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PEERS AMOR FE DESE.I NO a sistema Alexandra Nag tz764, ii se i Dirac Bean Ais In samira Yousset Compt Preparapto de texto Witne Grete ‘are Coordenaeio Projet grace lo) anton 8 vara Racha on Br eng Bone Argon Josovl Souss Fernandes apa ‘Ary Normanha ISBN a5 08 o1164 4 Editor Ati Tel (Pas nd, Tl Sumario Introdugéo___ A busca da castidade: virgindade e Virgindade: ideal cristo. 8 0 iltimo grau da continéncia: © casamento [iespestadst enema iy © imaginétio da castidade masculina___14 Ambiglidades ¢ impasses de uma moral 20 ‘A sacramentalizagao do casamenti continéncia e transgresséo___25 © mundo profano do casamento.. ‘Matriménio: conjugalidade sacramentada_— ‘Triunfo do modelo eclesiéstico ‘A economia dos prazeres: 0 leito conjugal AA divida conjugal, 37; A condenacho do ardor, 41; ‘A classitieagio dos ats, 43. © imaginario do amor: erotizagao de Deus, espiritualizagao da carne__49 Erdtica celeste © concérdia. matrimonisl___49 © amor estilizado: cavaleiros, damas e trovadores_52 ‘A vivéncia profana do amor 56 O circulo da luxdria: a carne estigmatizada__—— 59 ‘A morfologia dos atos luxuriosos___60 Fornicacio: sts do prazerilcito, 60; Molicie: © -prazer sem 0 outro, 62; Sodomia: atos abomindvels, (4; Bestilidade: © sexo animalizado, 70. Da indulgéncia a violéneia—______73 6. Conclusao: a problematica cristé da carne. 7. Vocabulario critico. 8, Bibliografia comentada. st 86 on 1 Introdugao E habito corrente, quando se pensa na relagio entre cristianismo e sexualidade, aludir-se a uma rede inter nivel de proibigdes inscritas no mais severo cédigo de re pressio sexual j4 inventado pelo Ocidente. F costume, também, opor-se esse modelo austero e repressive, cons- truido pelos teélogos medievais, as priticas permissivas e libertinas da Antigiidade greco-latina. ainda comum a concepeiio desse modelo como um todo homogéneo ¢ coe rente, por muitos denominado de moral judaico-crista, ccaracterizada basicamente pela apologia do casamento monogimico e indissolivel e pela condenac30 absoluta do desejo e do prazer. Esta € a imagem que nos ficou da assim chamada ‘moral ctisti. Seus tragos basicos, alguns a0 menos, en- contram respaido na propria histGria da Igreja, de suas priticas ¢ idéias. Sodomitas queimados, casamento sacra rientado, vigilincia do sexo, nada disso & estranho & hist6- ria da eristandade ocidental, Mas néo simplifiquemos em demasia: a moral erista esteve longe de ser mero roséio de apologias condenagies, rol dé iados do que se devia ou no fazer. A tendéncia & cago" da mo- ral foi notdvel, de fato, ¢ eresceu mesmo & medida que se aperfeicoava a douirina, mas nem por isso excluiu a con- trovérsia, a problematizagio, Condenado ou no, 0 sexo foi muito discutido e assim também 0 casamento. Falou- se deles sempre e com insisténcia obsessiva. Imaginow-se ‘muito, fantasiou-se ao extremo tudo 0 que a eles se rela- cionava. Construiu-se, enfim, uma hermentutica do de- Ssejo, preccupada em decifrar a natureza do. pecado, ciosa ddos caminhos para a ascese da alma. ‘A historia da moral eristd 6 certamente muito comple- xa e faz-se necessério pontué-la, escutar-Ihe as palavras, tragar-the 0s passos, inguirir-Ihe os segredos, fazendo um pouco & moda dos confessores do século XIII. O casa- mento foi sempre um valor sagrado no crstianismo? A austeridade sexual foi uma invengao da Tgreja no Oci- dente, estabelecendo-se, assim, um abismo entre a moral crista’ © a ética dita pag? Reprimia-se genericamente o desejo ou condenavam-se, na prética, alguns prazeres? Podemos, com efeito, falar de uma moral judaico-crista? Fis algumas das questées que irio marcar @ nossa anilise dda moral sexual do cristianismo. [Em meio a essas indagagbes veremos, portanto, se € como foi construida uma doutrina ocidental acerca da se- ‘xuslidade caracterizada, como quer Jacques Le Goff, pela reeusa do prazer. Lembremos 0 que hoje no € mais no- vidade: a sexualidade, 0 casamento eo amor tém também 1 sua histria, uma histOria de méltiplos caminhos. 2 A busca da castidade virgindade e ascetismo Nos inicios do cristianismo, a primeira literatura de cunho moral no priorizou nem o casamento nem a fa Jia — como muitos supem —, mas 0 ascetismo, cujos valores essenciais eram a virgindade e a continéncia. Diti- gida a homens ou a mulheres, tratou-se, em suma, de pro- paganda de renincia, de luta pela castidade, e as interpre- rages doutrinsrias da época extrafam dos textos aposts- licos, em maior ou menor grau, tudo o que as pudesse fundamentae. Entre as fontes bisicas dessa pregaeio encontra-se @ exortagio de Paulo 20s corintios: que os homens perma- necessem celibatirios (I Cor., VII, 8); que as vidvas se ‘mantivessem castas (id., VII, 40); que’ as solteiras ficas- sem virgens (id, VII, 38). Exortagao apocaliptica, que apontava para o pr6ximo final dos tempos e recomendava a rendincia da carne aos que tencionassem ganhar 0 Reino dos Céus. Foi com base em dias como as de Paulo que surgv, a0 longo dos séculos IIe IV, uma vasta literatura con sagrada A virgindade. Tertuliano e Cipriano, 0 Afsicano, foram 0s pioneiros, escrevendo, respectivamente, Sobre 0 véu das virgens © Sobre as vestes da virgem. Met6dio de Olimpia deu, com o seu Banquere, grande aleato a0 tema, se Ihe seguiram Basilio de Ancita, com Da virgindade, Gregirio de Nissa, com o Tratado' da virgindade, Joao Crisdstomo, com o também chamado Da virgindade, © muitos outros. Viegindade, palavra recorrente © tema ‘obsessvo, eixo da moral acerea do desejo nesses primeiros séeculos. Mas qual era o seu significado nesses discursos? Entre 0 fim do mundo terreno € a salvacio possivel, a Virgindade era a garantia da ascese, 0 retorno 3 origem € 4 imortalidade, como dizia Metdio. Era, antes de tudo, 8 expressio corporal da alma triunfante sobre a morte, sobre o devir, sobre o tempo. © corpo virgem, pregava CCriséstomo, era 0 templo da alma apta para o movimento ascendente rumo a Deus. Ser virgem era, asim, dedicarse & contemplagio, execccio inseparivel, no dizer de Greg rio de Nissa, da incorruptbilidade do corpo. Viegindade e verdade, vitgindade © vida, virgindade e liberdade, els associagSes recorrentes nesse'discurso de renincia. Re- riincia que, no dizer dos Padres, significava exatamente 0 contrato, isto €, busea, asese, libertagio do mundo deca- ente, imortalidade. Esprituslizagio absoluta do corpo, a virgindade era mesmo divina, conforme as palavras de Met6d Eis, prtanto, 0 campo seméntico da vrgindade nessa literatura. Nele prevalecem os significados escatl6gicos, herdados em boa parte do platonismo e do estoicismo, centrados basicamente numa problemtice da alma 8 qual ° © corpo deveria se submeter absolutamente, Mas a quem se dirigia essa mensagem? Quem, antes de tudo, deveria permanecer virgen? ‘Na Antigilidade tardia, numa époce em que o casa ‘mento se tornava mais corrente e alé estivel, & apologia cist da virgindade se dirigia as mulheres, exortando-a5 a nfo se casarem, Era um discurso de homens dirigido as mulheres e, mais do que isso, uma imagem masculina da mulher. Mas, conio afirma A. Rousselle ', num mundo ‘onde 05 pais decidiam o casamento das filhas, nenhuma ther, salvo se fosse drfa e resstisse as presses que sobre cla se fizessem, paderia permanecer virgem. Foi, portanto, as maes que se ditgiu este discurso, para que fizessem ver as filhas a virtude da vida continente. ‘A mensagem era toda, como veremos, hostil a0 easa- ‘mento, alertando contra os perigos da vida conjugal, desde as dificuldades da convivéncia diéria com 0 marido a es cravidio de se suometer a cle carnalmente, Em contra- partida, enaltecia a virgindade, educava as mulheres para 4 vida continente © expunha os erros que poderiam evar as virgens a qued:. Alguns, como Joao Criséstomo, nem Sequer problematizavam a dificuldade que a mulher teria ppara se conservar virgem. A quem nunca experimeatou prazer carnal era facil guardar contingncia: eis 0 que sub- jazia a0 texto de Criséstomo. Outros, porém, como Ba- silio de Ancira, problematizavam a questio de como seria possivel as mulheres renunciar ao prazer. Basilio, que também era médico, alertava as mulheres, orientando-as controlar todos 9s sentidos, vistos como portas para o desejo genital: 0 tao, o paladar e sobretudo a visio, 0 olhar que excita ¢ fixa lembrancas sedutoras. Descrevia a sutilezas da masturbagio feminina, para combaté-la, © TPoméia, Sio Paulo, Brasiense, 1984, p. 219-20 recomendava privagSes: nlio tocar, ndo ver e comer pouco, 66 alimentos que deixassem 0 corpo frio e seco, Tsolar= “se, enfim, ou isolar © corpo: eis a receita para que mulher mantivesse a carne incorrupta ¢ a alma pura. Os textos sobre a virgindade davam pouca atengio ‘aos homens. © mesmo Criséstomo, numa homiia, limita- vva-se a lembrar que o casamento eta melhor que a forni- ceacio, mas ressaltava as desavencas da vida conjugal, as injirias © tagarelices da mulher, » provagio de coabitar ‘com uma esposa, Pregagio miségina, que recomendava 0 celibato, mas sem problematizar a questi do desejo mas- cline, ‘A apologia da virgindade se orientava, pois, para 0 piiblico feminine. Era, como vimos, um por homens para educar as mulheres’ ccasar, manté-las_ virgen. ‘Mas era também uma exortagio & castragio do ho- mem ¢, especialmente, da mulher. Cristo era celibatario, Tembravam os Padres, e Maria, sua mae, concebera virgem. Gregério de Nissa foFalém, e ousou mesmo dizer que Deus engendrou seu filho sem paixio, virginalmente. E, assim, comenta Marie-Odile MBtral , “o sexo da virgem parece ddigno de Deus, pois o sexo virgem corresponde a uma anu lagio do sexo”. No ano de 451, 0 Concilio de Calcedénia considerou 1 consagracio das virgens como um exsamento, A virgin- dade era, pois, o “verdadeiro” casamento, signo da unio entre Deus 0s homens, entre Cristo ¢ a Igreja. © “outro” ccasamento, aquele que unia homens e mulheres, estava, ‘nessa época, muito longe da santidade. © Gitimo grau da continéncia: © casamento desprezado Na mesma Epistola aos corintios, em que defendia 4 virgindade e a continéncia, Paulo pregava o casamento: que cada homem tivesse uma mulher © cada mulher, um hhomem (I Cor., VIL, 1). Melhor seria que ficassem cas- tos: “mas se no podem conter-se”, diz 0 Apéstolo, “ca sem-se. Porque € melhor casar do que ardee” (id., VII, 8). Portanto, recomendava © casamento como “concessia” & ‘no como “mandamento” (id., VIT, 6) — e somente para evitar a “impudiefcia” (id, VII, 1) Foi também esta o espitito dos Padres da Igreja nos infcios da cristandade, A imensa maioria deles, na exata medida em que defendia 2 virgindade, deplorava 0 casa mento, visto como um mal. A grande oposigio estabele- ida pelo discurso nao era tanto a de casamento versus Tomicagdo e sim a de virgindade versus casamento, car- regado este timo de uma valoragio negativa, Na retratagio do easamento, prevalecia 0 tom pessi- mista. Antes de tudo, ao contririo da virgindade, 0 asa ‘mento impedia a ascese da alma pelo apego & carne. Por ser voluptuoso, segundo Gregorio de Nissa, tormava-se obs- téculo a contemplacio, exercicio indispensével a puritica- do da alma. Impedindo a alma de se recolher em si ‘mesma, fazia emergir as voldpias, nauseantes como 0 pus — 60 que dizia Met6dio, A vida conjugal foi sempre hostilizada como fonte de angistia, inquietagdo, turbuléncia, em oposigio & ‘aphaiéia, & serenidade da alma no corpo virgem, Dest- vencas, iritagdes, cidmes, coallitos que podem levar a0 crime, eis a natureza do casamento, nas palavras de Cri- s6stomo. Se a virgindade correspondia & verdade © a liberdade, © easamento equivalia & mentira e & eseravidio: cBnjuge 6 0 escravo do seu cbnjuge, a quem se aliena todo © poder sobre 0 seu préprio corpo". © casamento € a morte: a grande maioria dos te6- Jogos dessa época nio valosizava a proctiagio como vir- tude do easamento, seguindo a pregisio de Paulo, que também nio a tinha destaeado ao “concedé-lo" 20s in- continentes. A procragio, e tudo 0 que a ela so ligava, era matéria de reprovagdo e adverténca. Gregorio de Nissa afirmava, textualmente, que os esposos (além de vidvos em potencial) consttufem “instrumentos de uma sucessio mortal”. A gravidez era sindaimo de dor, defor- midade, sofrimento, angistia de morrer ou, ainda, de ge- tar uma erianga morta ou doente. © quatto nupcial era 6 vestibulo da mort, lugar fnebre. Joao CrisGstomo, por sua ver, insist em que 0 corpo s6 podia ser bom quando