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~OQUEE Coiecdo etm Primeiros Passos 286 Uma Enciclopédia Critica Belge -U Dep > ofCHA, A Historia da Ciéncia 6 como uma viagem a um labirinto: complexa e fascinante. Na vastiddo de caminhos do cenhecimento humano sobre a natureza, ds vezes nos perdemos numa trilha que a histéria apagou. Mas logo vem o deslumbramento com essa rota tracada por aqueles que enxergaram e construiram.o mundo de maneira diferente da nossa. Aéeite o convite para fedescobrir caminkos e atalhos, e refletir sobre o passado, o presente e o futuro da Ciéncia. ~ Areas de interesse Ciéncia, Filosofia, Historia inn iP... a ort o -OQUEE } je” HISTORIA ee” DA CIENCIA Ana Maria Alfonso-Goldfarb id Alf Ana Mari {Copyright © by Ana Maria Alfonso-Goldfasb;'1994— Nenhuma part desea publicaro pode ser gravada, armazenada em sistemas eletronicos fotocopiada, reprodsxida por mecios mecinicos ou ros quaisquer sém autorizagdo prévia da edtora. Primeira edipdo, 1994 Dreimpressé, 195 Coordenaso editorial: Florian Jonas Cexat Revisdo: Agnaldo A. Olveirae Carmen. S.Costa Copa: Emo Dasani Dados internacionsis de Catlogoo na Publica (C2) (Ciara Brasileiea do Livro, se, Brasil) ‘Alfonso-Goldfarb, Ana Maria. O aque 6 histéria da cigncia / Ana Maria Alfoaso- Goldfarb. — 1. ed. ~ SSo Paulo : Brailiense, 1994. ~ (Colegio primeitospassos : 286) Bibliografia ISBN 85-11-01286-9 1, CiGncia 2. Citncia— Histéria 1. Titulo. Il. Série indices jogo sisternitico: 1. Giéneia -Histéria 509. EDITORA BRASILIENSES.A. ‘Av, Margués de Sao Vicente, 1771 01139-903 - Sao Paulo -SP Fone (018) 86 13366 - Fax 861-3024 Filisda’ ABDR epep Introdugao ... Caminhos primeiros: uma imagem no espelho da propria ciéncia ........-.-.-- Caminhos contemporaneos: espago independente de reflexdo sobre a ciéncia. . Indicagées para leitura ...-.-.-.---+.+-- = UNESP - CAMPUS OE BAURU Valor: (0,90 n° chamada: fa Pn iL Data:-24/ ul 1 tombo: v. ‘Ao mais que querido mestre dos mestres 6m historia da ciéncia, ‘Sino Mattias ( memoriam) INTRODUCAO Complicando 0 que parecia simples Preende quando alguém diz que a cura para tal e tal doenga esté sendo cientificamente estudada. Ou que nao existe ‘uma -teoria-cientifica Para provar a telepatia- Enfim, mesmo Nao sabendo dizer © que é Ciéncia, vocé acredita que todos Os termos a ela telacionados — cientifico(a), cientificamen- te, cientista, Cientificismo... — tem a ver com algo objetivo, Sério, exato, e quase sempre importante e verdadeiro. no caso ‘da Ciéncia, todos acreditam saber por intuigao 0 que seria Histéria. Vocé pode confundir Alexandre Magno com Carlos Magno. Mas, pelo menos, vocé deve saber que esses homens sao personagens historicas, que existiram de verdade e, portanto, diferentes das personagens de ficgao. © problema é que intuindo 0 que 6 Ciéncia e o que é Historia, mas nao conseguindo esclarecer, 0 mais provavel é que vocé consiga menos ainda exemplificar 0 que € His- tora da Ciéncia. Ocorre que as coisas nao sdo tao simples assim. Ou seja, nao se trata de uma questao de saber ou nao saber, € pronto! Nao basta juntar Historia e Ciéncia para que o resultado final provavelmente seja Historia da Ciéncia. E isso nao acontece s6 porque a jun¢ao. ou_a combinagao de duas coisas diferentes quase sempre produz uma terceira com caracteristicas proprias, embora se pareca ct as que the deram origem. Isto é verdade para 0 caso de vocé, seu pai e sua mae; para a planta com enxerto do jardim; e também para a ligagao entre teorias. Mas, no caso da Historia da Ciéncia, a complicacdo é ainda maior, porque a Historia da Giéncia, que se desenvolveu no interior da Ciéncia, sem- pre.esteve mais proxima.da Filosofia (Légica, Epistemolo- gia, Filosofia da Linguagem), do que da Histéria. Para falar averdade, até trinta ou quarenta anos atrds, a Historia da Ciéncia tinha bem pouco de histérico (dos métodos e dos procedimentos da Histéria). Quando, inalmente, a Historia da Ciéncia passou a usar pra valer métodos ¢ procedimen- tos proprios da Historia, ela ja havia se desenvolvido muito, com defeitos e qualidades préprias. pie (1 O.QUE EHISTORIA.DA CERTCIA - 9 AHistoria da Ciéncia ficou assim durante algum tempo, como uma estranha no interior dos estudos histéricos. Aos poucos foi assimilando, filtrando e adaptando elementos da Histéria, que combinava com outros elementos da Sociolo- gia, da Antropologia e de varias ciéncias humanas. A entra- da desses novos elementos no corpo da Hist6ria da Cién- cia deu também um novo sabor aos componentes da Cién- cia e da Filosofia que de longa data combinavam-se para formar essa area de estudos. O resultado que temos hoje 6 uma Histéria da Ciéncia complexa e com muitas faces, sem com isso ter se transformado numa colcha de retaihos. Métodos e processos foram criados para que a Historia da Ciéncia pudesse adaptar, de maneira harmoniosa, es- ses conhecimentos variados vindos das diversas areas. Formou-se assim um campo original de pesquisa com vida prépria e tudo o mais, e, a0 mesmo tempo, em constante comunicagao com essas areas que emprestaram seus Co- nhecimentos a Histéria da Ciéncia. Aessa altura, vocé deve estar pensando que agora nao tera como saber o que é Historia da Ciéncia. No comego parecia que o préprio nome ja explicava 0 assunto. Depois foi descobrindo que essa_aparente facilidade_no_ nome escondia questdes muito complicadas. Como entender algumas dessas questées sem ter que ler meia biblioteca, ou se transformar num especialista? Como sanar este pro- blema? ie Vou contar uma historia: /a historia, da Historia da Cién- Gia Desse modo vocé podera Snare 0 longo ey historico de transformagao e mudangas que justifica a Hi toria da Ciéncia levar @sse nome. Com essa historia, voce | Contando a histéria de uma histéria Filosofia Natural, Magia Universal, Nova Ciéncia, Filoso- fia Experimental: esses foram alguns dos nomes ‘com que Se tentou batizar, entre os séculos XVI @ XVII, 0 que hoje chamamos de Ciéncia Moderna. Muitas Caras, além de muitos nomes, teve a Ciéncia Naquela época. Eig estava Por exemplo, alguns achavam que a Ciéncia deveria re- tomar os conhecimentos classicos. Aqueles que surgiram na Grécia antiga — por Pensadores que vao de Tales de Mileto e Aristételes — © passaram para a Civilizagao Pensavam que o melhor seria acabar com conhecimen- tos classicos, Comegar da estaca zero © ouvir da propria natureza o que ela teria a contar, Entre esses dois casos extremos havia Centenas de opi- nides intermediarias, levantadas por 9tupos — que normal- mente chamamos Correntes, linhas ou escolas de pensa- mento — ou apenas POr UM Unico individuo. Essas Origens ac iW Complicadas da Ciéncia Moder tes, em que todos queriam ter razao e i ligada a Propria Cién- l6ria, éla’é uma justificativa da Ciéncia que estava se formando, e tem, portanto, 9 per- fil do debate que esta gerando esta formacao. S Séculos XVIII e XIX, 0 debate vai chegando a Seu final (pelo menos oficialmente...), © vdo se tornando também oficiais aS “regras do JOgo” em Ciéncia, A Ciéncia Vai.criando um , il unico, cada vez mais parecido com aquele que quase todos Conhecem agora. E Ciéncia Moderna, A Ciéncia desse Periodo