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A propésito das sete décadas de politica: quem obtém o qué, quando e como Sonia Virginia Moreira Universidade do Estado do Rio de Janeiro Em 2006 podemos comemorar os 70 anos do texto classico do professor Harold D. Laswell sobre politica, politicos ¢ cidadaos. Publicado pela primeira vez em 1936 pela editora McGraw Hill em Nova York, 0 livro Politica: quem obtém o qué, quando ¢ como aparece na seqiiéncia dos estudos de Laswell sobre técnicas da propaganda politica na 1* Guerra Mundial e os seus efeitos no ptblico (cidaddos). Essa condi¢do acrescentaria, a0 cientista politico, 0 tedrico da comunicasao que se transformaria no autor de um dos canones do campo da comunicagio — guem diz 0 qué, a quem, em que canal e com qual efeito — base das andlises de contetido e das anilises de recepgao. O aspecto da analise politica desenvolvida por Laswell que interessa para uma leitura do tratamento dispensado nos ultimos anos 4 comunicacao eletrénica (radio e TV) pelo Estado brasileiro é este: “O estudo da politica ¢ 0 estudo da influéncia e dos influentes. A ciéncia politica descreve condigSes, a filosofia politica justifica as preferéncias. (...) O destino de uma elite € profundamente afetado pela mantica com que manipula o ambiente, isto é, pelo uso da violéncia, dos bens, dos simbolos, das praticas”. ? A. deterioragao do quadro regulatério brasileiro para a comunicagio de massa (comercial) ou segmentada (educativa ou comunitiria) reflete hoje a auséncia de controles,em especial © controle publico. E resultado de quase quatro décadas de 2 LASWELL, Harold D, Politics — who gets what, when and how. New York: Poter Smith, 1950, p3 ¢ 25, Sonia Virginia Moreira 35 36 desinteresse manifesto do Congresso em reaveliar (para reformulax) a regulamentac’o do ambiente da radiodifusio que, aberto ao avango tecnolégico, segue com cédigos legais arcaicos, A Constituigio de 1988 dissolveu 0 modelo até entdo existente de coordenagio ¢ fiscalizacao da industria de radiodifusio ao extinguir o Contel, Conselho Nacional de Telecomunicacées, e o Dentel, Departamento Nacional de Telecomunicagies. Apesar do carter restritivo desse aparato legal durante o regime militar (1964-1985), periodo em que tanto o Conselho como o Departamento e as suas: representagées regionais serviram para impor o cerceamento a liberdade de expressio e informacdo no pais, essas duas instancias da drea das Comunicagées, quando operantes num Estado democritico, acompanhavam a evolucio e registravam informacées sobre o universo das emissoras ¢ suas transmissdes. Hi pelo menos 10 anos, circulam entre o Congresso e o Executivo (os influentes, segundo Laswell) propostas de um novo texto legal parao setor da radiodifusao (se considerarmos as versées da proposta para uma Lei de Comunicagao Eletrénica de Massa, que circulou extraministério entre 1995 € 1996). Nenhum projeto, porém, conseguiu chegar a qualquer estégio de discussio aberta, publica, com o envolvimento de todas partes interessadas, para posterior tramitacdo parlamentar. E ha 18 anos, o campo da comunicagio eletrénica, aqui entendida como radiodifusio — radio e TV, prospera em um ambiente regulatorio disperso ¢ inconsistente, que dé margem a interpretacdes de toda ordem convenientemente seguidas ¢ adotadas. Laswell, 20 tratar do movimento popular que tem lugar em meio 4 Grande Depressio nos Estados Unidos, a partir 1929, cita a tecnocracia como “uma juncio afortunada de termos, ao evitar as implicagées doutrindrias do “ismo” ¢ capitalizar o prestigio dos termos ‘tecnologia’ e ‘democracia”? para identificar um mundo no qual o sistema de organizaco 3 Citado,p.132, Estado ¢ Comunicagio econémica pudesse operar com a produgao ¢ a distribuicao determinadas por engenheiros ~ ou técnicos, em outra palavra. No mundo real sabemos que predominam os interesses politicos, econémicos ¢ religiosos. E poucos setores retinem esses interesses como o da radiodifusio no Brasil: ainda que seja para todos é operado por poucos e, entre esses, a maioria com perspectivas econdmicas, politicas ou religiosas. Assim chegamos ao ponto central desta apresentaga a forma com que sio definidos e implantados o que aqui identificamos como canais de comunicagio de massa e segmentada determina a abrangéncia do controle da informagao no Brasil. O contetido de meios como rédio ¢ televisio pode ser considerado livre, no sentido da suposta nao-obrigatoriedade de seguir regras institufdas em lei, porque nao existem instrumentos para a fiscalizagao do contetido da proy agao, a no ser a partir de dentincia. H4 um Cédigo de ‘ica de associagao de proprietarios de radio e televisio que sugere condutas, mas nao impede