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Traduções e Aproximações Indígenas Á Mensagem Cristã
Traduções e Aproximações Indígenas Á Mensagem Cristã
mensagem crist
resumo: O texto aborda diferentes modalidades de traduo da mensagem crist evanglica, focando experincias relatadas por diversos protagonistas indgenas (a partir de relatos de uma liderana yanomami, um
Guarani de So Paulo e alguns Wajpi), em contraponto aos procedimentos recomendados por missionrios.
palavras-chave: Cristianismo, Bblia, Cosmologias amerndias.
palavras novas
Neste artigo, tratarei de algumas modalidades de comparao
entre cosmologias e procedimentos de traduo a que recorrem tanto estudiosos como missionrios e tradutores indgenas. Remetem
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evangelizao contextualizada
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outros em um processo social contnuo, onde a movimentao dentro de um mesmo mundo que habitamos (mais do que simplesmente
decodificamos) fundamental (2010: 23).
Penso aqui num novo modo de comparao que os Wajpi, sejam eles prximos ou no dos missionrios, atingidos ou no,
esto se esforando em desenvolver, na aproximao entre o que
entendem da Bblia e do discurso evanglico e sua prpria tradio.
Pretendem operar por partes: identificar, a partir da Bblia, o que
existe, ou melhor o que foi dito [ayvukwer] e era sabido pelos
antigos. Note-se a direo desta comparao, em que se parte da
Bblia, para lanar pontes com a experincia dos antigos wajpi.
Esse procedimento, como vimos, se apoia num mal-entendido, segundo o qual os saberes transmitidos oralmente so falhos, ideia
sistematicamente reiterada tanto pelos missionrios quanto pelos
mais diversos atores envolvidos na sade e nas escolas da terra
indgena. Uma apreciao que, sem dvida, afeta jovens e adultos
wajpi e que faz com que eles considerem, por exemplo, que o que
est na Bblia completo por estar escrito. E ainda consolidada no
contexto dos cursos modulares de 5 a 8, oferecidos por professores da Secretaria de Educao do Amap, que levam os Wajpi
a questionar certos saberes dos antigos porque entram em contradio com o que lhes apresentado como verdades cientficas. Um
dos alunos chegou a defender que as explicaes dos Wajpi que
no forem comprovadas pela cincia, seriam definitivamente erradas. Essa busca de uma verdade verdadeira um elemento novo
na epistemologia local, considerando como mencionei acima o
apreo tradicional multiplicidade de experincias testemunhadas
pelos ayvukwer, relatos que so transformaes uns dos outros e
no se subjugam outra verificao que no seja o valor da fonte
do relato. Este procedimento de traduo, que se abre a tudo que
vem de perto ou de longe, numa generosa apropriao dos dizeres
do outro, chegar a ser interrompido?
Voltemos a Otvio Velho, que prossegue: essa diviso em
blocos que impe a reconstruo artificial da continuidade do mun-
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do apenas pelo ato da traduo. Como diz Latour, a incomensurabilidade no dada, produzida. Em vez de resolver o problema
da traduo, a Antropologia o cria a fim de aliment-lo. Precisamos recobrar o sentido de continuidade anterior ao ato da traduo
um sentido que no presumisse uniformidade com uma nfase
em identidades relacionais. Isso no significa que a vida social
no implique em atos de construo e separao, sendo a traduo
indubitavelmente uma maneira de tornar o outro inteligvel apenas que, em vez de ser o momento inicial, isso vivido no mundo
contnuo... Combinando Ingold e Latour, indico que estamos to
acostumados operao fundamental de ruptura que difcil absorver tal ideia alternativa de traduo e diferena em um mundo
contnuo: mais de pequenas diferenas que de grandes oposies,
mais de sequncias de similaridades que de igualdades ou oposies binrias (idem: 24).
Penso aqui na estratgia que I. est testando, para explicar as
verdades do evangelho aos seus parentes. Ele me dizia que estava estudando a Bblia, ao mesmo tempo em que se dedicava ao
aprofundamento dos saberes de seus ancestrais, conversando muito
com seu pai, seu sogro e outros velhos. Ele insiste em dizer que
no pode estudar a Bblia sem estudar tambm os conhecimentos
dos Wajpi. E justifica: se eu explico s a Bblia, no entendem;
eu explico contando histrias dos antigos, a eles entendem. Seu
mtodo de comparao uma busca de continuidade, sem dvida.
Mas haver lugar, nessa construo de um mundo compartilhado,
para diferenas, como as apontadas pelos mais velhos, que procuram resgatar o que h de bonito nas prticas xamnicas?
Este seria, segundo a formulao de Viveiros de Castro, o
melhor dos mundos possveis, que deve necessariamente ser um
mundo onde um outro mundo possvel: mas necessrio que esse
outro mundo seja um mundo dentro deste, imanente a este, como
uma de suas possibilidades ainda no realizadas (2011: 2).
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notas
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organizar o livrinho, os missionrios escolheram alguns preceitos morais registrados junto a seus interlocutores mais velhos, ordenados na forma de um catecismo. Quando perguntei a I. se este material era relacionado a Bblia, respondeu
efusivamente que sim, pois esse manual lhe fornece um roteiro para aproximar
os preceitos dos antigos e os ensinamentos da Bblia. Vinte anos depois da publicao desse manual, jovens pesquisadores wajpi organizaram o livro de leitura
Jimotekokuwa, como resultado de uma reflexo coletiva a respeito das relaes
de qualidade valorizadas no cotidiano. O ttulo, que foi enfaticamente escolhido
por catecmenos dos missionrios da MNTB no momento da organizao desse
segundo livro, retomava a proposta de sistematizar recomendaes morais difundidas pelos evanglicos na primeira publicao, mas desta vez descritas com
densidade e riqueza inexistentes no material do SIL. Uma das diferenas notveis
est nas formulaes Janemotekokua e Jimotekokuwa: a primeira generaliza para
todos (jane), como pretende a mensagem crist, ao passo que a segunda apenas
aponta um reflexivo (ji-).
8. Conforme materiais didticos para pastores: Ira de Deus / sentido bblico:
Deus no aguenta a maldade das pessoas, no gosta mesmo! Ele tem muita pacincia, mas um dia castigar as pessoas ruins pelo mal que fizeram [...] Para evitar
o castigo, preciso que uma pessoa pea a Deus o perdo pelos maus atos e aceite
o pagamento que Jesus fez por ns quando morreu na cruz.
9. Quando Almeida realizou sua pesquisa, essa guerra j estava programada: Na
traduo do missionrio os nomes que os prprios Waipi denominam seus espritos so usados para o diabo e demnios (2006: 289).
10. Quando retoma debates desenvolvidos na Antropologia, por Ingold (The art
of translation in a continuous world, 1993), Latour e muitos outros, que Velho
sintetiza nesse ensaio.
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Recebido em 30/08/2012
Aceito em 27/10/2012