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oo Everardo P. Guimaraes Rocha + Antropologia do Brasil — Mito, historia e etnicidade — ‘Manuela Carneiro de Cunha '* Magia e Capitalismo — Everardo P. Guimardes Rocha | A Oleira Ciumenta — Claude Lévi-Strauss 3 Repressio Sexual — Essa nossa (deslconhecida — Marilena tev “se O QUE E Coleg Pinson Pn MITO pose eee 18 ego 1985 © O que é Herdi — Martin Cezar Feijo 22 edicdo Coleco Primeiros Voos ‘+ Mitologia Grega — Pierre Grimal PUCRS/BCE 1.048.635-1 PRESERVE SUA FONTE DE CONHECIMENTO 6@ [ capyrete © trend? 6. Rs | (Qupa e itustragbes: ‘Carlos Matuck i Revisdo: José W. 8. Moraes ‘Marcia R. Takeuchi brasiiense Editora Brasiliense S.A. R. General Jardim, 160 01223 — Sao Paulo — SP Fone (011) 231-1422 INDICE — 0 labirinto dos mitos . — Qencontro . = Tentando montar 0 quebra-cabeg: — Indicagées para leitura ...... BIBLIOTECA CENTRAL PUCRS Wee = Edipo: as interpretacdes de um supermito . 45 = Asafda? ... Onde fica a sada? . : Este limo é dedicado a Claude Lévi-Strauss e Roberto Da Matta, ‘que me ensinaram a viajar nos mit O LABIRINTO DOS MITOS 0 mito é uma narrativa. E um discurso, uma fala, E uma forma de as sociedades espelharem suas contradigdes, exprimirem seus paradoxos, divides @ inquietagdes. Pode ser visto como uma possibil dade de se refletir sobre a existéncia, 0 cosmos, 3s situagdes de “estar no mundo” ou as relacées soci Mas, 0 mito é também um fendmeno de dificil definigio. Por tras dessa palavra pode estar contida toda uma constelagio, uma gama versificada de idéias. O mito faz parte daquele conjunto de fendmenos cujo sentido é difuso, pouco nitido miltiplo. Serve para significar muitas coisas, representar varias idéias, ser usado em diversos contextos. Qualquer um pode, sem ceriménia, utilizar a palavra para designar desde o “mito” de Edipo ao “mito” Michael Jackson, passando pelo a ee Everardo P. Guimardes Roo que & Mito : | | “mito” da mulher amada ou da eterna juventude. © mito é também uma palavra que esté em moda, Um conceito ampio e complexo, por trés de uma palavra chique. Por tudo isso, vamos caminhar com cuidado. Tateando, pouco a pouco, na busca dos principais fios condutores que mostrem as entradas (e, principalmente) as saidas deste labirinto de idéias em torno do mito. Vamos saber 0 que é mito como quem arma um quebra-cabecas. Juntando ecas espalhadas e vendo surgir o esboco de uma figura. Talvez a pega fundamental desse complicado quebra-cabecas seja aquilo que est4 dito 14 em cima na primeira frase: 0 mito 6 uma narrativa, uma fala. Esta 6 a nogdo mais basica, ampla e geral que se pode ter do mito. Acho que os mais dife- entes “‘mitélogos"” concordariam com ela. Mas 0 mito no seria uma narrativa ou uma fala qualquer. Se assim o fosse ele se descaracterizaria, perderia sua especificidade. Seria tragado, submerso elo oceano de narrativas, falas e discursos huma- os. © que marca o ser humano é justamente sua Particularidade de possuir e organizar simbolos que se tornam linguagens articuladas, aptas a produzir qualquer tipo de narrativa, O ser humano fala e muito. Se o mito fosse uina narrativa ou uma fala qualquer, estaria dilufdo completamente, O mito 6, entéo, uma narrativa especial, particular, capaz de ser distinguida das demais narratives humanas. Pensando isso. podemos analisar algumas definiges correntes do mito que ajudem a avancar com 0 quebra-cabecas. Répido na direcdo do diciondrio. Ele