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192 C.M.F. Penido. A HabilitagGo de um Sujeito para as Construgdes do Caso Clinico e do Projeto Terapéutico' Enabling the Subject fo the Building of Clinical Case and Therapeutic Project Claudia Maria Filgueiras Penido? Prefeitura Municipal de Santa Luzia, Santa Luzia, Brasil Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil Universidade de tana, Itatna, Brasil Universidade Vale do Rio Verde-UNINCOR/BH, Belo Horizonte, Brasil Resumo "Est elato de experincia abords os esforgos prliminares para se construe 0 caso clinico €o projcto terapéutica de lum sujcito - empreitada que disparow a articulac ‘municipio mineito de médio porte. S de uma ampla rede de dispositives ¢ profissionais de um 0 analisadas as dficukdades encontradas para o exctccio do euidado integral gm sade prestado ao poctdor de soffimento mental © os meandros da tafefa de habitar um sujcita pars ns construgdes do caso clinico do projet teapéutico, Esta experiénca se wxmou paradigmitica porter inaugurado a uilizasdo de leitos psiquiitricos ao hospital geral municipal e possbilitado uma nova coniguracio da rede substiutiva a0 hospital psiquiftrico, Polaras are Sade Piblica Saide Mental, Reforma Psiquiitrca, Rabitacio Psicossocial, Picanilise Aplicada Abstract This paper deseribes a preliminary effort to construc a subject's clinical ease and propose a peninent therapeutic plan, The undertaking stated the articulation of a wide net of devices and professionals ata small town in the State (of Minas Gerais, Brasil. We analyze the obstaces for che exercise of integal health care towards people with mental dlisorders, as well as the task of making the subject able to contribute to the construction of the clinical ease and therapeutic project, This experience has become paradigmatic for mental health care policy, fo has started the use oof Psychiatric beds at the local General Hospital, and had brought about a new configuration of health eare substitute network to psychiatric hospitals Keywords: Public Health, Mental Health, Psychiatric Reform, Psychosocial Rehabilitation, \pplied Psychoanalysis © presente relato de experiéneia aborda um caso clinico acompanhado em um municipio ‘minciro de médio porte, 0 qual conta com uma rede substitutiva 20 hospital psiquitrico que inclu ‘um Cenito de Atencio Psicossocial (CAPS) Il, um Centro de 10 Psicossovial Infanto-juvenil (CAPSi), dois servigos sesidenciais terapéuticos equipes matriciais que dio apoio a 29 das 41 equipes de saiide da familia Aten Os CAPS tém acolhimento © permanéncia-dia de segunda a sexta, das 8 as 18 horas © contam com equipe multiprofissional. © apoio. matricial em saiide mental é ofertado por equipes compostas por psiquiatras quinzenalmente is unidades de saiide da Durante um periodo de duas horas, profissionais do apoio matricial e da equipe de satide da familia © psicdlogos, os quais vio diseutem casos © podem fazer atendimentos Amigo baseado no tbatho vencedor do I! Prémio José Cévar de Mores, a Secretaria Esiadual de Shik de Mins Geri (SES-MG), 2 Agrodesimentos: A. P. Costa, P, Calabria C. Ramos, R. Franc, J. Laps, M,C. Tata, R Frei eR. Carvalho, Contr: clasiapenidovel come ‘A Gerais: Revista interinstitucional de Psicologia, 2 (2). 192-198 A HabiltagGo de um Sujeite para as Construgdes do Caso Ciinico 193 visitas domiciliares conjuntos, de acordo com a ade, Encontra-se em fase de implantacio assistencial, prestada pelos prioridade é reunifio uma retaguarda psicélogos, para cua determinada coletivamente durante ‘matticial, Tais atendimentos sio feitos em horiios diferentes das reunides, na Unidade Basica de Saiide ow na propria casa do usuario, A equipe de trabalhadores de satide mental do municipio conta, atualmente, com 17 psiquiatras, um clinico geral, um pediatra, 19 psicdlogos, 4 terapeutas ocupacionais, 4 assistentes sociais, 4 cenfermeitos © 28 técnicos de enfermagem, além de ausiliares