Você está na página 1de 26
i H. W. JANSON Historia geral da arte O mundo antigo e a Idade Média [16] JANSON, Horst W. Histria Geral da Arte, O Mundo Antigo e a Idade Média, So Paulo: Martins Fontes, 2007. p: 341-962. ; Martins Fontes Sao Paulo 2007 ad on STORY OF ART Copii org 8 Aron Coninh Fanaa Cala Cabnin Labs par prs et, ‘Corsi 190, ivory Pe Ear Lda, “So hn, puapraene ese reagan 1985 2 ao 200/ eagem 307 Ayralecoms td Clone Cbeton vino pn ous ‘naps cel A. Ferd de ine oma ones apna proprio tito Taree ie rotare on ‘as esa Catan ato (IP) (Cinors ols dive SE, rt) ip dean HWS apse pase teimpin acter Mura Baral S80 ISan 33601540 tobcoplea) 1A Hata Tf i © ma mg te Trp ot ec Todos odivitos dea ego reservados 8 “Lvrara Brine Fontes Bair Lad ‘kus Conseleiry Ranalho 530 01525-00 Sto Paulo SP Brasil Tel (1) 32413677 Fax (11) 3105 993 ema iogmartnfotesediora com hptwwnmarinsfontesediord.com br sel no poe ser vendo fora do Brasit Introdugio Quando pensamos nas ricas civilizagdes do passado, tendemos a consideré-las em fun- ‘¢do dos grandes monumentos visiveis que acabaram por simbolizar o cardter de cada uma: ‘as pirdmides do Egito, os zigurates da BabilGnia, o Partenon de Atenas, o Coliseu, Hagia Sophia. A Idade Média, nessa lista de realizagdes supremas, seria representada por uma catedral g6tica — Notre-Dame de Paris talvez, ou a de Reims ou a de Cantudria. Temos muitas para escolher, mas seja qual for estard ao norte dos Alpes, embora em territério ‘que pertenceu 20 Império Romano. E se diante da catedral da nossa escolha entornasse- mos um balde de égus cla acabaria por escorrer para o Canal da Mancha e no para 0 Mediterraneo. Aqui temos, pois, o fato singular mais importante da Tdade Média: 0 cen- tro de gravidade da civilizacio européia deslocou-se para onde tinham sido as fronteiras setentrionais do mundo romano. O Mediterranko, por tantos séoulos a grande via de inter- ‘cambio comercial e cultural que unia todas as terras das suas costas, tornou-se de fato uma barreira, uma zona fronteiriga. ‘V4 observamos alguns dos acontecimentos que abriram caminho a este desvio — a trans- feréncia da capital do Império para Constantinopla, a crescente ciso entre as doutrinas catélica e ortodoxa, a decadéncia da metade ocidental do Império Romano sob a pressio das invasoes de tribos germAnicas. Estas, todavia, uma vez estabelecidas no seu novo terri- trio, aceitaram 0 quadro da eivilizagdo cristd romana tardia, ainda que imperfeitamente; 6s reinos locais que fundaram — os vandalos no norte da Africa, os visigodos na Espa- nha, 0s francos na Gétia, os ostrogodos lombardos na Italia — foram Estados provin- ciais da periferia do Império Bizantino, voltados para 0 Mediterraneo e sujeitos aos choques © A influéncia do seu poder militar, comercial e cultural. Em 630, quando os exércitos bizantinos reconquistaram aos sassAnidas a Siria, a Palestina c o Bgito, a recuperacao das provincias ocidentais parecia ainda possivel. O Isla Dez anos mais tarde, a oportunidade desvaneceu-se, pois uma forga tremenda ¢ com- pletamente inesperada fazia-se sentir no Oriente: os arabes, sob 0 estandarte do Isla, asso- Javam as provincias bizantinas do Oriente Préximo da Africa. Em 732, um século apés a morte de Maomé, tinham-se apoderado do norte da Africa e de quase toda a Espanha, ameagando juntar o sudoeste da Franga as suas conquistas. 