procedimentos. Os brasileiros — ouvintes e telespectadores — nao tém informagio sobre o elemento de controle priblico que esta 4 sua disposigao. Assim, as dentincias, quando so feitas, funcionam? Para além das incursdes da Policia Federal, hoje encarregada de localizar e fechar emissoras comunitirias clandestinas, existe algum recurso eficiente que fiscalize a programagio a bem do interesse publico? Hé pelo menos duas décadas jornais publicam regularmente os movimentos (vendas, arrendamentos, aluguel de parte substancial da programagao didria) que alteram a propriedade de canais na area da radiodifusio — em especial os de radio €, entre esses, os de emissoras em freqiiéncia modulada. Estimativas da midia nacional no final dos anos 80 indicavam que, com base nos dados entio disponiveis, cerca de 40% das emissoras de radio brasileiras seriam controladas por politicos ‘ou seus prepostos. O universo na época era formado por pouco mais de 2.000 emissoras em opera¢ao. Em 2006 esse nimero Sonia Virginia Moreira 37 38 praticamente dobrou. E é de conhecimento piblico que no Congresso atual pelo menos 50 deputados tém emissoras de radio e TV em seu proprio nome, 25 senadores so donos de radios ¢ TVs no pais e, desses, 14 sao proprietirios dirctos das emissoras. Emissoras comerciais, é importante que fique claro. Esses ntimeros provavelmente séo maiores porque, entre os deputados, existem aqueles que sao proprietétios indiretos de emissoras, cujos nomes nao aparecem nos cartérios. E nao estao contabilizados também politicos ex-ocupantes de cargos publicos — como prefeitos, governadores, vereadores — que também so detentores de concessdes. Esse € um lado da historia. Outro é o das retransmissoras de televistio, que no final da década de 1990 foram objeto de farta distribuicao especialmente entre politicos, e o das emissoras educativas, cujas concessdes a principio deveriam ser distribuidas gratuitamente para universidades e legislativos estaduais e municipais. Com a obrigatoriedade das licitacdes plbblicasa partirde 1997 paracandidatos aemissorascomerciais, os canais educativos de radio ¢ televisio transformaram-se em artificio para a concessio a politicos. Entre 1997 e 2006, © niimero de TVs educativas geradoras autorizadas pelo Executive passou de 20 para 167 e o de radios educativas saltou de 47 para 367. A diferenga representa um aumento de 67 canais para 534 ern menos de 10 anos! Primeira pergunta: o ptiblico foi beneficiado com essa explosio de emissoras educativas? Fundagées de fachada, emissoras que declaram como enderego uma caixa postal, radios cuja sede corresponde a terrenos baldios ou casas desocupadas sio amostras das irregularidades conhecidas. Segunda pergunta: que tipo de influéncia sobre a informagio ocorre em tais casos, em que existe um descontrole oficial 4 MARQUES, Gerusa ¢ COSTA, Rosa. Suplicy quer que senado discuta 2s conces- 860s. O Estado de 8. Paulo [Nacional], 3 de julho de 2006, p. AS. 5 LOBATO, Elvira, Educativa nfo pode ter publicidade. Folba de S. Paulo, 18 de junho de 2006, p. Ad, Estado e Comunicacgo em relac#o aos emissores? Terceira pergunta: num contexto como esse, o ouvinte ou telespectador esté informado ou desinformado? Sobre a ingeréncia de politicos em processos de concessio de emissoras, os titulares do Ministério das Comunicacdes tém admitido ha décadas, publicamente, que as pressdes sempre existiram e dessa maneira aceitam publicamente um fato que seria, digamos, uma obrigacio do cargo tentar evitar. O Ministério das Comunicagées, é importante destacar, tem sido, desde a sua criacio, uma pasta essencialmente politica. No periodo do regime militar operou como centro distribuidor de canais para empresirios ou politicos ligados & ideologia da época. A consolidagio da democracia a partir da década de 1980 ndo trouxe o avango que seria possivel na moralizagao das relagdes entre Executivo e parlamentares. Apesar da divulgago na internet, em 2003/2004, na pagina oficial do Ministério, dos nomes dos proprietarios dos canais de radio ¢ TV, os brasileiros continuam sem saber quais, entre os nomes apresentados, sao meros representantes de politicos que, pela Constitui¢ao, nao podem exercer mandatos € se manter como proprietérios de meios de comunica¢io. Todos os aspectos aqui considerados sio mecanismos de controle da informagio e, no caso das emissoras educativas, também de controle da cultura. Outro ponto importante a ressaltar é a proposta de criacao, que circulou em abril de 2005, de conselhos municipais de comunicagfo para discutir a producao do contevido local a ser veiculado pelos canais que utilizarem o servico de Retransmissio de Televisao Institucional (RTVIs), conforme estabelecido