante, embora ele, no segundo conto,
já não tenha mais como profissão o jornalismo, é alguém do povoado. O narrador tinha
tudo para ser o narrador clássico: como velho e experiente, podia debruçar-se sobre
as ações da sua vivência e, em reminiscência, misturar a sua história com outras que
convivem com ela na tradição da comunidade. No entanto, nada disso faz. Olha o mais
novo e se embriaga com vinho e a vida do outro. Permanece, pois, como válida e como
vértebra da ficção de EC uma forma precisa de narrar, ainda que desta vez a forma
jornalística não seja coincidente com a profissão do narrador (onde a autenticidade
como respaldo para a verossimilhança?). Trata-se de um estilo, como se diz, ou de uma
visão do mundo, como preferimos, uma característica do conto de EC que transcende
até mesmo as regras mínimas de caracterização do narrador.
A continuidade no processo de narrar estabelecida entre contos diferentes
afirma que o essencial da ficção de EC não é a discussão sobre o narrador enquanto
repórter (embora o possa ser neste ou naquele conto), mas o essencial é algo de
mais difícil apreensão, ou seja, a própria arte do narrar hoje. Por outro lado, paralela
a esta constatação, surge a pergunta já anunciada anteriormente e estrategicamente
abandonada: por que o narrador não narra sua experiência de vida? A história de
“Azeitona e vinho” narra ações enquanto vivenciadas pelo jovem toureiro; ela é
basicamente a experiência do olhar lançado ao outro.
Atando a constatação à pergunta, vemos que o que está em jogo nos contos de
EC não é tanto a trama global de cada conto (sempre é de fácil compreensão), nem a
caracterização e desenvolvimento dos personagens (sempre beiram o protótipo), mas algo
de mais profundo que é o denso mistério que cerca a figura do narrador pós-moderno.
O narrador se subtrai da ação narrada (há graus de intensidade na subtração, como
veremos ao ler “A lugar algum”) e, ao fazê-Io, cria um espaço para a ficção dramatizar a

48
experiência de alguém que é observado e muitas vezes desprovido de palavra. Subtraindo-
se à ação narrada pelo conto, o narrador identifica-se com um segundo observador - o
leitor. Ambos se encontram privados da exposição da própria experiência na ficção e são
observadores atentos da experiência alheia. Na pobreza da experiência de ambos se
revela a importância do personagem na ficção pós-moderna; narrador e leitor se definem
como espectadores de uma ação alheia que os empolga, emociona, seduz etc.
A maioria dos contos de Edilberto se recobrem e se enriquecem pelo enigma que cerca
a compreensão do olhar humano na civilização moderna. Por que se olha? Para que se olha?
Razão e finalidade do olhar lançado ao outro não se dão à primeira vista, porque se trata
de um diálogo-em-literatura (isto é, expresso por palavra) que, paradoxalmente, fica aquém
ou além das palavras. A ficção existe para falar da incomunicabilidade de experiências: a
experiência do narrador e a do personagem. A incomunicabilidade, no entanto, se recobre pelo
tecido de uma relação, relação esta que se define pelo olhar. Uma ponte, feita de palavras,
envolve a experiência muda do olhar e torna possível a narrativa.
No conto “Azeitona e vinho”, insiste o narrador: “Pablito não sabe que o estou observando,
naquele grupo”. E ainda: “Não se lembrará de mim, mas talvez não tenha esquecido as coisas
de que lhe falei.” Permanece a fixidez imperturbável de um olhar que observa alguém, aquém
ou além das palavras, no presente da bodega (de uma mesa observa-se a outra), ou no
passado revivido pela lembrança (ainda o vejo, mas no passado).
Não é importante a retribuição do olhar. Trata-se de um investimento feito pelo
narrador em que ele não cobra lucro, apenas participação, pois o lucro está no próprio
prazer que tem de olhar. Dou uma força, diz o narrador. Senti firmeza, retruca o
personagem. Ambos mudos. Não há mais o jogo do “bom conselho” entre experientes,
mas o da admiração do mais velho. A narrativa pode expressar uma “sabedoria”, mas
esta não advém do narrador: é depreendida da ação daquele que é observado e não
consegue mais narrar - o jovem. A sabedoria apresenta-se, pois, de modo invertido.
Há uma desvalorização da ação em si.
Eis nas suas linhas gerais a graça e o sortilégio da experiência do narrador que
olha. O perigo no conto de EC não são as mordaças, mas as vendas. Como se o
narrador exigisse: Dei¬xem-me olhar para que você, leitor, também possa ver.
O olhar tematizado pelo narrador de “Azeitona e vinho” é um olhar de generosidade,
de simpatia, amoroso até, que recobre o jovem Pablito, sem que o jovem se dê conta
da dá¬diva que lhe está sendo oferecida. Mas, atenção!, o mais experiente não tem
conselho a dar, e é por isso que não pode visar lucro com o investimento do olhar. Não
deve cobrar, por assim dizer. Eis a razão para a briga entre Hemingway (observador e
também homem da palavra) e o toureiro Dominguín (observado e homem da ação):
Nessa época, Dominguín o chamava de Pai. Papá. Agora dizia que o velho andava
zureta. Pai pirado. Poucos dias depois pude mostrar a Clara uma entrevista em que
Dominguín contava: Eu era seu hóspede em Cuba. Vieram uns jornalistas à casa dele,
para entrevistar-me. [...] Quando um jornalista quis saber se era verdade que eu procurava
os conselhos [o grifo é nosso] do dono da casa, para melhorar a minha arte, compreendi
bem como pudera ter surgido o despropositado boato, só de ver o rosto dele. Pensei em
dar uma resposta diplomática, mas mudei de idéia e falei com toda a franqueza: Não creio,
no ponto a que cheguei, precisar dos conselhos de ninguém em questão de tourada.
(...) A vivência do mais experiente é de pouca valia. Primeira constatação: a ação
pós-moderna é jovem, inexperiente, exclusiva e privada da palavra - por isso tudo é
que não pode ser dada como sendo do narrador. Este observa uma ação que é ao
mesmo tempo, incomodamente auto-suficiente. O jovem pode acertar errando ou errar
acertando. De nada vale o paternalismo responsável no direcionamento da conduta. A

49
não ser que o paternalismo se prive de palavras de conselho e seja
um longo deslizar silencioso e amoroso pelas alamedas do olhar.
Caso o olhar queira ser reconhecido como conselho, surge a
Introdução aos incomunicabilidade entre o mais experiente e o menos. A palavra já
Estudos não tem sentido porque já não existe mais o olhar que ela recobre.
Literários Desaparece a necessidade da narrativa. Existe, pesado, o silêncio.

Para evitá-Io, o mais experiente deve subtrair-se para fazer valer, fazer brilhar o menos
experiente. Por a experiência do mais experiente ser de menor valia nos tempos pós-
modernos é que ele se subtrai. Por isso tudo também é que se torna praticamente
impossível hoje, numa narrativa, o cotejo de experiências adultas e maduras sob a
forma mútua de conselhos. Cotejo que seria semelhante ao encontrado na narra¬tiva
clássica e que conduziria a uma sabedoria prática de vida.
Em virtude da incomunicabilidade da experiência entre gerações diferentes, percebe-
se como se tornou impossível dar continuidade linear ao processo de aprimoramento do
homem e da sociedade. Por isso, aconselhar - ao contrário do que pensava Benjamin-
não pode ser mais “fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está
sendo narrada”. A história não é mais vislumbrada como tecendo uma continuidade entre
a vivência do mais experiente e a do menos, visto que o paternalismo é excluído como
processo conectivo entre gerações. As narrativas hoje são, por definição, quebradas.
Sempre a recomeçar. Essa é a lição que se depreende de todas as grandes rebeliões
menos experientes que abalaram a década de 60, a começar pelo Free speech movement,
em Berkeley, e indo até os événements de mai, em Paris.
(...)
O velho na bodega já tinha passado por tudo pelo que passa o jovem El Mudo,
mas o que conta é o mesmo diferente pelo que o observador passa, que o observado
experimenta na sua juventude de agora. A ação na juventude de ontem do observador
e a ação na juventude de hoje do observado são a mesma. Mas o modo de encará-Ias
e afirmá-Ias é diferente. De que valem as glórias épicas da narrativa de um velho diante
do ardor lírico da experiência do mais jovem? - eis o problema pós-moderno.
Aqui se impõe uma distinção importante entre o narrador pós-moderno e o seu
contemporâneo (em termos de Brasil), o narrador memoralista, visto que o texto de
memórias tornou-se importantíssimo com o retorno dos exilados políticos. Referimo-
nos, é claro, à literatura inaugurada por Fernando Gabeira com o livro O que é isso,
companheiro?, onde o processo de envolvimento do mais experiente pelo menos se
apresenta de forma oposta ao da narrativa pós-moderna. Na narrativa memorialista o
mais experiente adota uma postura vencedora.
Na narrativa memorialista, o narrador mais experiente fala de si mesmo enquanto
personagem menos experiente, extraindo da defasagem temporal e mesmo sentimental
(no sentido que lhe empresta Flaubert em “educação sentimental”) a possibilidade de um
bom conselho em cima dos equívocos cometidos por ele mesmo quando jovem. Essa
narrativa trata de um processo de “amadurecimento” que se dá de forma retilínea. Já
o narrador da ficção pós-moderna não quer enxergar a si ontem, mas quer observar o
seu ontem no hoje de um jovem. Ele delega a um outro, jovem hoje como ele foi jovem
ontem, a responsabilidade da ação que ele observa. A experiência ingênua e espontânea
de ontem do narrador continua a falar pela vivência semelhante, mas diferente do jovem
que ele observa, e não através de um amadurecimento sábio de hoje.

50
(...)
A literatura pós-moderna existe para falar da pobreza da experiência,
dissemos,
mas também da pobreza da palavra escrita enquanto processo de comunicação.
Trata, portanto, de um diálogo de surdos e mudos, já que o que realmente vale na
relação a dois estabelecida pelo olhar é uma corrente de energia, vital (grifemos:
vital), silenciosa, prazerosa e secreta.
(...)
De maneira sutil, Benjamin toma paralelo o embelezamento da narrativa clássica
com outro embelezamento: o do homem no leito de morte. O mesmo movimento
que descreve o desaparecimento gradual da narrativa clássica serve também para
descrever a exclusão da morte do mundo dos vivos hoje. A partir do século XIX, informa-
nos Benjamin, evita-se o espetáculo da morte. A exemplaridade que dá autoridade
à narrativa clássica, traduzida pela sabedoria do conselho, encontra a sua imagem
ideal no espetáculo da morte humana. “Ora, é no momento da morte que o saber e a
sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que
são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível.” A morte
projeta um halo de autoridade – “a autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao
morrer” – que está na origem da narrativa clássica.
Morte e narrativa clássica cruzam caminho, abrindo espaço para uma concepção
do devir humano em que a experiência da vida vivida é fechada em sua totalidade,
e é por isso que é exemplar. À nova geração, aos ainda vivos, o exemplo global e
imóvel da velha geração. Ao jovem, o modelo e a possibilidade da cópia morta. Um
furioso iconoclasta oporia ao espetáculo da morte um grito lancinante da vida vivida no
momento de viver. A exemplaridade do que é incompleto. O toureiro na arena sendo
atingido pelo touro.
Há – não tenhamos dúvida – espetáculo e espetáculo, continua o jovem iconoclasta.
Há um olhar camuflado na escrita sobre o narrador de Benjamin que merece ser revelado e
que se assemelha ao olhar que estamos descrevendo, só que os movimentos dos olhares
são inversos. O olhar no raciocínio de Benjamin caminha para o leito da morte, o luto, o
sofrimento, a lágrima, e assim por diante, com todas as variantes do ascetismo socrático.
O olhar pós-moderno (em nada camuflado, apenas enigmático) olha nos olhos
o sol. Volta-se para a luz, o prazer, a alegria, o riso, e assim por diante, com todas
as variantes do hedonismo dionisíaco. O espetáculo da vida hoje se contrapõe ao
espetáculo da morte ontem. Olha-se um corpo em vida, energia e potencial de uma
experiência impossível de ser fechada na sua totalidade mortal, porque ela se abre no
agora em mil possibilidades. Todos os caminhos o caminho. O corpo que olha prazeroso
(já dissemos), olha prazeroso um outro corpo prazeroso (acrescentemos) em ação.
“Viver é perigoso”, já disse Guimarães Rosa. Há espetáculo e espetáculo, disse o
iconoclasta. No leito de morte, exuma-se também o perigo de viver. Até mesmo o perigo
de morrer, porque ele já é. Reina única a imobilidade tranqüila do homem no leito de
morte, reino das “belles images”, para retomar a expressão de Simone de Beauvoir diante
das gravuras fúnebres dos livros de história. Ao contrário, no campo da vida exposta no
momento de viver o que conta para o olhar é o movimento. Movimento de corpos que
se deslocam com sensualidade e imaginação, inventando ações silenciosas dentro do
precário. Inventando o agora.
(...)
O olhar humano pós-moderno é desejo e palavra que caminham pela imobilidade,
vontade que admira e se retrai inútil, atração por um corpo que, no entanto, se sente alheio

