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LINGUISTICA APLICADA OU LINGU[ISTICA APLICAVEL? Fernanda Irene Fonseca Faculdade de Letras da Universidade do Porto Centro de Linguistica da Universidade do Porto «L'usage de la pensée formelle, conduit avec rigueur, exige, eppelle et rend possible la naissance dune connaissance appliquéer. (GG. Granger) «Linguistics /.../ is there behind the lines, under- lying our classroom practices, and our ideas about learning and reality». (MAK. Halliday} «No hay nada tan préctico como una buena teorta>. (Lluis Payraté) Ao formular o titulo desta comunicagio de abertura como uma pergunta, move-me, de modo imediato e circunstancial, a intengdo de sugerir, no inicio deste Coléquio, a expectativa das possiveis respostas que sero trazidas pelas varias intervengGes que se vao seguir, no ambito do tratamento e discussio do tema deste Coléquio: «A Linguistica na formagao do Professor de Portugués». Mas move-me sobretudo, num sentido mais amplo ¢ permanente, 0 desejo de suscitar uma reflexao de tipo epistemolégico sobre o estatuto a atribuir a Linguistica Aplicada, uma disciplina (hoje cinquentendria) que foi «fadada» 20 nascer para intervir de modo decisivo e eficaz na metodologia do ensino de Inguas. Uma reflexdo que convoca necessariamente a questo das relacées entre ciéncia ¢ aplicagdo no ambito das Ciéncias Sociais e Humanas e, em ltima andlise, a questéo da sua cientificidade. E que enfrentar as «perplexi- 6. ‘Actas do Coléquio A LINGUISTICA NA FORMAGAO DE PROFESSORES DE PORTUGUES, dades metodolégicas das Ciéncias Sociais» (SILVA, A. S. ¢ PINTO, J. M., 1986: 7) € enfrentar, ipso facto, as perplexidades epistemolégicas inerentes & dificul- dade de instituir as acgdes humanas como objecto de estudo cientifico. E a dificuldade, talvez ainda maior, de as encarar como susceptiveis de serem objecto de «aplicagao» da ciéncia, isto é, de uma intervengao no sentido de as prever, condicionar, transformar ou optimizar. Considerando que se enquadra nesta problemética a tentativa de equacio- nar a relacio entre a Linguistica e 0 ensino da lingua e, mais concretamente, © papel da Linguistica na formagio do professor de Portugués, analisarei alguns tracos especificos do objecto de estado das Ciéncias Sociais /Humanas determinantes da especificidade do modo de conceber a sua aplicagao, ou melhor, a sua aplicabilidade. Propor uma substituig&o da nogio de aplicagio pela de aplicabilidade nao é um mero jogo de palavras. £ mais uma tentativa, num percurso de muitos anos mareado por um esforco no sentido de denunciar ¢ contornar a inade- quagdo do termo «aplicagio» para exprimir a relagao dinamica e dialéctica que se estabelece entre a teoria linguistica e a pratica do ensino da lingua’. Esta problematizacio e reinterpretacao da nogao de aplicagao nao pretende sugeris, é evidente, uma alteracio do nome Linguistica Aplicada, j4 consa- grado como designacao de uma rea disciplinar. Esse nome é um dado hist6- rico ¢ deve ser aceite como tal. De um ponto de vista histérico, com efeito, a Linguistica Aplicada tem uma certidao de identidade bem conhecida: nasceu nos Estados Unidos, nos anos 40, fruto do «casamento» do distribucionalismo linguistico com a psicologia behaviourista e foi apadrinhada no seu «bap- tismo» pelo modelo dominante de ciéncia, recebendo um nome prestigiado nesse momento em que a vertente tecnolégica estava em ascensdo e 0 avanco 1 Um percurso de pelo menos vinte ¢ cinco anos: iniciei a leccionagéo da disciplina de Linguistica ‘Aplicada ao Ensino do Portugués em 1975, claborando um Programs que tinha como objective levar ‘os estudantes a tomar consciéncia das relagdes dindmicas entre a sua formagao tedrica no Ambito da Linguistica ¢ a sua futura