administrativos, gerentes. coordenadores técnicos para cada um dos dispositivos da rede. © caso, cujaconstrugio iremos relatar, mobilizou_a equipe do CAPS II € do apoio ‘matricial, além de outros dispositivos e atores da comunidade, A escolha de escrever sobre ele se deveu a trés motivos. Primeiramente, pelo fato de © identificarmos como um caso paradigmatico para a satide mental do municipio em questi considerindo que sua singularidade nos permiciu reflexes ¢ intervengdes fundamentais para a ampliacio de nossas possibilidades de cuidado em satide mental, prescindindo da hist6rica recorréncia a0 recurso manicomial, Em segundo lugar, pelos entraves encontrados para garantir a0 cidadio psicético 0 dircito a0 cuidado integral em saiide. E, finalmente, pela dificuldade —colocada_—_ as construges do caso © do projeto terapéutico, a qual demandou um trabalhoso clinica processo de habilitacio? do sujeito em questio. F importante mencionar ainda que a equipe de aide mental do municipio s6 muito recentemente veio a se ampliar € a melhor articular suas estratégias de trabalho gracas, em parte, a um inédito investimento politico, iniciado a partir de uma bem sucedida mobilizagio de alguns trabalhadores que requisitaram uma coordenacio éenica que pudesse negociar ¢ implantar um projeto de satide mental para o municipio. Assim, valorizamos cada passo dessa consteucio, os quais 5 6 term habiltagdo fo tomado de empréstimo de Vigan (1999), © qual o utiliza em contaposiio a séia de reabiliagao. Segundo cle, a eabiliagdo 36 pode ter sucesso na condigao de seguir o estilo sugerido pela estratura subjetva do psictico, por sus sintomas, € no como forma de resoler sintomas negativos, sm nada sober dos sintomas positives, 9 que terns apropriada = palaves habitag, sabemos serem decisivos na consolidaco de um trabalho que historicamente foi desquallficado por muitas gestdes municipais. Apesar disso, temos clareza do quanto ainda precisamos avancar. Nessa trajetéria, comamos esta oportunidade de esctever sobre a clinica, que nos indica qual rede tecer, como um exercicio reflexivo que nos permite situar nossas dificuldades, progressos ¢ desafios, Dificuldades ¢ desafios no cuidado integral ao portador de sofrimento mental Licio (nome ficticio) é um sujeito psicdtico de quarenta anos, solteiro, filho cagula de uma familia numerosa. Seu pai abandonou a familia durante a gestacio de Liicio e, desde entio, sua mie passow a dar destinos diferentes aos filhos: os meninos foram pata a FEBEM (Pundacio Estadual do Bem-estar do Menor) e as meninas foram para a casa de parentes. Liicio foi institucionalizado até os 18 anos ¢, posteriormente, teve varias internagées em hospitais psiquidtricos. Atualmente, ele mora com a mie e outros itmios também portadores de sofrimento meatal Ha historia de agressividade mutua entre irmios, dos filhos em relagio 4 mic, ¢ vice-versa, AS agressdes sio. mais freqiientes, entretanto, entre Llicio € sua mie. A situacio da familia foi discutida em uma das visitas da equipe de apoio matricial em satide mental, em 2008, Uma agente comunititia nos destacou, na época, a dificuldade que a mie de Liicio, idosa, vivenciava para cuidar sozinha de filhos portadores de sofrimento mental. A agente entendia as agressdes como um inal da incapacidade da mie em lidar com a situacio, tentando colocar algum limite nos Considerando que um dos objetivos da equipe ‘matricial do municipio em questio é dar apoio as equipes de satide da familia para que tenham tanta autonomia quanto possivel na abordagem de portadores de sofrimento mental, paralelamente a0 108. aprimoramento de sua articulacio com as equipes cespecializadas dos CAPS, a primeira providéncia foi investigar, junto a0 CAPS, se ja havia alguém que fosse téenico de referéncia de tal caso. Descobrimos que uma assistente social, a partir de dentincia feita pelo Centro de Referéncia de Assisténcia Social (CRAS), ja havia algumas visitas 4 familia, mas sem muito sucesso. tentado ‘A Gerais: Revista interinstitucional de Psicologia, 2 (2), 192-198 194 C.M.F. Penido Na maioria das vezes, a mae de Liicio nao deixava que ela entrasse na casa € conversasse com seus filhos. Na vez em que conseguiu entrar, percebeu, de imediato, uma situacio que pedia uma interveneio inicial ¢ urgente. Embora todos 0s filhos precisassem de cuidado, Lécio era, de longe, ‘o-mais grave. Liicio defecava ¢ urinava na cama ¢, por este motivo, sua mae quase nio Ihe dava comida e Agua, Encontrava-se desidratado ¢ desnutrido, segundo avaliagio do médico da equipe de Saiide da Familia, ejuatava lixo sobre os pedacos de colchio em que dormia, Na casa, em genal, as condigies cle higiene cram precisias. LLicio tinha historia de ertincia e nao se dispunba muito a falar com as pessoas. A tinica demanda da mie, a qual também havia sido formulada & equipe de satide da familia, era a internagio dos filhos, especialmente de © pedido foi compreendido como uma tentativa de asilamento, ‘como uma forma de obter descanso da tarefa de Liicio. cuidar de seus filhos portadores de softimento mental, sem nenhuma preocupagio relativa a um possivel tratamento. ?Profissionais do CRAS também ja haviam feito algumas visitas €, assim como a assistente social, ‘aio haviam conseguido estabelecer um contaro aque permitisse uma seqiéncia terapéutica ne 60 de Liicio, \ falta de apoio da familia ¢ 2 desarticulagio das agdes eram tomadas como # azio do insucesso na abordagem até entio. Come tentativa de sensibilizar a familia para a necessidade de tratamento dos irmaos ¢ a situacio extrema em que se encontrava a mic de Liicio, #8 idosa, esistente social fer uma deniincia da situagio 30 Ministério Pablico, 0 que por si 86 jé possibiliton maior receptividade da familia para a proposts de onversarmos sobre o caso, talvez, por medo de alguma aco contra eles. ‘A articulacio intersetorial de todos os esforgos que inham sendo feitos para & abordagem da familia de Léeio pareceu-nos imperativa,tarefs que for assumida, inicialmente, pela equipe matricial, jateretoralidade, segundo Alves (2001), € um dos componentes indissociiveis da integralidade: “Se propusemos a lidar com problemas: bhi que se diversificar ofertas, de ‘¢ buscar em outros setores nos complexos, maneia integrada, quilo que a saide nio oferece, pois nem Sembee Ihe é inesente” (p. 171). Nesse sentido, foi proposta uma reunifo inicial centse a equipe de side da familia, a equipe de satide mental (fepresentada pelos apoiadores matriciais), a mie € uma irmA do paciente profissionais do CRAS. Tratou-se de um primeiro passo para que pudéssemos assepurar 0 acesso 20 sujeito em situagio de risco. ‘Nesta ocasiio, iniciamos conversa com a irma, sondando a possibilidade de auniliar a mie no cuidado aos seus irmios, além de discutirmos uma estratégia para cuidar da situagio de desidratagio € desutrigio de Licio. Apés a reuniio, a mie concordou que Licio fosse levado ao Pronto- ‘Atendimento (PA) da cidade, desde que fosse providencindo transporte para levi-lo, justifeando indo ter mais condigées fisicas para acompanhi-lo em transporte coletivo. (© transporte foi providenciado ¢ Laicio fol encaminhado a0 PA, a fim de ter cuidados necessirios a0 seu estado clinica. Recomendamos que fosse encaminhado a0 CAPS tio logo tivesse ata. Ao chegar ao PA, entretanto, 0 médico de plantio se recusou a prestar euidados pertinentes desnutticio jf de satide da familia, desideatacio diagnosticadas pelo médico ddizendo se tratar de um caso social ¢ fazendo wm previamente encaminhamento 20 servigo de assisténcia social Quando tal noticia chegou a0 conhecimento da equipe de satide mental, optamos por diseutla em rauniao no mesmo dia, Questionamos a decisio do vnédico do PA e nfo concordamos que um caso de esnutricio e de desidratagio Fosse um caso social mas uma situagio de isco, a qual pedia uma jntervencio urgente, Toda a equipe enfatizow > rnecessidade de imediata interna¢io, mas 2 maioria dos