51
à atração, energia própria que se alimenta vicariamente de fonte alheia.
Ele é o resultado crítico da maioria das nossas horas de vida cotidiana.
Os tempos pós-modernos são duros e exigentes. Querem
Introdução aos a ação enquanto energia (daí o privilégio do jovem enquanto
Estudos personagem, e do esporte enquanto tema). Esgotada esta, passa
Literários o atuante a ser espectador do outro que, semelhante a ele, ocupa

o lugar que foi o seu. “Azeitona e vinho”. É essa última condição de prazer vicário, ao
mesmo tempo pessoal e passível de generalização, que alimenta a vida cotidiana atual
e que EC dramatiza através do narrador que olha. Ao dramatizá-lo na forma em que
o faz, revela o que nele pode ser experiência autêntica: a passividade prazerosa e o
imobilismo crítico. São essas as posturas fundamentais do homem contemporâneo,
ainda e sempre mero espectador ou de ações vividas ou de ações ensaiadas e
representadas. Pelo olhar, homem atual e narrador oscilam entre o prazer e a crítica,
guardando sempre a postura de quem, mesmo tendo se subtraído à ação, pensa e
sente, emociona-se com o que nele resta de corpo e/ou cabeça.
O espetáculo torna a ação representação. Dessa forma, ele retira do campo
semântico de “ação” o que existe de experiência, de vivência, para emprestar-lhe
o significado exclusivo de imagem, concedendo a essa ação liberta da experiência
condição exemplar de um agora tonificante, embora desprovido de palavra. Luz, calor,
movimento – transmissão em massa. A experiência do ver. Do observar. Se falta à ação
representada o respaldo da experiência, esta, por sua vez, passa a ser vinculada ao
olhar. A experiência do olhar. O narrador que olha é a contradição e a redenção da
palavra na época da imagem. Ele olha para que o seu olhar se recubra de palavra,
constituindo uma narrativa.
O espetáculo torna a ação representação. Representação nas suas variantes
lúdicas, como futebol, teatro, dança, música popular, etc.; e também nas suas variantes
técnicas, como cinema, televisão, palavra impressa etc. os personagens observados, até
então chamados de atuantes, passam a ser atores do grande drama da representação
humana, exprimindo-se através de ações ensaiadas, produto de uma arte, a arte de
representar. Para falar das várias facetas dessa arte é que o narrador pós-moderno ele
mesmo detendo a arte da palavra escrita – existe. Ele narra ações ensaiadas que existem
no lugar (o palco) e no tempo (o da juventude) em que lhes é permitido existir.
O narrador típico de EC, pelas razões que vimos expondo, vai encontrar na
“sociedade do espetáculo” (para usar o conceito de Guy Debord) campo fértil para as suas
investidas críticas. Por ela é investido e contra ela se investe. No conto “A lugar algum”,
transcrição ipsis litteris do script de um programa de televisão, em que é entrevistado um
jovem marginal, a realidade concreta do narrador é grau zero. Subtraiu-se totalmente.
O narrador é todos e qualquer um diante de um aparelho de televisão. Essa também –
repitamos – é a condição do leitor, pois qualquer texto é para todos e qualquer um.
Em “A lugar algum”, o narrador é apenas aquele que reproduz. As coisas se
passam como se o narrador estivesse apertando o botão do canal de televisão para
o leitor. Eu estou olhando, olhe você também para este programa, e não outro. Vale a
pena. Vale a pena porque assistimos aos últimos resquícios de uma imagem que ainda
não é ensaiada, onde a ação (o crime) é respaldada pela experiência. A experiência
de um jovem marginal na sociedade do espetáculo.

52
Para testemunhar do olhar e da sua experiência é que ain¬da sobrevive a palavra
escrita na sociedade pós-industrial.

[1986]

SANTIAGO, Silviano. Nas Malhas da Letra.

O texto de Silviano Santiago nos apresenta, com certa clareza, o narrador pós-moderno,
pensando-o a partir de um diálogo estabelecido com o texto de Benjamin, O narrador, que
apresentamos à você no Conteúdo 1 do Tema 3. Os dois tipos de narrador enfocados são
interessantes e não nos cabe julgar ou escolher quais seriam as virtudes de um em detrimento
do outro. O que Silviano faz em seu trabalho de crítico literário é tentar ler o seu tempo, sua
forma de narrar e habitar a contemporaneidade, as formas de narrar que se transmutam por
meio desse sujeito que muda sua experiência e seu contato com o mundo. O pós-moderno
refere-se não ao fim do moderno, mas a uma perlaboração de tudo aquilo que se configurou
como modernidade e que, passado um tempo, viria a se configurar com outros propósitos
que nem rompem com as tendências anteriores, nem ficam restritos ao modelo precursor.
Em termos de narrativa, o pós-moderno ou exagera ou faz uma literatura ainda não feita.
Por isso, encontramos na literatura contemporânea um exagero ainda maior do pastiche, da
paródia, da mistura entre documento e ficção. A mudança se dá no nível do espaço. Por isso
dizemos que os centros são móveis, que a fixidez de uma identidade só pode se pensada
enquanto uma referência em trânsito.
O tempo, grande tema da modernidade, cede lugar ao espaço na pós-modernidade.

Quem é o autor?

Falamos de textos, de obras literárias, de gêneros que caracterizam determinadas


escritas, mas uma pergunta pode ecoar em meio a essas teorias todas: quem é o autor?
Quem escreve o texto que leio? Essa discussão é feita há tempos e certamente não tem data
para ser finalizada. Diante do emblema da autoria, vários foram os estudos que se fizeram
sobre ela, questionando o local de fala do autor, se seus dados biográficos contariam para a
análise do texto literário, a intenção daquele que escreve, o status que esse local de ‘autor’
gera, enfim, várias questões a se ramificarem cada vez mais em busca da ‘identidade’ desse
sujeito que cria, ficciona e é, ao mesmo tempo, real e ficção.

53
Um texto marcante e extremamente citado no universo letrado seria “A
morte do autor”, de Roland Barthes e que foi escrito em 1968. Nele, Barthes traça
um possível caminho de escrita, lugar no qual o corpo que escreve se perde,
perde sua identidade, pois a escrita é esse oblíquo para onde foge esse sujeito,
Introdução aos
no sentido da dissimulação e fingimento de que falou Fernando Pessoa.
Estudos
À medida que os fatos são contados, a voz perde sua essa origem de
Literários corpo, e “o autor entra na sua própria morte, a escrita começa”. Dessa forma,
Barthes vai delineando um mapa de como se observar o ‘autor’ no passar dos anos. Em
algumas sociedades, tínhamos a figura de um mediador que contava as histórias, que fazia
a vez do contador, mas nunca a idéia do gênio. Para Barthes, o autor é uma personagem
moderna, descoberta com o fim da Idade Média, que trouxe à tona o ‘prestígio pessoal
do indivíduo’ ou da ‘pessoa humana’. Assim, é, pois, no positivismo (resumo e desfecho
da ideologia capitalista) que ocorre de se conceder maior importância à pessoa do autor.
Este começa a reinar nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas
entrevistas. Barthes coloca ainda que a imagem que podemos encontrar na cultura corrente
é tiranicamente centrada na figura do autor, da sua pessoa, dos seus gostos, paixões.
Todavia, ele contrapõe as afirmações acima dizendo que quem performa é a linguagem
e não o autor. ‘É a linguagem quem fala e não o autor, e escrever é, através de uma
impessoalidade prévia, atingir aquele ponto e que só a linguagem atua, performa’. O que ele
pretende refletir é a morte de um tipo de Autor-Deus, que contém toda a verdade e explicação
do texto. Roland Barthes não compactua com esse Autor-Deus, pois acredita que o escritor
moderno nasce ao mesmo tempo em que seu texto. Ele acredita que o verdadeiro lugar da
escrita é a leitura e que para o leitor nascer, morre o Autor.
Outras visões irão se seguir ao texto de Barthes, concordando com a morte do Autor, mas
nunca com a do autor. O autor sobrevive às tempestades teóricas enquanto mais um sujeito
que é prenhe de subjetividade e são as lacunas de sua vida que transbordam em seu texto.
Não se pretende com isso, dizer que toda leitura de um texto deve levar em consideração os
fatores biográficos do autor para ser compreendido em sua completude. Esses fatores - sobre a
vida de quem escreve - servem enquanto um suplemento para uma determinada interpretação
de texto que por acaso vá em busca desses acontecimentos que, mesmo quando não forem
‘aproveitados‘ no momento da leitura, não podem, contudo, ser ignorados.
Para conhecermos um pouco mais o assunto e como ele tem repercutido, vamos ver
o texto que se segue com alguns apontamentos sobre as principais teorias desenvolvidas
sobre a questão do autor:

Foucault (1992), em seu texto “O que é um autor?”, comenta que, historicamente,


os textos passaram a ter autores na medida em que os discursos se tornaram
transgressores com origens passíveis de punições, pois, na Antiguidade, as narrativas,
contos, tragédias, comédias e epopéias - textos que hoje chamaríamos literatura - eram
colocados em circulação e valorizados sem que se pusesse em questão a autoria - o
anonimato não constituía nenhum problema, a sua própria antigüidade era uma garantia
suficiente de autenticidade. Os textos científicos, ao contrário, deveriam ser avalizados
pelo nome de um autor, como os tratados de medicina, por exemplo.
Nos séculos XVII e XVIII, os mesmos textos científicos passaram a ter validade
em função de sua ligação a um conjunto sistemático de “verdades” demonstráveis.
No final do século XVIII e no correr do século XIX, com a instituição do sistema de
propriedade, possuidor de regras estritas sobre direitos do autor e relações autor/
editor, é que o gesto carregado de riscos da autoria, enquanto transgressão, segundo
Foucault, passou a se constituir um bem, preso àquele sistema.