destinado a ser um “tempo” da alma, e no @ proctiar ou 4 sentir © prazer dos sentidos. No mundo ideal, onde todos vivessem eastos e puros, a espécie humana seria pro- pagada como os anjos, sem a intervengio do pecado, No discurso dos Padres, 0 casamento era, pos, des- prezado e humilhado. Longe de ser sacramento ou man- damento divino, era o remédio, terapéutica do desejo sem- pre maligno: um mal, jé que supunha o pecado da car- fe, mas um mal menor, pois impedia a foricagio. Os tedlogos se viam, assim, face 2 um dilema: defendiam a virgindade excorando 0 casamento, mas tinham de res- _guardé-lo como freio ao desejo desregrado. final, homens «mulheres se casavam ou se uniam de algum modo, e era preciso normatizar esta unido. Além do mais, os gndsticos, tidos como “herétices” pelos seguidores das autoridades episcopais, radicalizavam a oposigio a0 casamento, che- gando mesmo a proibi-lo. Havie que defender a “ortodo- xia” também na esfera matrimonial, Hostilzare, a0 mesmo tempo, advogar 0 easamento: cis a dificil tarefa a que se devotaram 0s te6logos patristcos. b ‘Quem methor se colocou diante do impasse foi certa- ‘mente Agostinho, principal tedlogo ocidental do século V. Em Casamento © coneupiscéncia, chegou a colocar-se favor do casamento contra aqueles que 0 proibiam ou condenavam de modo absoluto, pois, para ele, enquanto ‘busca do prazer carnal, enquanto espago de manifestagio do desejo, era, sem divida, um mal, mas enquanto fonte de procriacdo, & qual deveria subordinar-se integralmente o ‘to carnal, constituia um bem. Alinhavando os tinicos bbens do casamento, Agostinho citou expressamente a ctianga, a fidelidade e o sacramento, Foi, talvez, 0 pric Imeiro a destacar a relacio entre sacramento e matriménio, afirmando que Deus havia institnido este tltimo, desde a corigem do mundo, e depois f€-lo elevar-se, através de Jesus, a0 papel sublime de representar sua propria uniéo ‘com a Igreja. A defesa que faz 6 inequivoca: “a castidade da continéncia € methor que a castidade das mépcias, em- bora as duas sejam bens” resgate do casamento, de modo a torné-lo compa vel & virgindade, impunha condigSes. © Evangetho for- necia as bases doutrinirias: na pregagio de Mateus, o que Deus havia unido, homem salgum tinha 0 diteito de separar (Mt. XIX, 6). E Paulo, por sua vez, pregava 12 mulher néo tem autoridade sobre 0 seu proprio comp, mas 6.0 marido quo a tem; ¢ assim tambsm a marido mio, tem autoridade sobre 0 proprio corpo, mas & a mulher que 2 tem (I Cor, Vil 4), Monogamia estrita e indissolubilidade formavam, assim, © corpo institucional do modelo cristo do casamento, em oposicio 20 concubinato ¢ a0 divércio tao freqilentes no Mundo Antigo, © fundamental, no entanto, a concepeio de casa ‘mento elaborada nesta fase do cristianismo: comparével & virgindade, porém inferior hicrarquicamente. Os te6logos trisicos queria meso fzee do casamento um si Ther do estado vrginalrecomendtvam 1 contnaie tuase abscuta Crisxtomo dizi que a abstengio do ato tna na vida conjugal fevorsa a comtemplagao © 4 tralo, asim como a vegindade, Mas que a contnéncia do mare tose acompantinda pela da esposa, arn ie te tvitasem “0s adultos, as foricages € as prturbagoes domestica", No De bono conuga Agostino exalava & trandiosidae da coninnca conjugal, a posta dao coo- Slderar peeado as enisbessemins durante o $000, prele- Fivel ao ato cama Basto de Anca fot alm, 40 dizer due a mulheres posites pon seit "impion coposes” conservvanrse igen, po tendo a mulher ex op do pela vigndade, 0 murdo podsrin spenas “wiolenla” mms no “cortompéla "oi fimo que ee corrom peu ¢ maciou, mas a viges, cj corpo fo sbandonad for sun alma, continua sem corapg#o™. 0 casamento Tomava'se, asim, 0 contrapono. J virgindade: elevado 2 eatgora de sinbolo da unio ene Caso e a Tee, como altemativa seundéria, melo de aprsionar © dss fico numa ania ene Mas ste mol fo osama etal no di uno apologiicn da vrgndade: nem recomendado nem {mtriado, mas simplesmentetolerado, Alemaliva fomicagdo, cao menor dos miles; efrere do. deseo, indsolivel © monogimico, 0 pir dos bens. Astin se psava o cosamento rote ents 0 pada vite, O atmo pra da coninéacia © imaginério da castidade masculina Os tratados acerca da virgindade pouco falavam de homens. Idealizava-se a virgem, dissuadia-se a mulher de se casar, cuidava-se do desejo feminino, para extirpé-lo, 1s mas quase nada era >rescrito para os homens nessa lite- zatura. claro que também aos homens era preferivel no ceasar, dizia Paulo, e agueles que o fizessem teriam que suportar a desagradivel companhia da mulher, advertia Criséstomo. Mas 0 desejo masculino nio era objeto de iscussdo na imensa maioria desses textos. Foi especialmente entre os séculas IV e VI que sur- iu © difundiu-se uma literatura voltada para os homens, inspirada nas praticas de vida solitiria que vinham ocor- rendo entre os cristios do Oriente, desde 0 século IIL Literatura persuasiva, como os tratados da virgindade, em- penhada em convencer os homens a lutar pela eastidade. Relatos da vida monistia, escritos por homens que vive- am intensamente tal experiéncia. Palidio, mais tarde bispo de Bitinia, viveu dezessete anos no deserto, antes do esere- ver a Historia lausiaca. Jodo Cassiano viveu no retro entre 385 © 399, e so depois redigin as Instiicaes © as Conferéncias. Atanéso, bispo de Alexandria, também se refugiou entre os morges, antes de compor a sua famosa Vida de Antonio, B essim ditundiu-se a literatura monés- tica: muitos textos escritos originalmente em grego foram traduzidos para o latin, nos séculos Ve VI, para melhor atingir 0 aristocratas do Ocidente. Os textos de Basilio de Cesaréia, traduzides por Rufino, a Regra de Pacémio © a Histéria dos monges do Egito sio bons exemplos desse ‘movimento. Mas como se efetuava essa mensagem? A rigor, os relatos da vida soliticia diferiam muito dos tratados da Virgindade, Primeiramente, porque nio se firmavam sobre 4 oposicao entre castiade e casamento, ou seja, nao eram textos que enalteciam a vida casta e deploravam o estado conjugal. © casamenio no era questionado ou exami nado, ¢ sé importava enquanto Tembranga do convivio com ‘uma mulher. Em segundo lugar, se as spologias da virgin- dade minimizavam a luta da mulher contra 0 desejo ou 16 ispunham normas que evitassem a sua entrega a um hhomem, os relatos dos monges descreviam todo 0 ardor do desejo ¢ acentuavam a dificuldade de vencé-lo. Enfim, tais esctitos pareciam dirigi-se a homens que ja queriam a castidade: nio se tratava de convencer homens a nao ceasar, mas de agucarihes o afi de extirpar 0 desejo. Pre- tendia-se, através de exemplos, isolé-los, fazé-los abando- nar suas mulheres, dissuadilos de manter quaisquer rela- {gors carmais, mas objetivava-se, antes de tudo, desafié-los 4 viver castos. A vontade que os homens tinham de se isolar parece ser um pressuposto. Lembrancas de mulheres, sonhos eréticos, alucinagies com figuras femininas, tudo isso perpassa o conjunto desses textos, empenhados em mostrar a insisténcia e a forca do. ddesejo mesmo entre aqueles que se haviam refugiado no deserto. Na Hist6ria lausiaca, uma velho monge trangiil zava Palio, fustigado dia e noite pelo desejo, dizendo-the ue, apés quarenta anos isolado, ainda sofria de presses insuportaveis. Um monge grita, numa crise descontrolada, que somente dez mulheres satisfariam os seus desejos. Outro solitirio nao parava de se lembrar de uma jovem cetiope que vira na juventude. Ha textos que falam de Viivos ou homens que deixaram suas esposas, uns e outros rio conseguindo afastar a lembranca de stias mulheres, Na Vida de Antinio, essa multidio de rostos © corpos femininos, que assaltava a imaginagao dos monges, & as50- ciada ao deménio. Era outra a imagem da mulher emer gente desses eseritos: a diabolizada, caral, que devia ser execrada do espitito. A Gnica imagem que reabilitava a ‘mulher era, como vimos, a da virgem, ada mulher sem sexo. Mas esta ndo interessava a esses relatos, empenha- ddos em pintar a mulher ameacadora, mascara demoniaca. Recordagies a perturbar as oragbes didrias, sonhos a des- pertar o repouso noturno, tudo isto pontithava a narrativa solitiria, uv Id homens que se zeram eunucos volun para ganhar o Reino’ dos Céus", dizi Mateus, no Evangelho (XIX, 12). Origenes, principal ‘eélogo de Alexandria no século TH, levou a0 maximo este conslho: castrowsee retrow-se do mundo, Os relatos solitrios sho ainda ricos, nem tanto em aos, mas em sonhos de casta- Zo, Os monges sonhavam com meres, que Ihe age Savon o deseo, mas também coma catia Hibrtadora Na Histdria taustaca, Elias sonhow extasiado com és anjos que o castrvam com wna navalha. Cassano, nas Conferencias, conta 0 soho de Sereno, que, rogando a Deus que 0 fzesie eunuco, vin um anjo abrir the © corpo « extirparhe o tumor de desejos. Predominavam, contudo, imagens de abstinncias & morificagtes. Atanésio, na aun Vide de Anvinio, conta Como ese monge, aterrado pelo deseo, privowse do sono, do confortoe do aliment, Jejuar ou comer pouguissimo, ingerir alimentos que no estmulasem a ciculagio san- fina, sbserse do vio: es os procedmentosIndspen- Saves a quem ltasse pea castidad. A gla, fi, fz par com a fornicasao no rol de viios elaborado por foo Cas Sano, Mas nao besava prvarse do s0n0 ou da comida, no bastva enfraquecero coro era preciso lagel-o, oF. turklo, motile. Na Histra Tavlaca,Pachon colocou tina vibora em seus Grgios genitas; Evage pastou notes tum pogo gelado; Filimoso amarrou-se com correntes. Outro monge,sabendo da morte de uma mulher que conhe- cra, estregn seu manto-no compo en decomposici, para combater, com 0 odor ftido, a imagem do dejo. Se os textos da virgindade enftizavam 0 pecado camal inerente 20 ao conjugal, razio pela qual deplora- Samo casamento, os estfs mhonstioos vskimbravam © desjo no seu conjunto ou mais do que io, a imagem do desejo- As inguictagbes Jos soitio, quando se reteiam a posvelsafos camais,e-nio 1 Imbrangas ou sonhos, v abandonavam a imagem da mulher ¢ se fixavam no con- vivio entre os parceiros do retio. Ainda assim, parece ser mais 0 imaginério do desejo do que 0 perigo do ato sexual o que atrai a atengio dos monges. A Regra de Pacémio & bem ilustrativa a esse respeito, disponde nor- ‘mas para que 0s refugiados nao despertassem tentagbes fem seus irmos: 1) cobrir os joelhos, quando sentados em assembléia; 2) nio levantar a tinica muito alto, quando lavasse a roupa em grupo; 3) evitar olhar os outros no trabalho ou nas refeigGes; 4) no manter relagio direta ‘com um jrmao, mas fazé-lo através do responsdvel da se- mana; 5) ndo emprestar nem trocar eoisas; 6) nao prestar servigo algum ao irméo, nem mesmo tirar um espinho do seu pé €, muito menos, banhé-lo ou unté-lo; 7) néo ficar 6 com um irmao numa cela, nem deitar na mesma estei- 1a; 8) ndo montar num mesmo jumento; 9) néo se falar rio escuro ou dar-se as mos; 10) manter entre sie 0 irmao, sempre, a distincia minima’ de um cSvado. ‘Trata-se, em muitos pontos, de mecanismo preventive contra atos camais entre monges, mas também de exer cicio de autocontrole a0 nivel do imaginério, A imagem feminina nos sonhos ¢ recordagbes corresponde, na Regra, ‘a imagem dos companheiros. Nas mortficagies e flagelos, {que sucedem a fantasias femininas, tratava-se de combater somente a imaginagio, jé que nao havia mulheres no retiro, ‘ao passo que, na regra pacomiana, pretende-se lutar contrat, © fantasma da carne © © perigo do ato entre homens que vivem juntos. Mas em ambos os casos, 0 que se quer, acima de tudo, & dominar a imaginacdo, neutralizar os sen- tidos e represar, por conseguinte, © mais singelo despertar do desejo, Encontramos essa preocupagio em Joi Cassiano, ‘magistralmente estudado por Michel Foucault. Hierar- TO combate pela eastidade. In: Anis, P. & Rais, Av ores. Se ualdades cellent, Lisbon, Contexo, 1983. p. 23-96, quizando 0 vicio da fornicagio em trés espécies, na sua V Conferéncia, Cassiano menciona 4 unido entre os sex0s, polugao sem contato com a mulher ¢ a fornicagao “con teebida ‘pelo espirito © pelo pensamento”. Sio as duas tl- timas, ¢ especialmente a teresira, que © monge considerou fas mais graves © mais dificeis de superar. O indice da queda, o sintoma mais inquietante da forca do desejo, resi- dia, para os monges, numa atitude involuntéria: as emi ses notumas, as polugées durante o sono, por muitos chamadas de “ilusées da noite”. uso ou fantasma femi- rhino, 0 fato € que a