340 Historia da arte Seria dificil exagerar 0 impacto do avango fulminante do Isti no mundo cristo. O Império Bizantino, privado das suas bases do Mediterraneo Ocidental, era obrigado a con- centrar todos os seus esforgos para deter os maometanos no Oriente, A sua impoténcia no Ocidente (onde conservava apenas uma preciria posi¢ao na Itélia) deixou as costas européias do Mediterraneo, desde os Pireneus a Napoles, expostas aos incursores mucul- manos do norte da Africa ou da Espanha. A Europa Ocidental viu-se onto forcada a desenvolver 0s seus proprios recursos, politicos, econémicos ¢ espirituais. A Igreja de Ro- ma quebrou os tiltimos lagos com 0 Oriente ¢ buscou apoio no norte germanico, onde © reino dos francos, sob a diresao enérgica dos monarcas carolingios, ascendera & catego- ria de poder imperial durante 0 século VIII. Carlos Magno Quando o papa, no Natal de 800, conferiu o titulo de imperador a Carlos Magno con- firmou solenemente a nova ordem politica colocando a Santa Sé ¢ toda a Cristandadé ocidental sob a protecao do Rei dos francos e dos lombardos. Mas a legitimidade do Im- perador ficou dependendo do papa, 20 contrario do que sucedia antes, quando a eleigo do chefe da Igreja tinha que ser ratificada pelo imperador de Constantinopla. Este dual ‘mo, interdependente da autoridade espiritual e politica da Igreja ¢ do Estado, iria distin- guir 0 Ocidente tanto do Oriente Ortodoxo, como do sul islamico, Situacdio que era simbolizada pelo fato de o imperador nao residir em Roma, embora tivesse que ser coroa- do li: Carlos Magno construiu a sua capital no centro dos seus dominios, em Aachen (Aix-la-Chapelle), ponto de encontro da Franca, da Alemanha ¢ da Holanda no atual ma- pa da Europa. O Isla e 0 Ocidente Durante esse tempo, o Isla criara uma nova civilizagdo, que se estendia desde a Penin- sula Tbérica, a oeste, até o Vale do Indo, a leste, uma civilizagao que alcancou 0 apogeu muito mais depressa que o Ocidente medieval. Bagdé, no Tigre, a cidade capital de Harun al-Rashid, rivalizava em esplendor com Bizdncio. A arte, o saber ¢ 0 artesanato islamicos iriam ter ume larga influéncia na Idade Média européia, desde a ornamentagao de arabes- cos & fabricacao do papel e os algarismos érabes até a transmissao da filosofia e da ciéncia gregas através dos escritos dos eruditos muculmanos. Até a nossa linguagem revela essa divida através das palavras de origem drabe que usamos correntemente. E, pois, de toda a justica que nos familiarizemos com algumas das realizagées artisticas do Isla antes de nos ocuparmos da arte medieval na Europa Ocidental | { Capitulo 1 A arte muculmana {A incrivel rapidez com que o Isl se expandiu através do Oriente Préximo edo norte da Africa continua a ser um dos mais espantosos fendmenos da hist6ria do mundo. Em dduas geragdes, a nova fé conquistou um territério mais vasto e maior miimero de crentes (que o cristianizmo em trés séculos. Como foi possivel a um grupo de tribos semicivilizadas Go deserto ircomper da Peninsula Arabica e impor 0 seu dominio politico e religioso a popu- ages bem superiores em atimero,riqueza e heranca cultural? Que eles tiveram a vantagem da surpresa, sande aptidao para a luta e uma fandtica vontade de veneer, que tanto o poder mnilitar de Bizancio como 9 da Pézsia estayam entdo em precadrias condipbes, tudo isso foi aporitado, Essas circunsténcias favordveis podem contribuir para explicar os éxitos inciais dos Arabes, mas nao a natureza duradoura das suas conquistas. O que comecara como uma vitéria da forca logo se transformou num triunfo espiritual, quando o Isté ganhou a fidel Gade de milhdes de convertidos. Ao que parece, a hova religiao, mais do que as anteriores do Oriente helenizado, deve ter vindo ao encontro dos anseios de grandes multid&es. 0 Isla deve muitos dos seus elementos essenciais & tradigdo judaico-crista. A palavra Isa significa "submissao”: os muculmanos so os que se submetem a vontade de Ali, Garrveama 342 Historia da arte © Deus tinico todo-poderoso, como se revelou a Maomé ¢ ficou consignado no Cora as escrituras sagradas do Isli, com freqiiéncia inspiradas na Biblia; os profetas do Velho ‘Testamento ¢ o préprio Jesus sZ0 tidos como precursores de Maomé, Os seus ensinamen- tos incluem os conceitos do Juizo Final, do Céu e do Inferno, dos anjos e dos