ja sabia Para que veio e Passa. ainfluenciar desde a muda, nga de curriculo das escolas até © desenvolvimento das nacées (quem nao tivesse uma boa —="ANA MARIA ALFONSO-GOLOFARB Mey Ciéncia‘~ como até hoje... — perdia o trem da Historia). Nessa fase a Ciéncia nao precisava ser justificada; ela era oficial e tinha o rosto do futuro do planeta. A Historia da Ciéncia, sempre ligada a Ciéncia, passa também por essa. transformagao. Novamente ela nao. a. uma forma de.His- téria, mas uma crénica interna da ciéncia. Essa espécie de crénica serviria para ajudar os mestres que ensinavam Ciéncia, tanto por meio de livros quanto ao vivo, a dar exemplos do que fora certo e do que fora errado no de- senvolvimento da Giéncia. E certo era tudo aquilo que se transformara na Ciéncia daquele momento; errado, tudo aquilo que atrapalhou a Ciéncia para chegar aquele estagio e, portanto, deveria ser evitado, ouno minimo esquecido. AHistoria da Ciéncia sera assim exerplo edificante para os jovens estudantes e motivo de orgulho para os cientis- tas. Pois, por meio dela, era possivel saber. como a ci éncia ganhou muitas batalhas contra a ignorancia, a religiao e 0 misticismo, seus eternos inimigos. Mas como a Ciéncia era © futuro, esse passado glorioso foi ficando cada vez mais Para tras. Como se fosse um enfeite, aquilo que os profes- sores chamam de perfumaria, a Historia da Ciéncia foi se tornando_pouco_importante para quem quisesse-aprender- .ciéncia de verdade. — Mas a Ciéncia que parecia um corpo de conhecimentos quase prontos e acabados passou ainda por sérias trans- formagGes no século XX. Do lado de dentro da Ciéncia, Novas teorias que nao eram sim, plesmente 0 complemento de anteriores surgiram. E também do lado de fora aumen- tou a pressao. Guerras que se tomavam cada vez mais ter- oouE € HSTOR 3 ———————— riveis com auxilio dos conhecimentos cientificos, a poluicao que aumentava com os avangos da Tecnologia, tudo isso fazia com que fosse necessdria uma Critica, uma revisdo dos critérios da Ciéncia. Criticar, alids, quer dizer analisar.os critérios (normas, regras, principios) de alguma coisa. E se alguns desses cri- térios tiverem problemas, incluir sugest6es para sua modi- ficagao. Criticar, portanto, nao 6 simplesmente pichar algo de que no estamos gostando. Sendo assim, os instrumen- tos mais afiados para se fazer uma critica da Ciéncia esta- vam com a Histéria da Ciéncia. Tendo convivido intimamen- te com a Ciéncia e suas transformagdes durante sécillos, a Historia da Ciéncia conhecia como quase nenhuma outra Area de estudos os processos internos dela. Era preciso, agora, que a Historia da Ciéncia ganhasse uma dimensao verdadeiramente historica para que ela pu- desse fazer sua critica ao longo processo, no tempo, vivido pela Ciéncia. Contando e recontando as muitas historias de que se fez a Ciéncia, foi possivel entender problemas, sal- tos e falhas que haviam ficado apagados pela aparente con- tinuidade do progresso cientifico. Embora envolva muitos-problemas, gostaria que ficasse a imagem de uma Historia da Ciéncia complexa mas inte- ressantissima. interessante porque recuperou conhecimen- tos sobre a natureza que pareciam errados pelos critérios cientificos; porque recuperou outras formas de ciéncia que a Ciéncia Modema apagara; porque recuperou para a Cién- cia seu papel de conhecimento produzido pela cultura hu- mana. Um conhecimento especial, sim, mas que, como UOT SANA MARIA ALFONSO-GOLDFARB -—-————_ outros comhecimentos, foi Construido ¢ inventado Pelo ser humano e, portanto, cheio de idas e voltas. E dai sera pre- Se CAMINHOS PRIMEIROS: UMA IMAGEM NO ESPELHO DA PROPRIA CIENCIA Todos os caminhos levam a Roma... Todos os caminhos levam as Indias... Era uma vez uma Europa que, até o S€culo XV, vivia @pertada entre seus muros. A ocidente tinha o grande mar Onde ninguém se aventurava, que para eles devia ser 0 |i- mite da terra, Pols acabava no vazio, A mavegagao até ° século XIV era Costeira. Ou seja, Contornava-se a terra por mar, sem perder muito de vista a linha da Costa. As histé- tias_que hoje_se_contam sobre vikings que chegaram-a— América e chineses que navegavam em mar aberto antes AbA.MARUA ALFONSO-GOLOFARB, ; r de conquistar. A norte, numa época em que nao havia ele- tricidade nem radar, e os combustiveis eram s6 para lamparinas, existiam os gelos elernos. Estou contando essa historia porque foi no mundo euro- peu, cercado por todos os lados, onde comegou a fermen- tar as sementes da Ciéncia Moderna. Ninguém conseguiu até hoje provar com certeza se essas sementes da Ciéncia foram o que ajudou os europeus a arrebentarem seus mu- ros e se expandirem por todo o planeta. Ou se, a0 contra- rio, por terem comegado a arrebentar os muros, eles pude- ram trazer, de outras partes para a Europa, as idéias (ou mesmo os materiais e 0 vil metal) com que regaram e@ fize- ram brotar essas sementes. Comeca ai 0 labirinto que os historiadores da ciéncia, dedicados aos estudos das origens da Giéncia Moderna, tém de enfrentar. O século XV, que é quando essa movimentagao toda para destruir muros co- mega a acontecer com forga, foi um século de descoberta dos mais agitados na Europa. E um periodo de redesco- berta da cultura classica e de novas culturas. A redescoberta comega a acontecer em grande escala quando, no meio do século XV, 0 Império Otomano (que era islamico) domi era cristo). Os bizantinos que fogem para 0 cocidente euro- peu sabem traduzir diretamente do grego classico para o latim. Acontece que ha muitos séculos 0 europeu ocidental tinha desaprendido a ler grego (as tradugGes para 0 latim eram feitas a partir das tradugGes arabes dos textos classi- cos). Entusiasmadas com essa possibilidade de acesso di 10 a cultura classica, oS europeuS iniciam um verdadeiro Ancio (Império Romano Oriental, que _ © QUE E HISTORIA DA-GIENGIA— — 7 festival de recuperagaé de trabalhos perdidos ou esqueci- dos, e que um dia ja haviam feito a gloria da Europa. Essa retomada da inicio ao periodo conhecido como Renasci- mento (porque renasce a cultura classica), no qual vao tam- bém acabar acontecendo muitas descobertas. Igualmente, a descoberta de novas culturas tem, de al- guma forma, a ver com 0 abalo das fronteiras européias com 0 mundo islamico. A rota para as indias, por onde en- travam as maravilhas do Oriente (sedas, porcelanas, espe- ciarias ¢ tudo mais) para a Europa, foi um caminho contro- lado pelos muguimanos durante séculos. Os muguimanos dominavam também uma parte da peninsula Ibérica (Por- tugal e Espanha) em territorio europeu. Era um velho sonho da Europa crista tomar dos muguimanos essas fronteiras. E, se possivel, estender-se para além delas, procurando um caminho proprio para as indias que Ihes desse riqueza e forga para competir com o mundo islamico. Os cristaos portugueses @ espanhdis realizam esse du- plo sonho até finais do século XV. A rota lusitana para as indias desce pela costa africana (descobrindo lugares por onde nenhum europeu havia pisado antes, nem mesmo os sabios antigos), cruza 0 oceano Indico_e.chega a Calcuta, na india. A rota hispanica toma o caminho do mar aberto e, seguindo sempre para 0 Ocidente, chega