pratica como professores de Portugués. Iniciei também, pela mesma época, uma acco de intervengio junto dos professores a que presidiu sempre a convicgao de que «A nossa fungao, como linguistas, nao é a de reflectir ¢ depois propor unilaceralmente solugdes para serem aplicadas, é antes a de motivar os professores a que reflictam connosco, ja que s6 a teorizacao da pritica /. A luz dos avangos da investigagio linguistica pode ser garantia de uma actuagio didic- tica fecuada ¢ continuamente revivificadar (FONSECA, F. L € FONSECA, J., 1977: 9}. Numa fase pos- terior adoptel a nogio de «implicagio» como alternativa a «aplicagion (cf. FONSECA, F. Ly 1986: 10) para sublinhar que o papel da Linguistica na formagao dos professores de lingua «/.... nao visa ape- nas a aquisigao um saber técnico a aplicar na xesolugio de problemas pontuais, mas essencialmente ‘a consciencializacio tedrica que deve estar fundamente implicada na actuagio didactica /...» (FON- SECA, F. 1, 1994: 10). LINGUISTICA APLICADA OU LINGUISTICA APLICAVEL? w da ciéncia era avaliado sobretudo em fungao dos resultados da sua aplicacdo técnica. A frequéncia com que comegou a surgir a especificacio «aplicada» na designagéo de novas disciplinas cientificas € sintomatica dessa evolugio. O facto de isso se ter verificado também no quadro das Ciéncias Humanas docu- menta um dos aspectos de procura, por parte destas, de uma aceitagio e legi- timagio cientifica. Uma procura que a Linguistica «pilotou», como é sobeja- mente sabido, conseguindo compartilhar o prestigio do modelo racional-tec- nolégico, Nao por ter obtido resultados espectaculares no ambito tecnolégico, convenhamos (as «técnicas» de ensino, os «laboratérios» de linguas, a tradu- cdo «automética» etc. ficaram aquém do que prometiam as suas designa- gOes...), mas por ter tido uma acgio decisiva como factor de modernizagio metodolégica das Ciéncias Humanas*. Esse esforgo, bem conseguido, de ade- quacdo as exigéncias do paradigma dominante de ciéncia teve como reverso negativo alguma descaracterizagéo da Linguistica como ciéncia humana. Poder dizer-se que, no conflito entre a especificidade do objecto de estudo das Ciéncias Humanas e as caracterfsticas de um modelo dominante de ciéncia, a Linguistica, que comegou por liderar as Ciéncias Humanas de modo inteli- gente, oportuno e decisive, acabou por isolar-se, ultrapassando por vezes 0 limite que G.-G. Ganger considera inultrapassavel na manipulagao necessatia ao tratamento cientifico dos factos humanos: «Les faits en question sont d’a- bord donnés a Pobservateur avec leur charge de significations, avec leurs ren- vois & des situations complexes, dans une large mesure rattachées & des cir- constances individuelles et affectés de jugements de valeur. La premiére tache @une science est alors d’en dépouiller si possible les faits visés, tout en leur conservant cependant leur originalité de faits humains» (GRANGER, G-G., 1993: 89). Cumpre reconhecer que a Linguistica nem sempre teve presente este cuidado elementar em relacdo ao seu objecto de estudo. No afa cirtirgico de libertar a linguagem de tudo o que constitufa obstéculo a uma abordagem cientifica acabou por lhe infligir graves amputacées que desfiguraram a sua anatomia humana. Mas esse estado de coisas pertence hoje ao passado: a Linguistica fez um longo percurso em que foi sendo superado o reducionismo tedrico do seu objecto de estudo € o rigido acantonamento nas fronteiras da frase, tornando- -se capaz de encarar numa perspectiva global a complexidade do fenémeno >'Th. Pavel alarga 20 panorama intelectual geral essa influéncia da Linguistica quando afirema que tad les concepts de la linguistique se sont teansformés, au courant des années soixante, en un ins- trument redoutable de modernisation intellectuelle» (PAVEL, T., 1988: 7). 