Você está na página 1de 10
capitulo 7 KO 7 OS PRINCIPAIS GENEROS DA MUSICA INSTRUMENTAL ATE c. 1800 E natural supor que os principais géneros da misica instrumental sejam aque~ les que predominam em nosso repertério, Na realidade, a supremacia dos mo- vimentos sonata para piano, quarteto de cordas ou orquestra no resulta me~ nos das preferéncias do século XIX que da tendéncia dominante no perfodo cléssico. As sonatas para piano serviam inicialmente antes ao ensino que & execugao; poucos quartetos de cordas tinham presenga assegurada, ainda quando (depois de 1790, aproximadamente) 0 género foi incorporado aos concertos péblicos. Somente a orquestra era comparavel a sua forma atual, e 08 concertos orquestrais geralmente apresentavam muito mais obras que hoje, com solos vocais ¢ instrumentais acompanhados de piano servindo de aperiti- vo as composigées mais alentadas para toda a formagio. No século XVIII, a composicdo ¢ os meios instrumentais néo assumiam no espfrito do compositor 0 cardter indissocidvel que desde entéo passaram a ter, O género da sonata para teclado acompanhada de violino (em geral, mas também por violoncelo ou instrumonto de sopro) estava estreitamente rela- cionado A sonata para piano; em certas obras de Pleyel e Clementi, 0 violino (01 0 violino ¢ 0 violonceto, no caso dos trios) pode ser omitido sem grande prejuizo. As Sonatas para violino de Mozart contam a histéria da emancipa- ‘gilo da parte de cordas, que evoluiu de acompanhamento para um papel bordinado mas obrigatério, e em seguida para a parceria em igualdade de ‘vondigées (como em sua Gltima Sonata para violino, K 526), Foi ja neste ‘ponto que Beethoven abordou 0 género: suas Sonatas do Op. 5 sao dedicadas ‘40 violoncelista, ¢ nfo ao pianista, Os maravilhosos trios do Haydn tardio ain- ‘di silo essencialmente, no entanto, obras para teclado com acompanhamento. A transcrigfo também era comum, ¢ dela um mestre era capaz de fazer r arte, As verses para trio de cordas de trés belas sonatas de Haydn | toclado podem niio ser auténticas, mas inegavelmente causam excelente preumio, O prdprio Haydn arranjou suas Sete Ulinas Palavras de Cristo pari piano, cordas nincipais géneros da musica instrumental 93 “WR amisicacléssica principais g camente vulgarizada de sua propria dria “Non pid andrai”, das Bodas de Fi- garo. As classificagées por (ftulo nem de longe podem indicar com seguranca a natureza do discurso musical. “Divertimento” é usado por Haydn em sona- tas para piano, trios ¢ todos os seus quartetos (“‘divertimenti a quattro”) até 0 Op. 20 inclusive, e Mozart empregou a mesma denominagéo em scu magnifi- co Trio de cordas K $63. Nem mesmo “concerto” parece uma classificacdo inequivoca. Trés dos concertos de Mozart (K 413-15), compostos para a or- guestra padrao, podem ser tocados com cordas em solo e sem sopros, mas 0 Conjunto que daf resulta nao € 0 verdadeiro “quinteto com piano” da misica de camara, pois o pianista atua antes como solista ¢ continuo do que como parceiro em igualdade de condigées. E, no entanto, poucos meses depois Mo- zart emipreenderia uma série de concertos para piano que tém entre seus titu- Jos de gi6ria as partes para sopro obbligato. Ao autorizar a edigiio Pleyel de seus quartetos de cordas, Haydn nao 36 incluiu o “Op. 3”, que se atribui a Roman Hoffstetter, como incorporou aos Opp, | ¢ 2 arranjos esptirios de trés sinfonias de sua primeira fase. A classificagio dessa mésica, no caso de com- positores prolificos como Haydn, Boccherini on Pleyel, tem sido um dos mais trabalhosos empreendimentos da moderna erudigéo musical, A interagdo de variados agrupamentos instrumentais era antes um enti- quecimento da vida musical que um motivo de confusio. Como no barroco, as linguagens dos diferentes instrumentos continuaram a fertilizar-se reciproca- mente, assim como as texturas dos conjuntos instrumentais caracteristicos, Por todo o século XVIII, o concerto e a sinfonia mantiveram estreita relagao; © “concerto orquestral” ¢ 0 “concerto grossa” barrocos eram fendmenos re- centes. O concerto miiltiplo gozava de grande popularidade, especialmente em Paris, recebendo habitualmente o titulo misto de “symphonie concertante”, Mozart compos uma dessas obras para quatro instrumentistas de sopro de Mannheim, que a executaram no Concert Spirituel parisiense; Haydn compés uma para Londres, reunindo cordas diversas e solistas de sopro; ¢ Pleyel es- creveu meia dtizia, utilizando de dois a sete solistas. As obras-primas do gé- nero séio a Sinfonia Concertante em mi bemol (K 364, para violino e viola) composta por Mozart para Salzburgo e o Triplo Concerto composto por Beethoven ¢, 1804 (Op. 56, para violino, violoncelo ¢ piano). 28 Retrato de Joseph Haydn por George Dance (Londres, 20 de margo de 1794); aos 62 anos, Haydn estava no auge da fama. pros K 388, aparentemente obra de Tafelmusik, foi adaptada por Mozart para quinteto de cordas, formagio de sua mais claborada musica de cémara. Em parte por se ver na contingéncia de manter constante o fluxo de publicagde: Beethoven transformou seu Quinteto para piano ¢ sopros Op. 16 num Quar= toto para piano e cordas; seu grande Trio Op. 1 n. 3 surge mais tarde como Quinteto de cordas do Op, 104; 6 a Sloat isolada do Suerte ae cordas ff de 1802 destinava-se a prevenir atos de pirataria com uma de suas so~ ae para piano favoritas, a an Op. 14n. | emmi. As transerigées encomendia Ei A natureza ae eae cue pose natecss tla is ° serene das pelos editores a seus escribas de plantio eram perfeitamente corriqueiras, strumentos solistas em sinfonias € outra indicagdo da proveitosa mistura wularizego que pode afinal tor estimulada a do géneros. Os exemplos mais conhecidos e originais vém de Haydn, S40 nu- Te ria te oy sutras natin ta ean cae mieFos0$ 0$ Solos de Violino em suas sinfonias até a de n. 98, que traz na par. titura autégrafa o nome do empresdrio e primeiro violinista Salomon. Solos pean proibitivaments carus} o clletanis taha & sua disposiydo. werebos bastante elaborados