deménios. Os mandamentos éticos do Isla também so fundamentalmente semelhantes aos do judaismo ¢ cristianismo. Por outro lado, nao ha ritos que exijam uum sacerdé muculmano tem igual acesso a Ald e as suas obrigagées religiosas sio simples: a oragdo a certas horas do dia (a s6s ou na mesquita), a esmola, o jejum e uma peregrinagao a Meca. Todos os verdadeiros crentes so como irmaos, membros de uma grande comunida- de. Chefe religioso e temporal enquanto vive, Maomé legou uma crenga que modelou lum novo tipo de sociedade. A concentragao da autoridade religiosa e politica nas maos de um tinico chefe foi costume que perdurou: os califas, sucessores ou “representantes"* do Profeta, basearam os seus direitos no parentesco com as familias de Maomé ou dos seus primeiros fitis. A caracteristica impar do Isla — e o cerne da sua extraordinaria atragto — é a fusio de elementos étnicos ¢ universais. Como 0 cristianismo, foi aberto a todos os homens, acentuando a fraternidade dos crentes perante Deus, sem distingo de ragas ou de cultu- ras, Por outro lado, como o judaismo, era também uma religiéo nacional firmemente cen- ttada na Arabia, Os guerreiros érabes que, conduzidos pelos primeiros califas, se langaram A conailista'dat Terra para Alé ndo esperavam converter os infiéis ao Isla; 0 scu objetivo era simplesmente 0 de governd-los e forgé-los A obediéncia a eles prdprios, os servidores do nico ¢ verdadeiro Deus. Todos os que desejassem participar nesta condicao privilegia- da, aderindo ao Isla, tinham que se tomar arabes por adoc&o: no sé deviam aprender a lingua arabica para lerem 0 Cordo (se Ald escolhera esta, linguagem, as suas palavras ndo podiam set traduzidas em linguas inferiores), mas também integrar-se no quadro so- cial, juridico e politico da comunidade islamica. Nao se deixando absorver pelos povos conquistados, assimilaram as suas culturas ¢ adaptaram-nas as exigéncias do préprio credo. ARQUITETURA Na arte, herdaram o estilo paleocristio bizantino, com as suas reminiscéncias helenis- ticas ¢ romanas, ¢ também as tradigdes artisticas da Pérsia. A contribuigaio da Arabia pré- iskémica ficou limitada a sua bela escrita ornamental; povoada em grande parte por tribos némades, nao tinha arquitetura monumental e as imagens esculpidas dos deuses locais cairam sob a interdigtio de Maomé contra a idolatria, A principio, 0 Isla, como o crist nismo primitivo, ndo fez nenhuma exigéncia as artes plisticas ou & arquitetura. Durante os cingtienta anos seguintes & morte do Profeta, o lugar para a oragdo tanto podia ser uma igreja crist@ confiscada como uma sala persa de colunas, ou até qualquer campo re- tangular delimitado por uma cerca ou um fosso. O tinico elemento comum a todas a estas mesquitas improvisadas era a marcacdo da gibla (a diregao de Meca, para onde se voltam. ‘0s muculmanos em oracao): esse lado devia ser destacado por uma colunata ou simples- mente encontrar-se oposto a entrada, Mas no fim do século VII os soberanos islamitas, agora firmemente estabelecidos nas. terras conquistadas, comegaram a erigir mesquitas e palacios em grande escala, como sim- A arte mugulmana 343 olos visiveis do seu poder, com a ambigHio de exceder todas as edificagdes pré-islamicas ‘em tamanho ¢’esplendor, Esses primeiros monumentos da arquitetura mugulmana nao se ‘conservaram sob a forma original. © que conhecemos do seu tracado e decoragao revela {que eles foram criados por artifices do Egito, Siria, Pérsia e até Bizancio, que continua- ram a praticar os estilos que tinhani cultivado. Sé no decurso do séc. VIII se definiu uma tradigao islamica propria. . ‘A ARTE MUGULMANA DO ORIENTE A Grande Mesquita de Damasco Construida de 706 a 715, no recinto de um santuério romano, tinha as paredes cober- tas de maravilhosos mosaicos de vidro, de origem bizantina. Nos fragmentos encontrados (fig. 334), apenas