18 ‘Actas do Coléquia A LINGUISTICA NA FORMACAO DE PROFESSORES DE PORTUGUES lingufstico (inerente a sua natureza de fenémeno humano) e de reintegrar, sem risco de perda da identidade, a descrigao de realizagdes muito variadas da lin- guagem ¢ a andlise das suas dimensées textuais e discursivas. Podendo ser hoje avaliada como uma ciéncia em profunda transformagio — «Née de la prise de conscience des invariants, la Linguistique est, pour une large part, en train de devenir une science de la variation sur fond d’invariant. Une science qui n’étudie plus le méme comme un en-soi, mais le subsume sous les mille visa- ges de l'autre» (HAGEGE, C., 1985: 95) -, a Linguistica tem tentado, e conse- guido, encontrar formas de manter o rigor dos seus métodos sem que isso obrigue a empobrecer a natureza da Jinguagem como objecto de estudo ple- namente assumido em todas as suas dimensées?. Neste novo contexto tedrico, a Linguistica Aplicada perde 2 sua «imagem de marca» tecnolégica e esbatem-se as suas fronteiras em relacao a Linguistica tebrico-descritiva que, ao alargar 0 seu objecto de estudo quer ao uso da lin- gua em contextos reais de interac¢do quer as dimens&es cognitivas da lingua- gem, alarga também 0 ambito dos campos praticos em que a teorizacio lin- guistica pode ter interferéncia. A esfera de investigacao-acgao da Linguistica Aplicada estende-se de modo virtualmente ilimitado como se depreende da seguinte definigao de Verschuren: «/.../ the subject-matter of Applied Linguis- tics is language and communication in real-life situations, and the goal is to analyse, understand and solve problems related to practical action in real-life contexts» (VERSCHUREN, J., org., 1995: 46). Constata-se, nesta definigao, que o objecto da Linguistica Aplicada é apre- sentado como muito préximo do de outras disciplinas como a Pragmatica Linguistica, a Sociolinguistica ou a Psicolinguistica, em relac&o as quais a sua especificidade se dilui#. De qualquer modo, permanece na defini¢&o um néicleo duro diferenciador da Lingufstica Aplicada: o objectivo de «resolver proble- mas». Note-se, no entanto, que esse objective é enunciado em conjugagdo inseparvel com os de «analisar» e «compreenderm, que alids o antecedem. H4 3 Citando ainda Hagége : «ll semble de plus en plus clair, dans ce dernier quart due XX siécle, que s'in- téresser au langage c’est s‘intéresset a Phomme défini par Pusage qu'il en fait» (HAGEGE, C., 1985: 238), Mais recentemente, T. Slama-Casacu, um nome de referéncia da Linguistica e da Psicolinguis- tica Aplicadas, insiste na necessidade de preservar a dimensio humana no estudo da linguagem: «L think therefore chat scientists should not be ashamed to support and even to try and save what stil remains of humanism in this strange end of a millenium» (SLAMA-CASACU, T., 1999: 15). + Como consequéncia do cardcter globalizante e plucidisciplinar das actuais perspectivas de estudo da lingua, cada sub-disciplina da Linguistica, numia espécie de movimento alternadamente centrifugo fe centripeto, tende a ocupar-se dessa globalidade a partir do seu proprio ponto de vista, produzindo- “se, neste processo, um efeito que perverte a tendéncia para a especializagdo que estcve na base da ctiagio dessas sub-disciplinas. LINGUISTICA APLICADA OU LINGUISTICA APLICAVEL? [|___ig o (re)assumir pacifico de caracterfsticas das Ciéncias Humanas que eram con- sideradas um «obstdculo» pelo paradigma cientifico dominante mas em que Boaventura S. Santos vé potencialidades de expansdo num paradigma cienti- fico emergente: «O que hé nelas de futuro € 0 terem resistido 4 separacdo sujeito/objecto e o terem preferido a compreensio do mundo 4 manipulagao do