emissio involuntiria de esperma cconfigurava a méxima preocupagio dos monges. Era sobretudo a sua ocorréncia que, segundo 0s relatos, levava 1 solitirios is mais penosas mortifizagbes. Sua supressio, pelo contririo, era vista como a verdadeira graca dos que fatingiam a castidade. Joao Cassiano estabelece uma su- ceessio de etapas que todo homem deveria trilhar nessa Tuta: 1) no fiear “prostrado” com um "atague da ca isto 6, manter a vontade da alma sobre a forca do dese} 2) no se deter nos “pensamentos voluptuosos” que vém 20 espirito; 3) nao sentir dde qualquer estimulo exterior, imagem ou pessoa; 4) nio sentir, durante a vigilia, 0 mais leve ¢ inocente movimento dda came; 5) no pensar, sequer sutilmente, no ato volup- twoso, quando 0 assunto de uma conferéncia ow leitura tratar da reprodugao humana; 6) nao ter ilusio durante 0 sono, ow scja, lbertar-se da sedugio do fantasma femi- © processo deveria ser gradativo e referia-se ndo a0 alo ou 8 emissio voluntiria pela masturbago, mas ao ima- gindrio e, no dltimo grau, & sombra scereta do desejo na tlma, De acordo com Michel Fouleault 0 combats pela castidade, ci, p. 29. Estamos muito longe da economia dos prazeres © da sue estritalimiteeso aos atos permitios: longs, igualmenta, da Idéia duma separagdo to radical quanto possivel entre 8 alma 2 0 corpo, Por esta altima razdo, enfim, e por pensar diferen- ftemente 0 desejo masculino, o discurso da castidade se afastava dos tratados apologéticos da virgindade. Nao priorizava 0 manter-se virgem, o abster-se de relagdes car- nis; desafiava 0 homem, convencido do valor da casti- dade, a lutar sozinho para atingi-la numa relagdo consizo ‘mesmo. A mensagem contida neste discurso ert menos uma propaganda do que uma literatura de reflexao para inicindos. Diferia imensamente de uma pregagdo como 1 de Criséstomo, para quem seria mais fécl para o homem manter-se virgem no retiro do que no casamento. Nao era um discurso preocupado com a cépula conjugal, mas sim com o desejo na sua totalidade, Nele o casamento nio ‘inha lugar nem para a defesa nem para o desprezo. Ambigiiidades e impasses de uma moral Qual teria sido, afinal, a “moral crit” esbogada nesses primeiros séculos? Poderiaimos falar com seguranca de uma moral ou de virias? A questio é sem divida, polémica e complexa, mas podemos alinhavar certos eixos de discussio, ‘Antes de tudo, convém reconhecer que os textos desta poca acentuavam claramente os valores da virgindade, da castidade e da continéncia, elevados ao cume da mora lidade ideal, Recomendavam, de diversas formas, a rensin- cia a0 prazer carnal, incluindo ai © ato conjugal. Prop rnham métodos, mais ou menos organiza, pura 0 exe cicio dessa rendncia, vista como condigio indispensivel a para a ascese da alma, e admitiam, sobretudo em relacso ‘20s homens, a enorme dificuldade que essa luta envolvia. (© casamento foi, assim, hostlizado, deplorado enquanto instituigio que permitia a manifestagio do desejo © 0 desfrute da came, mas foi também defendido, a0 menos ‘como espaco alternative 10 prazer desregrado. Oscilando entre as nogbes de “mal menor” e “pior dos bens”, o casa ‘mento foi tolerado, admitido e até, palidamente, sacra- mentado — no caso singular de Azostinho, Se havia uma “moral” criti nos séculos da Paitstica, tratow-se certa- ‘mente de uma moral hesitante ‘Vérias razées concorreram para essa hesitago. E preciso levar em conta que a propia teologia cris $6 foi sistematizada nos séculos III ¢ TV, Antes disso, nem mesmo ‘0 conjunto das Escrituras estava completamente definido, ‘6 que 86 ocorteu a partir de meados do século If, quando se procedeu a selecio dos textos evangélicos considerados “auténticos”, paralelamente a0 reconhecimento da autori- dade apostéliea do bispo de Roma Nao obstante, a Tgreja ‘era ainda débil nesse perfodo: as perscpuigdes 36 essa ram no século IV, e até a queda do Império Ocidental foi ‘comum a ingexéncia do Estado nos assuntos eclesisticos. Além disso, a Tgreja viva dilacerada por contlitos internos, ‘querelas teoldgicas e disputas poliicas que contrapunham Roma as igrejas orientais. Fragildade dogmatica, perse- ‘guicio ou tutela imperial, disputas internas, tudo isso com Be 0 pano de fundo histérico da problematizagio moral dos primeiros séculos. Particularmente importante foi a crise doutsingria do s6eulo TI, quando isromperam intimeras seitas marcadas por lum rigoroso ascetismo © que, par vérias razbes, foram tachadas de “heréticas” pela ortodoxia patristica, Entre elas destacavam-se as adepias do gnosticismo, termo al- sivo a diversas correntes que, apoiadas em maior ou ‘menor grau nos textos paulinos : fortemente marcadas 2 _ pelas religies orientais, repudiavam o casamento de modo ‘absoluto. Os marcionistas, por exemplo, chegaram a proi- biclo totalmente, e os encratisas exigiam a continéncia absoluta dos candidatos 20 batismo, Nao seriam os gnésticos os “verdadeiros cristios”, 4questiona Jean-Louis Flandrin *, ja que elevaram ao mé& ximo o valor da continéncia pregada por Paulo e Mateus? ‘Nio diziam os Apéstolos que melhor seria nio casar? Seja ‘como for, no obstante priorizassem a virgindade e a c: tidade, os Padres da Igreja trataram de condenar os gnds ticos ¢ de defender, para combaté-los, a instituigio matri- monial. Além do’ mais, esses apéstolos toleravam 0 ceasamento para os incapazes de guardar continéncia e, de resto, era preciso reconhecer que ele consttuia, apesar de tudo, um fato social concreto. Negé-lo radicalmente, como fizeram os gnésticos, seria renunciar & obra de conversio A propria expansio da (€ cristi; equivaleria, enfim, a excluir todos 08 “casados” da Igreja. Os todlogos pati ticos ndo pretendiam chegar a tanto. Onde buscaram 0 modelo de casamento a ser defen- dido? Certamente que no 0 fizeram no Antigo Testa- mento, pois este nao s6 reconhecia o amor carnal (Cintico dos cfinticos), como admitia, para 6 homem, certas rela- Bes extraconjugais. Quanto ao Novo Testamento, em- bora fornecesse alguns elementos basicos, tas como @ mo- nnogamia e a indissolubitidade, nao dava base segura para 1uma defesa do casamento, jé que 0 colocava em plano in- fetior & virgindade e & continéncia. A defesa crista orto doxa do casamenio apoiou-se, assim, como diz Flandrin, na tradigdo helenistica e, principalmente, no estoicismo, ‘cujos filésofos cram freqiientemente citados pelos Padres. Casamento estivel, fidelidade conjugal métua, énfase na 5 La doctrine chrétienne du mariage. In: —. Le sexe ef POcciden Paris Seu, 1981. p. 103. ependéncia reciproca, redugio do prazer 20 leito conjue gal, sentido de procriacio, eis idéias vipicas da moral estdica absorvidas ¢ rsinterpretadas pelo cristanismo. E claro que a exaltacio estoica do casamento mio se fazia com o pressuposto de que o prazer era um mal em si mesmo, Defendiase 0 casamento como relagio mais recomendavel para a saiide do corpo, para o equilibrio dda alma e para o bem Ja comunidade, Nio se tratava, repi- tamos, de ver nele o meio de suprimir o prazer pela im- pposigo da continéncia (embora muitas falas estGicas pos sam sugerir esta interpretagio). Segundo Fouleault © Pera eles (08 estiicos) 0 principlo natural ¢ racional do casamento 0 dostna a ligar duas existéncias, a produzir uma descondéneta, oer atl pera a cidade @ a boneticiar 0 ‘Género humana ne su totalidade: buscar no casamento, Drioritariamente, sensacdes de prazer, seria infringir a te, roverter a ordem dbs fins e transgredio principio que deve Lie, num easal, um homem o uma mulher. ia est6ica, idéia erst: Clemente de Alexandria, grande ‘contendor dos gnésticos, ¢ Agostinho, principal defensor do ceasamento, produziriem argumentos quase idénticos aos dos estéicos. E convém, sind, frisar que a prépria instituigio do casamento estava bert mais difundida e estabilizada nos inicios da era crist8 (especialmente no mundo romano), devido, em boa medida, & penetragio do estoicismo na aristocracia © no Estado imperiais. Podemos, assim, vis- lombrar @ notivel ambigliidade em que se envolviam os autores eristios dos grimeiros séculos, De um lado, para combater os gndsticos e dar condighes a Igreja de obter adeptos entre 08 que nio queriam viver castos, os Padres aproveitaram certos valores da moral est6ica © os tradu- "Htéra da sezualidade; 0 cuidado de si Rio de Janeco, Graal, 1985. p. 1789. iram na linguagem cristd, investindo contra 0 rigorismo ascético e defendendo o casamenio. De outro lado, tive- ram que combater o casamento de forma implacével, nao 86 por uma questio de coeréncia doutrinéria — pois era 2 contingncia o principal valor da moral apostélica —, ‘mas também por razdes estratégieas. A. Rousselle 7 lem- bra-nos: (Os monastérios no se perpetuam por reprodvggo heredl térla, mas neceesitam de um afluxo constanto do recrutas vindos do fora: por consequinte, se © mundo lalco nto tcontinuasse convencido do valor des exemplos e dos pen samentos dos fundadores da vida monsstica, e532 afluxo rio poderia se conserva. Havia, pois, que hostlizar 0 casamento, exaltando a mu- Iher viegem e, sobretudo, atraindo os homens que aspi- ravam & castidade para formar 0 corpo eclesidstico. BE nnesse sentido, convém acrescentar, 0 cristianismo comba- tia a prOpria moral est6ica que the servia de apoio e, ainda, mantinha uma curta distancia em face da “heresia” (© estoicisme tornou-se, portanto, ao menos nesta Spoca, aliado © adversirio ‘do cristianismo. O estéico Rufus considerava © casamento a mais alta, a mais portante, a mais venerdvel entre todas as comunidades que podiam se estabelecer entre os homens. Foi a partir de idéias como as de Rufus que os Padres da Tereja alinha- vvaram a sua palida defesa do casamento, tentando repre senté-lo como réplica imperfeita da virgindade. Entre tanto, para que a busca da castidade lograsse éxito, para ue triunfasse o ascetismo, idéias eomo as de Rufus tinham que ser removidas. Op cit, p. 167 3 A sacramentalizagaéo do casamento: continéncia e transgressio ‘A queda do Im3é+io Romano no século V implicou imdmeras transformacbes nas sociedades ocidentais: rura~ lizagao lenta, mas progressiva, da economia; fracionamento politico acentuado; expansio notivel do cristianismo © da Igreja. Na esfera do casamento, amalgamaram-se 0s cos- fumes romanos com as novas tradigBes dos povos germa- nicos. Contudo, apesar da erescente influéncia do eristia nismo no Ocidente medieval, a unio dos casais ¢ a cele- bragao das nipcias conservaram-se como atos domésticos nos quais 0 clero praticamente no intervinha. A hesita- ‘cdo da moral cristd os primeitos séculos, oseitante entre © combate e a defesa do matriménio, contribuiv, sem di vida, para essa situacio. © mundo profano do casamento No final do Império Romano, o casamento apresen- tava sinais de maior freqléncia e establizagdo enquanto pritica social. Permanecia, como antes, vinculado a for- ‘magao de uma descendéncia e & transmissio do patrimd- 6 n nio, mas ja denotava a crescente importineia do. vinculo conjugal. Se, por um lado, era uma transagdo entre © pai da moca e 0 noivo (ou seu pai), por outro, a vontade dos futuros cSnjuges comecava ater alguma influéneiana 4questdo. A norma juridica segundo a qual consensus facit ‘uptias relacionava-se cada vez mais & iniciativa dos noi vos, inclusive da mulher. A prdpria monogamia parecia tornar-se mais accita pelos maridos, embora fossem comuns as relagSes entre hhomens casados ¢ concubinas. Além disso, embora fosse, por suas motivagdes patrimoniais, uma pritica essencial- ‘mente aristocritica, o casamento ja apresentava sinais de Jifusio no conjunto da sociedade: inscrigbes. sepulerais ‘mostraram a relativa freqiiéncia e a estabilidade das unides fem meios ndo-aristocriticas, e hi testemunhos, inclusive, das ocorridas entre escraves. Enfim, 0 préptio Estado parecia envolver-se mais com o assunto, fortalecendo os poderes do marido no interior da familia Apés 0 século V, of costumes germinicos invadiram © Ocidente © se misturaram as préticas romanas. Pode- ‘mos vé-los nas tradicbes da classe senhorial européia du- ante a Alta Idade Média, ou na “moral dos guerreiros", conforme a chamou Georges Duby. Entre reis © cava. Ieitos, 0 casamento estava profundamente ligado aos va- Totes de linhagem, & transmissio de herangas ¢ titulos, € A formacdo de aliangas politica. ‘Arits? firma: Nos classes arstocrticas 0 que estava em jogo tinha um srande peso, 0 casamento selava allangas, comprometia, ica, dai 6 haver