esto fepresentadas paisagens e perspectivas arquiteturais, enquadradas por orlas ricamente ornamentadas, sobre um fundo de ouro. Nada de semelhante aparece na arte bizantina, mas seu estilo reflete claramente um ilusionismo que ja conhecemos de Pompéia. Parece que as tradigées antigas se mantiveram com mais vigor nas provincias do Oriente Préximo bizantino que na Buropa. O califa Al-Walid, que ergueu a mesquita, deve ter acolhido bem estes motivos helenistico-romanos, tao diferentes do contetido sim- bélico e narrativo dos mosaicos cristdos. Segundo um autor drabe de.época pouco poste- riot, aquela regio tinha muitas igrejas “‘encantadoramente belas e famosas pelo seu esplendor” e a Grande Mesquita de Damasco foi concebida para que os muculmanos no ficassem ofuscados por elas. 334, Mosaico de paigagem, 715 d. C. Gtande Mesquite de Damaseo Si 344 Histéria da arte 335, Doalhe da fachada do Palécio de Mshatta (Fordinia),c. 743... ‘Altura dos tridngos 24 em. Mu- seus do Estado, Berlin O Paldicio de Mshatta A data do enorme Palécio de Mshatta, no deserto (hoje na Jordana), tem sido muito discutida ¢ compreendemos facilmente por qué: o estilo da decoragdo da fachada (fig. 335) inspira-se em diversas fontes pré-islamicas. De acordo com os melhores testemunhos, © palicio foi erigido por um dos sucessores de ALWalid, provavelmente por volta de 743. A decoracio rendilhada ¢ 0 cardter dos motivos vegetais recordam vivamente a ornamen- tagao arquitetural bizantina (fig. 315) e as variantes na execugao indicam que ela se deve 2 artifices recrutados em varias provincias das antigas regides bizantinas do Oriente Préxi- mo. Ha também uma notavel influéncia persa, aparente nos leBes alados e outros animais miticos semelhantes aos dos tecidos ¢ da ourivesaria sassdtiidas (fig. 115). Por outro lado, © enquadramento geométrico de ziguezagues ¢ rosetas, repetido uniformemente em toda a largura da fachada, sugere um gosto pelos motivos simétricos abstratos caracteristico da arte islamica, A Grande Mesquista de Samarra Um exemplo elogiiente dos empreendimentos arquitetdnicos dos primeiros califas rea- lizados numa escala imensa e com incrivel rapidez é a Grande Mesquita de Samarra Gunto do Tigre, a noroeste de Bagd4), edificada sob Al-Mutawakkil (848-852). Apenas uma fo- tografia aérea (fig. 336) pode dar-nos uma idéia das vastas proporgdes desta mesquita, a maior até hoje construida. Os elementos fundamentais da planta (fig. 337) so tipicos das mesquitas deste periodo: um reténgulo, corn o eixo principal orientado para Meca, a0 sul, ericerra um patio rodeado por naves ou galerias laterais que ¢onduzem parede da gibla, cujo centro esta marcado por um pequeno nicho, 0 mihrab; do lado oposto vé-se © minarete, uma torre de onde os fiéis eram convocados & oracio pelo grito do muezzin (esta edificacto caracteristica derivou das torres de igrejas paleocristas da Sitia, que tam- : | i i ; : i ; | A arte muguimana 345 326, Mesquita de Mutawakkil (vista do norte), Sa ‘marra, aque, 848-852 €. C. 337, Planta da Mesquita ide Mutawakkil (segundo Creswell bém devem ter influido nas torres das igrejas medievais da Europa). A superficie da Gran- de Mesquita de Samarra ultrapassa os 38.000 metros quadrados; mais de metade desta rea estava coberta por um telhado de madeira apoiado em 464 suportes (hoje desapareci- dos, juntamente com os mosaicos que cobriam as paredes). O mais espetacular aspecto deste conjunto é o minarete, ligado & mesquita por uma rampa. A sua concepcao ousada ¢ invulgar, com uma escadaria em espiral até a plataforma do alto, recorda os zigurates da antiga Mesopotamia, como a famosa Torre de Babel, nessa época ainda em bom esta- do de conservagao. Terd Al-Mutawakkil pretendido anunciar ao mundo que o reino dos califas era 0 herdeiro dos impérios do antigo Oriente Préximo? A ARTE