mundo» (B. S. SANTOS, 1986: 44). Estes dois tragos especificos — inseparabilidade sujeito/objecto; compreen- so do mundo anteposta 4 manipulagdo do mundo ~ condicionam decisiva- mente o entendimento do processo de «aplicagdo» no Ambito das Ciéncias Humanas. E dio-me ocasiio de reafirmar, com uma fundamentacao mais explicita, que 0 conceito de aplicagdo, oriundo do paradigma tecnoldgico, ganha em ser substituido pelo de aplicabilidade, mais adequado & especifici- dade de uma Area de investigag3o em que é dificil estabelecer a distingao, mais clara noutras dreas cientificas, entre sujeito e objecto, entre a com- preensio do mundo e a sua manipulagao, entre teoria e pratica, entre ciéncia e tecnologia. Falar de aplicabilidade permite p6r em relevo um dos aspectos marcantes dessa especificidade: a necessdria actuagao individual de um sujeito «aplica~ dor» dotado de conhecimentos e capacidades que lhe permitem inserir-se num processo em aberto cuja efectivacao realiza mediante escolhas conscientes. A capacidade de «aplicar», no ambito das Ciéncias Sociais/Humanas, pressupde uma consciencializacdo individual assente num conjunto de conhecimentos no apenas de natureza processual mas hermenéutica, tedrica, de saberes tex- tualizados e contextualizados. Nao se coaduna, pois, com a ignorancia ou indiferenca em relagao a investigacao teéricaS. Por outro lado, 0 conceito de aplicabilidade parece mais adequado para significar algo que se apresenta como uma dimensio dinamica que percorte a Linguistica e se espraia pelas suas fronteiras ¢ interseccées com outras disci- plinas: «Hoy en dia, la lingitistica aplicada no puede entenderse ya como una simple rama o especialidad interna /.../ sino que debe conceptualizarse como una dimensién, presente en todas las ramas de las llamadas ciencias del len- guaje» (L. PAYRATO, 1998: 27). Sublinho «uma dimensao» da investigagio linguistica e acrescento: uma atitude do investigador. A aplicabilidade pode ser também identificada com uma atitude que se estabelece como denominador comum a muitas e diversas $A, Culioli defende que a aplicagao da Linguistica deve ser entendida como «/,./ le produit de ce tra- vail fondamental, qui va de V’empirique au formel, sans complaisance pour le bricolage technique et Vindifférence théorique» (CULIOLI, A., 1990: 46), 20 ‘Aetas do Coldquio A LINGUISTICA NA FORMACAO DE PROFESSORES DE PORTUGUES praticas. O cerne de uma defini¢do de Linguistica Aplicada nao sera, pois, a identificagdo de um objecto de estudo, de um conjunto de contettdos ¢ de metodologias de investigacao, que nao se distinguem dos da Linguistica e das Ciéncias da Linguagem em geral. Serd antes a definigdo de um conjunto de ati- tudes, de modos de interpretar accionalmente conhecimentos sobre a lingua- gem eo seu funcionamento. Essa dimensio ou atitude aplicada decorre natu- ralmente da investigagao teérica, de que nao é separavel. Nesta perspectiva, «Linguistica Aplicada» deixa de ser 0 «nome» de uma disciplina auténoma e bem delimitada, para ser a designagao de uma ampla zona de charneira em que conhecimentos provenientes dos varios dominios de investigagdo no ambito das Ciéncias da Linguagem esto dispontveis para a construgio individual de projeccSes em dominios praticos em que a linguagem 0 seu uso estio implicados®. £ importante sublinhar que se trata de uma construcao individual. Porque © anonimato da penetracdo da ciéncia na vida quotidiana’ sob a forma de arte- factos tecnolégicos usados de forma massificada nao tem correspondente no Ambito das Ciéncias Humanas/Sociais. Se os problemas a solucionar sao da esfera da acco humana, da vida social (como s4o sempre os que esto ligados a linguagem) a sua resolucdo nao pode ser nem pré-estabelecida nem uniforme: envolve