as outras Indias: as Américas. De uma e de outra rota vao jorrar inumeras novidades diante dos olhos surpresos dos europeus. Para explorar esse mundo que se abria, cheio de novas fronteiras, outros povos e tantas novidades, era também preciso descobrir uma outra forma de Conhecimento; uma nova ciéncia. Acon- tece que, para alguns, essa ciéncia deveria nascer dos co- nhecimentos classicos, da ciéncia dos antigos. Afinal, a redescoberta dos antigos ja havia trazido Muitas coisas no- vas e talve2 fosse sé adapta-las As Novidades descobertas. Para outros, porém, as novidades de um mundo com o qual os antigos nao haviam nem sonhado deveriam Ser conhe- cidas de uma forma também inteiramente nova. Mas era dificil decidir quem estava com a razao, Porum lado, de fato, as navegagées, que vao se intensificar muito novidades que os textos dos antigos classicos nao haviam previsto. Por exemplo, o céu do hemistério sul, guia das novas rotas maritimas por onde Outros povos europeus além dos ibéricos vao se aventurar, nao constava em ne- nhuma carta astronémica dos antigos. Também fo) desco- berto que pessoas, animais e Plantas existiam em numero consideravel nas zonas térridas da terra (na linha do Equa- dor), onde os sabios antigos acreditavam que, por causa do forte calor, nada pudesse viver. E das Américas chegavam noticias de povos, como os ast Cas, que, sem usar a toda ars as a delas criar novas formas de olhar 0 mundo. A perspectiva, entre Sutras, foi uma invenodo deles: uma técnica Para representar a profundidade de uma cena ou Sempre dessa maneira, Povos tao interessantes como os chineses, og Gregos e os astecas nao enxergavam em pers- Pectiva, a idéia da Viagem que mudaria Para sempre os velhos limi- tes do mundo. Errados ou Certos, mirando aqui e acertan- [ANA MARIA ALFONSO: GOLDFARB ene do ld, os textos dos sdbios classicos poderiam “ser, pélo menos, um bom come¢o para um novo conhecimento. E facil perceber por que aqueles que retomaram o cami- nho iniciado pelos classicos foram chamados de antigos € ‘0s que buscavam novos conhecimentos para a ciéncia, modems. Porém, as vezes, 0S modemos nao eram tao modernos assim nem os antigos tao antigos, mas se mis- turavam, E dessa maneira que, entre os séculos XVI e XVII, vai se formando a ciéncia moderna. E a Historia da Gién- cia? Que ligagao ela tem com tudo isso? Como ela surge no meio desse emaranhado de opgées? Que uso fazem dela antigos e modernos para justificar sua opgao? Normalmente, quando se fala de antigos e modemos, logo se pensa em exemplos da histria da astronomia e da mecanica e em nomes revoluciondrios como Kepler, Galileu e Newton. Todavia, talvez seja uma boa ocasiao para co- megar por um exemplo menos tradicional e possivelmente até mais adequado para se discutir a questao de antigos e modemos: a medicina do século XVI, quando surge Para- celso, uma figura das mais polémicas do periodo. Aconte- ce que a medicina na época de Paracelso é um dos exem- plos mais complicados da Hist6ria da Ciéncia. Mas, talvez alé por isso mesmo, também-um-dos-mais-ricos para falar sobre a Histéria da Ciéncia (ou pelo menos sobre como ela jd era usada naquele tempo). Trata-se de um exemplo com- plicado na Histéria da Ciéncia porque, desde os principios da medicina classica, discutia-se se ela era uma técnica (preocupada com as formas de curar) ou uma ciéncia (preo- cupada em teorias sobre a doenga e sua ligagao com outras teorias). Mais complicado ainda porque poucas areas do co- HISTORIA DA GIENGA 2 nhecimento haviam avancado e se intrometido tanto no ter- ritério das outras ciéncias. Num proéésso que’comegou mui- tos séculos antes de Paraceiso, saberes farmacéulicos, alquimicos, astrolégicos/astronémicos (que eram equivalen- tes), eaté mineraldgicos e meteoroldgicos, cresciam a som- bra da medicina e pelas maos de médicos. Essa medicina exagerada — cheia de conhecimentos que, em principio, nao deveriam fazer parte, diretamente, de sua area de estudos — formava um leque de tendéncias as mais variadas. No século XVI, essa espécie de ciéncia feita de ciéncias nos oferece mostras que vao do caminho extremamente mais antigo (ligado a dois mil anos de tradi- cao médica e filosdfica) até o radicalmente mais modemo (que dizia nao precisar dessa tradigao para coisa alguma). Este ultimo seria um caso extremo. E parece ter sido 0 de Theophrastus Bombastus von Hohenheim alatinado autoralmente Philippus Aureolus Theaphrastus Paracelsus (c. 1490-1541), ou simplesmente Paracelso, como gostava de ser chamado aquele que rejeitou toda tradi¢ao classica conhecida pelos europeus em medicina. Mas antes de qual- quer consideragao precipitada sobre como a Historia da Ciéncia entrou ou deixou de entrar neste caso, sera neces- ———~girio formar um rapido quatro de como cada um dos ca- sos extremos (Paracelso versus dois mil anos de tradigao) construiu sua medicina. Pausa para contar uma historia sauddvel Costuma-se dizer que 2 medicina considerada classica nasceu entre os gregos, mais ou menos, entre os séciiios ANA MARIA-ALFONSO-GOLDFARB- VI @ V antes de nossa era. Teria ‘sido Hipocrates (c. 460 aC. -?) um dos seus principais iniciadores e, Séculos de- pois, com varias transformagGes e mudangas, éla Passaria ao Império Romano, influenciando grandes obras médicas como a de Galeno (c. 130-201 d.C.). Também para os islamicos, na época de ouro da sua cultura, essa forma de medicina teve a maior importancia, gerando trabalhos como 0 de Avicena (980-1037 d.C.), Cuja traducao do drabe para 0 latim era ainda usada Pelos europeus na época de Paracelso (uma época em que SO Os textos originais gre- gos ¢ latinos pareciam ter valor. )- Claro que essa longa tradico, que havia durado quase dois ‘mil anos, teve muitos oponentes e intimeras versées, variando de época para época, de cultura para cultura 8, aS vezes, de autor para autor. Mas, basicamente, ensinava que a satide era produto do equilibrio entre os quatro humo- res ou fluidos do corpo: Sangue, catarro, bilis amarela e ne- gra. Cada um desses humores ra 0 equivalente, no orga- nismo, aos quatro principios materiais que — de acordo com os gregos — formavam o mundo: Agua, fogo e terra. Os humores, assim como os principios materiais, possufam qualidades (quente, fria, seca e imida) combina. das duas aduas:+0- ‘Sangue seria quente e umido comoo (1) AS qualidades eram oposias duas @ duas: quente a fio, seco a timid; Por isso nenhum principio material e nenhum humor era quente e frio ou ‘seco e Umido ao mesma tempo. Nos textos hipocrdticos, Por exemplo, cada humor em apenas uma qualifade, enquanto Galeno usa ume combinagao. {2o comploxa de qualidades que chega a falar de ‘Sangue com ccaracteris- ticas biliaticas ou fleumdticas (de catarro)”. 