aparecem em varias sinfonias da primeira fase, entre olas A plano, Yor © plano, quarteto de cordas ou conjunto de soprow, Hata GLiinw ale de Trompa (i. 31), que tecorte & solos de violino © violoncelo nos fafa pace por Mca ne sens ca oa um Don Cavan BAL f lenton; © foi com humor nada sutil que Haydn arrunjow ox trios O# Como HOlo® para ContrAbALA, ‘ammisica cldssica Quando os elementos concertantes comegaram a perder seu lugar na sinfonia — cada vez, mais intelectualizada, ou, mais propriamente, sinfénica -, 4 dialética sinfOnica introduziu-se no concerto. Uma das inspiradas sinteses mozartianas de fuga € sonata (neste caso uma sonata rond6) € 0 finale do Con- certo para piano em f4, K 459, Os trés dltimos concertos para piano ¢ 0 dnico concerto para violino de Beethoven (que ele também arranjou para piano) ri- valizam com as sinfonias entre as composi¢des mais significativas de sua fase hordica. A disseminada elaboragao temética subentendida no adjetivo “sinfo- nico” 6 melhor servida, sem dispersio por timbres heterogéneos, no quartetoe no quinteto de cordas; 0 primeiro em especial passou a simbolizar uma con- cepetio da misica como arte de contetido complexo, de modo que sua evolu- (lio pbs-cldssica contrasta nitidamente com a da sonata para piano. Enquanto Haydn désignava como “‘divertimento” tanto 0 quartcto quanto a sonata, a transcrigéo de um género para outro jf seria inconcebivel uma geragao depois, ¢ imposs{vel no Beethoven tardio ¢ em Schubert. MUSICA PARA PIANO Nio ser4 preciso justificar uma volta ao piano, agui, para examinar sua vasta literatura. O rapido desenvolvimento do instrumento correu paralelamente a0 de sua linguagem, de modo que por todo 0 nosso periodo ¢ ainda além, ele permaneceu no primeiro plano do que era indubitavelmente considerado um progresso sens{vel da arte. Os compositores de miisica para piano atestam a notdvel homogeneida- de da Europa musical, que nao se viv diretamente afetada pela guerras revo luciondrias francesas e napoleSnicas ¢ s6 viria a ser comprometida, mais tarde, pela conseqiiente infiltragio do nacionalismo na esfera artistica. O que de mais parecido hayia com um grupo coeso de compositores, a “Escola Lon- drina de Pianoforte”, abrangia mésicos italianos, alomaes, boémios ¢ irlande- es que também atuavam na Franca, na Austria e na Riissia, Conseqiente~ mente, mesmo aqueles que nao viajavam, como Mozart ¢ Beethoven, tinham a sou digpor uma vasta gama de modelos a assimilar e sintetizar. Mas apesar da subjacente homogeneidade, foi este um perfodo de individualistas, virtuoses: do piano com seus truques prdprios, ou ligados a algum fabricante ¢ desejo- sos, com isto, de dar um cunho pessoal a sua arte, Depois dos Bach, de Schobert e Eckardt (que se estabeleceu em Paris com a de pianos austriaco Stein), 0 primeiro compositor a s¢ Gon- ‘4 este modelo foi o prdprio Mozart; em seguida viria o cosmopolita i, Quando se encontraram em Viena, em 1781, Clementi fieou extrer principais géneros da musics instrumental um técnico, brilhante na execugio de escalas em tergas, mas “sem um vintém de gosto ou sensibilidade”. Mozart revela-se aqui um discipulo de ambos os filhos de Bach. De s6lida formagao italiana, era natural que gravitasse em di- recdo a J. C. Bach, mas uma vez reconhecendo as potencialidades do novo instrumento, passou a desenvolver sua prépria versio da “Empfindsamkeit” e do fulgor intelectual de Haydn. Ainda assim suas Fantasias e sonatas para pia- no — exceto talvez as grandes Fantasia e Sonata em d6 menor, K 475 e K 457, obras gémeas — logo devem ter parecido antiquadas aos que jé sc haviam fa- miliarizado com pianos maiores que os utilizados por Mozact. Seja como for, seus concertos € que emancipam 0 concerto cléssico da mera Yirtuosidade; ¢ sobreviveram & evolucao do piano (¢ ao paralclo cresci- mento da orquestra) porque suas idéias musicais nfo esto condicionadas aos limites do instrumento on As habilidades do executante. Na realidade, e em consonéncia com principios que podemos inferir da critica a Clementi, cles subordinam seu inegdvel virtuosismo ao gosto ¢ A sensibilidade. Estes con- certos realizam 0 perfeito equilibrio entre solo e orquestra, numa parceria construtiva ¢ sem rivalidade, realgada pelas cordas a sonoridade suave ¢ pe- netrante do piano, ou contrastada com intervengdes de cardter solista nos so- pros. As partes de madeiras no K 482 cm mi bemol ¢ no K 491 em dé maior sdo possivelmente as mais elaboradas do séeulo XVIIL; 0 piano discorre con- tra 0 pano de fundo das cordas, freqiientemente dobrando as vozes principais em meio a delicadas figurages. Estas obras ndo sdo, cntretanto, meramente graciosas. Os concertos em ré menor e dé menor ostentam a energia tragica gue costumamos associar a Beethoven nessas tonalidades. O encantador Con- corto em ld maior K 488 tem A guisa de movimento lento uma incompardvel elegia, e 0 andante do K 467 em d6 € uma aria sublimada, uma melodia que flutua sobre delicadas pulsacées ¢ nos leva aos céus. Brilhantismo ¢ patos, sti- bitas mudangas de tom, tudo ¢ moderado por um rigoroso equilibrio entre a exigéncia de aparentar improvisagao ¢ a necessidade de disciplina formal. Tal equilfbrio nao se impée apenas nas complexas formas sonata/ritornello dos movimentos de abertura, mas nas séries de variagdes (notadamente a do finale do concerto em d6 menor) ¢ nos rondés que geralmente rematam os concer- 0s. Mozart compds doze concertos entre 1784 ¢ 1786, alguns para seus alu- ‘NOs, mas a maior parte para suas pr6prias “Academies”. Depois do magnifico K 503 em d6, compés mais dois apenas, 0 Concerto da Coreagdo K 537, uma pléee doccasion, & 0 K 595 em si bemol, no ano de sua morte, Ei provével que ‘esta mudanga de orientagéo tenha resultado de circunstincias externas; seja como for, ele nio parece ter promovido ou se apresentado em concertos com ‘a mesma fregiiéncia depois de 1786, A suavidade outonal do K 595 aproxi- mao do ditine concerto de Mozart, para clarineta, mas seu jubiloso finale, hina