HISPANO-MOURISCA A Mesquita de Cordova Para se ter uma nogdo do efeito interior da Mesquita de Samarra, devemos nos voltar para a de Cérdova, na Espanha, iniciada em 786. Apesar de consagrada ao culto catélico depois da reconquista da cidade em 1236, 0 edificio conserva 0 seu carter mugulmano, 346 Histéria da arte A arte muculmana 347 ‘A planta (fig. 338) foi inicialmente delineada como uma versio mais simples do tipo de ‘Samarra, mas com naves apenas do lado da qibla. Meio século depois, a mesquita seria aumentada pelo alongamento dessas naves, novamente prolongadas entre 961 ¢ 965; vinte anos mais tarde, oito naves suplementares foram acrescentadas a leste, porque a margem do rio impedia qualquer alargamento para o sul. Estes sucessivos acrescentamentos reve- Tam a natureza'flexivel das plantas das mesquitas primitivas, que permitiam quadruplicar ‘© tamanko do templo sem afasté-lo do plano inicial. Logo na entrada nos deparamos com ‘uma floresta de colunas aparentemente infindavel, sem nada mais que a dirego das naves para nos guiar até a gibla, ( santuério era coberto por um telhado de madeira (agora substituido por absbadas) assentando sobre arcadas duplas de um notavel e pitoresco tragado (fig. 339). Os arcos inferiores so em ferradura, uma forma que aparece em edificios pré-iskamicos do Orierite Préximo, mas que @ arquitetura muculmana tornou peculiarmente seus. Suas bases sao colunas curtas e finas, de uma espécie bem conhecida desde os tempos romanos ¢ paleo cristéos. Essas colunas, porém, suportam igualmente impostas de pedra que serve de ‘apoio a um segundo grupo de arcos. Teria sido este dispositive uma soluclo criada pela necessidade, porque 0 arquiteto encarregado de construir a mesquita com urgéncia teve ‘que utilizar as colunas de um edificio anterior? Se foi assim, decerto tirou melhor proveito 40, Capea de Vilaviciosa, Mesquita de Cordova, 961-965 a. C. 348. Historia da arte do artificio, porque o efeito produzido é muito mais leve ¢ etéreo que o de qualquer siste- ‘ma de suportes e arcos simples. Uma elaboragao anterior do mesmo principio encontra-se na Capela de Villaviciosa Gig. 340), uma cémara abobadada a Norte do mikrab, que data da campanha de constru- gio de 961-965. Encontramos aqui arcos lobulados em trés filas sobrepostas, entrecruza- dos de modo a formar grilhagens ou bandeiras ornamentais complexas. A abdbada revela ainda maior imaginago; oito arcos, ou nervuras, cruzam-se em varias direpdes criando uma rede de alvéolos no espago quadrado. E esclarecedora a comparagio do efeito espa- ial da mesquita de Cérdova com o da arquitetura bizantina (v. fig, 316): nesta tltima, ‘espago & sempre tratado como volume, possui uma forma nitidamente definida, enquan- to-em Cérdova os seus limites sao deliberadamente indefinidos, de maneira que nos parece algo de fluido, ilimitado ¢ misterioso. Mesmo na Capela de Villaviciosa, as saliéncias e as reentrdncias impedem-nos de ver as paredes ou abdbadas como superficies continuas; como em uma gaiola rendilhada, o espaco fica escondido € contudo ligado ao que o envolve. E um estilo tipicamente mouriseo (hispiinico e norte-afticano) que chega 20 méximo requinte no palicio da Alhambra de Granada, a tltima praga forte dos mugulmanos na Peninsula durante a Baixa Idade Média. A parte mais rica, 0 Patio dos Ledes e os aposen- tos ao redor, foi construida de 1354 a 1391 (fig. 341). As colunas tornaram-se esguias co- 34L. Patio dos Leses, Alhambra de Gra nada, 1354-91 A arte mugulmana 349 342. Decorago de estuque Sala das Duas Inmis, Alhambra de Granada mo caules de flores; suportam arcos peraltados de configuracio extravagantemente ‘complexa, talhados em paredes que parecem reduzidas a uma trama ornamental seme- Thante a teias de aranha. ‘Nas superficies interiores (fig. 342) encontramos a mesma renda de arabescos