casomentos resis, os qusis rados 205 poderasos © somente a algune dos te ghoul, la fomme et te wre: Pai, Hache, 198 Sexualilades ocdentis. Lisboa, Contexto, 1983. p. 141-2. |Arlis refere-se uo “verdadeiro casamento” — denomi- nado Muntehe na tradicio dos francos — que unia, antes de tudo, duas familias da nobreza feudal. O rito biésico dessas unides residia, nem tanto na ceriménia nup- cial, mas na promessa de casamento, no ato da desponsatio, ‘ou pactum conjugale — precursor fonginquo do “noivado” atual. A ceriménia tinha lugar na casa da futura esposa, conde se reuniam os parentes do “noivo” e algumas teste” munhas. Trocavam-se palavras e bens: 0 pai da moca transferia a tutela de sua filha ao futuro marido, que re- tribuia a doaglo com a entrega de uma donatio puellae ou arras. A mulher era, pois, parte do patrimdnio familiar ‘© sua entrega a um homem selava a unis de duas casas reais ou nobiliérquicas. Seguia-se a desponsatio o sito aupcial propriamente dito, Tratava-se de uma grande festa na casa da familia do “noivo", cujo climax ocorria no quarto nupeial: 20 redor do leito se reuniam numerosas testemunhas, € © pai do rapaz celebrava a uniio. Todos ficavam a olhar o ccasal despido para constatar a intengio da unio carnal, f€ da procriagio, Submetida aos valores de linhagem, a fecundidade era indispensivel 20 casamento, assim como 4 fidelidade absoluta da mulher, de modo que © adultério feminino implicava 9 abandono ou mesmo a morte da cesposa transgressora, A esterlidade, por sua vez, levava a0 repiidio, muito comum entre os nobres medievas. “Para os guerreiros, como para os padres", afirma Duby *, “a fungi do casamento era a procriagao”. Ligado & linhagem, & transmissio de heranga e &s rela- Ges de poder, © casamento nao era universal, nem dese- jdvel para todos os filhos de uma familia nobre. Os filhos mais novos eram destinados a0 clero ¢ havia outros tipos de unido, além do casamento, que permitiam satisfazer a Top city p 49, Pa voluptas, Duby nos informa sobre a Friedeleke, conju galidade de segunda categoria utilizada para “disciplinar a atividade sexual dos rapazes sem comprometer definitiva- mente o destino da honra”. Eram unives quase sempre tempordrias, mas n&o menos formais: 0 pretendente pa- sgava o “prego da virgindade” ao pai da moca, © tudo se fazia com solenidade. A mulher era, neste caso, “muito ‘mais emprestada do que dada”, segundo afirma Duby ‘. Dessas unides nasciam os “bastardos”, herdeiros menos assegurados, mas que, por muito tempo, ndo foram dis- ‘riminados ¢, as vezes, foram contemplados com titulos e terras. Na pritica, a fronteira entre 0 casamento € 0 “con- cubinato” permaneceu, por séculos, iavisivel Nem sempre, porém, os casamentos eram pacificos, conforme os rituais vigentes. Havia os raptos: no direito franco, incumbia ao rei perseguir os raptores, desfazendo 4 uniio daf proveniente. O rapto era também um artificio: muitos maridos forjavam 0 rapto de suas esposas para, elas se livrarem; muitos rapazes 0 provacavam para afas- lar suas ims da herange patema; © muitos pais o incita- vvam pera evitar os énus da ceriménia nupeial, Mas © rapto contrariava, por principio, o sistema de recjprocidade que mareava 0 easamento aristocratico, ¢ nio raro conduzia a perturbagies e guerras entre nobres. Pertencia, de qual quer modo, & moral dos cavaleiros. E quanto & moral das camponeses? Pouco se sabe ‘esse respeito, sobretudo para esta época. Michel Sot® nao hesita em afirmar que 0 casamento dos servos era decidido pelos senhores, assim como 0 dos homens livres 0 era pelos pais, E Duby acrescenta que as uniées conjugais nessa camada social eram estaveis: iaventérios do século IX indicam células conjugais ben-estabelecidas, © que favo- F0p. ci pa ED gendae du’ mariage chrten, Histoire, n. cxpecial, 1983. p. 65. 8p. city p54 » recia os interesses senhoriais, contribuindo para fixar © reproduzir a populacdo camponesa nos grandes dominios ‘Seja como for, a Tgreja se mantinha praticamente & ‘margem do casamento. Sabe-se que, na Gélia, em toro do século VI, a bengio do casal & porta do quarto era feta por um padre — 0 que mais tarde seria difundido e aperfeigoado com a presenga do clérigo diante do leito a fim de o incensar ¢ aspergir com agua benta, Com a desagregagio do império carolingio, no século TX, a Igreja passaria a ser mais atuante © tentaria submeter reis e cavaleiros a seu poder, inclusive na esfera matrimonial Podemos observar 0 esboco desta nova posiglo nas eapitu- lares parisienses de 829, ainda sob o império de Luis, 0 Pio, nas quais os prelados fixaram principios e normas acerca do casamento a serem seguidas pelos leigos, a sa- ber: 1) 0 casamento era uma inst 2) no se deveria casar por causa da luxiria, mas visando a des- cendéncia; 3) a virgindade deveria ser guardada até as napcias; 4) 05 casados no deveriam ter concubinas; 5) ortamentais. Fornicarios eram: os que vendiam o seu ‘corpo; os que transgrediam © casamento; 0s que manti- ham uma atitude passiva nas relagdes carnais; os que Se relacionavam com homens. A fornicagio era um pe- ado masculino? Nao foi o mesmo Paulo que atribuiy & ‘mulher 2 responsabilidade pela introdugio do pecado no mundo? Por ditigir-se a homens ou por julgiclos mais responsiveis que as mulheres, o fato 6 que Paulo tratou a fornicagio como vicio masculine, Reprovou, antes de tudo, algumas situagdes em que se manifestava 0 apego ddos homens care, sem consteuir, porém, qualquer sis tema de transgressio. 6 tolerada no casamento, a carne cera totalmente execrada na sua pregagio, pouco impor tando se os homens pecavam traindo a esposa com uma ‘mulher ou com outro homem, Estamos, ainda, no di ‘curso apologético da castidade e longe, portanto, da mor fologia dos atos. licito Le retusa plaisir. Mistoire, tp, $3. Slo Paulo ea cane. In: e Mégin, A, Op. cit, p. 47-8 a Utiizada com mais precisdo, a fornicagio signficava, para muitos te6logos, © mesmo que adultério, entendido io s6 como traigdo do cdnjuge, mas também como en- ‘ega ardorosa no leito conjugal. Foi Agostinho quem listinguiu os dois pecados, remetendo o adultério ao campo 4a infidelidade conjugal e a fornicagio ao dominio geral dos pecados carnais. E a medida que outras nogbes foram se consolidando na nomenclatura dos pecadios da care, a fornicagio foi ganhando significados mais especiticos. Conservou-se, as vezes, como algo présimo i luxiria; manteve-se também como sindnimo de adultério; mas, ppouco a pouco, adquiriu contornos particulares, alusivos & certos atos. Naste sentido, ¢ pelo que se observa nos penitenciais € estatutos sinodais, a fornicacdo foi inscrita no dominio especifico da cépula ilicta, isto é, da eépula genital supos- tamente voltada para a busca do prazer. Em certos casos, aludiu-se a coitos fora do casamento entre celibatérios — “fomicagio simples” — e noutros, a coitos proibidos, ora pelas posigdes assumidas, ora pelos parceiros envolvides, Condenava-se a fornicacio? Certamente, mas as penas variavam segundo o tipo, 0 autor ¢ as ci-cunstincias da fornicagio. No Medicus (sée. XII), punia-te com dea dias de jejum 0 celibatério que fornicasse con wna mulher “vaga” ou com sua serva, castigo idéntico a0 do marido {que se unia & esposa “a maneira dos cas", ‘Tolerdncia quanto 20 prazer conjugal ou concessio acs encontros de jovens aristocratas com camponesas © multeres de status inferior? Ambas as coisas, provavelmente, mas sobretudo 4 segunda, pois se o marido “comhecesse” a esposa no Natal_ou no domingo, o jejum deveria ser de quarenta dias, Também nos penitenciais examinados por Flandrin 5, fornicagio simples era menos punida do que a violagao 5 Contraception... typ. 113 de uma viegem, o estupeo e as relagdes entre esposos na Quaresma. E havia, enfim, um tipo de fomnicagao muito visado pelos penitenciais ¢ mencionado pelos tedlogos, so- bretudo apés 0 século XII: o “erime de Onan” ou coito interrompido, Mas, sinda nesse caso, a condenacio ¢ a reprovagio muiores recaiam sobre 0 casamento © nio sobze as relages extraconjugais. Num estranho paradoxo, as relagies por si mesmas ilcitas, jé que efetuadas a rmargem do casamento, eram menos graves se no impli- assem o risco da procriagio — ¢ apés o século XV, houve tedlogos que 0 declararam explicitamente Condenada como eépula genital ilicta, a fornicagto 6 foi mais no casamento do que fora dele, desde que nao Jmplicasse violagdo de mulheres ou atentado a0 matrimd- nio, as repras de parentesco ¢ & ordem social Molicie: 0 prazer sem 0 outro jf havia empregado 0 termo em alusio aos (efeminados" em algumas tradugbes), inclu cinava, entio, segundo os valores do seu tempo: na Ant ‘iiidade romana, a palavra mollites indicava o papel pas sivo na relagio carnal, especialmente na relagio entre homens. E, como indica Foucault , j4 no pensamento © nna moral grega da época cléssica esse papel era motivo de deserédito, quando exercido por um homem, embora a relagio entre homens no fosse, por si, reprovada. Segundo Ari8s, molicie era, desde os primeiros xis eristios, uma palavra relativa a cettos atos eréticos, ‘pritcas que adiam 0 coito, quando niio o evitam mesmo, com o fim de ter maior ¢ mais prolongada yolGpia”. E, “Hiséria da serulidade; 0 uso dos prazees. Rio de Janeiro, Graal, 1984. p. 16550, #80 Paulo e a care, cit, ps 48 8 assim, pouco a pouco o termo foi adquirindo um signifi- cado mais preciso, englobando variada gama de atos car- nais sine coitu, mas com emissio de sémen, até confundir- -se, ap6s 0 século XII, com a express2o “préticas solité- ras” e com 0 ato da masturbagio, Nos estatutos de Cam- brai, entretanto, elaborados no século XIV, fez-se uma distinggo entre “polugdes manuais” © molicie, entenden- ddovse as primeiras como ndo forgosamente solitirias, 20 contritio da segunda. Apds 0 século XV ou XVI, molicie passou a significar, basicamente, masturbacao masculina, Pritica solitéria em busca do prazer — prazer sem a mulher e sem 0 coito —, a molicie era um ato de Tuxi- ria, um pecado contra nattiram, sendo, portanto, condens= dda. Mas havia rigor na sua condenagio? No penitencial de Burchard, a “polugao manual” sujeitava o infrator a dez dias de jejum, salvo se 2 mesma fosse praticada a dois, ‘caso em que a peniténcia subiria para trinta dias a © figua. Noutros penitenciais, a pritica solitiria de clér {gos na igreja implicava a peniténcia de apenas sete dias a plo e gua mas, se se tratasse de um bispo, © jejum seria do cinglenta dias. Nossa conclusio no pode ser outra condenavam-se as priticas solitirias dos homens, fossem clas manuais, involuntérias ou por “cogitaco", mas conde- avam-se sem rigor, desde que realmente solitiias. A partir do século XV, no entanto, este quadro sofre- ria modificagdes. A molicie, que jf era condenada pelos te6logos, mas pouco castigada nos penitenciais, seria observada com mais atencio, Alguns a associariam 20 “crime de Onam” (desperdicio de sémen) © outros a con- siderariam um dos mais graves pecados contra naturam, particularmente se praticado por jovens. No Confessional de Jean Gerson (séc. XV), sugeria-se que os confessores insistissem no assunto: “apalpas ou esfregas o teu membro como as criangas tém 0 habito de fazer?" ¢ “durante uma hora, meia hora, ou até que o membro nio esteja mais em ot eregio?" *. Nos séculos XII e XIII, porém, provalecia luma certa indulgéncia, ao menos nos penitenciais, e tanto maior quando se tratava de jovens celibatérios, E quanto & masturbacdo feminina? Hi poucos teste- ‘munhos, mas 0 Medicus punia a deleitagio solitétia da ‘mulher com quarenta dias de jejum durante um ano ou mais. Estigmatizagao da mulher por emitir sémen sem submeter-se ao homem? Ou por busca o pacer sem a intengdo de procriar? Pelos dois motivos, com toda a certeza. Vemos, assim, que 0 delete solitério era menos ile to se fosse 0 homem a sentico. Inferior ao homem na ceastidade ¢ no casamento, a mulher também o era na soli- dio. Mas se o homem era punide com indulgéncia a0 buscar o prazer sem a mulher, que o Fizesse s6, Do con- ttario, poderia cair numa outra esfera de atos: © dominio da sodomia, Sodomi tos abomindveis A palavra tem 2 sua origem no Antigo Testamento, 4 propésito da destruigio de Sodoma por Deus, narrada no Genesis. O episédio nos & conhecido: Lot, recebendo a visita de dois anjos, sofre a interpelagio dos homens da cidade — os sodomitas — que the cercam a casa exi- gindo “conhecer” os héspedes; Lot recusa, mas oferece, fem troca, duas