Cangdo recente de Haudagdo A primavera, parece indicar que a do exnurir-se, Virion desies concertos foram publicudon, 95 96 a musica cldssica e alguns integravam o repertGrio de pianistas como Hummel ¢ Beethoven. Nao deve ter tardado o reconhecimento de que constituem uma sintese sem paralelo, depois da qual 0 concerto para piano teve de repartir-se entre obras de ambigdo sinfOnica, notadamente os ués ditimos de Beethoven, ¢ de bri- Ihantismo virtuosistico com acompanhamento orquestral, como os de Dussek ¢ Field, No concerto, a forma em. trés movimentos era quase invaridvel, mas a sonata podia assumir muitas configuragées. Até 1790, a maior parte tem apenas dois movimentos ou desdobra os trés em esquemas mais variados que © répido-lento-répido do concerto. A tinica obra substancial de Mozart em mi menor, a Sonata para violino K 304, consiste em um allegro ¢ um minueto; 2 Sonata para violino em sol K 379 tem um movimento lento encadeado a um allegro em sol menor, seguindo-se uma série de variagées; a Sonata para pia- no em ld K 331 € constitufda de variacdes, minueto e rond6 alla rca. Uma das mais primorosas sonatas tardias de Haydn (n. 48 em dé) compée-se ape- nas de uma série de variagdes de tipo muito apreciado, alternadamente em maior € menor, ¢ um brilhante rondé, O modelo em trés movientos, entre- tanto, era mais comum, ¢ com o acréscimo de um minueto ou scherzo, o for- mato em quatro movimentos do quarteto de cordas e da sinfonia passou a ser adotado com freqiiéncia cada vez maior. 6 excepcional a concepgio em ape- nas dois movimentos de varias das sonatas dos tiltimos anos de Beethoven: foi sem divida por terminar com um movimento lento que a de Op. 111 levou o editor a perguntar se o resto havia sido perdido, para irritagao do compositor. A sonata ndo era a tinica forma de miisica para piano. Além das impro- visagbes notadas, denominadas “fantasia” ou “‘capriccio”, as variagdes forne- ciam a base para demonstragées de técnica brilhante, fantasia improvisatéria e habilidade na composicéo. As variagdes de Mozart, geralmente sobre melo- Gias de 6peras populares, eram suas obras para piano mais conhecidas na dé- cada de 1790, quando comegou a compor nesta forma, O fato de que Beetho- ven quase sempre publicasse suas variag6es sem ntimero de opus pode ser um indfcio do pouco aprego em que as tinha, mas duas dessas séries, sobre temas de sua propria autoria, mereceram esta honra (Opp. 34 35). Com elas, Bee- thoven rompeu as amarras da musica de mero consumo ¢ elevou a série inde pendente de variagées a um plano artfstico compardvel ao da sonata, prepa~ rando terreno para sua suprema realizagéo ¢ Gitima grande obra para piano, ‘as Variag6es Diabelli, Mozart © Beethoven eram virtuoses, mas primeiro que tudo composiv tores, Outros chegaram A composigéo para dar repasto a seus talentos virtuo~ sisticos, Um destes foi Daniel Steibelt (1765-1823), que compds sonatas & concertos mas também obras programaticas © pot-poutris opertstions de enorme popularidade, nos quais explorava todos ox recursos do Instrumente = pedals, tromolandi que initan ax cordas da orquentra, OF regintros graven © Agudow recontemonte wereneltoy @ Wonicas de “Leds Mion” Gone O jd ben) GO* inevos da musica instrument nhecido cruzamento de maos ¢ uma nova, que dependia do pedal forte e con- sistia em tocar as notas graves e os acompanhamentos no registro médio com toda a agilidade da mao esquerda. A imensa fecundidade de Steibelt nada ti- nha de excepcional; seu estilo € superficial ¢ de fSlego curto, mas ele contri buiu muito para o estabelecimento dos padrées de virtuosismo piantstico ba- seados em técnica imaculada ¢ dominio do teclado, exibidos de preferéncia nas pequenas formas indivisas que se concentram em problemas técnicos 68+ pecificos. Nos antipodas da forma sonata, estas obras séo em geral denomina- das “esiudos” (éardes), nos casos mais inspirados desafiam no pianisa nfo 96 a capacidade técnica, mas o talento poético, Muzio Clementi (1752-1832) foi levado para a Inglaterra ainda menino pelo excéntrico Peter Beckford, que “comprou-o de seu pai por sete anos’ Tendo trocado o cravo pelo piano, iniciou-se na vida de concertos londrina depois dos vinte anos, antes de partir para a turné curopéia que o levaria a on« contrar Mozart. Sua influgncia no desenvolvimento da miisica séria para pia» no foi considerdvel, mas assinalou um certo afastamento da intensidade clissl« ca em direcdo a estruturas mais livres, capazes de acomodar tanto o brilhan 29 Aolrato do Musio Clementi por Thomas Hardy amisica cldssica tismo técnico quanto a sensibilidade operistica. A sonata transformou-se em pega de concerto. Clementi propagou suas idéias através do ensino, das via- gens e da atividade como um dos principais editores e fabricantes de piano de Londres; e sua carreira prosperou, em contraste com as constantes dificulda- des enfrentadas por seu maior rival, 0 boémio Jan Ladislav Dussek (Dustk) (1760-18 12). Depeis dos primeiros estudos, Dussck pode ter trabalhado com C2. E. Bach em Hamburgo (e. 1782), Sua carreira errante levou-o a Paris, Londres ¢ & Alemanha; em Londres, tornou-se editor em sociedade com seu sogro Corri, ¢ colaborou estreitamente com Broadwood na ampliagdo da ex- tensdo do piano para seis oitavas. Apesar de seu fracasso comercial, que 0 obrigou a fugir dos credores em 1799, Dussek era muito solicitado como con- certista ¢ professor; € importante também sua contribuicSio a0 desenvolvi- mento do concerto Virtuosfstico para piano, que Clementi surpreendemente negligenciou, O estilo sonata de Clementi e Dussek exemplifica o que Rosen consi- derava a fase “classicfstica” da misica instrumental. Por analogia a “helenfsti- co”, “classicistico” subentende a extensfio ou inchamento de idiomatismos cldssicos sem a intensidade dos “‘verdadeiros” clAssicos (os vienenses). O equilfbrio entre preciséo formal ¢ contetido dramético € posto em risco por ‘uma progresséo mais repousada; na exposicdo de uma sonata, as drcas de