é uma espécie de definidor curto fe grosso, répido e rasteiro dos termos de uma lingua, Essa € sua generosa funcao. Seria impossivel falar sério e profundamente sobre centenas de milhares de palavras. Por isso, 0 diciondrio fala ligeiro, e 0 melhor deles, 0 do Aurélio, diz que 0 mito 6 0 seguinte: “Fato, passagem dos tempos fabulosos; tradig&o que, sob forma de alegoria, deixa entrever um fato natural, histérico ou filos6fico; (sentido figurado) coisa inacreditével, sem realidade”. Esta definicgo corrente, usual, do mito pode nos levar a algumas discusses. De saida, o d nério situa 0 mito como um “fato” ou “‘passagem’” muito antigo. Como algo ocorrido nos tempos da “aurora’ do homem, nos “tempos fabulosos”, Diz ainda que por trés do mito existe uma tradica Qu melhor, que ele préprio é uma tradiggo. O mito teria uma forma alegérica que “deixa entrever um fato natural, histérico ou filoséfico”. Isto parece muito interessante. A partir dessa idéia podemos pensar que o mito carrega consigo uma mensagem que no esté dita diretamente. Uma mensagem cifrada. mito esconde alguma coisa. O que ele procura dizer no ¢ explicitado literalmente. Nao “estd na cara”. O mito nao é “objetivo”. Tipo péo, 10 — Everardo P. Guimaries Rocque é Mito u So, queijo, queljo. O que ele afirma o faz, de toda evidéncia, com muita sutileza. O mito fala envie- sado, fala bonito, fala postico. Fala sério sem ser direto e obvio. Hé um outro ponto da definigéio do dicionéri que parece importante. E 0 que ele chama de sentido figurado. O mito é uma “coisa inacre- ditével”. Algo “sem realidade”. Em outras palavras: ‘0 mito & mentira. Este é um dos usos mais freqtien- tes da palavra no cotidiano. Ouvimos constan- temente frases como: "Ah! isso é mito’. Como quem diz que isso ¢ mentira, “‘cascata”, coisa irrelevante. Outra frase muito comum é “esses so ‘9s seus mitos particulares”, no seritido de ser o seu delirio, ou a sua viagem ou a sua fantasia Se, por af, 0 mito esté identificado com a mentira, evidentemente ele € 0 oposto da verdade. Quem fala 0 mito ndo fala a verdade. Mas, ainda assim, o mito funciona socialmente. Existem bocas para dizé-lo e ouvidos para ouvi-lo. O mito esté af na vida social, na existéncia. Sua “verdade", conseqiientemente, deve ser procurada ‘num outro nivel, talvez, numa outra Iégica. Até aqui especulamos apenas sobre a definicao dicionarizada do mito, e jé tocgmos levemente a confusso. Recapitulando, vale a pena reter alguns aspectos. Outras pequenas pecas do quebra-cabecas. Vejamos: 1) 0 mito esté localizado num tempo muita-antigo, “fabuloso”’. Nos tempos da “aurora” do homem; ou, pelo menos, os homens 0 colocam nos seus tempos da “aurora”, fora da historia; 2) 0 mito nao fala diretamente, ele esconde alguma coisa, Guarda uma mensagem cifrada. mito precisa ser interpretado. Finalmente, 3) 0 mito nfo é verdadeiro no seu conteédo manifesto, literal, expresso, dado. No entanto, possui um valor e, mais que isto, uma eficécia nna vida social. ; ‘Vamos tomar 0 primeiro ponto. Aqui 0 proble~ ma 6 0 da localizago do mito no tempo. Quando surgem os mitos? Quando aconteceram os fatos sobre 08 quais eles falam? Estas questoes foram 0 pretexto para varias polémicas, andlises ¢ estudos. Elas compdem o extenso quadro das questées da origem. A origem do universo, e origem da Terra, a origem da vida, 2 origem do homem, a | origem das linguas. A temética das origens das coisas sempre foi uma