profissionais apontou o hospital psiqulisnice ‘como uma alternativa ao PA, apostando que Ti. 80 {tio a0 paciente se recusaria o atendimento neces Eeneretanto, alguns de nds apontamos 0 engodo no qual nos precipitivamos, optand por acionat © fecurso mais facil, ao invés do recurso mals adequado a0 caso. paradigma ou modelo estaria orientando & decisio de propor a Laicio e sua familia que buscassem © a fim de tratar um caso de Indagamo-nos sobre que hospital psiquidtrico, desnutricio ¢ desidraracto. Bneendemos tal sala somo um reerocesso na luca pela cdadania ¢ pelo do portadar de Alem do mais, direito de livre circulacio sofrimento mental pela cidade. - Gerois Revit Intennsttucional de sicologe. ?() 192-198 ‘AHobiliago de um Svello pora os Constugdes de Caso Cirico estarlamos desqualificando a perspectiva da integralidade no cuidado a um usuétio como ‘walduer outro, Afinal, 0 dito loueo também pode ter diabetes, hipertensio ou uma perma quebrada, além de desnutticio ou desideatacio, Scyundo Cherchiglia, Acircio € Melo (2008), embora seja Forcoso reconhecer os avangos Significaivos proporcionados pela implamtacio do Sistema Unico de Sade (SUS) e pela politica de sitide mental, esta dima ainda evolui de forma segreda das outras ireas de saide, ¢ nio como membro indissociivel do corpo setorial do SUS Apesar de esforcos tis como a integtagio das asdes de sade mental na atengio bisica,situagoes Como esta talvez sejam mais freqientes do que se desejaria Na iminéncia de um retrocesso hist6rico, tencamos raciocinar sobre outras saidas, aterativa ao hospital psiquidtrico, plancjamos acionar o hospital-yeral da cidade, dando inicio & negociagio de leitos psiquiitricos Para pemoite, quando necessirio. O hospital-geral Portanto, ta cidade em questio é flantrépico, ditigido por uma irmandade constituida desde 0 Segundo Império (1831-1889) ¢ cujos integrantes $6 podem ser sucedidos por seus descendentes, 0s quais elegem prior que, representante da prefeitura municipal, dirige 0 hospital, Considerando-se a tradigio conservadorismo peculiares, a negociagio da imternagio de Laicio ¢ dos leitos para petnoite, feita um juntamente com pela coordenadora de saiide mental, foi uma oporunidade de assegurar inédita possibilidade de citculagio dos portadores de sofrimento mental por dispositivos que, dentro da sua propria cidade, poderiam compor a rede substitutiva ao hospital psiquiatrico. Posteriormente, nos reunimos com os diretores liniecos do PA, © qual é porta de entrada para o hospital-getal da cidade, para discutiemos a recusa de atendimento a Liicio, Preferimos adiar a conversa para 0 momento seguinte a negociaga0 com 0 hospital-geral, de forma a facilitar uma pactuscio dos ctitérios de encaminhamento. Um importante ponto de pauta foi a discussio sobre a integralidade no cuidado a0 portador de softimento mental, © qual pode ter foutras necessidades que transcendam o aspecto fluxos¢ mental 195 © impedimento do acesso de Liicio a0 PA, para culdar do seu quactro de desidratacio e desnutticio © Prevenir possiveis agravos, ea idéia inicial da camipe de saiide mental de interné-lo no hospital Psiquidtrico - como maneira de garantir tal cuidado = Os possibiliou constatar, na pritica, que a exclusio protagonizada em relagio aos portadores de sofrimento mental nio é parte do passado ¢ aio se manifesta apenas no espaco intemo a0 ‘manicémio, Tomando a integralidade como prineipio integrador de priticas preventivas e assistenciais de diferentes niveis_ de complexidade ¢ como necessidade de interagio complesa entre os Daradigmas de conhecimenta que servem de base 908 programas sociais universais, ow scja, como Principio que requer priticas interdisciplinares (Vasconcelos, 2009), pudcmos perceber coma a exclusio pode se manifestar de forma insidiosa e se colocar como um entrave a0 cuidado integral em satide para os portadores de sotrimento mental Alves 2001), refletindo sobre a integralidade nas politicas de sade