0. €squema aqui apresentado é ne 5 Ser apenas para que possam ser entendidas as questées tent’ mais gerais do problema. © Que é stéaia ‘oa 'Cencia " i; 0 Catarro, frio e umido como a agua; a bilis amarela, quente e seca como o fogo; e a bilis negra, fria e seca como a terra. O aumento ou diminuigao de uma qualidade em relagao a outra num humor, Produzindo um desequilibrio, gerava a doenca. Como a doenca era um desequilibrio interno do or ganismo, acreditava-se que era da natureza do Préprio Organismo combater tal desequilibrio. Por exemplo, uma ré- pida febre ou evacuacao que queimasse os excessos de um humor, ou liquidos e alimentos que repusessem as faltas. Cada organismo tinha necessidades prdprias, inclusive quanto a idade, ao sexo e A constituigao, Para recuperagéo @ manutengao do equilibrio. Por isso, recomendava-se die- ta, exercicio e Condi¢ées climaticas e de sono individuali- Zadas para auxiliar 9 Processo de cura. Sé em ultimo caso © médico deveria intervir, forgando a eliminagao de exces- SOS com um purgante, uma sangria (flebotomia) ou minis- trando remédios contrarios & manifestagao da doenga. Por exemplo, uma doenga de manifestagao quente era sintoma de falta de frio no organismo; portanto, o remédio deveria ser de natureza fria. Da mesma forma, no caso de doen- GaS que se manifestam Uimidas, os remédios deveriam le- Var a secura do organismo. Quase sempre esses remédios eram feitos de ervas e costumavam nao ser muito fortes, pois, como ja lissemos, 0 objetivo era apenas auxiliar o organismo a encontrar seu Proprio equilibrio. Tal foi a medicina humoral (que deriva da Palavra humor), que usava 0 método dos contrarios (remé- dios de qualidades contrarias @ manifestacao da doenga) para repot o equilibrio e a satide do organismo. Pois bem, Paracelso rejeitou essa longa historia. Alias, fez questo de nunca conta-la, chegando mesmo a quei- mar livros de Galeno e Avicena em praga publica para pro- var que nao precisava de seus ensinamentos nem de sua tradigao. Para ele, a sabedoria seria encontrada apenas no livro sagrado (a Biblia) e no Jivro da natureza (com a obser- vagao direta e atenta desta). Segundo Paracelso, qualquer curandeiro deveria saber mais sobre as doengas que ocorriam em sua regido do que os grandes doutores do passado, tao afastados no tempo @ no espaco dessas realidades. Afinal, nada estava escrito nas paginas dos cldssicos sobre os males que assolavam a Europa naquele periodo, como a sifilis (que parecia entrar pela rota das indias Ocidentais) ou os ferimentos causados Por pélvora (que se tornaram comuns nos campos de bata- Iha depois da invengdo de armas portateis no século XV). Mais ainda Paracelso nao acreditava que a pouca eficién- cia da medicina classica na cura das doengas fosse sé um problema de método antiquado. A propria nogdo de doenga, pensava ele, estaria errada nesses textos. Nao seria o de- sequilibrio do organismo a causa da doenga, mas uma agressao extema, uma espécie de envenenamento que 0 corpo nao conseguia combater. E, para um envenenamen- to, nada melhor que um antidoto: uma pequena dose do proprio veneno. A idéia era dar ao corpo as mesmas armas do mal que lhe atacava, para que ele tivesse condic¢ao de vencer 0 combate. Portanto, iguais curam iguais — este era 0 principio da medicina pepular usada pelos curandeiros. O.QUE € HISTORIA DA CIENCIA oe Paracelso acreditava que esta era a forma correta de com- bater e curar as doengas, e nao a maneira da medicina humoral, na qual a cura viria por meio dos contrérios. ~Remédios fortes, com base em minerais (que eram con- siderados pelos médicos da época como venenos que deviam ser evitados), foram usados por Paracelso. Algumas. vezes o doente ficava ainda mais envenenado e mortia... mas, em outras ocasides, doentes que pareciam incuraveis experimentavam melhora... e até cura. Doentes com sifilis, por exemplo, eram tratados com mercurio, uma das subs- tancias mais tarde usada no remédio que hoje cura esse mal. Retomando o fio da meada Ficou facil, por exemplo, perceber como os _antigos (aqueles ligados a medicina classica de dois mil anos) de- viam usar a histéria dessa tradigao para justificar suas idéias. Ainda mais no século XVI, quando uma enorme quantidade das obras classicas haviam sido traduzidas (tra- dugdes das tradugdes arabes ja faziam parte dos estudos universitarios desde os séculos XI! e XIll), e seu estudo (Bp zia-parte-do curriculo das escolas de medicina: — Grandes trabalhos em anatomia foram feitos nesse sé- culo, usando a dissecagao de cadaveres, mas seguindo idéias da medicina classica para se justificar. Entre esses trabalhos, talvez o mais notavel seja o tratado De fabrica humani corporis (1543), feito por Andreas Vesalius (1514- 1564), médico belga que estudou em Paris ¢ lecionou em Padua, figura representativa do periodo. Nas belissimas ms MARIA-ALFONSO-GOLDFARB * 0 Que E tasTORA DaA.CENCIA 5 ilustragdes de seu De fabrica, Vesalius Corrige alguns dos Principais erros em anatomia que haviam chegado até sua €poca. Por €xemplo, a falta de uma costela no Sexo mas- culino (gerada pela idéia de que Ad&o perdera uma coste- la) ou a presenga de cinco Idbulos no figado. humano (ge- rada a partir das dissecagées de Galeno em figados de porco). Apesar disso, Vesalius Continuaria sendo um antigo (na nossa diviséo entre antigos e modemos). Sua maior ambigao no De fabrica era atualizar e aprimorar as obras de mestre Galeno. Assim, as idéias do grande médico do comego de nossa era nao sao criticadas mas Corrigidas por Vesalius. Nas Paginas do De fabrica @sas idéias sd 9 mo- delo sobre o qual Vesalius justifica seus avangos (e até ‘seus equivocos) em relagéo a uma tradiggao médica milenar. Nessa mesma linha, um exemplo ainda mais explicito 6 0 de Georgius Agricola (1494-1555) em seu De re Metallica, Publicado um ano apés a sua morte. Agricola (alids, uma tradugao latina, conforme a moda da 6poca, de seu verda- deiro sobrenome; Bauer, ou seja, agr icultor/camponés) fez estudos filoséficos, €m terras germanicas.e médicos, nas ita- lianas, fixando-se depois na regiao de Freiberg, entao um dos distritos mineiros mais importantes da Europa central, Ali, em-meio-a ‘Sua-pratica-médica,-Agricola aprendeu os — Segredos dos trabalhos nas minas. E digo segredos porque, até entao, pouco havia sido escrito ou publicado a esse res- Peito. A nao ser, 6 claro, que consideremos os trabalhos dos grandes classicos que, seguindo a orientacao da obra de Aristoteles, costumavam dedicar uma parte de suas teo- rias sobre a matéria Para explicar a formago dos minerais © do que chamavam matéria subterrénea, SSS Agricola, de fato, leva em consideragao esses trabalhos. E, na Seqiiéncia de seus varios livros sobre o tema, que culmina com De re metallica, ele parte dessa tradic&o teéri- ca, conta mesmo um Pouco de sua histéria, Para depois introduzir Novidades. Essas novidades (ou Segredos dos mineiros, que 0 publico em geral nao conhecia) eram as formas de encontrar ¢ trabalhar as minas (incluindo méto- dos, instrumentos.