es- tabilidade tonal sdo expandidas ¢ as cadéncias evoluem para figuragies pro longadas semelhantes as do concerto, sem que no entanto se abreviem as pontes modulantes ¢ 0 desenvolvimento. Embora mais frouxo, este estilo tem suas recompensas, ¢ foi nele que Beethoven comegou. Sua Sonata em 46 Op. 2.n, 3 € dedicada a Haydn, mas sua imponente estrutura em quatro movi- mentos, com uma cadenza no primeiro, mais parece um tributo a Clementi. ‘Ao adaptar as proporgées da sinfonia ¢ do quarteto de cordas & sonata, en- tretanto, Beethoven dotou-a das qualidades de volume ¢ densidade de idéias cagacteristicas de seus quartetos “sinfénicos”; acompanhando Clementi na superagao do classicismo, cle no perdeu de vista seu espirito. Do plantel da Escola Londrina de Pianoforte faziam parte, além de Clementi ¢ Dussek, um aluno de Clementi (© seu rival, como compositor € editor), Johann Baptist Cramer, de Mannheim (1771-1858); e um francés de ascendéncia alemé, Frederico Kulkbrenner (1785-1849), que estudara com Haydn em Viena. Kalkbrenner viveu em Londres de 1814 a 1823. Sua car~ reira posterior de professor virtuose internacional, centrada em Paris, pare~ ce ter sufocado um belo talento de compositor; suas sonatas, obras de alta se~ riedade apesar de sua dificuldade, foram compostas sobretudo nos primeiros anos, Um dos mais notavels talentos desta gerago foi um inglés. O pouco que rostou da madsica para tecldo ¢ violino de George Frederick Pinto (1785-1806) 6 © bastante para que lamentemos wun morte promatura; entilisth» eamente proximuas de Duwok, mun wonatin Jem O8 exceNKON G Imperfelgdan da principais géneros da misica instrumental juventude, mas também uma imaginagao ¢ profundidade de sentimento que autoriza a comparacdo com Schubert, sem risco de exorbiténcia, Entre os compositores vienenses, o principal rival de Beethoven foi Jo- hann Nepomuk Hummel (1778-1837). Hummel viveu na casa de Mozart, quando menino; como Beethoven, estudaria com os mais respeitados profes. sores vienenses, Albrechtsberger em contraponto ¢ Salieri em comp vocal. Empregado nas cortes de Esterhéiz, Stuttgart e Weimar, desenvolveu paralelamente uma carreira de concertista. Sua alentada produgdo inclui obras virtuosisticas para piano solo ¢ mésica de cdmara com predominio do piano (como o Septeto Militar com trompete), além de concertos e ronddés com acompanhamento orquestral. As sonatas de Hummel e Carl Maria von Weber (1786-1826) siio exemplos de uma tendéncia que podemos considerar nao propriamente classi- cfstica, mas anticléssica, O material é geralmente organizado de maneira a eyoluir de uma clara exposi¢do tonal para a segunda tonalidade, elevando a temperatura musical por meio da aceleragao das figuras de valor, de mudan- gas harménicas ¢ da inversio das idéias teméticas. A estratégia inversa con- siste em comegar com um gesto ambfguo ou violento; a tonalidade principal é ‘ocultada ~ a Sonata cm dé maior (1812) de Weber comega como se fosse om né menor — e a misica jd esté em plena ebulicdo, como nos movimentos ex- tremos da not4vel Sonata em f4 sustenido menor (1819) de Hummel, Sobre~ vindo afinal a segunda tonalidade, a miisica ¢ apaziguada numa efusio litica, aps 0 qué impée-se um novo esforgo de elevacdo da temperatura, para abor- dar com resolugao a cadéncia; & o que se obtém em geral coma proliferagéo de figuragdes dificeis, afrouxando irrevogavelmente 0 componente “‘sinfénico” remanescente, © movimento lento da mesma sonata de Hummel é como uma cena operfstica, amalgamando figuras austeras ao lirismo incrustado nas or- pamentagdes. Ambos os compositores construfram suas sonatas em quatro moyimentos, sendo particularmente interessantes — como no primeiro Bee- thoven — os minuetos ¢ scherzos. Por sua autoridade ¢ intensidade, a sintese de amplitude classicfstica © Vigor clissico operada por Beethoven parece raiar pelas preocupagées do ro- ‘Mantismo, Um exemplo é a Sonata em fa menor Op. 57 conhecida como Ap- passionatg (1804), O primeiro movimento apresenta trés dreas tematicas, nota- Velmente enriquecidas com a utilizagio de uma tonalidade menor na terceira, ‘A intrincada articulagiio das iddias tematicas ¢ a presenga de um disseminado Wolo semitdnico impulsionam inexoravelmente a argumentagiio, de tal ma- “Helfa que 4 esteutura 6 expansiva sem qualquer sinal de frouxiddo, O movie 10 Gulmina numa pujante coda. Acreseido A recapitulagio, este recurso, de Heethoven cada vex mais langava mio para configurar plenamente suai tabula a simetria das formas cléssicas som subyerter sua exvéncia, Nio voarnotertatious do perfodo intermedidrlo de Beethoven so concepydes come as daw dan sonatas eogHominaday “Quane una fantanla'’, Op, a misica classica: 27, ¢ da cxtraordinariamente compacta Op. 54 em fa, que consiste em um ron- d6 ornamental em estilo de minueto seguido de um cristalino perpetuum mo- bile. Sc parece haver aqui uma reversdo a Haydn, Beethoven est4 na realidade explorando areas de sensibilidade desconhecidas de seu antigo mestre. Nas-sonatas Waldsiein* e Appassionaia e na posterior Les Adieux, que faz miisica de uma simples seqiiéncia programética (despedida, auséncia ¢ re~ torno), o dominio de uma vasta projegdo arquitetonica dramaticamente equili- brada deve-se & atengao de Beethoven a todos os aspectos da formulagio musi- cal, grandes ¢ pequenos. Semelhante dominio foi conquistado com dificulda- de, ao prego inclusive de uma certa contencdo da fluéncia natural. Seus esbo- 90s mostram que Beethoven vislumbrava a concepcio integral de uma obra, sustentando-a por anos seguidos. Ele podia passar 4 composigdo com rapidez, mas os resultados nao cstariam a altura de suas préprias exigéncias. Em vez disso, encaminhava-se em diregdo a sua concepgao ideal anotando idéias em forma bruta ¢ remodelando-as nesses temas de uma plasticidade que soa tio espontanea, tragando o plano de movimentos inteiros, claborando os detalhes € s6 entao notando toda a partitura, ainda assim mudando muitas vezes de idéia. Os rascunhos de Beethoven