mental, pergunta-se sobre o modelo a adotar para atender a integralidade, © autor encontra um indicative na formulagio Proposta por Benedetto Saraceno- 0 qual prefere teabalhar com premissas em substituicio 4 idea de modelo - que atribui destaque a premissa da acessibilidade, principio negado 20 sujeito em questio. Neste comesamos a consttuir, com a familia de Liicio € com a cidade, uma possibilidade de inclusio do portador de sofrimento mental como eidadio com dipeito a ccuidar integealmente de sua saiide. Liicio permaneceu internado no hospital-geral durante 21 dias. Ao longo dese periodo, um psiguiatea do CAPS fez visitas regulares de acompanhamento. Tio logo teve alta, foi buscado pela assistemte social e por uma psicéloga da quipe matricial para ir pela primeita vez ao CAPS, Quando chegaram 4 sua easa, ele as interpelou de expressar certa cenitio conflituoso, amistosa, parecendo. forma satisfagio: ‘Vocés vieram me buscar?’ No CAPS, foi acolhido por profissional que se tornow sua técnica de referencia e que, desde entio, tem se disposto a acompanké-lo. resgate do sujeito para a construgio do caso. ‘4 Gerais: Revista Interinstitucional de Peicologia, 2 (2), 192-198 196 C.M.F. Penidio clinico ¢ do projeto terapéutico Segundo Figueiredo (2004), a construgio do ico € 0 ponto central da contribuigio da Psicanalise para a Satide Mental, por meio de sua caso eli aplicacdo em seus diferentes dispositivos de atengio psicossocial € no trabalho em equipe interdisciplinar. Segundo a autora, a construcio do caso clinico em Psicanilise é 0 “(re)arranjo dos elementos do discurso do sujeito que ‘caem’, se depositam com base em nossa inclinagio para colhé-los, nio ao pé do leito, mas a0 pé da letra” ©-79) A colhcita que sustenta a habilitagio de um sujeito a construcio do caso clinico, entretanto, pode- se fazer um processo lento e de muitos meandros. Para este relato, levamos em conta a nocio de construgio de caso clinico tal como ‘Vigané (1999) propés: Construir 0 caso clinice é preliminat a demanda do paciente. Em outros termos, é colocar 0 paciente cm trabalho, registrar os seus ‘movimentos, recolher as passagens subjetivas que contam, para que o analista esteja pronto a escutar a sua palavra, quando esta vier. E isso pode levar muito tempo, Se houve um trabalho de construgio, se foi possivel notar, por exemplo, que cle fer 0 mesmo gesto por meses € meses; um dia cle dé um sorriso © no mais aquele gesto - & preciso notar que houve uma mudanga. Af entio le esti dizendo que esti eonstruindo. (p.37) Entendemos que o esforco empreendido até aqui se constituiu em uma etapa necessiria para assegurar ao sujeito a possibilidade de se habilitar a falar de si, construindo seu caso clinico e criando a perspectiva de construcio de um projeto terapéutico, entendido como dispositive norteador do cuidado, de acordo com sua subjetividade. © projet terapéutico de Liicio vem sendo construido pela técnica de referéncia, juntamente com ele e sua familia, Estio incluidos 0 atendimento individual 20 paciente, permanéncia- dia cinco vezes por semana no CAPS, a Participacio em oficinas, atendimento a mie do paciente © seus irmios portadores de softimento mental, negociacio com a familia para ajuda nos cuidados aos itmos © 4 mie ¢ parceria com 0 CRAS para orientacio da irma sobre pedido de beneficio através da Lei Orginica de Assisténcia Social (LOAS). Insistimos no atendimento individual, embora 0 paciente verbalize pouco, como tentativa de ajudar © paciente a recuperar a possibilidade de se Pronunciar sobre si (Minas Gerais, 2006). Alm da técnica de referé ia, hi um psiquiatra que assumiu a avaliacio clinica € medicamentosa de Licio. A permanéncia-dia foi pensada com o objetivo de wabalhar uma possivel autonomia do paciente E interessante 0 que Lticio expressou ao téenico de enfermagem que © busca de carro pela manba: ‘"Vocé vai me levar para a satide mental para eu me cuidar, nio é" Outro ponto importante do projeto terapéutico, de