filhas que ainda no “conheciam vario", para que 0s sodomitas delas fizessem o que melhor Ihes pparecesse; irados, 0s homens avancam contra Lot que & salvo pelos anjos (Gen., XIX). Dai proviria a associagio entre sodomia © homossexualismo e, ainda, a primeira prova biblica da condenacio dos homossexuais por Deus. @Apud FLANORIN, JL. Matiage tardif et vie sexuelle, Ins — Opscit, p. 260, 6s John Boswell ", no entanto, considera tal leitura uma dis- torgio cristd da tradicio judaica, indizando que nada havia de “sexual” na investida dos sodomitas contra os anjos, sendo uma manifestacio de inospitalidade (reprovada pelos hhebreus), razao pela qual a cidade so’tera o castigo divino, De todo modo, © Antigo Testamento continha re- provacoes explicitas ais relagies entre pessoas do mesmo sexo. No Levitica, incluia-se cutie as “unides «bv veis”, aquela que se praticava entre homens: “Com varia fio te deitaris, como se fosse mulher: abominacio é” (18:22); ¢, mais adiante, “quando também um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos fizeram abominagio” (20:13). Reprovava-se, pois, a re- lagio carnal entre homens, ¢ isto foi retomado ¢ anipliado por Paulo, que nfo s6 condenou a “torpeza” das unides entre homens, como entre mulheres (Rom., 1:26-27). E. {oi o mesmo Paulo quem usou o termo sodomita (segundo 2 maioria das tradugies) para aludir aos masculorum concubitores, incluidos pelo Apéstale entte 0s fornicdrios (I Cor,, 6:9 e I Tim, 1:10) ‘Mas poderiamos dizer que a condenagio cristi da ssodomia, baseada nos preceitos judsicos, equivalia a uma reprovacdo do homossexualismo? Nio exatamente. A so- domia, que foi mais ou menos condenada cpnforme a poca, significava, antes de tudo, uma certa conduta e no ‘um determinado cariter ou personalidade, Paulo incluia (0 sodomitas entre os fornicatios, ou seja, considerava-os {Go execriveis quanto os adilteros ou os que se pros tituiam, Por muito tempo, aliés, a sodomia permaneceu tuma nogdo vaga, alusiva a diversos atos ilicits, tal qual a fornicagio, Ainda, no século 1X, Hinemar de Reims pen- sava a sodomia como qualquer a10 cemra naturam, enten= dendo por isto a emiss4o de sémen com uma freira, um Top. cit, p25. “ patente, a mulher -de um parente, uma mulher casada, qualquer mulher grivida, um animal ou até por meio da ‘manipulagio. Com o passer do tempo, porém, e & me dida que a problemética cristi da carne foi aperfeigoando fas suas nogdes, também a sodomia foi definida mais pre (© primeizo grande significado da sodomia pertencia ‘ao campo da animalidade: sodomitas eram os que cediam ‘208 apelos da carne sem atentar para os costumes humanos fem matéria sexual — entendendo-se por costumes aquilo que era preserito pela moral judaica: as unides genitais entre um homem e uma mulher. Mais tarde, impos-se decisivamente a nogio de natureza, ao invés de costumes, ligada, como vimos, & idéia de procriagio. A epistola de Barnabé (séc. 1), julgada falsa pelos compiladores dos Evangelhos, teve influéncia duradoura nesta concepgio, inclusive entre os autores escolisticos. Barnabé, comen- tando as proibigies levticas de certos alimentos, afirmava: 1) “nao deveis comer a lebre ... para nao vos tomnardes tum molestador de rapazes ... porque a cada ano abre-se ‘um novo fnus na lebre e, portanto, ainda que viva muito tempo, vérios nus ela 14"; 2) “no deveis comer a hiena para nao vos tornardes um adiltero ou um sedutor porque esse animal muda de sexo anualmente, sendo ma- cho em um ano ¢ {mea no seguinte”; 3) “e deveis tam- ‘bém evitar a doninha ... para no vos tornardes igual a cla, que comete imundicies com sua boca, e nao vos deveis ‘unis com mulheres que perpetram atos ilicitos © imundos coralmente” § © segundo significado da sodomia decorre do que vvimos acima, A imensa maioria dos penitenciais indicava 1 pritica de sodomia como um elenco de atos carnais mar- ccados pelos desvios da genitalidade, especialmente 0 coito Taped Boswett J. Op. cit, p. 137-8 a anal e as polugdes orais, tanto as do membro masculino (Fellatio) como as da vagine (cunnilingus). E quaisquer que fossem os praticantes desses atos, celibatirios ou ca- sados, homens ow mulheres, eérigos ou leigos, todos, sem exceglo, caiam na esfera da sodomia, ‘© torceiro significado relacionava a sodomia 20 coi- to anal ¢, ndo raro, as relagdes entre homens. Alguns teGlogos chegaram mesmo a explicitar idéias desse tipo, como Alberto Magno (séc, XIII), para quem sodomia era a “unio carnal entre pessoas do mesmo sexo”, cuja cura podia ser obtida esfregando-se a pele da hiena no ‘anus do sodomita, Vista como manifestagio extremada do desejo e, apés © séeulo XII, como um desvio radical da natureza, a sodo- ‘mia foi sempre condenada pelos tedlogos. Houve rigor nesta condenacdo? Os te6logos da Patrstica no deram sgrande énfase & sodomia, limtando-se a deplorar algumas ddas condutas a ela referentes. Agostino, por exemplo, condenow as unides entre homens como algo “contriio as costumes humanos”. Ciséstomo, por sua vez, consi erou-as “perversas” e resultuntes de um “exeesso de de- sejo”. Portanto, com a excecio de Clemente de Alexandria (muito inftuenciado pela tradigdo judaica na matéria), os patristicos tenderam a seguir Paulo, remetendo a sodomia 80 vasto campo da fornicacio. ‘Quanto aos penitenciais da Alta Idade Média, eram ‘menos rigorosos do que se foderia supor. Alguns deles ppuniam a sodomia conforme o sexo ¢ 0 papel social dos praticantes; outros, porém, pciorizavam os atos. © rigo- oso penitencial Regino (915) punia com és anos de peniténcia os que praticassen 0 coito anal, inclusive 0 marido que o fizesse com a esposa — castigo idéntico 20 a fornicacao simples, mas o rigor do cédigo parece res: dir mais nesta tltima peniténcia do que no castigo do coito anal. E 0 minucioso penitencial Cummean, eédigo irlan- “ ds do século VIL, previa castigos para a sodomia, Ievando ‘em conta os atos praticados © a idade dos transgressores, Assim, 0 coito anal era punido com dois anos, se 0 pe- ceador fosse jovem, e com quatro, se fosse adulto. Critério idéntico era aplicado aos outros atos, com & importante diferenga de que o castigo atingia, no méximo, um ano de peniténeia. Rigoroso em relacio a0 coito anal, ¢ indule gente com respeito a inimeros outros atos, assim era 0 ppenitencial jrlandés, sobretudo se os “sodomitas” fossem adolescentes. Nesses “jogos pueris” de que nos fala Flan- dein, inclufase a mais variada gama de atos: beijos © abragos com ou sem polugio, masturbagio mitua e até © coito inter foemora (entte as coxas). Nenlnuim desses atos cra punido com mais rigor do que a fornieagao simples — exceto 0 coito anal —, fosse a cépula interrompida ou consumada Na proximidade do sécvlo XII, a sodomia passou 1 ser mais visada pela pritica judiciéria da Igreja — espe- cialmente a edpula anal ¢ 0 coito oral. Nos estatutos de Cambrai, por exemplo, todos 0s atos conira naturam pei petrados por homens maiores de vinte anos (sem distingio tentre 0 coito anal e os outros) foram considerados os mais graves entre os “pecados da carne”, seguidos dos mesmos tos envolvendo mulheres com menos de vinte anos, e 1a- pazes dos catorze aos vinte anos. Poderiamos ver, nisso, para além da antiga “repressfo" ao coito anal, um an- ‘mento da condenagio & sodomia e, particularmente, entce pessoas adultas do mesmo sexo? ‘Ao que tudo indica, a partir do séeulo XI, a con denacdo a sodomia no s6 cresceu, como passou a “perso- nnalizar” 03 transgressores, E, além disso, a tradicional condenagio dos “pecados da care” pela via dos peniten- ciais — no raro indulgentes — foi reforgada por rigo- rosas leis © cédigos civis. No Ambito da Igreja, o IIT Con- cilio de Latrio, em 1179, fixava para os acusados de e sodomia a deposigdo das ordens ¢ © confinamento monas- terial, no caso dos clérigos, ¢ a excomunhao ¢ 0 exilio, no tocante aos leigos. © TV Concilio de Latrio, em 1215, rio apenas confirmou as disposigbes de 1179, como esta: beleccu sangdes especiais para os elérigos que acobertas- sem os sodomitas — buscando, talver, neutralizar a “tolerdncia” da prética penitercial.. Quanto & lei civil, logo nas primeiras décadas do. séarlo XH, o reino etistio de Jerusalém, erigido pelos eruzalos, estabeleceu a morte na fogucira para os homens acusados de sodomia, no que fot seguido por intimeros e6digos ocidentais dos séculos XIII e XIV, © cédigo de Afonso, o Sibio, no século XII, conti nha uma t6pico intiulado “Acerea dos que cometem pe- cados carnais contra # natueza” e, nele, definia-se a sodomia como 0 “pecado através do qual um homem tem intercurso carnal com outro, contra a natureza e o costume natural”, Visava-se, pois, 6 coito anal entre homens, cuja pena prevista era a morte, salvo se © pecador fosse menor de catorze anos ou se tivesse sido obrigada a forca. Na ‘mesma época, 0 e6digo francis de Orleans penalizav: sodomitas —'também entendios como homens qu tivessem coito entre si — com a castragiio, a mutilagao do membro visil e 4 morte na fogueita, Poderiamos mltipli- car 05 exemplos de leis ocidentais semelhantes. significado da sodomia eo rigor de sua condenagio fenderam a mudar radicalmente apés @ século XI, iden- lifieada aquela mais e mais com o intercurso sexual entre hhomens © punida violentamerte com a mutilagéo ow a ‘morte, Mas a que atribuir essa mudanga? Eis um proble- ‘ma fundamental a0 qual voltaremos no final do capitulo, Reteahamos, por ora, o significado da sodomia ¢ a nvergadura de sua condenagéo. Desde 0 inicio, embora vista como uma variante da fornicagao, a sodomia ja era estigmatizada como “abomindvel”, ¢ seus atos considera » dos provas de excessivo desejo. Gradualmente, como todos os vicios da luxiria, também cla foi concebida a partir de seus atos: 0 coito anal, o coito oral © todas as formas de contato carnal, com ou sem poluedo, diferentes dda molicie e da fornicagSo. A sodomia acabou por expres- sar, 20 nivel dos ator, a mais completa manifestagiin de luxéria e, também por isso, assumiu o lugar de maior destaque ‘entre os pecados da came condenados pela Tereja. ‘Na Tdade Média, a condenagio da sodomia conheceu jas nuangas: foi pouco rigorosa antes do século XII ¢ violentissima nos séculos XIII e X1V; mais indulgente com criangas e adolescentes do que com 0s adultos; menos se- ‘vera com mulheres do que com homens; mais hostil em relagio a clérigos do que com respeito a leigos. E, 20 nivel dos atos, foi particularmente severa em relagio a0 coito anal ‘Na problemética cristl da came, a sodomia foi clas- sifieada como a mais desregrada busca do prazer entre duas pessoas, isto é, como a pritica contra naturam por exceléncia, Como tal, foi descrita e pintada com as cores da animalidade. Bostialidade: 0 sexo animalizado Tnserida no campo da animalidade, a sodomia cami- rnhow de bragos dados com um outro grande pecado: a bestialidade, ou soja, as relagies sexuais com animais. ‘A condenacio a essa pritica constava no Levitico, Jogo apés a proibigio das unides entre homens Nem vos deitare's(vardo) com um animal, pari taminardes. com ele; nom a mulhor 6e poré ps fnimal, para ajuntar-se com ole; confusso & (18:29) © termo bestialidade, tio citado pelos tedlogos crist deriva do latim bestia (animal) © pertencia 30 dom n exclusive de um ato “abomindvel”, ou seja, a uniio de um homem ou uma mulher com qualquer animal — pritica muito comum nas sociedades rurais, sobretudo entre 10s jovens ¢ os pastores. ‘Assim como a sodomia ou a molicie, a bestialidade permaneceu, por muito tempo, inscrita na categoria da fornicagdo, alusiva as transgressdes da carne em geral. O Concilio de Jerusalém (49 .D.), dispondo sobre quais costumes judaicos seriam mantidos pelos cristios, utlizou palavra fornicacdo para sintetizar a maioria das proibi Ges leviticas da carne, inclusive a unigo com animais. E, ‘no século IX, Hincmar chegou a incluir a “emissio de sémen com um animal” no rol dos atos sodomiticos, ‘A medida que as subclasses da luxiria ganharam um campo semintico mais delimitado, também a bestialidade adquiriu autonomia em relagio & fornicagio € a outros “vicios”. Entretanto, no século XII, chegou mesmo a ser destacada ra obra de ninguém menos que Tomés de Aquino. Em certo trecho da Suma, 0 teblogo fez da bes- tialidade © simbolo maior da luxiria, ineluindo nela a ‘masturbagdo, as unides entre pessoas do mesmo sexo, os coitos nio-procriativos entre homem e mulher, ¢ a propria cépula com animais — metéfora dedicada