54
Para Foucault, o que denomina como “função-autor”, dispensada nos discursos
científicos pela sua participação em um sistema que lhe confere garantia, permanece
nos discursos literários. A “função-autor” não se constrói simplesmente atribuindo um
texto a um indivíduo com poder criador, mas se constitui como uma “característica do
modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior
de uma sociedade” (Foucault, 1992, pág. 46), ou seja, indica que tal ou qual discurso
deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um
certo estatuto. O que faz de um indivíduo um autor é o fato de, através de seu nome,
delimitarmos, recortarmos e caracterizarmos os textos que lhes são atribuídos.
Em seu polêmico estudo “A Morte do Autor”, Barthes enfatiza a questão da não
existência do autor fora ou anterior à linguagem. Procurando apresentar a idéia do
autor como sujeito social e historicamente constituído, Barthes o vê como um produto
do ato de escrever - é o ato de escrever que faz o autor e não o contrário. Para ele
um escritor será sempre o imitador de um gesto ou de uma palavra anteriores a ele,
mas nunca originais, sendo seu único poder mesclar escritas. Barthes retira a ênfase
de um sujeito que tudo sabe, unificado, intencionado como o “lugar” de produção da
linguagem, esperando assim libertar a escrita do despotismo da obra - o livro.
O hipertexto, de certa forma, vai ao encontro das postulações de Barthes:
libertando a escrita da “tirania do autor” pela facilidade que dá a cada leitor de adicionar,
alterar ou simplesmente editar um outro texto, abrindo possibilidades de uma autoria
coletiva e quebrando a idéia da “ecriture” como originária de uma só fonte. Nesse
sentido hipertexto e teoria contemporânea, reconfiguram o autor sob diversos aspectos-
tanto na teoria do hipertexto como na teoria literária as funções do escritor e do leitor
tornam-se profundamente entrelaçadas. Por um lado, hipertextos transferem parte do
poder do escritor para o leitor pela possibilidade e habilidade que este último passa
a ter de escolher livremente seus trajetos de leitura elaborando o que poderíamos
denominar “meta-texto”, anotando seus escritos junto aos escritos de outros autores e
estabelecendo links (nexos ou interconexões) entre documentos de diferentes autores
de forma a relacioná-los e acessá-los rapidamente. (...)
Por outro lado, as experiências com hipertexto estreitam a distância que separa
documentos individuais - uns dos outros - no mundo da impressão e pelo fato de reduzirem
a autonomia do texto, reduzem também a autonomia do autor. O leitor pode, por sua vez,
tornar-se um construtor de significados ativo, independente e autônomo (Snyder, 1996). As
chances de traçar padrões pessoais de leitura, de mover-se de forma aleatória de maneira
não linear servem para destacar a importância do leitor na “escrita” de um texto.
Cada leitura não muda fisicamente as palavras, mas reescreve o texto,
simplesmente através de sua reorganização enfatizando diferentes pontos que podem,
de forma sutil, alterar seu significado. Barthes sugere que os leitores criam suas próprias
interpretações independentemente das intenções do autor.
Um outro aspecto a se observar é que na tradição da história social da impressão
os livros sempre possuíram autores, os leitores ficavam restritos aos estudos de teoria
literária. Mais recentemente, com a estética da recepção a significação do texto como
historicamente construída, e produzida no interstício existente entre a proposição da
obra - leia-se a vontade do autor - e as respostas dos leitores, estes últimos passaram
a ser levados em conta em função das atenções se voltarem para a maneira como as
formas físicas, com que o texto é apresentado, afetam a construção do sentido.
Benjamin, referindo-se à imprensa russa, fez alusão ao desaparecimento da
distinção convencional entre autor e público. Ao afirmar que leitores estavam sempre
prontos “a escrever, descrever e prescrever,” nos jornais soviéticos, fazendo com que o

55
mundo do trabalho tomasse a palavra e transformasse a literatura em
direito de todos, atribuiu ao jornal, uma outra forma de apresentar o
texto, a função de redenção da palavra (Benjamin, 1994, pág. 125).
Introdução aos Sob esta ótica também se pode entender melhor a atribuição
Estudos de uma nova autoria ao leitor do hipertexto. Ao elaborar seu trajeto
Literários de leitura, tal como o meio eletrônico lhe possibilita, o leitor/usuário

constrói um novo sentido ao texto proposto - um sentido pessoal que poderíamos até
denominar como “leitura-escritura”. A reflexão sobre o hipertexto recoloca, também, em
debate a questão da propriedade intelectual. Aliás, o texto eletrônico e as leis de direitos
autorais estão na rota de colisão em muitos pontos e quer nos parecer que as soluções
para o problema estão longe de ser encontradas. De um lado se situam autores, editores
e distribuidores de livro, bem como desenvolvedores de software zelosos de seus direitos,
preocupados em que se cumpram as leis que punem as cópias não autorizadas. Do outro
todos os leitores usuários reproduzindo “bits” sem citar fontes. (...)
A questão que se coloca é, pois, a seguinte: se o autor e texto se dispersam e se
este último adquire uma multiplicidade de vozes, através dos sistemas de hipertexto,
como preservar de forma eqüitativa os direitos legais dos múltiplos autores? A resposta
à questão é ainda objeto de busca e o debate sobre o tema palpitante, haja visto os
interesses que envolve. O que se pode definir é que os sistemas de hipertexto deslocam
o poder de controle do texto do autor para o leitor, o que demanda novas políticas na
orientação da propriedade intelectual.
Texto retirado de:
http://www.unicamp.br/~hans/mh/autor.html

Procure ler o texto de Barthes na íntegra, “A morte do autor”, em:


http://www.facom.ufba.br/sala_de_aula/sala2/barthes1.html

Intertextualidades: o labirinto da citação

De autor em autor, a gente acaba caindo em um texto que fala de outro texto e daí em
diante. Barthes começa o texto que mencionamos no Conteúdo 3 citando uma novela de
Balzac. Assim costuma acontecer com a maioria dos textos que lemos: neles encontramos
referências de tantos outros autores e obras, palavras, citações que formam um labirinto
que acabam por garantir uma espécie de linguagem para cada escritor, um sabor de texto
diferenciado a partir do elenco que cada um delineia para si. A referência a um texto anterior
gera um movimento. A este daremos o nome de intertextualidade, sabendo que dentro desta
cabem outras estruturas, como por exemplo, a citação.
Como se pode notar na constituição da própria palavra, intertextualidade significa
relação entre textos. Considerando-se texto como um recorte significativo feito no processo
ininterrupto de simbiose cultural, isto é, na ampla rede de significações dos bens culturais,
pode-se afirmar que a intertextualidade é inerente à produção humana. O homem sempre
lança mão do que já foi feito em seu processo de produção simbólica. Um texto é um
“momento” que se privilegia entre um início e um final escolhidos. Assim sendo, o texto,
como objeto cultural, tem uma existência física que pode ser apontada e delimitada: um
filme, um romance, um anúncio, uma música. Entretanto, esses objetos não estão ainda

56
prontos, pois destinam-se ao olhar, à consciência e à recriação dos leitores. Cada texto
constitui uma proposta de significação que não está inteiramente construída. A significação
se dá no jogo de olhares entre o texto e seu destinatário. Este último é um interlocutor
ativo no processo de significação, na medida em que participa do jogo intertextual tanto
quanto o autor. A intertextualidade se dá tanto na produção como na recepção da grande
rede cultural de que todos participam. Filmes que retomam filmes, quadros que dialogam
com outros, propagandas que se utilizam do discurso artístico, poemas escritos com versos
alheios, romances que se apropriam de formas musicais, tudo isso são textos em diálogo
com outros textos: intertextualidade.
É importante marcar a primazia de Bakhtin em relação a esses estudos, divulgados por Julia
Kristeva. É dela o clássico conceito de intertextualidade: “(...) todo texto se constrói como mosaico de
citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p. 64).
Por isso mesmo, Antoine Compagnon chama a atenção para o fato de que “escrever,
pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A citação, graças à confusão metonímica a
que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar
um ato de citação”. (COMPAGNON, 1996, p.31)
A intertextualidade, inerente à linguagem, torna-se explícita em todas as produções
literárias que se valem do recurso da apropriação, colocando em xeque a própria noção de
autoria. Referências, alusões, epígrafes, paráfrases, paródias ou pastiches são algumas
das formas de intertextualidade, de que lançam mão os escritores em seu diálogo com a
tradição. Drummond retoma Gonçalves Dias. Adélia Prado retoma Drummond. Bandeira
retoma outros poemas de sua própria autoria, Clarice idem. Um mesmo escritor pode
reler-se, utilizando-se de textos que ele mesmo escreveu, o que resulta numa espécie de
intratextualidade. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, retoma seu conhecido texto
‘No meio do caminho’, para escrever ‘Consideração do poema’:

Uma pedra no meio do caminho


ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
Ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakóvski.
(ANDRADE, 1978, p. 75)

Embaralhando mais as fronteiras discursivas, a obra de Jorge Luiz Borges é exemplo


de um discurso híbrido que associa o ficcional e o teórico, evidenciando o papel da leitura na
composição dos textos. Tomemos como exemplo o conto ‘Pierre Menard, autor do Quixote’,
em que se propõe o nível máximo da apropriação: escrever, linha por linha, a obra alheia e,
mesmo assim, criar uma obra nova:

“Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote. Inútil
acrescer que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se
propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem
– palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes.”
(BORGES, 1995, p. 57)

57
Borges, em outro texto, Kafka e seus precursores, inverte o
processo de produção textual quando transforma Kafka em modelo
para aqueles que escreveram antes dele, criando, regressivamente,
uma tradição. Tudo isso porque o leitor ativa sua biblioteca interna
Introdução aos
a cada texto lido, estabelecendo nexos relacionais entre o que lê e o
Estudos
que já foi lido. Então, a intertextualidade, centrada também na figura
Literários do leitor, perturba qualquer possibilidade de cronologia rígida para a
historiografia literária, na medida em que as associações feitas são livres.
Até mesmo o conceito de tradução é revisto, numa perspectiva intertextual, como uma
leitura da obra, uma recriação. Relativizam-se também as noções de cópia e modelo, fonte
e influência. Isso porque a cópia pode levar a uma releitura desconstrutora do modelo. A
crítica literária brasileira contemporânea, valendo-se de tais relativizações, produziu textos
que nos permitem reler a própria história da colonização com novos olhos. Ensaios como
“Nacional por subtração”, de Roberto Schwarz (1989); “O entre-lugar do discurso latino-
americano”, “Eça, autor de Madame Bovary” (1978) e “Apesar de dependente, universal”
(1982), de Silviano Santiago integram esse debate.
Em qualquer nível, a produção simbólica é sempre uma retomada de outras
produções, perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores. Apropriando-nos
de Schneider, podemos afirmar:

“O texto literário é um palimpsesto. O autor antigo escreveu uma ‘primeira’


vez, depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a página
com um novo texto, e assim por diante. Textos primeiros inexistem tanto quanto
as puras cópias; o apagar não é nunca tão acabado que não deixe vestígios, a
invenção, nunca tão nova que não se apóie sobre o já-escrito.
(SCHNEIDER, 1990, p.71)

Atividades
Complementares

• Feita a leitura dos dois textos, o de Benjamin e o de Silviano, procure tecer reflexões
sobre o narrador benjaminiano e o narrador pós-moderno. Em que ponto eles se encontram
e em que se diferem?

• Faça uma busca sobre o tema da intertextualidade na internet sobre o poema de


Gonçalves Dias, “Canção do Exílio”. Você irá descobrir intertextualidades inspiradoras.
Aproveite para também dar continuidade ao diálogo iniciado por tantos escritores...

58
OS ESTUDOS CULTURAIS

Introdução aos Estudos Culturais

Repare como a coisa vem caminhando: nós vimos primeiro as noções que se pode ter
sobre a literatura, os primeiros pensadores a se jogarem na tarefa de estudo e reflexão do
literário, os efeitos literários, a questão dos gêneros, algo sobre o narrador moderno, pós-
moderno, o autor, a intertextualidade que envolve qualquer obra e em cada movimento de
estudo e de diálogo fomos apontando teorias e formas de encarar a Teoria Literária.
Agora, te lançamos na arena dos Estudos Culturais, apenas mais uma vertente teórica,
mas com o propósito de agregar antes de excluir qualquer experiência cultural. Isso não
significa dizer que o que se tem aqui seja um vale-tudo, mas uma proposta para se pensar a
literatura fora do espaço reservado da própria literatura. O lugar sacralizado e canônico cede
espaço para outras possibilidades culturais que renovam o olhar e o passeio do literário. A
seguir, trechos de um texto para nos apresentar melhor esse tal “Estudos Culturais”.

Crítica cultural, crítica literária: desafios do fim de século


(Silviano Santiago)

Prepared for delivery at the 1997 meeting of the Latin American Studies Association,
Continental Plaza Hotel, Guadalajara, Mexico, April 17-19, 1997.

Existe maior dificuldade em


interpretar as interpretações do que em interpretar as coisas.
Montaigne

Para abordar com segurança o tema proposto -- “Crítica cultural, crítica literária:
desafíos de fin de siglo” --, será preciso refletir antes sobre um problema de periodização.
Em que ano e em que circunstâncias históricas começa o “fim de século” na América Latina
e, em particular, no Brasil? Se nos entregarmos ao trabalho prévio de articular uma série
de questões derivadas, a pergunta de caráter geral poderá receber resposta que proponha
uma data relativamente precisa. Enunciemos, primeiro, as perguntas derivadas.
Quando é que a cultura brasileira despe as roupas negras e sombrias da resistência
à ditadura militar e se veste com as roupas transparentes e festivas da democratização?