¢ gerenciamento), assim como separa- 040 e Purificacao dos metais e até as doengas dos minei- fos. Algumas obras de Agricola falam também das aguas e dos animais Subterraneos, Mas em todas, de alguma ma- Neira, seu didlogo com a Cultura dos classicos esta presen- te. E como seas Novidades ganhassem mais Peso quando morar com observacées @ Praticas novas. Ahistoria dessa ciéncia, sempre que contada ou mencio- Nada por eles, justificaria suas Novas idéias. As novidades Vesalius e Agricola sao, Portanto, exemplos de antigos Porque retomaram caminho iniciado pelos classicos. Mas, como a maioria dos antigos, eles nao foram tao antigos ssa vontade de atualizar 6 corrigir os classicos era, por si mesma, algo de novo no horizonte europeu! ANA MARIA ALFONSO-GOLDFARB Ahistéria da’ciéncia, do conhecimento e davilosofia dos classicos ndo haviam servido, na Europa crista, para falar ou justificar a transformagao de coisa alguma no conhe- cimento: eram a prépria ciéncia, o proprio conhecimento. Pausa para contar uma histéria as avessas Os renascentistas nao foram os primeiros a estudar os classicos. Muito embora eles acreditassem que eram 0S primeiros, apés dez séculos, a entender de verdade essa cultura e, portanto, os unicos que podiam fazer com que ela renascesse. Até inventaram o termo Idade Média (tempo intermedidrio ou tempo de espera) para dar nome, de forma meio depreciativa, a esses mil anos que eles consideravam inuteis em termos de conhecimento e que se localizava entre a Juz da cultura greco-romana e a /uz de sua propria cultura. Isto porque os renascentistas consideravam que 0S bizantinos tinham apenas arquivado os cldssicos; 0S arabes haviam corrompido suas idéias; e 0s europeus medievais mal entendido seus textos (pois usavam quase sempre tra- dugdes) e amarrado suas idéias com preceitos religiosos... (o tempo revelou outra historia sobre a Idade Média que vale a pena conferir). enae ar Mas, conforme tive oportunidade de explicar anterior- mente (p. 25), os medievais europeus ja haviam estudado 0s cldssicos e, pelo menos desde o século XI, um bom vo- lume deles. Acontece que a cultura medieval européia foi, quase sempre, uma cultura crista, organizada pela Igreja Catélica. Era, portanto, uma cultura religiosa guiada pelo ___0.QUE E HSTOFIA DA CIENCIA 29 texto biblico em que estariam as verdades que deveriam ser seguidas como leis. Qualquer idéia, qualquer teoria que ti- vesse sido produzida fora dessa realidade deveria ser ana- lisada cuidadosamente para ver se nao entrava em conflito com 0 texto sagrado ou pelo menos deveria ser adaptada aele. Os cléssicos vindos de uma cultura paga tinham que passar por uma espécie de selegao e encaixe. Verdadeiras maravilhas e malabarismos foram praticados pelos medievais para cristianizar vatios desses trabalhos. Desta forma, Aristételes, o grande sabio grego do século IV a.C., sofreu uma das obras de engenharia de cristiani- zagéo das mais complicadas. A Terra que ele considerava ‘o centro do universo (alias como a maioria dos gregos) foi associada a idéia biblica de que o ser humano era o centro da criagao. Dai se concluiu que ela devia ser o centro do universo, como dissera Aristételes. Claro que sempre so- bravam alguns problemas. Por exemplo, Aristételes nao dera data para o comego do mundo (alias, nao estava preo- cupado com nenhum tipo de cronologia sobre a formagao do mundo, mas no porque desse processo), enquanto para os cristdos a cronologia da criagao era uma questao biblica fundamental. Mesmo assim, Aristoteles fez enorme suces- so entre os medievais. Com o tempo acabou por ser cha- mado de O Fildsofo, e seus textos considerados tao dentro das normas que quase eram a propria lei. Geralmente em menor escala (porque a obra aristotélica conhecida pelos medievais teve especiais privilégios) a questao da cristianizagdo dos classicos girou nesse eixo. Os fatos novos eram comparados a exemplcs dos textos classicos (perdendo assim seu cardter de Novidade), que Por sua vez eram comparados-a exemplos. biblicos que tam- bém eram verdades eternas e intocaveis. Dai que, se toda a verdade ja estava na Biblia € os textos classicos serviam apenas para torna-la mais evidente e compreensivel aos comuns moriais, chegamos ao ponto de Partida. Esses textos nao eram vistos como um Processo de co- nhecimento com sua histéria de transformagdes e Possiveis evolugdes: eles eram o proprio conhecimento, a propria ciénia. Suas paginas, escritas ha centenas de anos, eram avidamente consultadas a procura de respostas para pro- blemas da Gpoca. Nas universidades, eram estudados e debatidos. os sistemas de verdades dessas obras, mais do que suas questoes especificas, e os curriculos aumentavam com teorias classicas em geral. Em campos como a medi- cina, em que, além do mais, havia também que se traba- lhar os sistemas das grandes autoridades médicas do pas- Sado, esses aumentos eram um exagero. Os estudantes saiam versados numa verdadeira ciéncia das ciéncias, eram Mais fil6sofos do que clinicos e (como a maioria no perio- do) mais antigos do que os. Préprios antigos. Claro que esta 6 uma espécie de caricatura do mMedievo cristao, quando-algumas ‘das mais belas ‘Obras do pensa- mento humano foram feitas, nem sempre sob a ditadura dos classicos. Por exemplo, no século XIV, saltando as teo- fias aristotélicas (e até resolvendo suas questdes problemg- ticas), um grupo de pensadores criou teses bastante origi- nais sobre como o movimento Podia continuar mesmo ‘tendo desaparecido a causa de sua origem (a chamada teoria do $e "0 QUE E mTOR Da Gna ee impeto). Assim, no caso do langamento de uma flecha (algo Pouco Claro em Aristételes), © arqueiro teria imprimido cer- to impeto que iria se gastando até acabar. O que explicaria @ gradual diminuigao de Movimento € a queda da flecha, Esta teoria e Varias outras nesse século criaram um movi- $6 comegar 0 Movimento renascentista e, num Passe de magica, tudo Mudou. Os primeiros renascentistas (também chamados humanistas) costumavam pensar que oO modelo greco-romano era Perfeito, e que devia ser imita- do tal © qual. Nada havia a Corrigir ou acrescentar se a tra- dugdo dos originais fosse Perfeita. Alguns estudiosos dizem que teria corrido um deslocamento das verdades, do pla- — sSNA EON GOLOEARB.— -=———— des foi mudando esse enfoque. A medida que mais e mais textos antigos eram descobertos e traduzidos, foram cres- cendo as evidéncias de que, talvez, as teorias ali presen- tes nao fossem tao perfeitas assim. Na maioria das vezes, mesmo de posse de originais completos e bem traduzidos, nao era facil nem direto 0 uso dessas teorias para enten- der as quest6es de uma Europa a cada dia mais co! mplica- da, Talvez fosse o momento de virar a Historia as avessas em vez de corrigir as antigas teorias... Retomando o fio da meada ‘A medicina, uma das areas mais afetadas por essas complicagdes — novas doengas, novas condigdes para 0 corpo humano até de nutrigdo, de trabalho —, foi também uma das primeiras em que a necessidade de repensar as. velhas teorias ira tomando forma. Até porque pOucos deviam estar mais bem equipadas para esse trabalho do que os médicos: /ntimos dos classicos & curiosos de areas alheias havia séculos e séculos! Dai que Vesalius e Agricola fossem tao bons exemplos de antigos que estao comegan- do.ase afastar da tradicao. pers Corrigindo ¢ atualizando essa tradigao, estao dizendo que ela nao esta pronta e acabada desde a época dos clas- sicos. Mas que os conhecimentos ali contidos podem so- frer um processo, podem ser complementados, podem se transformar com o tempo; tem uma historia. Una historia que se move, aceita € justifica novas descobertas. Enfim, esses ati gos nem tao antigos