constituem uma das maiores e mais com- plexas documentagdes de que dispomos sobre 0 processo de composigao. Nao se hf de inferir dai, no cntanto, que seus métodos de trabalho sejam mais rele- vantes que as composigées em si. MUSICA DE CAMARA Nenhuma formacdo instrumental possui um repert6rio compardvel as densas obras-primas para quarteto de cordas. Nao cabe deduzir, entretanto, que os compositores ¢ 0 piiblico reconhecessem sua primazia, pelo menos antes de Beethoven. O “divertimento a tre” (dois violinos ¢ violoncelo) nio é um quarteto de cordas incompleto mas uma formagdo instrumental cléssica; como no barroco, a textura de céimara bésica cra a de trés partes, até que os Opp. 20 ¢ 33 de Haydn firmassem a contribuicdo da viola. Entre 1750 e 1780, publi- caram-se mais trios que quartetos, entre cles muitos de Haydn. Os dois prin- cipais compositores de cimara, entretanto — Joseph Haydn (1732-1809) e Luigi Boccherini (1743-1805) -, acabaram dando preferéncia respectiva~ mente a0 quarteto ¢ ao quinteto com dois violoncelos, Foi gragas d indulgén- cia dos intelectuais que o quarteto conquistou o prestfgio de que ainda hoje oxi; s6 mesmo Mozart - que também adotou 0 quinteto com duas violas, de matiz mais escuro ~ era capaz de explorar todos os recursos mais sedutores do * No Hrnall, conhocida também come sennata Aurora, (N, do 'T) principals géneros da musica instrumental ‘conjunto ampliado (em vez de opor-lhe uma va resisténcia) sem pdr em risco a arguitetura musical. ‘A misica do primeiro Boccherini é envolvente variada, mas suas ‘obras mais tardias decepcionam pela insipidez. Ele comp6s mais de 120 quin« tetos € quase 100 quartetos; 4 parte sua produgéo, a primitiva hist6ria do quarteto ¢ basicamente vienense, ¢ mesmo Boccherini passara por Viena em seu perfodo de formacdo, antes de se estabelecer na Espanha. Em Viena, na geragao de Haydn, o quarteto ¢ a sinfonia foram cultivados por Karl von Or= donez, (1734-86), Carl Ditters von Dittersdorf (1739-99) e o prolifico boémio Johann Baptist Vanhal (1739-1813). Ordonez foi um inovador; certas obras suas da década de 1760 apresentam caracteristicas inusitadas como as cone- x0es temiticas entre movimentos (idéia mais cultivada no século XIX que no resto do século XVIII) ¢ uma generosa utilizagao da fuga. Mas por volta de 1772 Haydn jé compusera pelo menos vinte c dois quartetos; tivesse parado por af, os de Opp. 9 ¢ 17 jé estariam entre os melhores da época, Mesmo neste contexto galant e popular, revela-se o intelectualismo de Haydn na sutil irre= gularidade do fraseado ¢ na crescente complexidade de sua polifonia. No Op. 20 (1772; publicado em 1774), a amplitude dos primeiros movimentos mais ‘aproxima seu estilo da maturidade que os finales fugados, ¢ os quartetos em tonalidades menores podem ser associados as sinfonias Sturm und Drang, com seu vigor emocional. Certos aspectos desses quartetos, entre eles o incre= mento do contraponto formal, foram conscienciosamente imitados pelo jovem Mozart. Haydn perccheu talver que nao poderia superar o Op. 20, ou estava por demais ocupado com a dpera de Esterhdz, com sinfonias ¢ trios com viola bastarda para continuar se entregando 4 composigéo desinteressada, O quar- toto vienense prosseguiu com Vanhal, cuja miisica, nao obstante sua grande habilidade, néo tem o encanto envolvente de Boccherini nem a vivacidade hi~ pervensfvel de Haydn, Em 1782, Haydn compés 0 Op. 33 ¢ Vanhal voltou-se piri outros géneros. Menos hesitantes (ou menos exigentes), outros compo- ailores continuaram a compor quartetos: os boémios Leopold Kozeluch (1747-1818), Franz Krommer (1759-1831) e Adalbert Gyrowetz (1763-1850), 0 cosmopolita Ignaz Pleyel (1757-1831). Todos cles, no entan~ {0, Mo melhor lembrados por suas incursbes em outros géneros, nos quais nfio sw Impbem comparagSes desfavordveis com mestres maiores. Sobram motivos 6 deleite nos repertérios para flauta, obos, clarineta ou fagote com acompar Hhamento de trio ov quarteto de cordas (notadamente as obras para clarineta ‘Krommer, Hummel, o clarinetista finlandés Crussel [1775-1838] © Weber), lonmo deyoontando-se a imerecida suspeita de que esta médsica ainda hoje € {oonda porque o& compositores mais importantes nogligenciaram estas fore Pormanece o fato de que desuicar Um Instrumente de yopro Lnevitie orla uid almosfera mais concertante que de edmara, Poucos foram ‘Aoguinum Mozart om goth quintolo Com elarineta, elegante, ineon tunel 101 ‘amisica classica ‘vol no estilo, ¢ ainda assim cheio de digressdes. E Krommer, de qualquer mo- do, 0 sucessor mais digno de Mozart na mésica para “Harmonie”; suas obras. para ito ou nove instrumentistas de sopro so de ume vivacidade e inventivi- dade textural somente igualadas por Beethoven e Hummel. Haydn afirmava ter composto 08 Quartetos do Op. 33 “de uma forma in- teiramente nova ¢ especial”. Segundo Rosen, ndo vai af mero elogio em causa propria; cle considera a integragéo de tema ¢ acompanhamento, a ponto de néo se distinguirem um do outro, “uma revolugdo no estilo (...) a verdadeira invengao do contraponto clissico”. Haydn logrou um tipo de coordenacdo e economia de robustez tinica até Beethoven, algo de importancia muito maior que pequenas inovagdes como denominar “scherzos” os minuetos acelerados, ou detalhes como a abertura do n. 1 (em ré maior, embora a misica seja afinal em si menor), ou ainda o “gracejo” que conclui o n. 2. A integragio de temas de um movimento para outro tansparece no n. 3 em dé, cujo primeiro movi- mento associa 0 nove contraponto a expansividade do Op. 20. Permeados que seam pelo espirito da opera buffa, os quartetos do Op. 33 so também pro- fundamente sérios, ¢ clevam o pénero a novas alturas — logo alcangadas tam- bém, a partir de outra diregéo, por Mozart, mas a parte isto sé atingidas até 0 Op. 18 de Beethoven por uma gloriosa sucessiio de obras-primas do proprio Haydn, No tiltimo dia de 1782, Mozart comegou a compor 0 quarteto em sol com que abriu uma série de seis, publicando-o-em 1785 como Op. 