59
Quando é que a coesão das esquerdas, alcançada na resistência à
repressão e à tortura, cede lugar a diferenças internas significativas?
Quando é que a arte brasileira deixa de ser literária e sociológica
Introdução aos para ter uma dominante cultural e antropológica? Quando é que
Estudos se rompem as muralhas da reflexão crítica que separavam, na
Literários modernidade, o erudito do popular e do pop? Quando é que a

linguagem espontânea e precária da entrevista (jornalística, televisiva, etc.) com artistas


e intelectuais substitui as afirmações coletivas e dogmáticas dos políticos profissionais,
para se tornar a forma de comunicação com o novo público?
A resposta às perguntas feitas acima levam a circunscrever o momento histórico
da transição do século XX para o seu “fim” pelos anos de 1979 a 1981. (...)
Nesses três anos a que estaremos nos referindo, a luta das esquerdas contra a
ditadura militar deixa de ser questão hegemônica no cenário cultural e artístico brasileiro,
abrindo espaço para novos problemas e reflexões inspirados pela democratização no
país (insisto: no país, e não do país). A transição deste século para o seu “fim” se define
pelo luto dos que saem, apoiados pelos companheiros de luta e pela lembrança dos
fatos políticos recentes, e, ao mesmo tempo, pela audácia da nova geração que entra,
arrombando a porta como impotentes e desmemoriados radicais da atualidade. (...)
Em artigo publicado em 13 de agosto de 1981, Heloisa Buarque de Hollanda
esboçava um primeiro balanço das novas tendências na arte e na cultura brasileiras.
A reviravolta que ambas sofriam se devia à passagem recente do furacão soprado
pelo cineasta Cacá Diegues, denominado com propriedade na época de “patrulhas
ideológicas”. O furacão, porque desorientava a esquerda formada nos anos 50 e
consolidada na resistência à ditadura militar dos anos 60 e 70, era premonitório da
transição. O livro de entrevistas que levou o nome da polêmica -- Patrulhas Ideológicas-
se configura hoje mais como o balanço da geração que resistiu e sofreu durante o
regime de exceção e menos como a plataforma de uma nova geração que desejava
tomar ao pé da letra a “diástole” (apud General Golbery) da militarização do país.
Como narradores castrados pelos mecanismos da repressão, como pequenos
heróis com os olhos voltados para o passado doloroso, como advogados de acusação
dispostos a colocar no banco dos réus os que de direito ali deveriam ficar para sempre, a
maioria dos personagens públicos entrevistados em 1979/1980 quer contar uma história
de vida. Resume o cineasta Antônio Calmon: “Eu acho melhor contar a história do que
teorizar”. Ainda em 1979, sai publicado o emblemático depoimento do ex-guerrilheiro
Fernando Gabeira, O que é isso, companheiro?, que narra com minúcia de detalhes o
cotidiano redentor e paranóico da guerrilha no Brasil e na América Latina e as sucessivas
fugas dos latino-americanos para os vários exílios. Na numerosa produção de relatos
de vida, há um tom Christopher Lasch que impede que o lugar político-ideológico até
então ocupado pelo regime militar seja esvaziado e reocupado pelos defensores de uma
cultura adversária, ou seja, os esquerdistas renitentes não descobrem que o inimigo
não está mais lá fora, do outro lado da cerca de arame farpado, mas entre nós.
O acontecimento “patrulhas ideológicas” fecha não só o período triste da repressão
como também o período feliz da coesão na esquerda. Por ser o mais polêmico dos
intelectuais brasileiros contemporâneos, Glauber Rocha é o primeiro que põe o dedo
no harmônico e fraterno bloco esquerdista para abrir rachaduras. Em 1977, O Jornal do
Brasil propicia, num apartamento carioca, o diálogo entre os quatro gigantes da esquerda

60
brasileira: o antropólogo Darcy Ribeiro, o poeta Ferreira Gullar, o cineasta Glauber Rocha
e o crítico de arte Mário Pedrosa. O longo e doloroso debate termina com intervenções
abruptas de Glauber. Devido às divergências de opinião, conclui que “o debate não pode
ser publicado”. Segundo a transcrição, “todo mundo [na sala do apartamento] protesta,
grita, reclama da posição de Glauber”. Glauber continua a silenciar a fala dos demais.
Acrescenta: “Eu, por exemplo, comecei a discordar do Darcy [Ribeiro] a partir de certo
momento, mas eu não discordarei publicamente [grifo nosso] do Darcy...” A moderadora
do debate não percebe a dimensão da rachadura aberta pela discordância no privado que
não podia se tornar pública e reage com o cola-tudo das boas intenções: “o problema é
que você [Glauber] está querendo impor um pensamento, quer ganhar uma discussão e
não é isso que importa aqui”. Glauber termina a conversa amistosa com duas declarações
contundentes. A primeira é a de que “não há condições no Brasil de se fazer um debate
amplo e aberto” e a segunda, “esse debate já era”.
Nos anos seguintes, o debate amplo e aberto não apareceria nos relatos de vida
dos ex-combatentes, não se daria pela linguagem conceptual da história e da sociologia,
não seria obra de políticos bem ou mal intencionados. Esse debate amplo e aberto se
passaria no campo da arte, considerando-se esta não mais como manifestação exclusiva
das belles lettres, mas como fenômeno multicultural que estava servindo para criar novas
e plurais identidades sociais. Caiam por terra tanto a imagem falsa de um Brasil-nação
integrado, imposta pelos militares através do controle da mídia eletrônica, quanto a
coesão fraterna das esquerdas, conquistada nas trincheiras. A arte abandonava o palco
privilegiado do livro para se dar no cotidiano da Vida. Esse novo espírito estaria embutido
na plataforma política do Partido dos Trabalhadores, PT, idealizado em 1978.
Voltando ao artigo de Heloisa Buarque, percebe-se que ela, ao ler o livro Retrato
de época (um estudo sobre a poesia marginal da década de 70), detecta “um certo
mal-estar dos intelectuais em relação à sua prática acadêmica” cuja saída estava sendo
desenhada pela “proliferação de estudos recentes (reunindo-se aí uma expressiva faixa
da reflexão universitária jovem) no registro da perspectiva antropológica”. Os setores
emergentes da produção intelectual, acrescenta ela, “explicita[va]m certas restrições ao
que chamam os aspectos ortodoxos da sociologia clássica e da sociologia marxista”.
Segundo Heloísa, a chave da operação metodológica apresentada no livro está no
modo como o antropólogo Carlos Alberto dá o mesmo tratamento hermenêutico tanto
ao material oriundo das entrevistas concedidas pelos jovens poetas marginais, quanto
ao poema de um deles. O texto do poema passa a funcionar como um depoimento
informativo e a pesquisa de campo é analisada como texto. O paladar metodológico
dos jovens antropólogos não distingue a plebéia entrevista do príncipe poema.
Essa grosseira inversão no tratamento metodológico de textos tão díspares --
aparentemente inocente porque conseqüência da falta de boas maneiras dum jovem
antropólogo -- desestabilizaria de maneira definitiva a concepção de Literatura, tal
como era configurada pelos teóricos dominantes no cenário das Faculdades de Letras
nacionais e estrangeiras. Conclui Heloísa: “Carlos Alberto parece colocar em suspenso
a literatura como discurso específico”.
Esvaziar o discurso poético da sua especificidade, liberá-lo do seu componente elevado
e atemporal, desprezando os jogos clássicos da ambigüidade que o diferenciava dos outros
discursos, enfim, equipará-lo qualitativamente ao diálogo provocativo sobre o cotidiano,
com o fim duma entrevista passageira, tudo isso corresponde ao gesto metodológico de
apreender o poema no que ele apresenta de mais efêmero. Ou seja, na sua transitividade,
na sua comunicabilidade com o próximo que o deseja para torná-lo seu. (...)

61
Será que no ano seguinte ao da sua publicação, 1981,
Patrulhas ideológicas já podia ser dado como retrógrado? Há
duas exceções ao tom grandiloqüente, autocomiserativo e trágico
Introdução aos dos depoimentos concedidos pelos entrevistados. As palavras
Estudos do compositor e intérprete Caetano Veloso é uma das exceções.
Literários Provocado sobre o retorno na cena artística do discurso tradicional

da esquerda, reage com corpo e sensualismo, retirando o exercício político da classe


política e decretando a combinação extemporânea da prática política aliada à prática
da vida, em distanciamento dos chamados líderes carismáticos da contra-revolução
(General Golbery) e da revolução (Fidel Castro). Diz ele que o cantor e amigo Macalé
“estava entusiasmado porque falou com o Golbery, mas eu não acho graça, nem em
Fidel Castro, nem em ninguém... eu acho tudo isso meio apagado, não sinto muito
tesão”. Suas idéias sobre o papel do artista na sociedade, sobre arte e engajamento,
sobre a função política e erótica da obra de arte, sobre a produção e disseminação do
conhecimento no espaço urbano escapam ao ramerrão do livro. E é por isso que, se
não se sente patrulhado, sente que incomoda um número cada vez maior de pessoas,
como na história do elefante. É o que constata: “o que mais incomoda [as pessoas] é
a minha vontade de cotidianizar a política ou de politizar o cotidiano”. Como elemento
mediador entre o cotidiano e a política, o fazer -- o próprio fazer artístico. Pelo seu
produto é que o artista se exprime politicamente no cotidiano. Acrescenta ele: “me sinto
ligado a tudo que acontece mas através do que eu faço”. Caetano está definindo, no
dizer do Raymond Williams de The Long Revolution, “culture as a whole way of life”,
apagando a conjunção E que ligava tradicionalmente cultura e sociedade.
A outra e segunda exceção no livro de 1980 são as palavras da cientista social Lélia
Gonzales, negra e carioca de adoção. De início, denuncia o processo de embranquecimento
por que passa o negro quando submisso ao sistema pedagógico-escolar brasileiro,
anunciando a futura batalha do multiculturalismo contra o cânone ocidental: “e passei
por aquele processo que eu chamo de lavagem cerebral dado pelo discurso pedagógico-
brasileiro, porque, na medida em que eu aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava
cada vez mais a minha condição de negra”. Cutucada com vara curta sobre a liderança
de São Paulo no movimento negro de esquerda, com o fim de saber se é o intelectual
paulista que irá desempenhar o papel de mediador entre o Rio de Janeiro e a Bahia,
Lélia não titubeia na resposta: “O Rio de Janeiro é que é o mediador entre Bahia e São
Paulo. Porque, por exemplo, o negro paulista tem uma puta consciência política. Ele já
leu Marx, Gramsci, já leu esse pessoal todo. Discutem, fazem, acontecem, etc. e tal. Mas
de repente você pergunta: você sabe o que é iorubá? Você sabe o que é Axé? Eu me
lembro que estava discutindo com os companheiros de São Paulo e perguntei o que era
Ijexá. O que é uma categoria importante para a gente saber mil coisas, não só no Brasil
como na América inteira. Os companheiros não sabiam o que era Ijexá. Ah! não sabem?
Então, vai aprender que não sou eu que vou ensinar não, cara!” (...)
Desrecalcar a base cultural negra no Brasil não significa voltar ao continente
africano. Para Lélia, isso é sonho, sonho de gringo. Significa, antes, detectar na formação
dita científica e disciplinar dos intelectuais negros paulistas certa neutralidade étnica
que abole a diferença e que, por isso mesmo, permite -- apenas no privado, lembremo-
nos das palavras de Glauber Rocha -- a expressão de crenças religiosas subalternas.
Lélia afirma: “Nós aqui, no Brasil, temos uma África conosco, no nosso cotidiano. Nos
nossos sambas, na estrutura de um Candomblé, da macumba...” Sua fala política se