do século XVI, ao pensarem + _0-QUEE HISTORIA DA CIENCIA 3 assim, ajudaram a criar uma das primeiras formas moder- nas de Historia da Ciéncia conhecida pela Europa crista. Agora, uma coisa era corrigir e outra bem diferente era contestar. E a medicina, como protetora da ciéncia que continuava sendo no século XVI, temia os excessos. Claro que no meio desse temor havia as autoridades religiosas (que a essa altura ndo eram sé catélicas) até civis. Pois, zelosas de seu poder, elas estavam sempre as voltas com qualquer novidade estranha que pudesse por a perder a alma de seus fiéis ou a cabega de seus pagadores de im- postos.. E claro também que uma parte dessa vontade de justifi- car as novas idéias esta relacionada ao temor de ir contra essas autoridades. Mas por sobre todo esse panorama complicado havia uma espécie de rede do pensamento. ‘Uma forma de olhar e entender o mundo e a natureza que influia tanto sobre os reis é os bispos Como sobre os médi- cos e os tecelées. E essa rede do pensamento que, como ja foi visto, vinha de séculos e séculos na Europa crista. estava comecando a se romper em muitos pontos. Sere sobre esse processo de substituigao e reforma da velha rede por outras maneiras de pensar a natureza que vamos falar (e que ja temos falado). Porque sera neste processo que irdo tomar forma as varias perspectivas da Historia da Ciéncia. Quanto aos problemas religiosos, politicos e sdcio-eco- némicos que, sem duvida, sao muito volumosos e compli- cados nesse século XVI europeu, sugiro, até para que seja mais bem entendida sua importancia, que vocé consulte a enorme bibliografia sobre esse periodo, feita nos dias de ee a a hoje por excelentes especialistas. Continuaremos, como ja temos feito com outros periodos, introduzindo aqui é ali al- gumas explicagdes rapidas desses problemas quando eles forem diretamente ligados ao nosso tema. Pois bém, a medicina do século XVI eraa Giéncia da vida eda morte, e ha muito tempo estabelecida como um dos poderes, um pdlo de conhecimento autorizado na Europa. Tinha, portanto, esse pdlo seus préprios mecanismos de defesa contra os excessas no conhecimento. Assim, por exemplo, um certo Dr. John Caius, humanista de algum prestigio na Inglaterra e por isso presidente do Colégio de Médicos ingleses, ordenou que fosse Preso um jovem dou- tor de Oxford. E isto porque haviam Ihe informado. que 0 tal jovem contestava a obra de Galeno, apontando varios erros que a tornariam invalida. Dessa prisdo ele sé sairia quando fizesse uma retratagao publica reconhecendo os excessos que havia.cometido. Nada de excessos portanto... A medi- cina nao estava preparada para mudangas radicais. Dai, como estariam os modernos nesse quadro? Ainda mais se 0 modemo fosse um caso extremo como Para- celso, que, além de arrasar o conhecimento dos classicos (chegando a queimar os livros destes), propunha sua intei- fa substituigao pela estranhissima-filosofia_quimica (uma forma de conhecimento que atingiria nado sé a medicina mas todas as ciéncias)... Seja ld pelo que tenha sido — ¢ até hoje nao se sabe qual desses dois fatos escandalizou mais © meio universitario —, 0 caso é que ele acabou expulso e execrado. Nao havia, entéo, uma esperanca para os mo- demos? A curto prazo nao, mas a Historia se encarregou de mostrar que eles acabaram levando a melhor. —O.QUEEHSTORA OA ciENcK Certamente ue para conseguir isso os modermos tive- ram que Se justificar, Convencer-aos demais (e as vezesa pen de Historia da Ciéncia. E natural, entretanto, que al guém Como Paracelso (aparentemente um modemo radi- cal) No julgasse. Necessario introduzir fnenhum tipo de his- oe @ menos que sejam consideradas suas mengoes pou- CO honrosas aos Classicos para citar inutilidade e ignoran- [ANA MARIA ALFONSO. GOLDFARB classica por acreditar que outra tradi¢ao — con lerada na época ainda mais antiga — fosse a verdadeira: a biblica. : Oo Génese principalmente, dizia Paracelso, trazia mais verdades sobre a formacao da matéria do mundo e dos humanos, por obra de Deus, do que as teorias ditas pagas dos quatro elementos (agua, terra, fogo e ar) & dos quatro humores (Sangue, catarro, bilis amarela e negra). Agora, © mais interessante era que, depois de fazer muitos elogios aos conhecimentos da Biblia sobre os quais deveriam se pasear os Novos conhecimentos observados diretamente na natureza, de fato, o modelo seguido por ele foi outro. Paracelso usou de trés principios basicos: mercurio, en- xofre; sal (respectivamente, principios liquide, fogoso e so- jido ou espirito, alma € matéria) para explicar a natureza e o ser humano como um destilado desta. Acontece que a teoria do enxofre e mercurio era uma teoria criada pelos al- quimistas Arabes pelo menos desde’o século XK ou X para explicar os minerais. Além disso, Razes (também um famo- so alquimista e médico muguimano do século X) ja havia considerado os sais como da maior importancia, tendo fei- to um longo estudo destes. E, mais ainda, usava formulas com minerais na cura de seus pacientes, ajudando a criar aiatroquimica (quimica médica) que Paracelso dizia ter in- ventado... Para completar, foi Arnaldo de Villanova (i 235- 4311), nascido em Valéncia pouco depois dessa tegido ter sido conquistada dos arabes pelos cristaos espanhdis & muito antes de Paracelso, quem defendera e comecara a fazer uso dos principios da chamada medicina popular (iguais curam iguais). 0.qUe E HSTORIA DA CIENCIA 7 Com tudo isto, Paracelso nao s6 esta seguindo uma an- tiga corrente alquimica e médica, como, também, perpetu- ando um velho habito da medicina: ampliar seu campo tra- zendo para si outras areas do conhecimento. Pois sera partindo da alquimia e tomando empréstimos da mineralo- gia, da astrologia etc. que Paracelso iré construir sua visao de natureza, ser humano e satide. Nao deixou, entretanto, de ser interessante a nova obra de nosso moderno nem tao moderno. Ja que ele acabaria remodelando e até dando uma nova perspectiva a conhecimentos que, por serem quase todos medievais, e principalmente arabes, teriam de- saparecido em siléncio, engolidos pelo rio renascentista. De qualquer forma, esta historia nao foi contada por Paracelso. Mas sera, em parte, recuperada por alguns de seus futuros seguidores, para justificar (exatamente como faziam na mesma época 0s antigos) as transformagdes que eles con- sideravam estar introduzindo numa antiga tradi¢ao alqui- mica e médica que partira do lendario Hermes Trismegisto e do Moisés biblico (e nao de Aristoteles nem de Galeno). Como isso nao vai ter nenhuma influéncia em Paracelso (pois seus seguidores surgem décadas apds sua morte), é preferivel continuar pensando nele como um moderno, ain- da que sorrateiramente antigo. Na medicina, provavelmente pela riqueza de temas que envolvia e pela complexidade de seu objeto de estudo (asatide), 0 debate antigos versus modemos continuou ani- mado por muito tempo. Cada vez mais uns é outros se con- fundiam, tornando também cada vez mais dificil distingui- los pois, de lado a lado, chegam contribuigées novas e justificagdes antigas (embora diferentes). Tanto que, em 1631, num livro sobre aguas minerais, tema na época do maior