a “animalizac” todo e qualquer uso do prazer que nao fosse voltado pars & procriagao. No conjunto, porém, a bestialidade tendeu a conser- var, mais do que todos 5 “vicios da carne”, o significado especifico ja assinalado. E se houve um pecado com 0 qual a bestialidade manteve intimo parentesco, este foi 0 a sodomia, e nfo no sentido geral que the deu Hinemar, mas no tocante aos atos sodomiticos em particular, tais como © coito anal, 0 oral e outros. A ponte de unio tentte os dois pecados residia exatamente na animalidade, ha transgressic extrema da natureza que se atvibuia a esses atos. Por considerarem a sodomia como busca ex- 2 clusiva e desregrada do prazer com 0 outto, 0s teélogos a classificaram como a principal manifestagdo da luxiria e langaram os seus atos no campo da animalidade. Ora, (6 que podiam ver no ato da bestialidade senio a prova mais concreta de animalizacao do homem pela carne? Se 6 coito anal era contrério a natureza por realizar-se em parte “proibida” do corpo humano, 0 que nio significaria 22 c6pula com um animal? Assim, se a sodomia encarnava © simbolo da animalidade, a bestialidade, sua parceira, ‘aterializava a propria confusdo entre o homem e o animal Esta progressiva animalizagio do sexo, que aprox ‘mou a bestialidade da sodomia, apoiou-se, em boa medida, ‘nas antigas lendas sobre a hiena, a lebre e'a doninhs, cons- tantes na Epistola de Bamabé (sé. 1) © divulgadas em ‘obras como De bestiis et alis rebus (fins do se. XI). A isto somou-se a introdugio dé conhecimentos iskimicos no Ocidente e, sobretudo, a redescoberta dos textos aristoré- licos de zoologia. Curiosamente, quanto mais elevado se tomava 0 conhecimento ocidental sobre as caractersticas das espécies animais, mais se fortalecia a confusio entre a natureza animal e’a humana no dominio do sexo, em- bora muitos autores admitisem que os animais buscavam instintivamente 0 coito visando a reproducio. Situacio pparadoxal, pois se estes se uniam para procriar, como atribuir “animalidade” aos atos humanos julgados’ contra rnaturam? ® rigor, assim como a natureza, também a anina- lidade era uma nocdo menos “cientifica” do que ética, € © proprio Tomas de Aquino, que bem conhecia Aristotces, no hesitou em considerar os varios eoitos proibidos pela moral cristi como subespécies de uma “bestialidade” abs- trata. E a principal enciclopédia da escolistica, Das pro- priedades das coisas, escrita por Bartolomeu Anglicus no século XIII, combinava sérias informagées z0olégicas com as lendas de Barnabé sobre as metamorfoses sexuais da hiena. n Nos séculos XIII ¢ XIV, época de perseguicdes, os culpados de bestialidale seguitiam 0 destino dos sodomi- tas. O eddigo castelhano de Afonso, 0 Sbio (sée, XIT1), 0 ‘mesmo que condenata & morte os homens miores de ccatorze anos praticantes do coito anal, estabelecia idéntica pena para todo homem ou mulher que mantivesse inter- ‘curso com um animal, acrescentando que “também © ani- ‘mal deveré morter para que se apague a lembranca de tal feito”. E, na mesma época, uma lei inglesa fixava a pena dde morte (“terrivel”) para os incendidtios, os bruxos, os {que abandonassem comunidade crista, os que “ousassem dormir” com a espose do landlord e, ainda, para os que tivessem c6pula com judeus, animais ¢ pessoas do seu Priprio sexo. Eis, po:tanto, como motive de condenacio ‘4 morte, a bestialidade © a sodomia, Mas a lei inglesa su= gere outras associagbes que discutiremos adiante A bestiaidade foi, assim, condenada como ato — um ‘to em que © homem abdicava de sua “razao natural” para misturat-se com os animais. E por isso material zava, sem atenuantes, a “animalidade” do desejo, 0 gra fextremo a que a busca do prazer podria condusic, Da indulgéncia a vic ncia ‘A problemitica cvistd da came, expressa nos tratados ‘moras do século XI em diante, manifestou-se como uma recusa do prazer, admitido este somente no casamento © deste que subordinado, na intengdo e na forma, 20 obje- tivo da procriagio. Na retérica dos teélogos, 80 menos até 0 século XVI, qualquer ato carnal era ilicito © peca- minoso. Na pritica juliciéri, contudo, © que vimos foi, fem certos casos, uma enorme transigéncia e, noutros, uma atitude discriminat6ria ¢ estigmatizante — reforgada, ainda, ” pelos poderes civis. Como entender essa defasagem entre f retGrica moralizante e o sistema penitencial e criminal? De fato, a problematizagio moral do desejo e 0 sis- tema corretivo a ela ligado bascou-se, de um lado, nos preceitos doutrinérios do cristianismo e, de outro, nas de- terminagoes sociais © nas circunstincias. Tedlogos e con- fessores eram porla-vozes da doutrina, porém sensiveis 20 acial © as iajungSes de momento. ‘No plano da retérica, sobretudo apés 0 século XII, foram produzides inimeros discursos em defesa do casa mento visando normatizar as unides que, a despeito da vontade da Igreja, sempre existiram de varias maneiras. Tsolar a Igreja do mundo ou algé-la ao comando da cris- tandade, eis as opoGes que se apresentavam para 0s teélo- gos. A opcio foi, como vimos, favorsvel a0 casamento, imposto aos leigos e proibido para os membros do corpo eclesistco, “Sacramentado o casamento ¢ legitimada @ cépula, fez-se necessério regulamentar 0 prazer dos c6n- juges, subordinando-o & procriagio. A grande énfase da retbrica teol6gica acerca do sexo recaiu, portanto, sobre ccépula conjugal. A problemitica cista da carne afastou-se da dicotomia castidade versus matrimdnio © deslocou-se para a oposi¢do prazer no casamento versus prazer fora do casamento, E, nesta nova polarizagio, 0 prazer s6 era ‘admitido como conseqiiéncia do ato procriativo entre os fesposos. Todas as relagSes niio-conjugais, todos os atos rndo-procriativos pertenciam, assim, ao reino da luxiria, sendo, por principio, ifcitos. Mas, na prética judicidria (penitencial, candnica © civil), esta moral teve que adaptar-se a variadas injungies, fe outros recortes se fizeram necessirios. E interessante fobservar o duplo caréter assumido pelo sistema peniten- cial: de um lado, representava uma hierarquia de pecados {que © clero deveria vigiar © punir; mas, de outro, ex- pressava um “sistema de indulgéncias” em flagrante desa- 8 cordo com a retérica teolégica. E isso mio se deu antes do século IX, quando a idéia da fornicacio ainda era suficientemente ampla para abarcar 0 conjunto dos peca- dos camnais, mas sobretudo apés o século XIII, quando aperfeigoou-se o sistema penitencial, reiorcou-se a mor- fologia dos atos, consolidou-se, enfim, o poder eclesisticn aliado a nobreza. Sistema ap mesmo tempo penitencial ¢ indulgente, eis 0 paradoxo da pritica judicidria crista ‘A polarizacio casamento (prazer licito) versus rela- {g0es ndo-conjugais (prazer ilicito) foi a primeira a se inverter nesse jogo de peniténcias, haja vista a tolerdncia ‘com relacdo a fornicacdo simples em comparacio com as transgressBes da cSpula conjugal. Simples fornicérios no recebiam penas maiores do que © esposo que “fazia de sua mulher uma amante" ou com ela se unia “3 maneira dos caes”. A fornicacio simples apresentava-se, assim, menos icita do que admitiam os te6logos & menos grave, ainda, do que a busca do prazer no leito conjugal — embora também nesse dominio o sistema fosse indulgente Um outro recorte efetuado pelo sistema penitencial cra o relativo a idade e, especialmente, no tocante a molt ie. Nesse dominio podemos constatar, até pelo menos o século XV, uma enorme tolerncia, sobretudo em relagio ‘aos jovens. Ea indulgéncia com respeito & sexualidade dos jovens e eriangas nio se restringiu as “préticas solité- ias", mas estendew-se até a eerlos atos sodomiticos, como (© coito inter foemora ¢ outros, exceto © anal ¢ 0 oral. Foi possivel constaté-la tanto no penitencial irlandés do século VII — época de tolerincia — como no eédigo castelhano do século XII — época de perseguigbes —, que conde nava os sodomitas & morte, salvo se menores de catorze ‘anos. Portanto, no Ambito legal, os atos ilicitos s6 eram cconcebidos como prova de luxiria quando praticados por adultos, j& que s6 eles eram condenados por iss, 6 Um teresiro recorte pode ser visto na punigio do hhomem em relagio & da mulher. Em inGmeras situagées, especialmente nas transgressbes efetuadas no interior do ‘casamento, punia-se 0 marido ¢ mio a esposa. Mas, desde Paulo, nao era a mulher a pecadora por exceléncia? Na confrontagio dos eexos, « pritica pesitencial nia fez senio ‘confirmar a erenga milenar na superiotidade do homem, bem como a subordina¢do conereta da mulher no interior da familia. Por esta razio, as cSpulas ilieitas do casal fo~ ram jalgadas como responssbilidade dos maridos, cabendo ‘eles sofzer a punigdo, Mas ndo imaginemos que a im- punidade das esposas era absoluta. .. Ao contrario, sem- pre que buscavam o prazer por iniciativa propria, isto & sem a participagio dos maridos, sofriam castigos maiores do que os dos homens, sobretudo no tocante & masturba- 0 © ao adultério, No caso deste ciltimo, a pritica judi- cifria estabeleceu enorme desigualdade entre 0s sexos, castigando levemente a fornicagio eventual do marido € fixando rigorosas punigSes para a transgressio da esposa — assimilada & prostituigao © admitida como causa justa para 0 divércio. No entanto, se 2 esposa abandonasse 0 ‘marido para viver com outro homem, era este © adiltero (assimilado a0 raptor) ¢, como tal, o tinieo punido. Enfim, 0 “sistema de indulgéncias” contemplava os rnobres em detrimento dos camponeses. Era, pois, idén- tica a légica que minorava o jejum do rapaz que fon casse com sua serva e a que condenava & “morte terrivel (05 que “ousassem dormie” com a esposa do landlord. Como impedir que os jovens infantes controlassem seus impulsos ceamnais no préprio dominio senhorial? Eis uma questio que (05 tedlogos ndo quiseram levar muito longe. Construiu-se, assim, um rol técito de indulgéncias, ‘beneficiando”: 1) os solteiros (em relacdo aos casados), sobretudo os da nobreza; 2) 08 adolescentes 28 eriangas (Cem relagio aos adultos); 3) as esposas (em relagdo aos n ‘maridos), nas c6pulas ilicitas do casal; 4) os maridos (em relagio is esposas), no tocante ao adultério, desde que ‘nao implicasse 0 repiidio da mulher legitima, E também Certos atos foram alvo de tolerancia: a fornicagio simples, salvo quando cometida pelas esposas; a masturbacao, so- hhretudo quando praticada por homens; alguns atos de sodomia, exceto 0 coito anal © 0 oral, Os grandes “vicios dda carne” efetivamente reprimidos pelo sistema judicidrio do Ocidente medieval eram agueles que atentavam, a0 ‘mesmo tempo, contra a moral da Igreja e contra a orem politica e social da cristandade Puniam-se, assim, os pecados que ameagavam a familia © a instituigdo matrimonial, tal como a concebia a Tgreja 0 incesto, ja 0 dissemos, era um ponto de honra da moral cclesidstca, ja que, sem a sua proibigéo, 0 clero nao po- deria climinar © costume das unides endogimicas pratica- das pela nobreza. Tornar o casamento o mais exogimico possivel e fiscalizar a vigencia dos impedimentos por meio ‘da verificagio do parentesco, cram condigies indispen- sveis 20 éxito do modelo eclesistico do matriménio, Mas, se a condenagio do incesto opunha padres © nobres, & unico do rapto os aliava, especialmente apés 0 século XI, quando os patriménios feudais se consolidaram e ereseeu a necessidade de se impor a ordem no interior da nobreza europtia. O rapto, além de constituit delito civil Punido pelos reise de implicar a anulagao do casamento, sujeitava o raptor, em virios penitenciais, a castigo supe rior ao previsto para 0 ineesto. Mas, no sistema peniten- cial, puniasse sobretudo o homem que “roubava” a mulher de outrem, e maior era o seu castigo se também ele fosse casado (pois a transgressao era, nesse caso, dupla). No Medicus, o homem casado que “roubava” a esposa de outro teria que jejuar a pio e agua por quarenta dias du ante catorze anos, ao passo que o solteio limitar-se-ia a jejuar pelo mesmo tempo durante sete anos. Igual légica * s2apliava& punigo do homem que “acariiate” ossios de ima mulher, im por cinco day, se cami, © por dais, se celibarior Mas como uma tt cai, que podia Tevarohomem a “consumat o ali, reeia punto to modest se comparadn a0 easgo do adlteroaptor? Panise oadltero uo que disavi ocasamento? Tudo Indica que os seer castion aos adteos apcavanse Ae stugtes de ruplra, nas quis um homem raplava a fsposn alia on repudiava a propia. Por der da go- rosa condenacao 20 adutrio