62
encaminha para a negociação pelas trocas culturais entre negros, brancos e índios, com
vistas a um Brasil que seria representado não mais como unidade, mas miscigenado,
multicultural, porque não há como negar “a dinâmica dos contatos culturais, das trocas,
etc.” Nesse sentido, uma das grandes questões colocadas por Patrulhas Ideológicas a
da democratização do Brasil após um longo período de autoritarismo militar --acaba por
ter uma resposta desconcertante para a esquerda, também autoritária, mas naquele
momento em plena crise de autocrítica: “Veja, por exemplo, a noção de Democracia. Se
você chegar num Candomblé, onde você, pra falar com a Mãe de Santo, tem de botar
o joelho no chão e beijar a mão dela e pedir licença, você vai falar em Democracia!?
Dança tudo.” Os grupos étnicos excluídos do processo civilizatório ocidental passam a
exigir alterações significativas no que é dado como representativo da tradição erudita
brasileira ou no que é dado como a mais alta conquista da humanidade, a democracia
representativa. Exigem autonomia cultural. (...)
As atitudes extemporâneas expressas no citado depoimento de Lélia Gonzales
abrem o leque das expectativas universitárias para outros campos e objetos de estudo
durante os três anos (1979 a 1981) a que estamos nos referindo. As Faculdades de
Letras -- formadoras de “literatos natos”, segundo a expressão brejeira de Heloisa, e
dedicadas tradicionalmente ao estudo da cultura duma minoria, no caso a letrada, que
se manifesta e dialoga pelo livro, -- são despertadas para a cultura da maioria.
São despertadas pela avassaladora presença da música comercial-popular no
cotidiano brasileiro. Por estar informada e formada pelo Estruturalismo francês e pelos
teóricos da Escola de Frankfurt, o despertar da minoria letrada não foi pacífico. É
surpreendente, por exemplo, que a primeira crítica severa à grande divisão (“the Great
Divide”, segundo a expressão já clássica de Andreas Huyssen) entre o erudito e o
popular com o conseqüente rebaixamento deste, tenha partido de um jovem intelectual
com formação na Universidade de São Paulo, o professor de Letras e músico José
Miguel Wisnik. Mais surpreendente, ainda, é que dele tenha partido a primeira leitura
simpática e favorável do cantor Roberto Carlos, ainda que, para tal tarefa, o crítico tenha
de se travestir pela fala da sua mulher, caindo literalmente numa “gender trap”.
Estamos nos referindo ao artigo “O minuto e o milênio ou Por favor, professor,
uma década de cada vez”, capítulo do livro Anos 70 - 1. Música popular . “A má vontade
para com a música popular em Adorno é grande”, começa por afirmar José Miguel.
Em seguida, constata que ela é conseqüência de dois fatores que acabam por nos
diferenciar dos europeus, optando o crítico brasileiro pela desconstrução do pensamento
adorniano. Em primeiro lugar, diz José Miguel, para Adorno, “o uso musical é a escuta
estrutural estrita e consciente de uma peça, a percepção da progressão das formas
através da história da arte e através da construção duma determinada obra”. Em
segundo lugar, observa, ainda, “o equilíbrio entre a música erudita e a popular, num
país como a Alemanha, faz a balança cair espetacularmente para o lado da tradição
erudita, porque a música popular raramente é penetrada pelos setores mais criadores
da cultura, vivendo numa espécie de marasmo kitsch e digestivo [...]”.
José Miguel contrapõe ao soturno quadro erudito europeu um cintilante cenário
brasileiro, marcado por “uma poética carnavalizante, onde entram [...] elementos de
lirismo, de crítica e de humor: a tradição do carnaval, a festa, o non-sense, a malandragem,
a embriaguez da dança, e a súbita consagração do momento fugidio que brota das
histórias do desejo que todas as canções não chegam pra contar”. Nesse sentido e entre
nós, há que primeiro constatar -- levando-se em consideração o pressuposto básico
levantado por Antonio Candido para configurar a “formação” da literatura brasileira --
que “a música erudita nunca chegou a formar um sistema onde autores, obras e público

63
[grifo nosso] entrassem numa relação de certa correspondência e
reciprocidade”. Apontando na balança dos trópicos desequilíbrio
inverso ao apresentado na balança européia, José Miguel retoma uma
Introdução aos descoberta clássica de Mário de Andrade, a que diz que no Brasil o
Estudos uso da música raramente foi o estético-contemplativo (ou o da música
Literários desinteressada). Em seguida, afirma que, entre nós, a tradição musical

é popular e adveio do “uso ritual, mágico, o uso interessado da festa popular, o canto-
de-trabalho, em suma, a música como um instrumento ambiental articulado com outras
práticas sociais, a religião, o trabalho e a festa”. (...)
Através da intervenção dum professor de Letras é que a crítica cultural brasileira
começa a ser despertada para a complexidade espantosa do fenômeno da música
popular. O seu modo de produção se dá num meio em que as forças mais contraditórias
e chocantes da nossa realidade social se encontram sem se repudiarem mutuamente. Em
lugar de separar e isolar vivências e experiências, em lugar de introjetar o rebaixamento
cultural que lhe é imposto para se afirmar pelo ressentimento dos excluídos, a música
popular passa a ser o espaço “nobre”, onde se articulam, são avaliadas e interpretadas
as contradições sócio-econômicas e culturais do país, dando-nos, portanto o seu mais fiel
retrato. No trânsito entre as forças opostas e contraditórias, José Miguel aposta em três
oposições que, por não o serem, acabam por integrar os elementos díspares da realidade
brasileira no caldeirão social em que se cozinha a música popular-comercial: “embora
mantenha um cordão de ligação com a cultura popular não-letrada, desprende-se dela
para entrar no mercado e na cidade; b) embora deixe-se penetrar pela poesia culta, não
segue a lógica evolutiva da cultura literária, nem filia-se a seus padrões de filtragem; c)
embora se reproduza dentro do contexto da indústria cultural, não se reduz às regras
da estandardização. Em suma, não funciona dentro dos limites estritos de nenhum dos
sistemas culturais existentes no Brasil, embora deixe-se permear por eles”.
A música popular no Brasil é “uma espécie de hábito, uma espécie de habitat, algo
que completa o lugar de morar, o lugar de trabalhar”, e é por isso que, no tocante às
década de 60 e 70, há que “pensar o oculto mais óbvio”: tanto o estrondoso sucesso
comercial de Roberto Carlos, quanto a simpatia despertada pela sua “força estranha”
em figuras do porte de Caetano Veloso. O crítico pergunta: “que tipo de força o sustém
no ar por tanto tempo? Por que ele?” O crítico se sente incapaz de pensar o paradoxo
do oculto mais óbvio. Será que isso é tarefa para mim?, deve ter perguntado a si antes
de dar continuidade ao artigo. José Miguel cai na armadilha do gênero (gender trap),
incapaz de responder à questão que é formulada pelo encadeamento orgânico do
seu raciocínio analítico. Eis que pede ajuda à sua mulher [sic] para que responda e
escreva sobre Roberto Carlos. A profundidade da escuta de Roberto Carlos só pode
ser captada por ouvidos femininos. Vale a pena transcrever o transcrito, deixando o
leitor jogar algum alpiste interpretativo no interior da armadilha para que se evidenciem
ainda mais as trapaças que o falocentrismo pode pregar:
“Ela disse: voz poderosa, suave, louca, ele [Roberto Carlos] realiza melhor do
que ninguém o desejo de um canto espontâneo, arranca matéria viva de si e entra
em detalhes, coisas mal acabadas, células emocionais primitivas, momentos quase
secretos de todo mundo (como as frases decoradas que a gente prepara para lançar
ao outro na hora de partir e que não chega a dizer nem a confessar), uma qualidade
romântica, ingênua e vigorosa, que unifica a sem-gracice, o patético, a doçura, o lirismo

64
que há em todos, e fica forte, quase indestrutível, pois soma anseios, ilusões, ideais
que também pairam por aí, mais além, estranho à realidade cotidiana de muitos.”
Dando continuidade à leitura reabilitada do melhor da música popular-comercial
brasileira, o crítico diz que poderia complementar o seu trabalho, ratificando a liderança
que veio sendo concedida por justo mérito a Caetano Veloso. O intérprete torna-se, ao
mesmo tempo, lugar de ver a produção dos contemporâneos e lugar onde ela pode ser
vista e analisada. Caetano é irônico por cair na armadilha de gênero que ele próprio
estabelece no processo de produção das suas canções; Caetano é romântico pela
recusa em cair na armadilha de gênero, já que se transforma em ouvinte e intérprete
de Roberto Carlos. Para “falar um pouco mais de Caetano a partir de Roberto Carlos”
é preciso assumir a fala rebaixada da mulher.
Três canções escreveu Caetano para Roberto Carlos: “Como 2 e 2”, “Muito romântico”
e “Força estranha”. Canções, segundo José Miguel, que refletem sobre o ato de cantar e
em que, como no caso de Flaubert e Madame Bovary mencionados por Huyssen, todos
os recursos de despersonalização e de identificação, de alteridade, são utilizados pelo
compositor/intérprete: “minha voz me difere e me identifica; noutras palavras, sou ninguém
que sou eu que é um outro”. Caetano injetou “reflexão critica” ao romantismo rebaixado/
enaltecido de Roberto Carlos. Pela ironia (como escapar dela nesse jogo de espelhos?),
ele acentuou “a tensão entre o sentimento romântico e a mediação da mercadoria”. (...)
Talvez seja correto afirmar que a memória histórica no Brasil é uma planta tropical,
pouco resistente e muito sensível às mudanças no panorama sócio-econômico e político
internacional. Uma planta menos resistente e mais sensível do que, por exemplo, as
nascidas na Argentina, terra natal de Funes, o memorioso. A passagem do luto para a
democratização, alicerçada pela desmemória dos radicais da atualidade, foi dada por
passadas largas que uns, e muitos julgam até hoje, precipitadas e prematuras. Para eles,
a anistia no Brasil, concedida a todos e qualquer um por decreto-lei, não deixou que o país
acertasse contas com o seu passado recente e negro. Desde então, sem planos para o
futuro, estamos mancando da perna esquerda, porque o passado ainda não foi devidamente
exorcizado. Nesse sentido, e dentro do pessimismo inerente à velha geração marxista, a
aposta na democratização, feita pelos artistas e universitários entre os anos de 1979 e 1981,
abriu o sinal verde para o surgimento nas esquerdas de uma “cultura adversária”. (...)
É inegável que os resultados obtidos pelas passadas largas, precipitadas e
prematuras, dadas principalmente pelos jovens artistas e universitários, redundaram
em questionamentos fundamentais da estrutura social, política e econômica brasileira.
Ao encorajar o ex-guerrilheiro a se transformar de um dia para o outro num cidadão,
os desmemoriados ajudavam a desmontar no cotidiano das ruas o regime de exceção,
chegando a ser indispensáveis na articulação das pressões populares pelas “diretas
já”. Ao redimensionarem o passado recente, também redirecionaram o gesto punitivo
para a formação cultural do Brasil, estabelecendo estratégias de busca e afirmação
de identidade para a maioria da população, que vinha sendo marginalizada desde a
Colônia. Ao questionarem o intelectual pelo viés da sua formação pelas esquerdas
dos anos 50, induziram-no à autocrítica e tornaram possível a transição da postura
carismática e heróica dos salvadores da pátria para o trabalho silencioso e dedicado
de mediador junto às classes populares. Ao acatarem a televisão e a música popular,
com suas regras discutíveis e eficientes de popularização dos ideais democráticos,
conseguiram motivar os desmotivados estudantes, também desmemoriados, a irem
para as ruas e lutar a favor do impeachment do presidente Collor.

65
O texto de Silviano Santiago elucida muitas questões e faz o árduo caminho
de se tentar traçar uma espécie de genealogia para uma nova forma de crítica
cultural a ser feita no Brasil. Ele cita exemplos tomando como ponto de partida o
fim do golpe militar e algumas de suas conseqüências que se tornariam mais tarde
Introdução aos
temas de debates e de outras discussões. O mosaico de citações feito por Silviano
Estudos
apresenta ao leitor uma tentativa de se passar a ler o país e suas produções
Literários ampliando o leque de visão no momento em que se começa a colocar em cena
uma cultura que até então vinha sendo sonegada pela historiografia e pela crítica cultural.
O desafio que dá título ao texto ainda nos é lançado mesmo após a tal virada do
século. Ao leitor, professor, possível formador de opinião, Silviano tensiona a questão
para o fato de se tentar, nas intempéries do cotidiano, ultrapassar preconceitos e ampliar,
permanentemente, o campo da visão e da sensibilidade.