interesse tanto para a quimica como Para a medicina, 9 médico inglés Edward Jorden fica a meio caminho, ape- sar de sua declarada intencao de Pertencer aos modernos. Assim, faz Criticas decididas aos ¢lassicos, adverte sobre a necessidade de se manter uma Posigao independente a es- tes e apresenta resultados verdadeiramente modernos de suas andlises sobre as aguas. Mas, ao mesmo tempo, nado. consegue deixar de citar pesadamente og textos cldssicos € acaba reconhecendo que, errados ou certos, os antigos abriram muitos caminhos sem os quais no se teria chega- doa ci la daquele periodo. er De qualquer forma, ao longo dos séculos Xvi e XVII, essa situag&o estara presente em quase todos os campos do conhecimento. Talvez com exemplos menos ricos em nuances do que a'medicina; mas em: algumas dreas de ma- Neira mais radical. Assim, na astronomia, em que as cartas das movimentos celestes serviam Para fazer desde o mapa astral de um doente ou de todo um reino até 0 calendario ou ainda a rota maritima dos viajantes, a Situagao vai se —_lornar aguda. Ai existe uma quebra radical entre antigos (no £280, 0S que Seguiam a linha tradicional da astronomia las- sica) e modernos. A questo era a Seguinte: Claudio Ptolo- meu, um helénico do século Il d.C., Partindo de alguns dos sistemas astronémicos da antiga Grécia, aprimorou-os e fez ele também um belissimo sistema para explicar os movi- mentos dos céus que, com Pequenas modificacdes, era ainda usado no século XVI. Movedor), um dos Preceitos de Aristételes que, como vimos, era um dos Principais representantes do pensamento gre- 90 antigo. 0 QUE E HISTORIA DATCIENCIN = 44 dicina, estava-se trabalhando com um sistema matematica- mente calculado, e muito bem calculado, que quase nao admitia corregdes. Nao havia muitas possibilidaces para que 0s antigos fizessem aos poucos corregdes & mudangas sem amassar totalmente Ptolomeu, Aristételes e os preceitos teligiosos... Dai que aqueles que tentaram, acabaram mudando com- pletamente:o sistema do mundo. Foi um trabalho de mo- demos, de quebra quase total com idéias anteriores. E tal- vez por isso seja © campo no qual historicamente mais se buscou os herdis revolucionarios da ciéncia modema. © mais interessante de tudo isso ¢ que © movimento de ruptura Com Os antigos foi patrocinado pela teoria de um mais que antigo. Um superantigo que acabou se transfor- mando numa espécie de pai dos modermos. Seu nome era Nicolau Copémico (1473-1543), um contemporaneo de Pa- racelso. Fora um religioso polonés que havia estudado na Itdlia e tinha sido influenciado pelo humanismo. E ficou tao encantado com essas idéias que acabou querendo corrigir o que ele considerava um erro de Ptolomeu em relacdo as verdadeiras idéias classicas. Ptolomeu explicava 0 zigueza- gue dos planetas por um esquema sofisticado em que a 6rbi- ta continuava em movimento circular perfeito, mas o planeta nao (cle fazia uma espécie de parafuso em tomo da orbita). Pois bem, Copémico considerava isso uma corrup¢ao dos principios classics. E saiu procurando uma maneira de fa- zer com que o préprio planeta tivésse movimento circular, portanto, que esse movimento coincidisse com 0 da sua 6r- bita. A opgao foi abandonar 0 modelo geocéntrico (cuin a Terra no centro), que ja havia sido explorado quase ao ma- ximo pelo sistema de Ptolomeu. Provavelmente, Copémico encontrou sua inspiracao em textos de outro ou outros clas- sicos (de Aristarco de Samos, um grego do século Il a.C., ou textos posteriores falando sobre sua teoria), em que se dizia que © Sol (e nao aTerra) era 0 centro do universo. Logo, se Terra era mais um dos planetas, ela deveria gi- rar em torno do Sol, ou seja, estava em movimento. Esse modelo de cosmos heliocéntrico (com o Sol no cen- tro) onde a Terra se movimentava — que até hoje 6 o mo- delo de nosso sistema planetario, embora nao mais do uni- verso — 4 nao fora aceito na Grécia antiga. E, na época de Copérnico, foi um choque que provocou muita polémica e fezcom que a maioria dos que quisessem falar de novi- dades sobre este tema passassem ao lado dos modern Assim, Copémico, um superantigo, porque queria corrigir aqueles classicos que, no entender dele, nao haviam usa- do corretamente as normas classicas, acabou sendo um exemplo para OS modernos. Talvez fosse 0 caso de buscar outros clssicos que tivessem respeitado 0 verdadeiro co- nhecimento da Antiguidade. Um conhecimento mais puro, que partisse de verdades mais gerais, como as. matemati-. cas, e que pudessem em seguida ser aplicado, sem erro, sobre os fendmenos da naiureza. Desde’9 inicio do humanismo, muitos esludiosos haviam dado preferéncia a textos pouco explorados ou mesmo des- conhecidos dos cristéos medievais. Brilhavam com es- pecial destaque os que explicavam 0 universo a partir das inconfundiveis verdades matematicas ou mesmo do poder Ne "ANA MARIA ALFONSO-GOLDFARG $+ ee magico dos numeros..Os primeifos so seguidores de Pla. to, 0 grande geémetra grego, que apesar de ter sido mes- tre de Arist6teles, teve muitas teorias diferentes deste. Os segundos $40 sequidores de Pitagoras, sabio grego que teria vivido no século VI a.C. Entre os helénicos estas idéias muitas vezeS Se misturavam gerando 0 que se conhece por neoplatonis™mo e Neopitagorismo. Na virada do século XVI para 0 XVII, muitos julgavam que essa devia ser a solugao do Problema que Copérnico deixara como heranea. Era Preciso se afastar o mais possi- vel de classicos como Aristoteles o afins, e escolher outros classicos como guia: os grandes matematicos da Antigui- dade. Eram modernos daquele género ja conhecido nosso: nem tao modemos assim. Nessa lista estavam nomes como os de Galileu Galilej (1564-1642) e de Johannes Kepler (1571-1630). Eles foram um tipo de moderno muito especial. De fato, eles estudaram bastante os matematicos classicos e se esforgaram para provar que eram herdeiros dessa tradigao, justificando suas idéias a Partir dela. Galileu até usou a for- _ma de didlogo para escrever suas obras principais — um estilo platénico que influenciou muito Os humanistas. E Kepler passou anos tentando fazer caber as orbitas dos pla- netas do modelo heliocéntrico nos poligonos regulares (fi- guras de lados iguais) que os antigos matematicos diziam sero esqueleto do universo. Mas as novidades que cada um acabou descobrindo, na Verdade, terminaram por implodir esse esquema de corre- ee TOQUE E HISTORIX DA CieNcu Se 940 € acréscimo aos modelos classicos. Pois a questao toda ndo foi sé a de substituir a Terra pelo Sol. Uma vez Posta em movimento a Terra, e sendo ela um planeta como Os demais, criavam-se problemas de movimento no céu e Na terra que nenhum classico havia sequer sonhado. Afinal, por que nao caiamos da Terra se ela se movia? De que anguto estavamos enxergando 0 céu, qual nosso Ponto de referéncia? Participariamos do movimento perfei- to do céu aqui na Terra? Ou seria 0 movimento do céu me- NOS perfeito do que se havia acreditado? E se fosse assim © que justificaria seu eterno Movimento? Nao seriam, entao, OS Céus feitos da mesma matéria imperfeita e sujeita as mesmas mudangas que a Terra? Para responder a essas Perguntas que implicavam igualar matéria