encontrava-se, oi, Tata pela indssolublidade matrimonial O sistema peitencial ¢ também o dieitocandrico ¢ a ei el oretavam o seu rigor nem tanto para os ats da came inerdtads pelos telogs, mis parh os pecados au implcasem absie na extra soll politon a Gristndade. As grandes punigbes a0 aduleo, a0 ines, fo rapt, volo de virgens frit 0 nicollimo demas transpresses de pares visavam ora 0 defesn da instulgdo marimona eclesstica contr os costumes pro- anos da nobrta, ora & peserago da tmagem do cero contra ‘os ue agtedam os ses valores. Hav, porém tim domi de aos que sofia punigio gual ov aor: & Sodomia, sua parca, x betalidade,” Como entender ess igo? 4 vimos que-nfo faltavam razdes morais para. a sevetdade da ondenagio a sodomiae& estiidae. Mas Getzemes de ado esta itm, eujo tio sempre fol exe trator observemos a esgmatizagio da sodomia, Sous fos temp foram condenados por expresaem animal- dade, base deseyrata do parc trniessio dot 05 fumes. parteularmente © colo anal. Mas seta So- mem esta a rario pela qual os exits de Cambral germ os. pesados da came comeidor ene omens ‘etnas graves “ilo contra natura"? Porque soda thie homens alos formose crime de morte em vis » céigos ocideniais? A que atribuir o reerudescimento das pperseguigbes nos séculos XIII e XIV? Antes de tudo, ndo se deve imaginar que o rigor da lei civil e a “personalizagdo” dos sodomitas tenham surg do A margem da Igreja. Diversos teélogos dos séculos XII XIV ja vinham difundindo a imagem do sodomita come a daquele que se unia com “pessoas do mesmo sexo”, E havia outros que, além disso, invocavam a pena de morte para os sodomitas, baseando-se na pregacio de Paulo aos romanos: “sfo dignos de morte os que tais coisas prati cam" (1:32). Punigo ao corpo, mais do que puri da alma, eis 0 que 0s tedlogos passaram a defen ‘certo que o rigor do clero ligava-se, em parte, & politica de “moralizacao” do corpo eclesiistico prevista na refor- ‘ma gregoriana — 0 que levou o III Concilio de Latrao (1179) a fixar a deposigéo das ordens e © confinamento ‘monasterial para os padres “sodomitas", As preacupagSes do clero no se limitavam, porém, 2 conduta de seus membros. ‘Boswell® sugere que a perseguico aos “sodomitas” nio foi sendo um capitulo da expansio © da crise que ‘marcaram a hist6ria do Ocidente medieval apés 0 século XI. A. perseguicdo resultaria, pois, do movimento das Crazadas, nas suas varias frentes, e da crescente hostilidade contra os “infiéis", mugulmanos, judeus outros que ne- gavam a f€ cris. Resultaria, ainda, da lula contra os “hereges” — albigenses, cfitaros, valdenses — que, no préprio seio da cristandade, contestavam 0 poder da Igreja da sua hierarquia, Resultaria, enfim, da erise do século XIV, do piniee causado pela peste negra — apresentada pelo clero como um castigo de Deus, irado com a apostasia © a imoralidade dos cristios. Op. cit, p. 269-30, Os séculos XIII ¢ XIV foram ricos em associagies especulativas e legais entre a sodomia e 05 flagelos da cristandade, ou melhor, entre os homens que praticavam ‘a sodomia ¢ 0s inimigos do clero e dos reis. Varios te6lo- {208 identificaram a sodomia com os “costumes islimicos". Guibert, abade de Nogent-sous-Coucy, chamow de sodo- mia a poligamia dos califas, e Jacques de Vitry chegou a atribuir a0 califa Mutrammad o titulo de “Inimigo da Na- tureza”, por ter “popularizado” a sodomia entre seus sidi tos, inclusive 0 “s6rdido” coito com animais. Os domini ccanos, responséveis pela Inquisigio Papal (sé. XIID, nio se cansaram de acusar os “hereges” de sodomitas. E no nos esquecamos da lei inglesa (séc. XIIT), que condenava ‘A morte 08 que mantivessem coito com judeus, animais © pessoas do mesmo sexo. Os dois concilios de Latrao, nos séculos XII e XIII, 0s mesmos que condenaram com maior rigor os “sodomitas", adotaram varias medidas con- tra os judeus, os muculmanos, os “hereges”, os usurdrios etc. Sodomita, herege, judeu, infil, tudo isto passou 2 se confundir no discurso de clétigos e reis dos séculos XI, XIII e XIV. A sodomia extrapolou, assim, 0 dominio dos atos citos da came e tornou-se signo de contestacdo politica, infidelidade religiosa e heresia. Passou a se confundit, ainda, com os homens que a praticavam, aos quais no caberia senio a violéncia e a morte, 6 Conclusa a problematica crista da carne Do tempo dos Apéstolos aos dias de hoje, 0 cristia- nismo estimulou diversas manifestagSes morais acerca do sexo, E se houve um trago unificante de todas essas “mo- ais", este foi a recusa do prazer, as vezes flexivel, mas sempre presente em todas as reflexes e ebdigos cticos fundamentados no ctistianismo. Em certo sentido, a pro bblematizacio crista da carne se confunde com este ideal de recusa, que supe o prazer como um mal em si mesmo € também como obsticulo & salvacdo eterna, e principal res- ponsavel pelos flagelos da humanidade. Seria essa recusa original? (0s cristdos retomaram, com efeito, algumas das inter- Aigdes do Antigo Testamento, particularmente do Levitico: ‘a nudez, as relagSes entre homens, o coito na fase mens- trual, o incesto © o adultério, Seria isto suficiente para falarmos de uma “moral judaice-crista”? Pelo menos tres aspectos da moral presente nos livros hebreus guardavam enorme distancia daquilo que, mais tarde, pregariam os cristios: 1) a auséneia de qualquer apotogia da castidade ou do estado virginal; 2) a concepedo de um easamento 2 monogimico no muito rigoroso; 3) a concepsio nio- -sexualizada do pecado original Com relagio a eastidade, se alguma ética o judaismo twansferiu para os cristdos, esta foi a dos essGnios — seit que se pautava num rigoroso ascetismo — e nia a do ‘Antigo Testamento. Nesses livras da tradigdo judaica, nao vemos qualquer defesa da virgindade como estado ideal, © num deles — 0 Cantico dos canticos —, fer-se mesmo uuma apotogia do amor carnal, a propésito da unio entre Javé ¢ 0 povo de Tsracl, Nao foi outra a razio pela qual Bernardo ¢ varios te6logos insistiram, no sécudo XII, em gue somente uma “Tetra slegérica” era apicvel a ete No tocante a0 casamento, os livros hebreus nunca defenderam uma monogamia estrta, pois admitiam 0 con- cubinato masculino a0 lado da unio logitima, e somente condenavam 0 adultétio dos homens se cometido com a “esposa do prdximo”. £ certo que, na pritica judiciia, também os cristaos foram flexiveis em relagio as faltas ‘masculinas e, assim como os hebteus, $6 condenavam seve- amente os adilteros que repudiavam a propria mulher c/ou raptavam & esposa alheia, Mas seria absolutamente em vao buscar na retGrica dos teélogos sequer uma frase admitindo que o homem possuisse varias mulheres Enfim, como nos Iembra Le Goff, a sexualizagdo do pecado original foi uma invencio crsid, pois, no Ge- resis, aparecia ligado a0 conhecimento e & obedigncia de- Vida @ Deus, € nio ao sexo. Seria por eeder & tentagio de conhecer, por querer igualar-se a Deus e por desobede- cer a cle na busca desse conhecimento que, na narrativa blica, o homem teria pecado pela primeira vez. Os hebreus coneebiam, pois, © pecado original como desobediéncia a Deus estimulado pela vontade de conhecer (lembremos 1a retusa pis, Histoire, cit, p54 2 4a davore na qual se escondia a serpente) — inclusive no tocante a diferenca entre os sexos, mas nao, exclusiva- mente, no dominio do sexo. E, ainda, 0 relato biblico 56 admitia a consumagdo do pecado com a adesio do homem 4 vontade de saber: Eva propés, Adio cedeu e, enti, efetivou-se © pecado. Clemente’ de Alexandria foi 0 pri- meico erstio a “sexualizar" esta narrativa — pois nenum Apéstolo o fizera antes; mas foi Agostino quem, defin- tivamente,relacionou a concupiscéncia e © pecado original A interpretagio “sexualizada” do primeiro pecado marcou decisivamente 0 eonjunto das étcas exists, dela resultando 4 coneepeio de um mundo entrevado pelas aflgbes da carne, a visio do homem como um ser fragilizado pelo desejo e a identfcagio da virgindade, pureza e salvacio. Foi também a sexualizagio do pecado original que esti Jou a imagem diabolizada da mulher, ex oposigdo a ima- gem do “homem espirtua”, mais infenso ao pecado, em- bora responsivel por ele sempre que agisse como Ads. Nao vemos, assim, em relagio a0 sexo, muita consis- éncia numa expressio como “moral judaico-erista", tio distinta €a “problemstica da came” nas duas cultures. Nao sendo judaics, qual seria a origem do ideal do secusa? Seria o cristianismo uma “versao religiosa” da moral aus- tera dos estéicos? Seria a “moral crsta” uma heranga do pensamento clissco (platénico e aristosico) — muito menos “permissive” do que alguns supdem? Vatias ana logias podem ser feitas a este respeito. © estoicismo, como vimos, emprestou aos cristios inimeros prineipios « argumentos: a defesa do casamento, a condenacio do excesso nas relagies sexuals entre os esposos, a indistar- sivel desconfianga quanto a0 uso dos prazeres. E. tanto Platio, presente na tcologia dos primeizos séculos, como Aristteles, base filosética dos escolisticos, recomenda- ‘vam a Timitagéo dos prazeres & esfera matrimonial. Reco- “ ‘shegamos, porém, que Plato, Aristételes © os priprios estbicos diziam isso por outros motivos. Para Aristételes ou Plato, afirma M, Foucault, a obrigagio de manter o uso dos préprios prazeres no quadro do casamento também era “uma maneira de exercer 0 dominio sobre si mesmo, um dominio tornado obrigatétio pelo status ou pela autoridade que 0 sujeito deve exercer na cidade”, ov, ainda, 0 meio ideal para fornecer os filhos a0 Estado (Replica) e para manter a ordem doméstica, fundamento da ordem piblica (Politica). E, para os es- ‘ieos, era para satisfzer as exigéncias proprias & relagSo consigo, fim de néo loser © que se 6 por natureza © por essénca, a fim de honrarse a si mesmo como ser racional, ‘que convinha fazer dos prazeres sexuais, “um uso interno 40 casamento © conforme 20s seus fins”: a procriagao. Dominio sobre si mesma em favor do bem publica, cis Por que os filisofos clissicos recomendavam a austeridade sexual. Cuidado de si, com vistas, antes de tudo, 20 equi- Iibrio ¢ ao bem-estar do individuo, eis a razao da austeri- dade esidica. Os eristios, por sua vez, ao invés de reco- mendar, preferiam impor, € impunham nio apenas auste- ridade, mas a rendncia de si, ou seja, @ recusa daquilo gue era visto como o grande mal: © prazer. Se, na pri tica judicidria, os te6logos se revelaram, muitas ve7es, transigentes, e se chegaram mesmo a admitir, por principio, que 0 uso do prazer era licito no easamento, fizerams-no por conveniéneia social e politica, jamais por reconhece- rem no prazer um bem para o individuo ou para a cris- tandade. Esse ideal de recusa, que, nos primeiros tempos, ‘opunha a virgindade ao casamento, passou a opor, ap6s 2 Hisdra da sexualdade; 0 cidade desi, ct, p, 184-5. as © séoulo IX, 0 casamento as relagies_nio-conjussis, admitindo-se, com reticéncia, 0 uso do prazer_n0 ito dos esposos’ Essa mudanga, eristaizada na altura dos séculos XIT e XII, coreesponden ao aperfeigonmento de dois elementos bésicos da. problemétca crsti da came: a forte tendéncia & ccdiicagéo da moral e o méiodo con- fessional. A moral sexual da Igreja consolidow-s, assim, como uma ética jurlica, vollada essencialmente para 0 dominio dos atos: lisitos ow proibidos; abominiveis ou excoriveis; veniais ou mortas. A confissio entronizou-se como uma téeniea de poder, capaz de decifrar intengdes pe- caminosas © atos de transgressio, capaz, sinda, de punit 0s pecadores e, sobretudo, de os persuadi a trocar a busca do corpo pelo amor a Deas e pelo respeito a0 clero, Tor- nada obrigatéria pelo Coneilio de Latrio (1215), @ con- fissio assumiria importincia vital ¢ duradoura na metodo- logia de poder no mundo ocidental. Por tudo o que vimos, seria um erro pensat-s© numa “moral crsti” homogénea © imével. Melhor seria falar-se de vérias “moras”, que se artcularam ou se opuseram conforme a época.” as podemos falar de uma proble- riticacristé da carne, miltpla em suas expressies, oF nal obsessivamente lgada a0 seu ideal de renincia, deal que se adaptou is ambigbes do clero, dos nobres dos seis. AS “morais™cristis nao foram, pois, meras for- ragies discursivas, engendradas unicamente pelas afiges dos que possuiam’o poder © 0 saber. E sempre preciso ligi-as a0 social, remeté-las a seu tempo, decifrar, entim, 2 sua histéia 7 Vocabulario critico Adultério: relative & infidelidade conjugal dos esposos. Quando praticado pela mulher, era reconhecido como