10; estes “frutos de um longo e laborioso esforgo” foram dedicados a Haydn. Nas par- tituras autégrafas, cncontramos uma quantidade excepcional, para Mozart, de eliminag6es e revisdes; compositor fluente entre todos, ele achava dificeis os quartetos de cordas, mas desde entdo o género deve muito a suas conquistas Como a suas hesitagées. Em 1791, quando Mozart morreu, Haydn jé havia es- erito mais dezoito quartetos, e o proprio Mozart apenas quatro. Boa parte do ‘Op. 10” esté a altura de sua melhor misica de camara, mas ele parece mais Seguro em outros géneros, inclusive os que inventou. O maravilhoso Quinteto policromdtico para piano e sopros foi imitado (por Beethoven, Danzi ¢ Spo- hr), mas nunca igualado. As obras para instrumentos de sopro so as mais Apreciadas neste repertério restrito, e o Trio para clarineta, viola e piano = conhecido como Kegelstatt porque supostamente composto durante um jogo do boliche = est entre suas criagSes mais originais, sem dévida por ter sido Goneebido para execugiio na companhia de amigos. As supremas obras de cémara de Mozart slo quatro quintetos de cor- das, dois de 1787 em dé ¢ sol menor ¢ dois de 1790-91, em ré © mi bemol, ‘Sas experangus de obter lucros com uma série de concertos de assinatura nfo ‘Ae COnGretizArAM, © MUiLON ANOS se passariam até UMN NOVO aproveltumento das _powalbitidacey desta formagho; primeiro num Quinteto classie(stieo de Beethor prinolpais géneros da rmisica Instrumental de, Mozart prenuncia o de suas duas Gitimas sinfonias, compostas em 1788: uma concentrada, apaixonada, de colorido sombrio, a outra luminosa ¢ ex- pansiva, Aos quatro movimentos habituais, 0 sol menor acrescenta uma dria Jenta antes do finale, numa justaposic¢do audaciosa e bem-sucedicla de patos e suavidade; o xé maior tem uma introdugao lenta que reaparece durante 0 primeiro movimento, algo excepcional em Mozart, O quinteto em mi bemol é mais leve que os outros, mas igualmente inventivo no contraponto, com um {timo movimento que parece mais uma animada homenagem a Haydn. ‘A culminancia da produgdo de Haydn, em qualquer género, é a série de quartetos do Op. 76, publicada em 1799. S40 varias as caracteristicas inusita~ das, Embora somente um seja em tonalidade menor, como de hébito, trés de- es tém finales em menor. O n, 2 em ré menor tem um apelido (Quintas) que faz alusdo a um fendmeno puramente musical, o motivo principal do primeira movimento. Este, assim como a terga descendente do n. 3 em dé, é desenvol- ido com tal concentragdo que a textura quase fica mais préxima da fuga que da sonata. O n. 3 é 0 Imperador, com o discreto gesto de patriotismo no mo- yimento lento — as variagdes sobre o hino imperial do proprio compositor. Quase todos os movimentos da série contém algum trago de originalidade, mas © n, 6 em mi bemol é o mais caprichoso; comeca com uma série de varia- gOes seguida de uma fuga, o movimento lento abre sem armadura de clave ¢ percorre 0 universo harmdnico antes de resolver em si maior, o trio do mi- jueto consiste apenas em escalas e a forma sonata é guardada para 0 finale, {que se baseia quase inteiramente num motivo de cinco notas. O op. 76 nao s6 ce desmentir a idade de Haydn como contraria sua tradicional imagem de "Papai Haydn": devemos vé-lo, isto sim, como um prodigio de perene joviali- dade, Costuma-se dizer que Beethoven esperava Haydn dar por esgotada Weterminada forma para abordé-la. Isto parece pacifico no que diz, respeito J) sinfonia © A sonata, ao passo que seus primeiros trios tém uma concepgio sinfénica que semelhante 3 da sonata para piano. Mas Beethoven come- ‘A compor quartetos antes que suryisse 0 Op. 77 de Haydn, reunindo duas magistrais cuja publicacio em 1802 evidenciou sua incapacidade de ir urna série inteira (existem dois movimentos centrais para um terceiro irteto, Op. 103; eles mostram que Haydn ainda era original aos setenta 1), Beethoven nio podia ignorar Haydn e Mozart ao compor, e também \ lentamente os quartetos finamente lavrados de seu amigo Emanuel (1748+1823). O Op, 18 de Beethoven inaugura uma série menor que a mas do malor repercussio para a posteridade; e, como 0 Op. 10 de resultou de um longo © penoso esforgo, de 1798 a 1801, A ordem de flo no é a de Composigho, Beethoven decidiu abrir a colegio com. expansive em fd) 0 movimento lento diferencia-se particularmente fides antecessores, pelo lirisme mérbido (Beethoven teria em tinulo de Komew @ Julieta, ao que se diz, © & propdsito da 103 a musica classica fogosa Sonata para piano em ré menor Op. 31 n, 2 falaria de A Tempestade). Primeiro a ser composto, 0 Op. 18 n, 3 € um refinado tributo a Haydn, en- Quanto 0 n. 5 em If inspira-se evidentemente no Quarteto em 14, K 464, de Mozart. O n. 6 em si bemol incorpora uma introducéo lenta ao finale, extrain- do 0 méximo efeito - como Mozart no quinteto em sol menor — do contraste entre um inquicto allegro ¢ uma introducdo sombria que Beethoven denomi- nou “Melancolia” (La Malinconia). Aqui ¢ ali o Op. 18 deixa transparecer ainda resquicios muito leves de um esforgo de aprendizado, mas o aluno 6 um génio cwja forga criadora encaminharia 0 quarteto ~ ¢ outros géneros — em novas diregdes, ASINF i. Pelos meados do século XVIIL, cram igualmente comuns as sinfonias em trés © em quatro movimentos, tendendo a predominar a concepgao em trés movi- mentos (em conformidade com a sinfonia e o concerto italianos). © formato de quatro movimentos resulta da incorporagao de um verdadeiro finale (ge- ralmente em forma sonata) e de um movimento em forma de danga (em geral um minueto, mais tarde um scherzo), As circunsténcias podiam levar um compositor a adaptar determinada obra: Mozart acrescentou um minueto A Sinfonia n. 33 cm trés movimentos, ¢ eliminou um dos dois que integravam & Haffner (n. 35), transformando assim uma serenata orquestral em sinfénia. De maneira geral, os ws movimentos tinham a preferéncia na Itdlia, na Ale- manha do Norte (C.P.E. Bach, por exemplo) e na Franga; ¢ até mesmo em Viena, no caso de Ordonez