decorati- vos, realizada em estuque ou em azulejos delicadamente coloridos — uma variedade ilimi- tada de motivos decorativos incluindo faixas com inscrig6es, mas disciplinados pela ordem ritmica e pela simetria. O efeito é infinitamente mais rico que o da fachada de Mshatta, ‘mas retrospectivamente os dois monumentos, separados por seis séculos ¢ toda a extensao do Mediterraneo, aparecem claramente ligados pela mesma conceprao fundamental das formas. A abébada mourisca passou por um processo evolutivo andlogo: as nervuras da Capiela de Villaviciosa desapateceram atris dos “favos”” formados por um sem-niimero ;- de alvéolos, emoldurados por atcos mindseulos, que pendem dos tetos como estalactites. {Nao admira que a Mesquita de Alhambra surja 4 imaginacdo romantica do Ocidente co- \_ mo a representagao visual de todas as maravilhas de As Mil e Uma Noites. 350. Hisidria da arte 343. Patio (visto do lado da gible), Madrasah do sultéo Hasan, Cairo, 1356-63, ‘A ARTE TURCO-MUGULMANA : A partir do século X, os turcos seldjiicidas avangaram gradualmente pelo Oriente Mé- io, onde se converteram ao islamismo, dominaram a maior parte da Pérsia, da Mesopo ‘Amia, da Siria ¢ da Terra Santa, e arremeteram contra o Império Bizantino na Asia Menor. Foram seguidos, no século XIII, pelos mongéis de Genghis Khan — em cujos exércitos figuravam os mamelucos (povo aparentado aos turcos) — e pelos turcos otomanos. Os lltimos nao s6 deram fim ao Império Bizantino, pela conquista de Constantinopla em 1453, mas também ocuparam todo 0 Oriente Préximo ¢ 0 Egito, vindo a ser a maior po- téncia do mundo maometano. A crescente preponderancia do elemento turco na civiliza- so mugulmana esta patente na expansio para 0 Ocidente de um novo tipo de mesquita, & madrasah, criado na Pérsia sob a dominacdo seldjicida, no século XI. A Madrasah do suitéo Hasan, no Cairo Um dos exemplares mais imponentes ¢ a Madrasah do sultéo Hasan, no Cairo, con- tempordnea da Alhambra de Granada, mas de espirito muito diferente; a sua principal caracteristica & um patio quadrado (fig. 343), com uma fonte ao centro. A cada lado do patio abre-se uma sala retangular abobadada: a que estd do lado da gibla, maior que as outras, serve de santudtio. A escala monumental destes recintos parece refletir a arquitetu- ra palaciana da Pérsia sassAnida (fig. 113), enquanto a clateza geométrica de todo 0 traga- do, acentuada pelas severas superficies murals, € uma contribuigao turea que voltaremos A arte muculmana 351 344, Mausoléu anexo & Madraseh do sal- Hasan a encontrar. Representa uma atitude perante 0 espago arquitetOnico completamente opos- ta & das mesquitas arabes de miiltiplas naves. Contiguo a parede da gibla da Madrasah do sultéo Hasan ergue-se 0 Mausoléu deste, um grande edificio cibico encimado por uma cdpula de ascendéncia bizantina (fig. 344). ais monumentos funerdrios eram desconhecidos na primeira época do Isla; foram adap- tados do Ocidente no século IX e tornaram-se especialmente populares entre os sultdes mamelucos do Egito. O Taj Mahal, em Agra : (0 mais famoso mausoléu da arquitetura islamica € o Taj Mahal em Agra (fig. 345), erguido tr&s séculos mais tarde por um dos soberanos muculmanos da India, Shah Jahan, ‘em meméria de sua mulher. © monarca pertencia & dinastia mongol, que viera da Pérsia, de modo que a semelhanga fundamental do Taj Mahal e do Mausoléu do sultéo Hasan € menos supreendente do que parece & primeira vista, Ao mesmo tempo, uma tal compar ‘cdo realga as qualidades peculiares que fazem do Taj Mahal uma obra-prima da sua esp Cie. © aspecto macigo do mausoléu do Cairo, de cornija saliente e cipula solidamente implantada, deu lugar a uma elegancia imponderdvel, proxima da leveza da Alhambra. ‘AS paredes de mérmore branco, quebradas por fundas reentrancias como nichos de som- bra, Iembram folhas de papel, quase transhicidas, ¢ 0 edificio inteiro dé a impressio de mal tocar no solo, parecendo suspenso da cipula, como de um gigantesco balio. 