Vozes da América Latina: a inserção de outras leituras

A abertura da crítica literária para outras


produtos culturais, ampliando o próprio conceito
de literatura, teve uma importância capital para
o processo de democratização da arte. Uma
democratização que permitiu a ampliação
do conceito de arte para outras formas de
produção cultural, como a música popular, o
cinema, revistas em quadrinhos.
Ressaltamos que esse processo se
insere em um projeto maior, sob o patrocínio
inegável dos estudos culturais, que orienta-se
em direção a dois questionamentos principais.
O primeiro consiste em pensar a legitimidade do discurso histórico diante da literatura,
problematizando a oposição entre o “real” e o “ficcional”, cujos limites se esmaecem diante de
um olhar culturalista, que reconhece a imparcialidade de qualquer relato e o entrecruzamento
entre o vivido e o imaginado. O segundo é a desconstrução da hierarquia de autores canônicos
diante de autores que foram mantidos à margem por críticos literários orientados por uma
perspectiva eurocêntrica, ou seja, que privilegiam modelos de matriz européia.
A desconstrução de hierarquias reverbera para a abertura da cena cultural não apenas
para escritores, mas, também, para críticos de outros países, a exemplo da emergência dos
latino-americanos Silviano Santiago, Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia. Desse modo, a partir
dessa abertura, passou-se a ouvir vozes provenientes dos países latino-americanos, que
discutiam questões a eles pertinentes. Devemos ressalvar, no entanto, que, ao pontuar
a emergência dessas vozes, não defendemos, com isso, uma postura adversa ao olhar
estrangeiro (europeu, norte-americano, indiano) sobre a América Latina. Defendemos, na
verdade, a importância de imprimir uma discussão em debates sobre cultura, a partir dessa
própria cultura, permitindo que, ao lado de um olhar estrangeiros, muitos deles já legitimados,
outros olhares possam ser contemplados. Devemos atentar, ainda, que a crítica de caráter
local, isto é, as reflexões de Silviano Santiago não se limitam ao Brasil, do mesmo modo que
as considerações de Beatriz Sarlo sobre a condição pós-moderna na Argentina, em Cenas
da vida pós-moderna, não se encerram e não concernem apenas à Argentina.

66
Uma outra contribuição trazida pelos estudos culturais é o descentramento da figura
do autor diante do leitor. Nesse sentido, o leitor passa a endossar o texto também como seu
autor, uma vez que, sem a sua leitura não há produção de sentido e o texto torna-se, apenas,
uma reunião de páginas. No mesmo movimento, o autor, também, atua como leitor na cena da
escritura, pois a escrita envolve a leitura, já que não é possível falar sem acionar outras leituras e
uma comunidade de outros autores, conforme Michel Foucault sinaliza em O que é um autor?
Destituído do estigma de decodificador de textos, o leitor passa a ser considerado
um produtor de sentidos e a sua leitura liberta-se da ânsia de seguir padrões cristalizados e
alcançar a “melhor” interpretação. É desse modo que, a partir dessa reviravolta nos estudos
literários, a interpretação passa a ser vista como algo “pessoal e intransferível”, como Silviano
Santiago subintitula o seu texto “Singular e anônimo”, em Nas malhas da letra, subtítulo a
partir do qual indica que a leitura – ele refere-se, em especial, à de poesia – não deve ser
transferida como a mais adequada a outros leitores, nem por esses apropriada.
“‘Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor’ – comecemos a ler um trecho no
final da Correspondência completa, longo poema-carta de Júlia, endereçado a ‘My dear’.
Dizendo que é difícil fazer literatura para Gil, o poema nos diz que ele não existe para
um leitor de nome próprio. O leitor, quando nomeado poeticamente, é anônimo, é aquele
a quem realmente foi endereçado o poema: ‘My dear’ – hipócrita, semelhante e irmão. No
poema citado, o leitor não tem e não pode ter nome próprio. O leitor se dá nome, isto é,
personaliza a relação poema-leitor, quando ele próprio, leitor, se alça ao nível da produção
dita pública (papo, artigo, livro, sala de aula, conferência etc.), nomeando a si como tal,
assinando, responsabilizando-se. Quanto da assinatura do poeta não se apega na assinatura
do leitor (crítico, professor, exegeta etc.).
[...]
[...] Em didática tradicional, o que se pede – não tenhamos dúvida – é o endosso do
aluno à assinatura oral do professor. A didática moderna é apenas mais ilusória, incorrendo na
falácia do coletivo, ao acreditar que se pode fazer uma leitura com a fita durex que emenda
as impressões mais acertadas (de que ponto de vista?) e as mais díspares dos alunos.
Nem um único nem todos.
Qualquer, desde que enfrente as exigências: singular e anônimo. [...]”
(SANTIAGO, 2002, p. 65, 6)

Sendo pessoal e intransferível, o leitor de poesia não pode portanto, limitar-se a leituras
já realizadas sobre um determinado poema. Sobre a concepção de leitura de poesia, Silviano
Santiago forja duas imagens, a saber, a do guardião e a de vestal, ou seja, para o autor o
leitor não deve ser dogmático, nem cético em sua leitura. Para falar sobre estas posturas
diante do texto, Santiago prefigura duas imagens. A primeira, representada por Mary, seria
o leitor que se comporta como um “vestal”, isto é, um guardião do poema, cujo sentido deve
ser resguardo e é inatingível. A segunda é o detetive, representado por Gil, incumbido da
missão de desvendar os poemas, buscando pistas no autor, e desconsiderando, por vezes,
o papel do leitor no processo de produção de sentido.
“Gil quer desvendar o poema a partir do desejo-do-outro, vicária e parasitariamente,
e não compreendê-lo a partir do seu próprio desejo. Gosta de acumular sem gastar.
Gil é o leitor medroso de se afirmar, de quebrar a barreira que interdita o outro, de
transgredi-la prazerosamente em favor de uma comunhão/combustão. Tem medo de avançar
como alteridade que separa o sujeito do objeto, guardando a distância dita objetiva. Esquece-
se de que, no ler, busca-se exatamente a maneira de se identificar com o outro, guardando
no entanto os próprios sentimentos, a individualidade, a intimidade.
[...]

67
Já Mary toma o hermetismo ao pé da letra: o poema é indevassável
ao leitor como uma doutrina esotérica. É preciso se iniciar diante do que,
por mais que nos adentremos, não perde a condição de enigma a desafiar
infinitamente a curiosidade do homem. Como Gil, Mary está certa no princípio
Introdução aos
(o poema certamente coloca exigências para os que dele querem fruir), mas
Estudos
errada na maneira como generaliza tal princípio, como que mitificando o que
Literários existe de literário no poema (mas não só de literário vive um poema, poderia
lhe dizer um Gil mais lúcido.). Assim sendo, o poema só pode ser para ela “literatura pura”:
‘me lê toda como literatura pura’, diz o poema.
Por isso é que Mary “não entende as referências diretas”. São estas que rompem
o processo de mitificação do literário pelo literário, rompem o círculo vicioso, corroendo-o,
instaurando a possibilidade, na leitura, de uma ‘comunhão’ [...].”
(SANTIAGO, 2002, p. 69, 71)

Salientamos que a leitura não deve ser considerada, no entanto, um jogo de vale-tudo.
A interpretação tem um caráter subjetivo, mas devemos, enquanto professores de literatura,
identificar desvios muito acentuados do sentido do texto lido. Pois sabemos que um texto
tem diversas significações, afinal, se assim não fosse, uma narrativa escrita no século XVIII
não teria interlocutores em outras épocas e, através deles, não poderiam ser atualizadas.
O que enfatizamos, entretanto, são as limitações que o estabelecimento de um único modo
de leitura ou uma única forma de interpretação pode causar no leitor.
Um outro crítico latino-americano, o argentino Ricardo Piglia falou, em entrevista
com Mônica López Ocón, sobre o caráter subjetivo da leitura e o deslocamento da noção
de intenção ou mesmo leitura “melhor”. Ao ser perguntado sobre as leituras feitas sobre ele
e seus livros e as possíveis lacunas nessas interpretações, o escritor responde:
“Como eu gostaria que meus livros fossem lidos? Tal qual eles são lidos. Nada mais
que isso. Por que o escritor teria que intervir para afirmar ou retificar o que se diz sobre sua
obra? Cada um pode ler o que quiser num texto. Há bastante repressão na sociedade. Claro
que existem estereótipos, leituras cristalizadas que passam de um crítico a outro: poderíamos
pensar que essa é a leitura de uma época. Um escritor não tem nada a dizer sobre isso.
Depois que alguém escreveu um livro, o que mais pode dizer sobre ele? Na realidade, tudo
o que pode dizer é o que escreve no próximo livro.” (PIGLIA, 1994, p. 67)
Ao tratarem sobre o lugar do leitor na produção de sentidos e a necessidade de dar a
voz ao outro, os escritores latino-americanos enfocados parecem sinalizar para a importância
de ampliar o espaço de discussão para outras vozes. Incluem-se, entre essas, a de autores que
sempre estiveram fora do retrato e críticos que, leitores de teóricos de outras nações, demandam
seus espaços na cena crítica cultural contemporânea, como intérpretes locais e globais.

O Cânone

Durante todo este tempo, alguns nomes foram lançados neste material sem que se
questionasse o porquê deles estarem aqui em detrimento de tantos outros. A resposta é
simples: eles compõem o acervo de escritores ou obras nós escolhemos (às vezes até
inconscientemente) devido ao fato deles fazerem parte do nosso repertório de estudo, de
vida. É claro que cada um tem um repertório variado, por isso a variedade de vozes que
aparecem durante a nossa escrita que cita outros textos de outros autores que, por sua vez,
citam tantos outros autores. Ao longo da vida, nos deparamos com obras que são tidas como
sendo obras clássicas. Mas, o que seria um clássico? De onde vem essa palavra?

68
O termo clássico surgiu derivado do adjetivo latino classicus, que indicava o cidadão
pertencente às classes mais elevadas de Roma. No século II d.C. um certo Aulo Gelio
(Noctes Atticae) utilizou-o para designar o escritor que por suas qualidades literárias poderia
ser considerado modelar em seu ofício: “Classicus scriptor, non proletarius”. Durante o
Renascimento, o termo clássico reapareceria, seja em textos latinos, seja nas línguas
vernáculas, referindo-se tanto a autores greco-latinos quanto a autores modernos da própria
época, considerados modelos de linguagem literária na língua vernácula. No século XVIII - o
termo se estenderia aos autores que aceitavam os cânones da retórica greco-latina: ordem -
clareza - medida - equilíbrio - decoro - harmonia e bom gosto. Tornou-se, pois, a base de uma
estética essencialmente normativa. Assim, clássico, indicando modelo exemplar, cristalizou-
se como tradição, como cânone gramatical e semântico, como relicário do idioma e como
um conjunto de regras imutáveis, isto é, universais e atemporais. No plano da mensagem,
o que valia para caracterizar um clássico era a sua dimensão edificante, seus componentes
morais e a sua capacidade de apresentar as paixões humanas de forma decorosa.
No século XIX, a grande rebelião romântica começou a destruir a rigidez conservadora
que envolvia a idéia de uma obra clássica. Victor Hugo mandou as regras às favas, abrindo
um caminho mais liberto para a criação literária. Contudo, foram as vanguardas das primeiras
décadas do século XX - especialmente Futurismo e Dadaismo - que levaram a ruptura com
o classicismo às ultimas conseqüências, propondo, a exemplo de Marinetti, a destruição de
bibliotecas, museus e tudo aquilo que representasse o “peso vetusto da tradição”.
Passado o furor das vanguardas, o que ficou? No plano do senso comum, clássico,
hoje, indica uma obra artística superior, definitiva e que, por seus vários elementos estético-
ideológicos, aproxima-se daquilo que (de forma mais ou menos nebulosa) chamaríamos de
‘perfeição’. Porém esta obra não tem mais o sentido normativo que possuía no passado
já que sua beleza lhe é irredutivelmente própria. Verdade que, nas escolas, a reverência
exagerada aos clássicos - sobretudo aos da Antigüidade - veio até a década de 1960, a ponto
de muitos de nós, professores, termos sido torturados, nas aulas de língua portuguesa, com
a análise sintática de Os Lusíadas. As sucessivas mudanças culturais, ocorridas no Ocidente,
especialmente a partir dos anos de 1960, quebraram toda e qualquer idéia de obra modelar
e instauraram um conceito mais amplo e flexível do que seria um clássico.
Esquematicamente poderíamos apontar alguns traços definidores do que hoje se
considera um texto clássico:
1. São obras que ultrapassam o seu tempo, persistindo de alguma maneira na memória
coletiva e sendo atualizada por sucessivas leituras, no transcurso da história.
2. Apresentam paixões humanas de maneira intensa, original e múltipla. São paixões
universais (ou pelo menos “ocidentais”) e têm um grau de maior ou menor flexibilidade em
relação à historicidade concreta.
3. São obras que registram e simultaneamente inventam a complexidade de seu
tempo. De maneira explícita ou implícita desvelam a historicidade concreta, as idéias e os
sentimentos de uma época determinada. Há uma tendência geral: quanto mais explícita for
a revelação histórica, menor o resultado estético. Na verdade, o espírito da época deve estar
‘introjetado’ na experiência dos indivíduos.
4. São obras que criam formas de expressão inusitadas, originais e de grande
repercussão na própria história literária. Há clássicos que interessam em especial (ou talvez
unicamente) ao mundo literário, como, por exemplo, o Ulisses, de Joyce.
5. São obras de reconhecido valor histórico ou documental, mesmo não alcançando
a universalidade inconteste. Nesta linha situam-se aquelas obras que são clássicas
apenas na dimensão da história literária de um país, como, por exemplo, a obra de José
de Alencar, ou apenas de uma região, como por exemplo as obras de Cyro Martins ou
Aureliano de Figueiredo Pinto.