Liicio € tentar mobilizar os itmios que nio moram com cles para ajudar sua mi administragio da casa € nos cuidados aos filhos portadores de sofrimento mental. A irma de Lticio, a qual jd nos referimos, passou a viver com a familia, © que colaborou para alivio da insustentivel situagio domestica _vivenciada naquela casa, anteriormente. Os episddios de agressividade, por exemplo, —_diminufram consideravelmente. Entretanto, como a irmi parou de trabalhar para cuidar da familia, ela deixou claro que nio sustentard a situacio se niio conseguir 0 beneficio pretendido para Liicio, Junto com a ir, temos tentado fazer contato com outros membros da familia, a fim de propor a responsabilidades. Considerando 0 risco de vida em questio, divisio de avaliamos Liicio como a pessoa da familia que inspirava cuidados mais imediatos, 0 que nio significava que os outros irmios também precisassem de cuidados, bem como sua mic. Ei, importante ressaltar que, apés algumas semanas de tratamento de Liicio, sua propria mie formulou demanda de tratamento para um dos outros filhos portadores de sofrimento mental. Consideramos isso um avanco, visto que tudo 0 que a mie demandava anteriormente era_asilamento. dos fillos. Tal Liicio também tem apresentado progressos importantes, passando a interagir com as pessoas como ha muito no fazia. Nas offcinas, Lticio tem dado outro destino a0 itmio de jornal que juntava em casa. Tem enrolado pedacos de jornal para confeccio de cestaria. Em casa, nio junta mais tanto lixo. Como direcio do tratamento de Lécio, apontamos a perspectiva de circulacéo pela cidade € sua possivel autonomia. Ajudi-lo a habitar a 4 Gercis: Revista Interinsitucional de Psicologia, 2 (2), 192 - 198 A Hobittacdio de um Sujeito para as Construcées do Case Clinico 197 cidade, como definido na Linha-Guia de Atengo em Satide Mental: “envolvimento ativo do usuario com as miiltiplas redes de negociacio © de troca” (Minas Gerais, 2006), Para quem tem uma twajetéria_mareada pela institucionalizagio © se restringia a um quarto hi bem pouco tempo, essa é uma tarefa drdua e desafiadora, a qual se cumpre por ctapas. No CAPS, por exemplo, Lticio esta inserido na permanéncia-dia, que nos oportuniza trabalhar com ele sua liberdade de expressar ¢ negociar suas necessidades € desejos. Esse processo, embora__iniciado promoveu um deslocamento do habito de urinar € defecar na roupa para o uso do banheiro, inclusive na sua propria casa, Registramos aqui um notdrio avanco quanto a sua posicio de objeto em relag 4 mic, a qual passou por um periodo de deptessio, tendo sido acothida no CARS, ‘Tornow-se fundamental trabalhar com a mie de recentemente, Licio © direito de seu filho ir e vir, o que no tem sido ficil, Poderiamos ilustear a questio com a passagem: técnicos de enfermagem petcebeu que Lucio tinha um Problema em um dos pés, o que Ihe acarretava seguinte cerca df ikdade de se locomover de chinclos, caleado que usa habitualmente, Foi oferecido a cle, entio, um par de ténis (doagio que havia sido feita 20 CAPS). Isicio passou a se locomover com ‘muito mais facilidade, esbogando nitida satisfacio. Eneretanto, no dia seguinte, cle valeou ao servigo sem os ténis, Sua mie justificou que sua unha estava muito grande para usi-los. Argumentamos que a unha poderia ser cortada, mas a0 que tudo indica, © que se desejava cortar cra a possibilidade de Licio circular livremente. Enquanto esta questio € mais bem trabalhada, mantemos o par de ténis no CAPS, para que ao menos por li a circulagio de Lucio seja facilitada, Finalmente, na espectativa. de habiliar Lsicio segundo a perspectiva de reconstruit suas possibilidades de toca (Minas Gerais, 2006), assinalamos uma Passagem muito auspiciosa. O paciente fumava no servico, quando um técnico de enfermagem 0 abordou para que nao famasse no local onde estava, porque era proibido, Ele se manifestou: “Cortar meu cabelo © me dar banho sem eu querer pode, mas fumar nio pode? Lucio parece ter