no artigo 6° do Decreto Lei 5.371, de 17 de feverciro de 2005, que regulamentou o Servigo de Retransmissio de Televisio ¢ do Servigo de Repetigio de Televisdo, ancilares ao Servigo de Radiodifusio de Sons e Imagens. Segundo a definigao que consta do decreto, XVI-Scrvigo de RTV Institucional (RTVI) é a modalidade de Servigo de RTV destinada a retransmitir, Sonia Virginia Moreira 39 de forma simultanea ou nio-simultanea, 0s sinais oriundos de estagto geradora do servigo de radiodifustio de sons e imagens (televisio) explorado diretamente ‘ pela Uni . Os Conselhos Municipais de Comunicagio tém origem em experiéncia realizada em Porto Alegre (RS), sob a coordenasao do jornalista Daniel Herz. Segundo registro do Forum pela Democratizagao da Comunicacio, Criado por decteto em 1989 ¢ vinculado 20 Gabinete do Prefeito, o Conselho Municipal de Comunicagao = CMC - teve papel irnportante na chamada “Guerra do Cabo” ¢ na implantagio do Canal Comunitério de Porto Alegre no inicio dos anos 90. Depois disso, pissou a funcionar a partir do intcresse de cada prefeito. Em 2002, 0 Comité RS do FNDC pressionou por sue reinstalacio e passou Conselho a ter reuniées mensais. No ano seguinte, o CMC organizou a I Conferéncia Municipal de Comunicagio onde foi aprovado o texto do anteprojeto de lei que prope a alteragio de swa compasiggo de 21 para 25 membros ~ vagas que seriam divididas entre representantes de entidades de trabalhadores, empresas, érgios publicos, veiculos comunitérios ¢ demais instituigdes da sociedade civil. © anteprojeto foi referendado no IV Congreso da Cidade de Porto Alegre, no final de 2003, mas acabou encaminhado 4 Camara de Vereadores somente em dezembro de 2004, ao final da legislatura. O documento foi arquivado dias depois de apresentado,” Em relagio ao regulamento, ali esto definidos trés tipos de servigos de retransmissio de televisio: 0 comercial, 0 educativo e, agora, o institucional. Apesar da sua institui¢ao ha 18 meses, pouco se sabe sobre a implementagiio do Servigo 6 DECRETO n® 5.371 de 17 de fevereizo de 2005. Presidéncia da Replica. Casa Civil, Subchefia para Assuntos Juridicas. 7 SCOTTI, Ester. Comité RS retoma pressio por Conselho Municipal de Comu- nicagao. E-Forum, 11/11/2005. Estado e Comunicaggo de Retransmissio Institucional ¢ a instalacao dos conselhos municipais de comunicagao. A outra pergunta nesse caso é: esses conselhos podem realmente funcionar como um canal do cidadio para fazer valer a sua voz € posic¢io sobre o conteido da programagio local das emissoras? Para terminar, algumas consideragdes sobre itens do documento “Comunicago e Democracia”, tornado piblico ha menos de 10 dias, imprescindfvel de figurar neste relato: o recadastramento de concessdes de rédio ¢ TV proposto para um segundo governo Lula da Silva, que ficaria a cargo de uma nova Secretaria Especial de Democratizagio da Comunicagio, subordinada a Presidéncia da Republica. Essa Secretaria cuidaria também de propor mudangas na legislacao para assegurar ‘maior equilfbrio e propor¢ao’ na cobertura de midia eletrénica, de conceder incentivos econémicos para a criago de jornais e revistas independentes € da criagio de conselhos populares (eles de novo!) para apreciar as atuais € as futuras concessées de rédio ¢ televisio.? O campo ¢ sem davida polémico: a quem interessa rever as concessdes? FE. medida administrativa (para identificar aquelas em divida com tributos federais ¢, portanto, irregulares) ou de revalidagao da propriedade (a permissao do atributo) da concessio? Como nos outros pontos, trata-se aqui também de mecanismos de controle imediato da informagao e, em médio prazo, da cultura. Para nao se limitar apenas 4 identificagao dos problemas, uma sugestdo: que associagdes como a Intercom se integrem a grupos ja organizados de pesquisadores, como o Laboratério de Politicas de Comunicagio (LapCom) e¢ 0 Grupo Interdisciplinar de Politicas, Direito, Economia e Tecnologia das Comunicagdes (Gcom) — ambos da UnB, para ficarmos nos exemplos locais —, organizem-se regionalmente (por meio do incentivo 4 pesquisa dirigida em ambito local e 8 ZANINI, Fébio PT Propse recadastramento de concessdes de ridio TV. Fala de S, Paulo, 28 de agosto de 2006, p. A4. Sonia Virginia Moreira 41 42 regional) em um projeto coordenado de investigacio, registro © armazenamento de dados sobre o campo da legislacao de comunicagao e midia. Seria uma forma de construir um grande espago de referéncia e contribuir efetivamente para o estabelecimento de um matco regulatério para a comunicacao eletrénica ¢, assim, tentar superar com o esforco conjunto essas zonas de controle da informacao. Estado e Comunicagio

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