sempre uma dimensdo hermenéutica (interpretacéo, compreensio, contextualizagéo) que condiciona tomadas de decisSo do foro individual. Em suma, 0 «aplicador» nao € um consumidor anénimo. Porque os «objec- tos de consumo» produzidos na area das Ciéncias Humanas nao so progra- maveis nem reprodutiveis em série ¢ & justamente 0 facto de o ndo serem que Ihes garante o valor que ser critério da sua aceitagao. A intervengo da cién- cia, neste caso, nao se situa antes da produgio, como na tecnologia, mas depois. O estudo cientifico dos produtos da acco humana tem como objec- tivo (como qualquer outro estudo cientifico) a sua descrigdo, explicagdo, ané- lise, sistematizacao, interpretagio, mas a ciéncia nao pode nem prevé-los nem intervir de modo sistematico na sua produgia: «O objecto das ciéncias sociais so seres humanos, agentes socialmente competentes que interpretam o 6 O ensino de linguas foi o primeiro ¢ continua a ter grande preponderancia. Mas é um entre muitos outros: patologia da fala, critica textual, terminologias, tradugio automitica, informatica, relecomu- nicagSes, planificagao linguistica, traducdo assistida, lexicografia, revisao linguistica, edigao de tex- 108, etc... A consulta das Actas dos tlrimos Congressos Internacionais de Linguistica Aplicada é elu- cidativa quanto & diversificagio das acas de intervengao: as comunicagées encontram-se distribuidas por algumas dezenas de Sec¢6cs correspondentes a outtas tantas diferentes areas. 7 £G-G. Granger quem fala expressivamente, da «/... pénétration anonyme de la science dans notre vie quotidicnne (GRANGER, G., 1993: 15). LINGUISTICA APLICADA OU LINGUISTICA APLICAVEL? La mundo que os rodeia para melhor agirem nele e sobre ele. Os agentes aplicam reflexivamente o conhecimento dos contextos de acgio a producéio de acgées ou interacgdes ¢, nessa medida, a ‘previsibilidade’ da vida social no acontece, & ‘feita acontecer’ em resultado das aptiddes conscientemente aplicadas dos agentes sociais» (B. $. SANTOS, 1989: 63). Reivindicar a especificidade das Ciéncias Humanas/Sociais no Ambito da aplicacdo ou aplicabilidade 6, antes de mais, assumir ¢ valorizar essa compo- nente individual das acgdes humanas que se manifesta ¢ especifica como apti- dao consciente, produto do conhecimento reflexivo. Como intencionalidade, capacidade de escolha motivada, capacidade de actuacao fundamentada: um poder que sc apoia num saber, de que nao é separavel. Consciencializagao e intencionalidade, nao é demais insistir. Para prevenir 0 risco de confuso com posicdes simplistas ¢ acriticas que tendem a deturpar as dimensées ligadas & participacao individual, identificando-as com a impro- visagao, a falta de rigor, a originalidade arbitraria superficial, a anarquia, o espontaneismo, a improdutividade auto-complacente. Com a consequente desvalorizagao e desprestigio das Ciéncias Sociais/Humanas e do seu estatuto cientifico ¢ universitério. Mas é igualmente simplista pensar que 0 tnico meio de valorizar esse estatuto é renegar a especificidade da actuagao humana por constituir um «obstéculo» & racionalidade cientifica, & quantificago, & pro- dutividade tecnolégica. Saber adequar as estratégias cientificas & especifici- dade de cada objecto de estudo é um requisito fundamental da investigaco cientifica, no Ambito do que G.-G. Granger designa como «stylistique de la Pratique scientifique» (GRANGER, G.