e Movimento na terra e no céu, foram surgindo novas leis da fisica, cada vez mais precisas. Até chegar & mecdnica de Sir Isaac Newton (1642-1727), em que as condig6es para essa igualdade fo- fam criadas matematicamente. Como um pano de fundo Palido, cada vez mais desbota- do e distante, as historias dos matematicos classicos foram Sendo contadas, mais como uma maneira de exibir cultura, € Menos para justificar a linhagem antiga a que pertencem aS Novas idéias. Estudiosos como Galileu ou Kepler foram, Portanto, 0 inicio de uma virada em que as modernos fo- Fam se tornando cada dia mais modemos. Eo principio do fim de uma Histéria da Ciéncia que ajudou a justificar a pré- pria ciéncia. A Igreja, um dos guardides da antiga visdo da natureza Fo sonnet e do mundo, vai fazendo entre os séculos XVI e XVII uma espécie de jogo duplo, as vezes freando, as vez~s toleran- do (ou até incentivando) alguns campos da ciéncia. Por exemplo, enquanto se discutia acaloradamente » heliocen- trismo na Europa, e varios tiveram que responder a duros processos diante das autoridades da Igreja, esse sistema era ensinado pelos jesuitas missiondrios no Extremo Orien- te como prova da superioridade do pensamento ocidental! Enquanto isso, o protestantismo se firmava e re! conhecia na ciéncia um dos melhores aliados possiveis para garantir seu futuro. A ciéncia era, enfim, um projeto com futuro, e nao havia-grande-necessidade de historias para justificar sua existéncia. $6 resta dizer uma Ultima coisa, antes de entrar na nova fase da Histéria da Ciéncia. Na introdugao foi colocada a estreita ligagao entre a filosofia e a nova ciéncia. Alias, uma pretendia ser a continuagao da outra, ja que a maioria dos grandes classicos era fildsofa. Assim também a histéria que foi feita nesse periodo para justificar a ciéncia que nascia era bem pouco histérica: foi puro exercicio de filosofia. Pois nada_mais filosfico do que comparar teorias para ver como uma deriva, ou derivou, da outra. E nada menos histérico do que contar uma histéria sem tempo, montada para dar aimpress&o que um renascentista do século XV poderia ser © vizinho do lado de um grego do século V a.C. Na proxi- ma etapa, mais que nunca, a Historia da Ciéncia foi um apéndice da filosofia e da propria ciéncia, e nao uma das areas da Historia. © QUE € HISTORIA DA OHENCIA 45 O diploma de honri ao mérito: uma hist6ria para glorificar a ciéncia-rainha Adivisao entre antigos e modernos foi se tornando cada vez mais confusa ao longo do século XVII, até praticamen- te desaparecer. A ciéncia nao precisava de grandes justifi- cativas e, quando era.atacada, sua resposta mirava o futu- ro e nao o passado. Nem todas as teorias dos entao ‘chamados fildsofos naturais eram absolutamente modermas, mas a maioria indicava uma abertura para a modernidade. Se o Renascimento fora a época dos mecenas das artes (aqueles que ajudavam dando dinheiro e protecao aos ar- tistas), agora era a época dos mecenas das ciéncias. Nao em todos os lugares, nem em todos os momentos, mas auxiliar a nova filosofia da natureza comecou a dar presti- gio. Ela havia se tornado a promessa de uma nova era para a humanidade. Se os antigos espagos dedicados ao estu- do, inclusive as universidades, muitas vezes resistiam a seu avango, criavam-se mecanismos alternativos para continuar o trabalho. Essa foi a época em que a Europa viu nascer grupos, ___academias.e-sociedades onde -estava_sendo-gerada,-de fato, a ciéncia moderna. Foi crescendo, entao, a necessi- dade de atrair adeptos e conseguir porta-vozes, propagan- distas que convencessem a sociedade a ter simpatia pela nova causa da ciéncia e Ihe dessem apoio. Ficaram famo- sas jA desde 0 século XV! até parte do século XVIII as de- monstragdes puiblicas de experimentos cientificos curiosos ou instigantes e até mesmo polémicos. Assim, embora nao 848 9 ANA MARIA ALFONSO-GOLDFARE Sees Meee, 0. GUE E histOAA OX clenc-— ‘ tenha sido verdade que Galileu subiu a torre de Pisa para jogar, diante de meia cidade, uma bola de ferro e outra de igual peso, de algodao, essa lenda foi criada gragas & moda cientifica da época, William Gilbert (1540-1603), médico e naturalista inglés, famoso por seus trabalhos sobre magnetismo, teria sido um dos primeiros nessa espécie de teatro Cientifico, ao fazer demonstragoes em praca ptiblica tentando Provar a rotacdo da Terra. Ja no século XVII, o matematico francés Blaise Pascal (1623-1662) foi um dos varios a @presentar um gran- de show de ciéncia ao puiblico: subiu e desceu uma colina, com uma grande massa de curiosos atras dele, para medir a pressao atmosférica com o bardmetro recém-descoberto. Havia uma disputa sobre a invencéio do barémetro entre ita- lianos e franceses, e o evento em que Pascal mostraria o aparelho foi divulgado pelos quatro cantos de Paris. Como forma de divulgagao, também foram surgindo obras escritas numa linguagem mais facil Para 0 pliblico, m que as maravilhas da nova ciéncia eram apresentadas. Eram textos que tanto padiam tratar de temas astronémi- Cos quanto médicos. A populagao estava igualmente inte- -fessada em_saber sobre a Lua, que agora se dizia ser um satélite da Terra. Ou sobre as novas idéias a respeito do sangue circulando no corpo. Existia uma Predilecao espe- cial pela paraferndlia de maquinas e equipamentos que es- tava sendo inventada ou aprimorada pelos fildsofos natu- rais. Embora houvesse muita ignorancia e analfabetismo, isso nao diminuia a curiosidade pelos conhecimentos que Prometiam virar 0 mundo de Ponta-cabega. Assim, em alguns lugares como a Inglaterra, formavam- Se grupos para que, depois do trabalho, a Pessoa culta da Comunidade, muitas vezes o professor ou o farmacéutico, lesse trechos dessas obras, como quem 16 um conto de fadas para Griangas antes de dormir. Com 0 tempo, textos especiais para pessoas de Certa cultura mas que nada sou- bessem da nova ciéncia foram tamanho sucesso que aca- baram criando Obras para setores especificos desse publi- Co, tais como: ciéncia Para damas; ciéncia para nobres ciéncia para artesaos etc... Criou-se.o habito de oferecer aulas publicas regulares e, Na Franca, onde elas foram muito concorridas, tornou-se chique assistir a essas aulas. Sem duvida, a educagao era uma das bandeiras da nova ciéncia e uma das suas me- thores formas de Propaganda. Entre os filésofos naturais havia muito empenho para que se mudasse o sistema de ensino. E, em vez do curricula cheio de textos classicos, eles pediam que as novas formas de conhecimento sobre @ Natureza fossem ensinadas, o que demorou na Maioria das universidades até 0 século XIX. Acontece que essas novas formas de conhecimento ain- daes' Jam sendo muito debati 'S pelos filésofos naturais € precisavam ser justificadas com uma historia do futuro e nao com uma histéria do Passado como se fez durante muito tempo. E a Historia da Ciéncia foi se transformando numa mistura de ficgao cientifica (as maravilhas do futuro) com as crénicas ou relatérios do que estava sendo feito na Nova ciéncia (as maravilhas do Presente). Essa espécie de hist6ria com as cosias viradas para o passado Pode pare-

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