apontado que nio estaria mais tio disposto a permanecer num lugar de passividade diante dos descjos alheios. Seria necessério rever certos automatismos institucionais ¢ incluir o sujcito na construcio de seu projeto terapéutico. Isso foi, sem diivida nenhuma, um balizador para a abordagem deste usuitio, uma marca de subjetividade que deveria ser levada em consideragio nas negociagdes que proptinhamos a cle, possibilitando outro manejo da cransferéncia, Era preciso se dar conta de que se 0 sujeito nao se autoriza a falar (ou, se o impedimos, de alguma forma, na sua manifestacio}, a dar um nome aos ‘objetos, permanecers ligado ao objeto que é a mie de forma automitica (Vigané, 1999). Seria imprescindivel a busca do envolvimento do sujeito em relagio ao seu tratamento, retomando-lhe uma voz € um poder de decisio sobre as questdes que Ihe concerniam, Ele nos lembrava daquilo que parceia entender como nossa tarefir ajudi-lo a cuidar de si, Se antes ele se mostrava incapaz de se cuidar, neste momento, talvez, jé pudesse se habilitar a muitos de seus aspectos, inclusive ¢ 1 de seu préprio projeto ptincipalmente 4 conser terapéutico. Com certa dificuldade, a equipe percebeu que devia ficar atenta para nio reduzir o sujcito a um «ato socal, assien como o fez 0 médico que barrou o acesso de Liicio ao P.A, Segundo Vigané (1999), 0 caso social € aquele que aciona instrumentos juridicos ¢ assistenciais e € conduaido pelos operadores, Para cle, a diferenca existente entre 0 aso social € 0 caso clinico - 0 qual, por sua vez, io exclui 0 caso social - é a dimensio do sujeito: se © caso social é resolvido pelos operadores, 0 caso clinico € resolvido pelo sujeito, que é 0 verdadeiro operador, desde que 0 coloquemos em condigdes de sé-lo. Penso que operivamos, até entio, na expectativa de colocarmos 0 sujeito em condigdes de operar 0 seu caso, mas agora ja deveriamos tedimensionar nossa abordagem, A perspectiva de construgio do caso clinico tornou- se, assim, evidente: “A construgio do caso consiste, portanto, em um movimento dialético em que as partes se invertem: a rede social coloca-se em posicio de discente € 0 paciente na posigio de docente” (Vigand, 2010, p.2) Comentétios finais: Situando progeessos em meio as dificuldades e desafios Apontamos, neste relato de experiéncia, os ‘A Gerais: Revista Interinsttucional de Psicologia, 2 (2). 192 - 198 198 C.M.F. Penido entraves relatives a0 cuidado integeal em saiide prestado ao portador de softimento mental ¢ os meandros do delicado processo de habilitar o sujcito € sua equipe as construcdes do caso clinico ¢ do projeto terapéutico. Compartithamos alguns avancos iniciais que percebemos terem resultado em efeitos importantes. Observamos, da parte do sujeito, um importante deslocamento subjetivo em diregio a uma posigio com maior nivel de autonomia. Da parte da equipe de satide mental, o significado de construir um caso clinico foi redimensionado, assim como a posicio da equipe no processo de construcio de uma autonomia possivel para este sujeito, Finalmente, a singularidade que © caso impos nos permitiu tecer rede hospital psiquidtrico de forma coletiva ¢ para beneficio de muitos. Podemos dizer que, de alguma forma, a clinica também nos habilitow a negociar uma rede necessiria 4 construcio do nosso projeto de satide mental para uma cidade. uma substitutiva ao Referéncias Alves, D. S. (2001). Integralidade nas politcas de saide mental, In R. Pinheiro & R.A. de Mattos (Orgs.), Os sentido da integrate na atensio« no cra d sade (pp. 167-176), Rio de Janeiro: IMS/ABRASCO. Cherchiglia, M.L., Acurcio, F. de A. & Melo, A. P. S, (2008). 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A construgio do caso clinica, Opyie Yacaniana, 1, Rettieved April 19, 2010, from bupy/ /srew opeaolacaniana.com,br Receido em: 30/11/09 favito eu: 22/ 12/09 ‘A. Gerais: Revista Interinsttucional de Psicologia, 2 (2). 192 - 198

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