-G., 1988: 13), conferindo 4 nogdo de estilo grande relevancia no quadro da epistemologia. Trata-se, evidentemente, de uma acepcao de estilo em que essa nogdo é expurgada de conotagées de subjectivismo ou originalidade conservando apenas o seu sentido nao valora- tivo de ‘adequagio’®. EA luz desse conceito de estilo que ganha sentido a reivindicagdo de F. Gil quando afirma que «uma investigagio é um facto de estilo» (GIL, F., 1984: 245). A ciéncia nao é um dominio monolitico em que hd um tinico critério para avaliar o rigor dos métodos, a validade das hipéteses tedricas ou a eficd- cia dos resultados da aplicagao. Cada ciéncia, tal como tem que construir o seu préprio objecto, tem também de construir os seus proprios métodos, estra- tégias ¢ critérios. E de o fazer em simultaneo, num processo de adequacéo per- manente em que se vo definindo o seu estilo, a sua validade, o seu rigor. E * Para um maior desenvolvimento deste tema ver 0 capitulo «Questdes de estilo» em FONSECA, F. L, 1992: 47-54, —____2__] ‘Actas do Coldquio A LINGUISTICA NA FORMAGAO DE PROFESSORES DE PORTUGUES em que se vio também projectando e fundamentando os parametros e as dimensées da sua aplicabilidade. So evidentes as consequéncias do que fica exposto no modo de encarar a questo proposta como tema deste Coléquio: o papel da Linguistica na for- magio do professor de Portugués. Uma questiio a encarar na éptica da for- ma¢io inicial, no sentido de sublinhar a importéncia da formagao disciplinar especifica como componente fundamental do perfil de um professor. Formacio profissional. Num sentido muito amplo, trata-se de conferir poder de realizagao de accées socialmente pertinentes através da transmissdo de saberes de varia ordem. D-se habitualmente relevancia, quando se fala de formacio profissional, 4 aquisigio de saberes de natureza pratica, isto é, a0 treino de competéncias accionais que qualificam para o desempenho de tare- fas concretas inerentes ao exercicio de determinada profiss4o. Esse saber-fazer & sempre em alguma medida dependente da capacidade de compreensiio ¢ reflexdio, mas hé graus muito diferentes de dependéncia: ela é particularmente forte, como vimos, na area das Ciéncias Sociais/Humanas em que a capaci- dade hermenéutica de interpretagdo das accdes - j4 em si mesma uma com- peténcia accional — faz parte integrante da aquisicéo de outras competéncias ligadas ao exercicio profissional. Graus diferentes, também, segundo o nivel de ensino: no ensino universitario nao se concebe uma formagio profissional de tipo pratico desligada de uma formagio teérica basica ou fundamental. © principal papel dessa formacao cientifica basica - ou formaco, sem adjectivos — é justamente reforgar a capacidade de actuacao consciente. No caso do professor de lingua, é assegurar a aquisigao de conhecimentos ¢ de uma capacidade de reflexo sobre a Iingua que ficam disponiveis para a cons- trugiio individual de relagdes fecundas entre a teoria e a pratica, Mas construcio individual nao significa, como vimos, espontanea ou andr- quica. E sabemos a que ponto a «derrapagemp (jé atras referida) da valoriza- gao da componente individual tem parasitado o modo de entender a actuagao do professor, nomeadamente a do professor de Portugués, ¢ como anda escon- dida sob a capa de uma exaltagao (tao euférica quanto superficial) da voca- cdo, da criatividade, da imaginaco ¢ de chavées acriticos como 0 do «amor pela nossa lingua, que é a mais bela do mundo»... O lugar certo para prevenir e combater essa «derrapagem» é a formacio inicial. E s6 hé um meio cficaz de o conseguir: promover o aprofundamento dos conhecimentos sobre a Iin- gua com 0 consequente reforgo da consciencializacao tedrica e do espfrito eri- tico, num processo que precisa de ser induzido durante a formagao inicial do professor para poder expandir-se mais tarde como auto-formacio. De que modo podem os professores de Linguistica assumir um papel tio LINGUISTICA APLICADA OU LINGUISTICA APLIGAVEL? Lg decisivo na formacio de professores de lingua, nomeadamente de lingua materna? De um modo ébvio: ensinando Lingufstica. Elaborando e