suficiente para divércio e, as vezes, punido com a morte pela lei civil. Quando cometido pelo espos0, $6 era punido com rigor se implicasse rapto de esposa alheia, e maior era a peniténcia se o raptor fosse casado. Agape: em grego agape significa amor e, aplicada a ceia sagrada dos primitives cristios, foi utiizada para ex- pressar © amor cristo ¢ a comunhao fraternal envol- vidos naquela refcicéo, Posteriormente, © mistéio en- volvido na evia, isto é, a erenga de que Jesus estaria presente no pio (corpo) © no vinho (sangue), sepa- rou-se da nogio de gape ¢ integrou o rito © o sacra ‘mento da eucarista, O Agape continuou utilizado, entio, como alusivo ao amor e & caridade cris. Ascetismo: atitude contemplativa dos que recusavam 0 mundo (e as relagies carnais) para se dedicarem a oragio, em busca da salvagio da alma (aseensio, as- cese). O termo aplicava-se, particularmente, aos que # se recothiam aos mosteros e refigios (monges, eremitas ete). Bestialidade: derivado do tatim bestia (animal), aludia as relagées sexuais de um homem ou de uma mulher com aanimais, condenadas pelo Antigo Testamento, Caridade; amor cristio ou comunhio fratemal, que os tedlogos recomendavam para os figis e para os espos0s. ‘A caritas (Iatim) era quase um sindnimo de dgape. Castidade: recusa de qualquer ato ou simples pensamento ccamal. A uta pela castidade era a grande meta dos que se dedicavam ao ascetismo, recolhendo-se em mosteiros @ conventos. Celibaro: do latie caelibatu, ito 6, estado em que alguém petmanece solteiro. No inicio da cristandade, somente ‘05 monges aderiam a0 celibato e, durante séculos, foram freqiientes as unides conjugais envolvendo os membros do clero secular, No século XIII, auge da reforma gre- goriana, o eelibato foi imposto a todos os membros do corpo eclesistico. Concubinato: casamento ilegitimo — feito & margem da Tei e dos ritos oficiais — ou unio conjugal paralela a0 ceasamento, Quando transformou o matrimonio em sa- ‘eramento (sé. XII), a Igreja utilizou-se da expressao para estigmatizar os casamentos feitos sem a béngio © ‘a aulorizagio sacerdotal Concupiscéncia: desejo carnal. Nogio muito utilizada por ‘Agostinho, para quem, sempre que unizo dos espos0s visasse a procriagdo, endo 0 prazer, a concupiscéncia seria anulada, Por isso concebeu 0 casamento como “remédio da concupiscéncia’. Continéncia: disciplina propria dos que lutavam pela cas- tidade nos refiigios ou dos que se abstinham de qualquer relagio sexual ou ato carnal, © termo também se apli- cava aos easados que se abstinham do coito e/ou se- {guiam as normas da Igreja nesta matéria Escoldstica: filosotia cristd desenvolvida a partir dos sé- culos XII e XII no seio das universidades aascentes. No plano das idéias, foi muito acentuada a influéncia do aristotelismo, Estoicismo: corrente filosétiea helenistica surgida no sé- culo TV a.C., cujo nome deriva do grego stoa — pér- tico —, lugar de Atenas onde se reuniam seus adeptos. A difusdo do estoicismo foi extraordindria, tanto no Oriente Proximo como no Ocidente, Em relagio 30 seX0, 08 esi6icos propuseram uma moral austera e de- fenderam o casamento como 0 espaco ideal, seni tinico, para 0 uso do prazer. Fornicagao: fornicarii (latim) ou pornoi (grego) eram termos que, inicialmente, designavam os pecadores car- nais em geral. Por muito tempo, a palavra conservou ‘esse significado genético, préximo ao da luxiria. As vvezes, porém, era usada como sindnimo de adultério, no sentido de quebra eventual da fidelidade, Com o passar do tempo, a fornicagio adquiriu um significado mais preciso, alusivo a eépula genital iicta, isto é, efe- tuada fora do casamento, entre pessoas solteiras (for- nicagio simples), ou envolvendo situagées pecaminosas como 0 incesto, o adultério, a violagio, © rapto e 0 égio (fornicagdo qualificada), Gnosticismo: derivada do grego gndsis (conhecimento), alude as diversas seitas dos séculos II e IIT, que uniam 4 pregagao apostélica com elementos religiosos helenis- ticos © orientais (marcionitas, carpocratas, basilidianos ftc.). No tocante a0 sexo, caracterizavamese, de modo sgeral, pelo rigoroso ascetismo e pola condenacio e/ou proibigio do casamento, Gregorianos: segmento do clero que defendia a reforma dda Tgreja, iniciada no século XI. Seu objetivo cltimo cera 0 de impor a autoridade da Igreja e do Papa sobre o poder dos nobres, reis e imperador romano-germinico, Entre os iters bésicos da reforma constavam: a imposi- lo do contiole eclesistico sobre os casamentos leigos, a generalizagio do celibato para 0 clero © 0 aperfeigoa- mento do dreito candnico ¢ da pratica judicidria da Ire. Heresia: em grego hairetikis signitica “o que escolhe”. ‘Assim, 0s te6logos usaram 0 termo hacresis (lati) para aludir a0s que optavam por doutrinas contrérias as que a Igreja fixava como verdades da fé. Herege era, pois, aguele que, no seio da cristandade, se desviava da doutrina oficial — diferentemente do infiel, que simplesmente ndo acreditava em Jesus Cristo como filho enviado por Deus. Durante a Idade Média, 2 palavra Iheresia designou apenas os desvios da f& e mio os pe- cados da came. O famoso Manual do inquisidor (sée. XII), de Nicolay Eymerich, no inclwiu os pecados cearnais no dominio da heresia, mas varias leis civis © © proprio di-eito canénico, posterior ao século XII, 0 fizeram, Incesio: wni80 ou casamento entre parentes. O dircito ccandnico julgava o incest como impedimento disimente do casamento, O Concilio de Latrdo (1215) fixou os ipedimentos até © quarto grau ¢ manteve os impedi- ‘mentos espirtuais ligados ao batismo compadtio. Luxtria: um dos sete pecados capitais, a0 lado da gula, dda inveja, do orgulho, da avareza, da preguiga © da célera. Aludia a0 vasto conjunto de pecados da carne. Molicie: derivala do latim mollirie (moleza), que aludie, no mundo remano, 20 comportamento passive dos ho- mens nas relagies sexuais. Paulo referiu-se aos molles ‘como sendo “efeminados” (varias tradugSes). Por muito fempo, a molicic permaneceu inserita no dominio da fornicagio, aludindo as priticas que adiavam ou substi- twiam 0 coito (dai a sua identifiagio como “crime de %0 Onam”). Posteriormente, tomou-se sindaimo de mas- turbacio ou “pritica solitria” masculina Parristica: Expressio alusiva aos Padres da Tgreja, ou seja, aos sacerdotes que, entre 0s séculos II e V, organiza. ram a doutrina ea (eologia cristas, procedendo, inclusive, A selecdo e organizagio dos textos apostilicos (Evange- ho). “A influéncia do platonismo ¢ do estoicismo foi muito expressiva no pensamento desses tedlogos sobre- tudo os da “escola” de Alexandria (Clemente, Origenes, Atanisio).. Polucao: Emissio de sémen. Critério. muito importante 1a problemética erista da carne. No discurso monéstica, fa auséncia de “polugSes noturnas involuntirias” era o Principal indicio de castidade. Nos penitenciais, muitas transgressGes eram mais ou menos punidas conforme 1 presenca ou auséncia de polucio. Sodomia: a origem da palavra encontra-se no relato do Genesis sobre a destruigio de Sodoma por Deus. Os cristdos interpretaram o castigo divino presente na nar- rativa como uma punicio ao “homossexualismo” dos sodomitas. Em certos textos anteriores ao século XH, 1 sodomia apareceu com um significado amplo, alusivo ao pecado da carne em geral. Nos penitenciais ¢ tra- tados morais, 0 termo designava, prineipalmente, certos atos — sobretudo 0 coito anal e 0 oral — e simbolizava, ainda, a “animalidade” do desejo carnal e, a partir do s€eulo XIT, tomou-se cada vez mais associado 4 relagio entre pessoas do mesmo sexo, sobretudo homens. Virgindade: estado dos que nunca tinham experimentado relagées ou atos carnais. Grande ideal eristio dirigido, sobretudo, as mulheres, para dissuadiclas de casar. Em certos textos, a virgindade simbolizava uma relagio er fica com Deus: Basfio de Ancira chegou a admitir que permanecia virgem a esposa que, “violada pelo marido”, mantivesse © seu pensamento em Deus durante 0 alo 8 Bibliografia comentada A bibliografia sobre a Tdade Média & vastissima, e os estudos sobre a hist6ria da sexualidade tém aumentado ‘num ritmo considerivel nos Gltimos. anos. Limitaremos as nossas indicagSes a certos traballos essencias. A. Com relagdo ao ccistianismo e a sociedade medieval Biocu, M. 4 saciedade feudal. Lisboa, Edighes 70, 1979. Obra clissica, essencial para se compreenderem as moti= vagies dos atores sociais envolvidos no assunto que abordamos. Duny, G. Les trois ontres ow Vimaginaire du féodalisme. Paris, Galimard, 1978, Obra bisica, voltada para o estudo das representagées ideolbgicas da socielade feudal Humzines, J. O declinio da Idade Média. Lisboa, Ulisséia, sa Estudo pioneiro no campo da hist6ria das mentalidades (a primeira edigao holandesa & de 1919), dedicado as idéias, costumes, sentimentos e artes, na Franca ¢ nos Paises Baixos, durante os séculos XIV © XV. Lx Gorr, J. Os intelecwais da Idade Média. Lisboa, Bs- tidios Cor, 1973. 2 Belissimo estudo sobre os intclectuais do Ocidente nos séeulos XIT e XIII: 0s homens, a escolistiea, 0 natura- lismo, as universidades ete Rave, F. La iglesia y ta vida religiosa en Occidente, Bar- celona, Labor, 1973 (Col. Nueva Clio, n. 25). Sintese da historia da Igreja e da religiosidade cris entre 0s séculos XI ¢ XV. Smiox, M. & BrNoIT, A. El judaismo y el Cristianismo Antiguo. Barcelona, Labor, 1972 (Col. Nueva Clio, a. 10) Sfntese da hist6ria religiosa e institucional dos hebreus © dos primitivos cristios (até o sée, TV) B. Com relacdo a “problemética erista da carne” Ants, P, et ali. Sexualidades ocidentais. Lisboa, Contexto, 1983. (editado pela Brasiliense em 1985). Tradugio do n. 35/1982 de Communications, publicagio da Ecole ddes Hautes Etudes en Sciences Sociales. Diversos artigos sio de especial interesse. —, Histéria social da crianca ¢ da familia. Rio de Jancico, Zahar, 1981. Estudo clissico sobre a organizagio familiar, a moral, 0s costumes ¢ a educacao infantil na Europa, desde fins da Idade Média até 0 séeulo XVII, BeNassar, B. La repression des péchés abominables. In—, org. L’ inquisition espagnole; XV"-XVV" Siteles, Paris, Marabout, 1982. p. 330-58, Estudo sobre a condenacio da sodomia e da bestialidade pelo Santo Oficio de Aragio nos séculos XV e XVI. BosweLt, J. Christianity, Social Tolerance and Homose 2xuality. Chicago and London, ‘The Univ. of Chicago Press, 1981, Um profundo estudo sobre as representagies da ho- ‘mossexualidade na Europa Ocidental, desde os inicios do ctistianismo até 0 século XIV. 93 Danson, P. Le tribunal de Timpuissance. Paris, Seuil, 1979. Estudo brilhante sobre a virilidade ¢ 2 impoténcia no iscurso e na pritica judicidria eristd, desde a Idade Média ¢, sobretudlo, entre os séculos XVI e XVIII, Diniev, JP. Le modéle sexuel: la défense du mariage cchrétien, In: BeNassar, B., org. L'inguisition espagnole. Paris, Marabout, 1982. p. 306-29. Estudo sobre a repressdo da bigamia e da fornicagio pelo Santo Oticio espanhol (Sevilha, Toledo e Logrofio), nos séeulos XV ¢ XVI. Dusy, G. Le chevalier, la femme et le prétre. Paris, Ha- cheite, 1981 Estudo sobre a moral da Igreja em confronto com os costumes da nobreza européia entre os séculos IX e XU. FLanpain, JL. Le sexe et FOccident, Paris, Seuil, 1981 Coleténea de trabalhos sobre a moral eristi e os com: Pportamentos sexuais na Europa medieval ¢ moderna, FoucauLt, M. Historia da sexualidade. Rio de Janeiro, Graal, 1977. (v. 1) e 1985 (v. Ie Il). Obra ‘fundamental para o levantamento de questses & hip6teses acerca do tema, Kasey, H, Notas sobre brujeria y sexualidad y In Ingui- sicién. In: Atcat, A., org. Inquisicién espariola y mentalidad inquisitorial. Barcelona, Ariel, 1984. p. 221-36, Indicagdo de problemas e hipdteses relativas a0 estudo dda Inguisigdo moderna quanto & bruxaria e & sexualidade. Lr Gore, J. Le refus du plaisir. Histoire, n, spécial: 52-59, 1983, Reflexdes sobre a moral cristi’ de recusa do prazer, eristalizada no perfodo medieval. Méreat, M.O. Le mariage: les hésitations de 'Occident Paris, Aubier, 1977. Estudo sobre a mulher, o casamento © a familia, do inicio da era criti a atualidade. Rosseite, A. Pornéia: sexualidade ¢ amor no Mundo An- tigo. Sto Paulo, Brasiiense, 1983, Estudo sobre a moral sexual dos estéicos ¢ dos primi- tivos cristécs, com destaque para anilise dos textos sobre a virgindade feminina © a continéncia masculina (s6es. TI a0 VI). ‘Sawn OxrEGA, M. H. 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