Vanhal. Uma prova da influéncia de Haydn € que antes do final do século a forma em quatro movimentos jé se havia torna- do normal. Foi para atender as expectativas Jocais que Mozart compés sua Sinfonia Paris (n, 31) em trés movimentos. Cito anos mais tarde, as Sinfonias parisienses de Haydn (ns, 82-87) teriam todas quatro movimentos. Nos di- Vertimenti e serenatas austriacas, a presenga de dois minuetos, antes depois de ttm movimento lento, pode explicar por que 0 minueto ou schetzo vem As ‘yeues om segundo lugar, ¢ nfo em terceiro, As novas implicagdes da designagao “sinfonia’’ por volta de 1830 po- dem sor explicadas; menor nimero de composigées; orquestras maiores; mo yimentos mais longos; contrastes mais acentuados de andamento, Os movi- Mentos lentos tormam-se mais cantantes, com predomindncia do adagio sobre © andante proferido no século XVIII (hd, entretanto, Upicas excegdes em Bee thoven). © Igpido scherzo de uma pulsagto por compasso toma o lugar do minucto ou Landler pomposo ou bucdlico; na Primeira Sinfonia de Beethos a Jnaorigto. “minueto” é um gracejo, em contradigho com a indicago A principais géneros da miisica instrumental thoven, uma de suas obras mais populares, que descende do divertimento e contém um minuto ¢ um scherzo. Embora nao chegasse a ser universalmente adotada, a introdugao lenta ao primeiro movimento tornou-se normal no Haydn tardio. Podia ser majes- tosa, como a velha overture francesa, ou propor um problema harménico, co- mo fez Mozart em seu Quarteto em d6 maior (daf seu apelido, Dissonéncia) Nos methores exemplos, 0 compositor esforga-se por ser ao mesmo tempo imponente ¢ misterioso, como na breve introdug4o da dltima sinfonia de Haydn (n, 104 em ré). As introdugdes mais longas de Mozart (ns. 38 ¢ 39) serviram de mocelo a quatro das sinfonias de Beethoven, Sob muitos aspec- tos, entretanto, ¢ nas mios da maioria dos compositores, a forma sinfénica preseryou 2s concepg6es do século X VILL, ampliada para atender a novas ne- cessidades expressivas mas organizada de modo a ir ao encontro das expecta tivas do pliblico ou, no caso dos compositores mais imaginosos, de encontro a clas. Um estudo dessas proporgées néo ambicionaria mapear toda a histéria da sinfonia sem correr o risco de uma indesculpavel simplificagdo, tantos eram os centros de produgo no século X VILL, e to diversificadas suas contri- buigdes. A condicio sine qua non é uma boa erquestra, que néo tinha necessa- riamente de ser grande, O disciplinado conjunto de Mannheim, que Burney qualificou de “um exército de generais, capaz. de planejar e de travar uma ba- talha”, ndo produziu uma série imorredoura de sinfonias, como Haydn, isola- do na Hungria com uma orquestra mais modesta, nem podiam as orquestras de Paris ostentar um repertério téo primorosa quanto o de Viena. Para Mo- zart, a melhor orquestra parece ter sido a da capital boémia, para a qual es- creveu em 1786 a sinfonia mais diffcil composta até envio por ele mesmo ou qualquer outro compositor (a Praga, n. 38). A sinfonia do tipo “Mannheim”, contrastando brilhantismo e senti- ‘Mento, estava sempre préxima da mancira italiana, da qual pode na realidade ter derivado; ela foi exportada para Paris, e o principal compositor de sinfo- nias de Londres, o italianizante J.C. Bach, estava fortemente ligado a Mannheim. Na Alemanha a sinfonia tinha j4 um cardter sério, e as mais tar- dias de C.P.E, Bach aplicam o estilo da sensibilidade 4 concepgao mais ampla ©0m considerdyel 6xito. Os criticos do norte alemao acusavam os vienenses de friyolidade, mas foi o estilo destes — uma eclética combinagdo de opera buffa e ‘PAlilos Cultos = que langou as bases da sinfonia novecentista, Nao obstante Michael Haydn, Pleyel e outros sinfonistas vienenses ja mencionados, o chefe Incontestavel desta escola foi Joseph Haydn, que foi educado em Viena ¢ ali -GompOs suas primeiras sinfonias para o conde Morzin, A evolugilo de Haydn 6 um fendmeno extraordindrio, quando menos sido weompanhada com tanta avider, apesar de seu isolamento, em to- WtrA, Ni Alemanha 6 outros pafies, Ainda mostrandosse agustado com bendizia yeu protetor; “Eu podia fazer experiénoius, observar 105 ‘a misica cidssica ‘© que causava impressdo ¢ 0 que a debilitava. (...) Podia correr riscos. Estava igolado do mundo, sem que ninguém me perturbasse ou se imiscuisse em mi- nhas escolhas; vi-me, assim, forgado a ser original.” Um artista menos excep- Gional poderia simplesmente ter-se acomodado. O espirito inquieto de Haydn conduziu-o, 4 quase aos quarenta anos, por caminhos que elevaram a sinfonia 4 uma nova posigao e asscntaram as bases do prestigio de que desfrutaria mais tarde como a mais alta forma da arte musical. ‘Mas néo puramente musical; varias das sinfonias de Haydn tinham re- feréncias descritivas ou outras, de natureza extramusical, como as da série sociada as horas do dia (ns. 6-8, ¢. 1761: Le Matin, Le Midi e Le Soir) ea n. 73, La Chasse (1781). Outas obras, além disso, utilizam melodias litirgicas. Por qué, nao € fécil dizer; mas estas obras, como a n, 22 (impropriamente chamada O Fildsofo) e a h. 49 em f4 menor (La Passione), estéo muito tantes dos encantos rococ} ou da pompa cerimonial habitual numa sinfonia. Algumas delas evocam a sonata de igreja, abrindo com um majestoso movi- mento lento, Mas so minoria, e Haydn nunca pretendeu contar histérias, co- mo fez Dittersdorf, com cativante senso narrativo, om suas sinfonias inspira- das nas Metamorfoses de Ovidio (c. 1785). Nem mesmo Wl Distraito (n. 60), de Haydn, com suas autocitagées aparentemente desatentas ¢ a brincadeira com 4 “afinagdo” do violino, pode ser considerada programiitica, embora derive da miisica incidental de uma comédia. Dentre as obras que revolucionaram as potencialidades da forma, as mais conhecidas, por causa de scus titulos, sd0 provavelmente a n. 44 em mi menor (Traver: Pesar) e a n. 45 em fa sustenido menor (Despedida), An. 44 € uma obra antes enérgica que pesarosa, ¢ 0 titulo da Despedida aplica-se apenas ao finale, a