preocupacdo de muita gente. Conseqiientemente, a origem do mito nao poderia estar ausente desta constante divagacdo sobre a3 origens de tudo. | ‘Mas, a questo da origem (seja do que for) corre © perigo de ser uma faisa questo, Em primeiro lugar, porque quase que todas as origens estariam perdidas, seriam de improvével localizacéo ¢ 0 ‘que teria ali acontecido s80 conjecturas, especu- lagdes e hipéteses de diffcil comprovagio. Em segundo lugar, e aqui esta o principal, a origem de uma coisa ndo garante a explicagdo do seu estado atual. A origem do homem, por exemplo, ee Ererardo P. Guimardes Rowe ¢ito n B vindo do macaco, de outro planeta ou do paraiso, dificilmente serviria para explicé-lo nas suas mil: tiplas possibilidades existenciais. © segundo ponto ao qual nos levou a definigdo do diciondrio é quanto ao fato de o mito possuir uma mensagem cifrada. Mais diretamente isto quer dizer que o mito atrai a interpretagdo. E interpre- tages é o que nfo falta ao mundo dos mitos. ‘A Antropologia, por. exemplo, possui uma vastissima colegio de interpretac&es de mitos. Esses trabalhos dos antropélogos, via de regra, tém por finalidade interpretar 0 mito para des- cobrir 0 que este pode revelar sobre as sociedades de onde o mito provém. £ a interpretagéo do mito como forma de compreender uma determ nada estrutura social. Nesta linha, a Antropologia usualmente assume a existéncia de uma relagdo entre 0 mito e 0 contexto social. O mito é, poi capaz de revelar o pensamento de uma sociedade, a sua concepedo da existéncia e das relacdes que os homens devem manter entre si e com o mundo que os cerca, Isto é possivel de ser investigado tanto pela andlise de um Gnico mito quanto de grupos de mitos e até mesmo da mitologia com- pleta de uma sociedade. Nao existe aqui uma nica regra, e as solugées analiticas so bastante varidveis. Acredito, sem ddvida, que a Antropo. logia Social € a disciplina que foi mais longe e faz a mais proveitosa viagem ao entendimento do universo mitico. A Psicandlise também interpretou mitos. Freud fez uma brilhante e famosa interpretacdo do mito de Edipo. De quebra, ainda inventou alguns mitos importantes. A Psicandlise de Carl Gustav Jung, conhecida como Psicologia Anal{tica ou junguiana, no se cansa de interpretar mitos. Grosso modo, para eles, os mitos esto todos numa regio da mente humana, a que chamam inconsciente cole- tivo, uma espécie de repositorio que todos possul- mos da experiéncia coletiva. Neste lugar, 0s mitos se encontram. O inconsciente coletivo 6, como o nome diz, algo compartithado pela humanidade toda, 6 um patriménio comum. Ao mesmo tempo existe em cada um de nés. Assim eles explicam como 0s mitos do Sol podem aparecer desde 0 Egito Antigo até os incas da América do Sul, pasando, quem sabe, pela praia de Ipanema a cada verdo. A hipétese junguiana dos “contetidos' ‘que guardamos dos mitos é um tanto problemética, se bem que, para muitos, é também, altamente sedutora, Vamos vé-la melhor no préximo capitulo. ‘A estas interpretagdes varias que 0 mito desafia * podemos somar outras tantas. Os historiadores igides, os estudiosos de mitologias, os teblogos, etc, possuem todos suas linhas, métodos e hipoteses interpretativas. O que subsiste de comum nestes muitos @ alternativos discursos sobre o mito € a idéia constante de que o mito esté, efetivamente, ligado a possibilidade de ser interpretado.

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