leccio- nando Programas que proporcionem aos estudantes a apropriagdo de conhe- cimentos (de tipo descritivo, de tipo narrativo, de tipo operatério) sobre a lin- guagem como fenémeno geral, sobre a lingua como sistema de regularidades de funcionamento, sobre a lingua como realidade histérica e social, sobre a actividade verbal como conjunto de praticas discursivas. £ bem sabido (ou deveria ser) que os objectivos formativos do ensino se atin- gem pela acco docente e nao pela explicitagao. Por outras palavras: nao é indi- cado preparar programas explicitamente destinados a professores de lingua, ante- cipando os bem intencionados compéndios com reconfortantes titulos do tipo: «Nogies de Linguistica para Professores». Linguistica para professores? Linguis- tica asséptica, castrada de problematizacao, de densidade teérica. Reconfortante, talvez: mas claramente incapaz de produzir os resultados formativos enunciados, que exigem a presenca de uma componente tedrica e problematizante. Dada a multiplicidade de vertentes de estudo da linguagem e a diversidade de perspectivas tedricas nao é pensdvel - nem desejavel - uma uniformizacao dos contetidos das disciplinas de Linguistica nas varias Faculdades. Mas as diferencas entre os Programas, por grandes que sejam, nao obstam a que o seu ensino vise objectivos formativos comuns: aprofundar o conhecimento da lin- gua ea capacidade de explicitagdo desse conhecimento, alargando competén- cias de tipo metalinguistico (metacomunicativo, metadiscursivo, metatextual)s promover 0 treino de observacao, andlise ¢ manipulagao de unidades linguis- ticas, desde as unidades mais extensas (texto/discurso) as unidades minimas; levar a dominar conceitos tedricos operatérios, matrizes terminolégicas, ins- trumentos de andlise, modelos descritivo/explicativos do funcionamento da Lingua; fomentar a consciéncia histérica da identidade e plasticidade da lingua portuguesa. Contribuir, em suma, para a aquisicio de uma consciéncia da lin- gua ¢ do seu funcionamento que abarque os problemas implicados na relagao profunda e plurifacetada (de tipo cognitivo, accional, social ¢ afectivo) que liga um falante a sua lingua materna. Como complemento necessdrio desta formago cientifica basica e como plataforma de transi¢ao para a pratica pedagégica (no estdgio), tem que figu- rar também como componente da formacio inicial dos professores de lingua uma reflexao sobre as dimensées de aplicabilidade dos conhecimentos adqui- tidos. Mas suscitar a consciéncia das dimensées de aplicabilidade é algo muito diferente de indicar «modos de aplicagio» ou dar «instrugdes de uso»®. E tra- ° Como os nossos estudantes parecem desejar nas suas habituais e pouco fundamentadas reivindica- ges de um ensino universitério virado para a «prética». Faz falta, a meu yer, na formagio dos estu- 24 ‘Actas do Coloquio A LINGUISTICA NA FORMAGAO DE PROFESSORES DE PORTUGUES balhar no sentido de fazer sentir aos estudantes que hd uma articulagéo a construir entre um campo teérico — a investigagao sobre a linguagem e as lin- guas —e um campo prético (e profissional} - 0 ensino da lingua. Essa constru- cdo é feita individualmente, como activacdo de capacidades e contextualiza- fo de saberes. Mas pode (e deve) ser acompanhada, consciencializada, indu- zida, treinada, nomeadamente no que toca 4 necessidade de encontrar estraté- gias de mediagao, de adequacao do discurso cientifico ao contexto pedagé- gico. Dado que a capacidade de adequagao passa pela tomada de consciéncia das incompatibilidades de perspectiva entre o discurso cientifico eo discurso pedagégico, é importante promover uma reflexdo sobre o discurso pedagé- gico, chamando a atencdo, por exemplo, para as possiveis colisdes entre a perspectiva descritivo-explicativa