69
6. Talvez a característica fundamental de uma obra clássica seja a sua
inesgotabilidade. Ou como diz Calvino: “Um clássico é um livro que nunca
terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.
7. Um clássico é fundamental também pelo efeito que deflagra na consciência
Introdução aos
do leitor. Sob esta ótica, devemos considerar que ele é, simultaneamente:
Estudos
• Forma única de conhecimento – transmite paixões humanas oriundas
Literários de um patrimônio universal (que é a experiência do homem);
• Utilização da linguagem de uma maneira exemplar, original e inesperada;
• Um conjunto de revelações, idéias e sentimentos que têm a propriedade de durar na
memória mais do que outras manifestações artísticas (música, cinema, etc.) Estas podem ter (e
geralmente têm) um impacto maior na hora da fruição, mas seu prolongamento emotivo – a sua
duração - é mais breve e inconsistente do que o proporcionado pela grande obra literária.
Um não contra a morte. Por perdurar, a obra clássica ultrapassa o tempo e a finitude
humana. De uma certa forma, é um protesto contra o “sem sentido” da vida.
Bom, vimos as definições, até mesmo os adjetivos que se atrelam ao universo dos clássicos.
Vimos, ainda, um tipo de fórmula que delimita um obra como clássica. Mas em nenhum momento
foi colocada a questão da nossa escolha, do nosso arbítrio, das reflexões que nos levam a amar
ou a odiar uma obra, mesmo que esta seja um clássico ou uma obra desconhecida.
Eis uma tarefa para o escritor Ítalo Calvino. Aprecie alguns trechos (trouxemos apenas
as premissas sem os comentários) da obra do autor!

Por que ler os clássicos

Ítalo Calvino - texto de 1981

1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “Estou
relendo...” e nunca “estou lendo...”.
2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os
tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a
sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.
3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se
impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória,
mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.
4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.
5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.
6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer
7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas
das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas
culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).
8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos
críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe.
9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer,
quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.
10. Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo,
à semelhança dos antigos talismãs.
11. O “seu” clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para
definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.
12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes
os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia.

70
13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de
fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.
14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a
atualidade mais incompatível.

O escritor deixa seu leitor livre para se posicionar, falar, escolher, decidir o que fará
parte da estante designada aos seus clássicos. É uma postura extremamente aberta e
conciliadora: não impõe hegemonicamente seu ponto de vista, ao perceber a quantidade
de obras em contato com o leitor.
E Calvino fecha seu texto dizendo:

Agora deveria reescrever todo o artigo, deixando bem claro que os clássicos
servem para entender quem somos e aonde chegamos(...)
Depois, deveria reescrevê-lo ainda mais uma vez para que não se pense que os
clássicos devem ser lidos porque “servem” para qualquer coisa. A única razão que se pode
apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos.
E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo
menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido
na Itália): “enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta.
‘Para que lhe servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’”.

Para ler o texto na íntegra, consulte o site:


http://www.lumiarte.com/luardeoutono/calvino.html

Revendo a noção de “literatura”

A seguir, teremos um texto fazendo um breve panorama sobre o que se convencionou


no Brasil como sendo Literatura Marginal. O leitura de obras neste texto, no entanto, vai
até o início dos anos 80.

71
O que ficou da poesia marginal?

Não só a política está interessada em rever os anos do sufoco.


Introdução aos A literatura também quer saber se valeu a pena a criação poética
Estudos dos anos 70.
Literários

Olha a passarinhada
Onde?
Passou.

CHARLES

A “literatura marginal” escrita nos anos 70 está balizada por duas mortes: a de
Torquato Neto (“e vivo tranqüilamente todas as horas do fim”), que marca o melancólico
início, e a de Ana Cristina César (“Estou muito concentrada no meu pânico”), que chama
a atenção para o gran finale de sua geração.
Avaliada por muitos como o surto da biotônica vitalidade contra a ditadura militar
instalada no País, seus poetas praticavam quase sempre um ritual mórbido em torno
dos grandes mortos da contracultura - Jimi Hendrix e Janis Joplin, entre outros - e uma
intensa (auto) flagelação, presente desde o confessado uso de drogas até o desprezo
paradoxal pela cultura, sobretudo a literária.
A poesia que resultou dos anos loucos é o retrato bem-acabado dessa inanição
intelectual. Argumenta-se, hoje, que a repressão não permitiria coisa diferente. Trata-se,
contudo, de uma idéia primária: a poesia de Garcia Lorca seria legível em nossos dias,
caso sucumbisse em qualidade à ditadura franquista, e detonasse poemas-piadas e
impressões instantâneas, como as que compuseram o lugar-comum da poesia marginal?
Qualquer ditadura ficaria agradecida com o nível de contestação dos livrinhos vendidos
de mão em mão, de reduzidíssimo poder de fogo.
A prática poética da geração 70, além disso, é um elogio ao anacronismo: a maioria
dos poemas, seja pela técnica, seja pelo tratamento dispensado ao tema, configura
uma imitação detalhada da poesia que se escreveu nos primeiros anos do Modernismo
brasileiro (1920 a 1930). Os poemas de Oswald de Andrade, por exemplo, podem ser
facilmente confundidos com as anotações dos poetas marginais. Chacal, em “Papo
de Índio”, chega ao extremo de repetir a fórmula da Antropofagia:
veiu uns ômi de saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui eles disserum qui chamava açucri.
aí eles falarum e nós fechamu a cara.
depois eles arrepetirum e nós fechamu o
corpo.
aí eles insistirum e nós comeu eles.
Quando Heloisa Buarque de Hollanda publicou Impressões de Viagem (1980),
não desconfiava que seria eleita madrinha dos marginais. Era uma tarefa espinhosa.
Deve ser por tudo isso que, retornando de outra viagem, impressionou-se e pediu mais
competência à nova geração. Seu livro é uma leitura bem articulada do engajamento
político da década de 60 e da dispersão da geração 70, dois momentos que estuda com
igual simpatia. É acusado freqüentemente de ser provinciano, por se limitar aos grupos

72
do Rio de Janeiro. Envolvendo-se com teorias que pertencem quase sempre a Benjamin
e a Lukács, Heloisa desloca a discussão acerca do literário para o plano da produção
intelectual, tentando desfazer o suposto equívoco entre oposição e opção alternativa.
Ao que parece, deu preferência a um projeto mais globalizante: “O texto, a produção do
livro e a própria vida desburocratizada dos novos poetas sugerem, de maneiras muito
parecidas, o descompromisso como resposta à ordem do sistema. “No entanto, torna-se
dificílimo contemplar “força subversiva” na prática declarada da ignorância: a defesa do
caráter da momentaneidade, da experiência artesanal e do binômio arte/vida pode muito
bem condenar uma literatura, ainda que seus “escritores” não se incomodem com críticas
à qualidade literária. Nem poderiam: o que eles fizeram foi causar tédio pela vereda
florida da falta de intenções. O sucesso de suas teses, no entanto, abriu campo para
outros estudos, como o do melhor documentado (mas preso aos rigores acadêmicos)
trabalho de Carlos Alberto Pereira, Retrato de Época (1981), amplamente centrado na
poesia e com curiosos depoimentos do way of life marginal.
Porém, a simpatia generalizada começou pouco a pouco a declinar, e muitas vezes
pelas palavras de antigos companheiros de viagem. Paulo Leminski, cujo depoimento
é insuspeito, participou aqui e ali com alguns poemas típicos, mas define com rigor a
produção intelectual da época. Em entrevista ao Correio das Artes (8-7-84), de João
Pessoa, declarou: “A chamada poesia marginal dos anos 70 é uma poesia, em grande
parte ignorante, infanto-juvenil, tecnicamente inferior aos seus antecessores.” Incultos,
como faz supor Leminski, leram rápida e confusamente alguma coisa de Nietzsche e
os almanaques contraculturais de Herbert Marcuse e Wilhelm Reich, salpicando toda
essa salada sexual de zen-budismo e, entenda quem puder, misticismo coloquial.
Se dependesse dos próprios malditos, o que escreveram jamais seria considerado
poesia. Assim pensa Cacaso de seu livro Segunda Classe: “É uma coisa inteiramente
informal, é um negócio meio repentista assim. A gente estava era curtindo, a verdade é
essa.” Francisco Alvim, por sua vez, tinha um desprezo consciente pelo que escrevia.
Acerca de seu livro Passatempo, disse: “Ele se escreveu. Não me interessa inclusive a
qualidade dele; eu acho que é uma resposta, é uma coisa que eu escrevi na minha vida.”
É igualmente curioso observar uma vertente que gostava de agredir o conhecimento
livresco em troca de um outro que, como se supunha, aprendia-se nas ruas. Escreveu
Charles: “A sabedoria tá mais na rua que/ nos livros em geral/ (essa é a batida mas
batendo é que faz render)/ bom é falar bobage e jogar pelada/ um exercício contra a
genialidade.” Eles conseguiram! O próprio Charles, por exemplo, escreveu poemas
que não poderiam ser mais lúcidos e que retratam bem o que acontecia na rua:

HORA ILUMINADA
mastigando uma pêra
de bobera
às três em ponto.

Por mais que o poema “Suspiro”, de Francisco Alvim, se resuma ao verso “A vida
é um adeuzinho”, quem será capaz de decorá-lo? Por mais que Chacal insista em
procurar “na beira de um calipso neurótico / um orfeu fudido”, ele só encontrará algo
bem pior, ou seja, um poeta que escreveu versos como “doce dulce dá-se dócil”.
Naquela década, contudo, a poesia estava sendo salva pela estréia salutar de
Adélia Prado, pela laboriosa anarquia de Roberto Piva, e ainda por Antônio Carlos
Sacchin e Armando Freitas Filho. São nomes pinçados de um profundíssimo
caldeirão de poetas que entornou bons e maus versos. José Paulo Paes, que cultivou

73
o epigrama irônico, é uma bela demonstração de como a síntese
não é necessariamente a indigência poética de quem pensa que
hai-cai é o garrancho abandonado nas paredes dos mictórios. Num
Introdução aos levantamento sumário, o ex-poeta engajado Moacyr Félix arrolou um
Estudos número monstruoso de poetas estrelados na década de 70, que hoje
Literários ninguém sabe por onde andam e o que escrevem. É preciso citar,

ainda, alguns nomes que não permitiram fazer da década um imenso deserto cujas
areias terminam onde começam as de Ipanema. Do oásis plantado por alguns bons
livros, que dissiparam as fumaças das dunas baratas, ressalte-se que os anos 70
serviram para consolidar a literatura escrita por mulheres como Olga Savary, Miriam
Fraga, Hilda Hilst e Laís Correa de Araújo, entre outras.
O poema mais significativo dos anos 70 não foi escrito por nenhum poeta do
desbunde ou outro qualquer que tenha perdido o bonde, mas por um poeta exilado.
Com Poema Sujo (1977), Ferreira Gullar elevou a um só tempo a poesia engajada a
poesia memorialística e as técnicas mais modernas do verso.
Hoje, quase todos os poetas marginais já têm obra completa publicada - comparecendo
com uma poesia extremamente datada. Embora vulgar, o argumento de que o “vazio
cultural” dos anos 70 causou a aparição de uma poesia oca precisa ser considerado, ao
menos por definir uma produção já envelhecida. A melhor contribuição daqueles poetas
depositou-se nas letras de música popular e em roteiros para filmes ou programas de
televisão, formas que escapam à pequenez das edições mimeografadas, embora caiam
no circuito outrora execrado. Waly Salomão é exemplo de escritor que adaptou-se bem
às letras de música, bastante superior à sua prosa. De resto, sua formação cultural é
bem mais sofisticada do que a de qualquer outro brincalhão do circo das letras.
Ninguém vive bem em tempos políticos difíceis, ainda mais na companhia de
poemas intragáveis. Há coisas constrangedoras como esta:
Tenho pena dos pobres, dos aleijados, dos
velhos
Tenho pena do louco Neco Vicente
E da Lua sozinha no céu
que, embora assemelhe-se aos poetas da lavra
marginal, pertence a Jorge de Lima - com
uma ressalva, porém: quando a escreveu, ele
tinha apenas 9 anos de idade. Freud afirmava
que toda criança é um perverso polimorfo – e
deve estar certo, pois pelo menos em poesia as
infâncias se confundem.