mais séria brincadeira musical de Haydn: vemos os mtisicos partindo um a um, ¢ a sinfonia termina com dois Violinos apenas, mas ouvimos um diminuendo primorosamente dosado. Haydn quis aparentemente dar a entender que os misicos mereciam umas {érias, ¢ 0 conseguiu; Nicolau entendeu o recado, sem se sentir ofendido. Haydn tinha mesmo muita sorte com seu patrao. Estas sinfonias retinem qualidades que, sc ndo eram inéditas, rompiam em conjunto as amacras do style galant: ritmo premente, com acentuado in- ‘eremento da sincopasao; intrépida energia nos motivos principais; conciséio de forma, a despeito da introdugéo de uma nova melodia no centro do primeiro movimento da n. 45, instaurando um interlddio Ifrico em meio A impetuosida~ de do allegro; ¢ maior utilizagio do contraponto estrito (an. 44 tem um mi- jueto em efinone € un, 46 em si, um desenvolvimento vigorosamente contra= pontistico), O predom{nio de tonalidades menores tem sido assinalado, mis no deve ser suiperestimado; as ns. 46 ¢ 47 (em sol) so de calibre semelhante, 1772.60 annus mirabilis da sinfonia classica, principais géneros da miisica instrumental sienses ¢ londrinas, a pujanga expressiva permunece inquebrantével, mas se acomoda a uma linguagem popular de origem vienense, arejada, vivida © ex- tremamente atraente na utilizag4o de misica folclérica (embora também esta possa ser enigmética, por que aproveitar uma melodia croata em ccncerto para um piiblico londrino, na n. 1032). Os historiadores tém chamado a aten- cdo para a coincidéncia das sinfonias de 1772 com 0 Sturm und Drang liveré- rio. © estilo impetuoso © turbulento origina-se, como se poderia esperar, no teatro; a estupenda danca triunfal dos deménios no Don Juan (1761) de Gluck permitiu a Haydn apenas a aplicagao A sinfonia de um estilo desenvolvido para © grotesco teatral. No caso da miisica, 0 Sturm und Drang deve ser invocado apenas como analogia, sem qualquer implicacdo causal literaria; in- dica a linguagem intensa e agitada que enriqueceria permanentemente o idio- ma sinfonico através do exemplo de Haydn. Em 1773, Mozart, apesar de suas inclinag6es italianizantes, comps uma admirdvel sinfonia em sol menor com todas essas caracteristicas; quinze anos mais tarde viria sua segunda sinfonia em sol menor, ¢ © parentesco fica evidente, embora a energia maledvel da ju- ventude tenha dado lugar as tensdes perfeitamente organizadas da maturida- de, Em nenhum dos dois momentos Mozart experimentava as dnsias da busca adolescente, ¢ em 1788 trabalhou simultaneameate em trés sinfonias de feitio ie tals 9 coneortos do Har “ooneerios do emprosario 407 amisica cléssica totalmente diferente. A n, 39 em mi bemol é verdadeiramente olimpica até o cintilante finale; an. 40 é a Sinfonia em sol menor; an. 41 é a apoteose da sinfonia setecentista na tonalidade de d6 maior, clegante, majestosa, pontuan- do suas expansdes com rematada arte contrapontistica, sobretudo no tour de force fugado com que termina. A Primeira Sinfonia (1800) de Beethoven é a que mais perto o levou de Haydn, mas evidencia também uma certa impregnagio mozartiana, além de grande originalidade |nos detalhes — a comegar pelo acorde inicial, em svave dissondncia que oculta a tonalidade principal. Sua alentada orquestracdo, em que os primeiros criticos deploraram a predominancia dos sopros, pode ter-se inspirado menos em Mozart que na misica orquestral da Franga revolucion- tia. A Franga, no entanto, produziu apenas um sinfonista importante nesta geragio. Etionnc-Nicolas Méhul (1763-1817) compés entre 1800 ¢ 1810 cin- Co sinfonias, sob forte influéncia de Haydn, mas com vigor e inventividade que também transparecem em suas aberturas de 6pera. Beethoven emprcenden sua prépria transformacdo da sinfonia, em Vie- ha, antes da morte de Haydn, e sua producdo relativamente pequena funci ‘nou como clemento inibidor dos que poderiam té-lo seguido. J4 na de n. 2 em 6 (1802) ele tratou de ampliar as dimensdes do género para dar largas a sua preferéncia pela orquestracdo alentada, Seu modelo pode ter sido a n. 38 de Mozart, na mesma tonalidade. Ambas abrem caminho para allegros excepcio- nalmente longos com uma introdugdo de solenidade barroca; os movimentos Jentos so nos dois casos em 3/8, utilizando as madeiras com excepcional elo- qliéncia, ¢ os finales so magn{ficos caprichos, Beethoven limitou-se a acres- ‘centar um scherzo. A Sinfonia n, 3 em mi bemol (1803), no entanto, nada deve a qualquer modo dircto, marcando época na hist6ria da sinfonia e na evolu- lio de Beethoven como compositor. Jé na exposigio numerosas idéias so desenvolvidas, mas a segéo de desenvolvimento propriamente submete-as a uum tipo de elaboragao até entio desconhecido, além de introduzir uma nova melodia (os musicélogos tém demonstrado sua relagéo com o tema principal, mas ainda assim ela é percebida pelo ouvinte como nova). Beethoven modifica ‘as proporgées do movimento; 0 desenvolvimento é consideravelmente mais Jongo que a exposicéo, e a coda vem a ser uma quarta subdivisio de impor tincia quase idéntica, A nobre marcha fiinebre € de dimensdes compardveis; 0 secherz0, vigoroso, ¢ também ampliado; o finale, extrafdo de obras anteriores (@ balé Prometheus ¢ as variagées para piano Op. 35), rompe os limites da va Hugo incorporando novos desenvolvimentos, um fugato ¢ uma magnifica ‘Yariagtio lenta antes da concluséo triunfante, __ © significado de uma obra uio colossal néo pode ser inferido da bem conhecida histéria sobre a dedicatria a Napoledo, retirada quando ele ye 0 do. ro y, principa's géneros da mésica instrumental pressa no clima de despedida que permeia o “testamento de Heiligenstadt”, Mas nem a biografia nem a politica revolucionéria bastam para explicar a miisica em si. A despeito de seu rigor formal, ela proclama alto ¢ bom som a liberdade do artista para moldar o material que escolhe de acordo com as leis que ele mesmo gera. A auddcia, no caso, recompensou; os criticos de Beetho- ven h4 muito foram silenciados, 109

Você também pode gostar