da investigagao e a perspectiva normativa do ensino; ou para o cardcter necessariamente compésito e transdisciplinar do discurso pedagégico. Um trabalho que tem 0 seu quadro proprio na disciplina de Metodologia do Ensina do Portugués ¢ no Semindrio que acompanha a pratica pedagégica, durante o estégio. Mas haverd grande vantagem em estar também presente como contetido de uma disciplina especffica. Assim venho entendendo, desde ha muitos anos, a inserciio no curriculum ea leccionagao da cadeira de Linguistica Aplicada, para que elaborei um Programa que visa a consciencializagao das dimensdes de aplicabilidade dos conhecimentos adquiridos nas varias disciplinas de Linguistica (em correlac&o necessdria com as de outras areas disciplinares, nomeadamente de Literatura) ¢ 0 aprofundamento de aspectos da teorizagao linguistica mais directamente implicados na identificacio do objecto e dos objec- tivos do ensino da lingua materna. E em que procuro motivar os estudantes em formagio inicial levando-os a encarar a reflexo tebrica como prévia A acgiio ditigida para a acco. Motivé-los, por um lado, pela percepgo da importancia ¢ sentido da reflexdo teérica para que, em varios dominios do estudo da lin- guagem, foram e séo suscitados ao longo do curso; motivé-los, simultanea- mente, pela criagiio de expectativas positivas quanto ao ambito de accdo que se configura como central na sua futura actividade profissional. Estudantes motivados virdo a ser, com muita probabilidade, professores motivados. A motivagio costuma ser encarada, no perfil do professor, como uma componente que se situa na esfera da sua relacdo com os alunos ¢ que releva quase exclusivamente da formagio psico-pedagégica ¢ humana. Fica esquecida, como factor de motivagao, a relacio do professor com o objecto de dantes da dea de Ciéncias Humanas alguma reflexao de tipo epistemolégico que os leve a encarar de ‘modo mais fundamentado e critico as relagdes entre a teoria ¢ a pritica. LINGUISTICA APLICADA OU LINGUISTICA APLICAVEL? 2s ensino/aprendizagem, o conhecimento aprofundado dos contetidos a ensinar, a competéncia cientifica na sua 4rea de especialidade. A voga do slogan «aprender a aprender» tem vindo a fazer perder de vista que «aprender» (e «ensinar>) s40 processos transitivos e que o treino das capacidades cognitivas é insepardvel da aquisigdo de conhecimentos, «Aprender a aprender» foi (é) uma formula feliz para sublinhar o que é essencial como resultado da forma- cao escolar. Mas esvazia-se de sentido quando é erigida em preceito total e absoluto, em princfpio, meio e fim. E urgente combater essa tendéncia para transformar «aprender» (¢ «ensinar») em verbos intransitivos, sem objecto. Ora um dos contributos mais marcantes da Linguistica, no Ambito do ensino da lingua, diz respeito justamente A caracterizagao e delimitagdo da lingua como objecto de ensino-aprendizagem, que tem estado sempre em correlacao, directa ou indirecta, com 0 esforgo teérico da Linguistica na caracterizago da Iingua como objecto de estudo cientifico. Motivacio e competéncia. Sera bem importante o papel da Linguistica na formagao de professores de lingua se ajudar a formar professores de Portugués competentes e motivados, criando e desenvolyendo nos estudantes em forma- do inicial a capacidade ¢ 0 gosto de estudar a lingua — condicao determinante da capacidade e do gosto de a ensinar. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS CULIOL, A. (1990) — Pour tne Linguistique de 'énonciation. Paris: Ocphrys. FONSECA, F. I. (1986) ~ «Competéncia narrativa ¢ ensino da lingua materna», Palavras, Revista da Associagao de Professores de Portugués, n° 9, Lisboa: 1986, pp. 6-10. FONSECA, F. I. 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