(Felipe Fortuna, poeta e ensaísta. Ainda não tem geração.)


Texto encontrado no Jornal do Brasil, Caderno B/Especial, 07 de setembro de 1986.

Este breve panorama sobre a literatura marginal no Brasil nos auxilia a continuar
pensando no movimento de abertura para outras ramificações teóricas que surgiam
constantemente nas comunidades letradas do país e de algumas partes do mundo. O
movimento da poesia e da literatura marginal sonda possibilidades narrativas que nos anos
80 promoveram um boom da memória, que tem como marco o relato de Gabeira em O que

74
é isso companheiro. A partir de então, surgem obras pautadas na memória e na experiência.
Discursos de classes tidos à margem do sistema literário, aparecerão com maior força
desestabilizando ainda mais a instância sacra em que a literatura se encontrava.
A literatura contemporânea conta com vozes de escritores como Marcelino Freire, Ferréz,
Paulo Lins, MV Bill, Celso Athayde, que algumas vezes narram a partir de um determinado local
que habitaram ou habitam – a favela, como no caso de Ferréz, Bill, Athayde – ou se colocam
como militantes da causa, inserindo-se no espaço da memória que narra também a experiência
do outro, como sugere Silviano em sua explanação sobre o narrador pós-moderno.

TOTONHA
(Marcelino Freire)

Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, cientifico? Já viu juízo de
valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso.
Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito.
De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui
no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?
O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o
vale-lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, tá me entendendo?
Demente como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a
bosta do que eu. A química.
Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mes¬mo seco, mesmo esculhambado? O
risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?
Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço
que o meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o
sol tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?
Morrer já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá.
Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença.
Tenha santa paciência!
Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só para a mocinha
aí ficar contente? Dona professora, que valia tem meu nome numa folha de papel, me
diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está
atrás do nome não conta?
No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos
aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não
mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.
Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem
for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me
deixem sozinha. Eu e a minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?
Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O prefeito que aprenda. O doutor.
O presidente é que precisa saber ler o que assinou. Eu é que não vou baixar a minha
cabeça para escrever.
Ah, não vou.

FREIRE, Marcelino. Contos negreiros.

Esse tipo de literatura, pautada em relatos de classes que apresentam a precariedade


em que vivem, denotam a singularidade de cada situação e sua potência, como no caso
de Totonha, que se nega a entrar no vicioso círculo social ilustrado e burocrático que

75
maquia outras necessidades dos cidadãos. Essa literatura não só ratifica
a possibilidade e potência de existência, muito mais que de resistência
de um grupo que inspira novas criações e teorias. No mesmo rastro que
Totonha, encontramos o filme Estamira, a narrativa de Cidade de Deus, os
Introdução aos
romances de Ferréz – Ninguém é inocente em São Paulo; Capão Pecado
Estudos
e tantos outros manifestos de movimentos que ocorrem cotidianamente.
Literários Esses movimentos denunciam não apenas a violência e a desigualdade
social, mas a intensidade dos discursos em que vivem, seu poder de grupo, de corporação.
Sua potência de também poder escolher o que quer ser.
A literatura contemporânea é uma confirmação de que a vida não basta, por isso tantas
insinuações e movimentos contra a maré. Por isso, também, narrar: para legar ao literário
o rastro da existência de cada um que a cada dia, no imbricado da literatura e da vida, vem
sendo lançado para dentro de universos irremediáveis. Boa leitura sempre! E boa viagem!

Para saber mais, visite:


http://ferrez.blogspot.com/
http://www.eraodito.blogspot.com/
http://www.vivafavela.com.br/

Atividades
Complementares
• Vimos muitas nomenclaturas e teorias durante nosso curso e agora gostaríamos que
você traçasse um seguimento acerca desses assuntos na sua vida. Tome como ponto de
partida a noção que você tinha do Literário antes do curso e como você pensa esse mesmo
universo artístico agora.
• Relacione os conceitos aristotélicos de mimesis e catarse aos textos e teorias colocados
em cena durante o curso, que enfoquem, prioritariamente, vertentes discutidas sobre os Estudos
Culturais, para refletirmos como essas instâncias literárias, atreladas à reflexão humana por
séculos, pode se configurar no estudo e interpretação de textos contemporâneos.

76
Glossário 31

Alegoria- discurso que faz entender outro, numa linguagem que oculta a outra.
Podemos considerar alegoriaa toda concretização, por meio de imagens, figuras e pessoas,
de idéias, qualidades ou entidades abstratas. O aspecto material funcionaria como disfarce,
dissimulação, ou revestimento, do aspecto moral, ideal ou ficcional.

Alusão – toda referência, direta ou indireta, propositada ou casual, a uma obra,


personagem, situação, etc., pertencente ao mundo literário, artístico, mitológico, etc.

Ambigüidade – que apresenta duas faces, dois ou mais sentidos. Plurissignificação.

Catarse – efeito promovido pela liberação de emoções através da simpatia ou medo,


como, por exemplo, por ocasião de uma performance teatral; próprio do drama.

Conflito – qualquer componente de uma história (personagens, fatos, ambiente,


idéias, emoções) que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da história
e prende a atenção do leitor.32

Crise – do grego, decisão, julgamento; momento assinalado que numa peça de teatro
ou narrativa se processa o encontro decisivo das forças em conflito, que provoca as opções
definitivas e o epílogo irremediável.

Drama- essencial e historicamente, a palavra vincula-se ao teatro, isto é,a arte


da representação.33

Épica - palavra, narrativa, poema, recitação. Diz respeito à epopéia, e aos heróis.

Fanopéia – consiste em “projetar o objeto (fixo ou em movimento) na imaginação visual”

Ficção – sinônimo de imaginação e invenção, encerra o próprio núcleo do conceito de


Literatura: Literatura é ficção por meio da palavra escrita. Entretanto, o vocábulo se emprega,
costumeira e restritivamente, para designar a prosa literária em geral, ou seja, a prosa de ficção.

Logopéia – criação de palavras. Designa, de modo geral, a arte de combinar as


palavras a fim de sugerir a idéia de beleza pela forma e pelo conteúdo.

Melopéia – consiste em “produzir correlações emocionais por intermédio do som


e do ritmo da fala”.

Metáfora – transporte, translação; consiste no transportar para uma coisa o nome de


outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de uma
para a espécie de outra, ou por analogia.34
31 - MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974. Utilizado para a maior parte dos os termos
extraídos deste glossário.
32 - GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, [S/d].p. 11.
33 - Para significado mais abrangente do termo, consultar páginas 161 a 163 do Dicionário de Termos Literários.
34 - Ibidem. p 323 a 333

77
Mimese – imitação.35

Introdução aos
Rubrica36 - sinal indicativo dos movimentos e gestos dos atores,
Estudos
consignado nos respectivos papéis.
Literários
Pantomima37 – arte ou ato de expressão por meio de gestos.

Paronomásia- do grego paronomasia; para, “próximo de”; onomasía, denominação.


Designa uma figura de linguagem que consiste no emprego de vocábulos semelhantes
mas de significados opostos.

Simbolismo – no sentido genérico, o termo encontra-se ligado à símbolos e às atitudes


simbolistas. O movimento literário e cultural datado do final do século XIX e início do século
XX diz respeito a uma negação da arte representada pelo Realismo, e a retomada de valores
do Romantismo, com acréscimo de novos dados.38

Símile – coisa semelhante; figura de pensamento, até certo ponto sinônimo de


comparação, o símile dela se distingue na medida em que se caracteriza pelo confronto de
dois seres ou coisas de natureza diferente, a fim de ressaltar um deles.

35 - Ibidem. p. 335 a 338.


36 - HOLANDA, Aurélio.Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. p.1072
37 - Op. Cit. p.892.
38 - Para maiores esclarecimentos, verificar em Dicionário de Termos Literários, op.cit.

78
Referências
Bibliográficas
ABDALA JUNIOR, Benjamin. Camões. Épica e Lírica. São Paulo: Scipione, 1993.

ABRÃO, Bernadette Siqueira (org.). História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural 1999.
Coleção Os Pensadores.

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias.São Paulo: FTD,


1992.

ANDRADE, Mário de. Macunaíma.20a. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Poética. Rio de Janeiro: Edições Ediouro, 1977.

ASSIS, Machado. Obras Completas.Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1971.

BANDEIRA, Manoel. Libertinagem & Estrela da Manhã. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000.

BAKTHIN, Mikhail.Questões de Literatura e de Estética (Teoria do Romance).4a ed. São


Paulo: Unesp, 1998.

BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Arte e
Política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada.Trad. Arlene Caetano.17ª ed. Rio
de Janeiro:Paz e Terra, 2003.

CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1995.

CERVANTES, Miguel. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Nova Cultural, 2003.

CHEVALIER, Jean ; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 15a Ed. Trad. Vera da
Costa e Silva. et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte:


Ed. UFMG, 2001.

CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: BECA, 1999.

CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Círculo do Livro,[S/d]

DEFOE, Daniel. Robinson Crusoé.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed.34, 1997.

79
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 6a ed. São Paulo:Ed. Perspectiva, 2002.
(Col. Debates).

FAUSTINO, Mauro. Poesia e experiência. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1977.


Introdução aos
Coleção Debates.
Estudos
Literários FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Abril Cultural, 1970.
FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.

GANCHO,Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7a. ed. São Paulo: Ática, [S/d]
HEGEL. Estética. Poesia. [S/l],1964.

HOLANDA, Aurélio.Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1969.

HOLANDA, Chico Buarque & PONTES, Paulo. Gota d’Água. 18a ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1989.

KAFKA, Franz. A Metamorfose Um Artista da Fome Cartas a Meu Pai. São Paulo: Martins
Claret, 2001.

LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo ( ou A Polêmica em torno da Ilusão).10a


ed.São Paulo: Ed. Ática, [S/d]. Coleção Princípios.

MARQUEZ, Gabriel Garcia. Olhos de Cão Azul. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1974.

MELO NETO, João Cabral de. In: A Educação pela Pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PAZ, Octavio. A consagração do instante

PLATÃO. A República. Rio de Janeiro: Edições Ediouro, 1977.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Record, 1980.

ROSA, João Guimarães. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985.

SANTOS, Lívia & FREITAS, Viviane. Apostila de Teoria da Literatura I-A. Salvador: UFBa, 2004.

SANTIAGO, Silviano. Nas Malhas das Letras.

TELLES, Lygia Fagundes. Venha ver o por-do-sol & outros contos. São Paulo: Ed. Ática, 2002.

VERÍSSIMO, Luis Fernando. O analista de Bagé. Porto Alegre: L&PM, 1984.

WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

80
FTC - EAD
Faculdade de Tecnologia e Ciências - Educação a Distância
Democratizando a Educação.
www.ead.ftc.br
www.ftc.br/ead

Você também pode gostar