352 Histéria da arte 345, Taj Mahal, Agra, dia, 1630-48, As mesquistas Qs turcos otomanos, logo que se estabeleceram na Asia Menor, elaboraram um tercei- To tipo de mesquita, por um eruzamento da madrasah seldjuicida com a igreja bizantina de ciipula. Entre os primeiros ¢ mais extraordindrios resultados deste processo conta-se a ciipula de madeira da mesquita Ulu em Erzurum, que tem conseguido resistir aos fre- alientes abalos de terra da regio. Os turcos j estavam portanto bem preparados para apreciar a beleza de Hagia Sophia quando entraram em Constantinopla. A igreja de Justi- niano causou-Ihes tal impressao que encontraremos os seus ecos em numerosas mesquitas construidas em Istambul ¢ em outras partes, depois de 1453. Uma das mais impressionan. tes, a do sultéo Ahmed I, data de 1609 a 1616 (figs. 346-348). A sia planta modifica e regulariza o tragado de Hagia Sophia, convertendo-o num quadrado, com a ciipula cen- tral escorada por quatro meias-ctipulas, em vez de duas, e quatro clpulas menores préxi- A arte mugulmana 353 as dos minaretes dos cantos. A seqtiéncia ascendente dessas etipulas foi tratada com naravilhosa logica e geoméitica preciso, de mancira que o exterior é muito mais harmo- hnioso qule o da igreia bizantina. Assim, a primeira metade do século XVII, que viu enguer- fe tanto o Taj Mahal como a Mesquita de Ahmed 1, assinala 0 derradeiro florescimento arquitetdnico iskamico. 547. Panta da Mesquita de Alimed 1 (cegundo Unsal) 348, Detalhe da Mesquita de Ahmed 1 384 Histéria da arte REPRESENTACAO FIGURATIVA, Antes de tratarmos da pintura e da escultura muculmanas, devemos compreender a atitude islamica ante as representagdes figurativas. Foi muitas vezes semelhante & dos ico- noclastas bizantinos, mas hd diferencas significativas. Os iconoclastas mostraram-se con- trdrios as imagens sagradas mais que & representa¢io propriamente dita. Maomé também condenou a idolatria; uma das suas primeiras agdes depois do regresso triunfial a Meca ‘em 630 foi apoderar-se da Kaaba, um antigo santudrio drabe, para retirar quantos idolos 14 encontrou, idolos que se cré terem sido estdtuas. Estas, segundo 0 Corio, sio vistas como inspiradas por Satands, mas nada se diz das pinturas ou outros modos de repre- sentagio. A atitude do Profeta em relagZo a pintura foi ambigua. Segundo um antigo texto ara~ be, em 630 ele teria mandado destruir as pinturas murais de temas religiosos (provavel- mente biblicos) da Kaaba, com excegio de uma sé, da “Virgem com 0 Menino”, que ele teria protegido com as préprias maos. Este incidente e a falta de referéncia a esta questo na teologia muculmana primitiva leva a pensar que as imagens pintadas nunca foram um problema para Maomé e seus sucessores imediatos. Nenhuma tradigio pictural existia en- ttre os drabes e por isso a pintura religiosa mugulmana S6 podia inspirar-se em fontes es- trangciras ¢ desenvolver-se com assentimento das autoridades que podiam fazer vista grossa ‘ou mostrar-se algo tolerantes para com as imagens sagradas de outras religides. (Maomé talvez salvasse a ‘‘Virgem com 0 Menino” para no ferir os sentimentos de antigos eris- ‘Bos que se encontravain entre os seus disciputos.) ‘Todavia, esta iconoclastia passiva nao impediu os érabes de aceitar a arte figurativa secular dos territérios conquistados, Rejeitaram todas as esttuas como abominaveis, mas as paisagens helen{sticas decoram mesquitas (fig. 334) ¢ animais sassanidas aparecem dis- seminados na decoracdo em relevo da fachada da Mshatta (fig. 335). E nas ruinas de ou- {10 palicio, contempordneo do anterior, apareceram fragmentos de afrescos com figuras humanas. $6 a partir de aproximadamente 800 encontramos censuiras severas A figuracao em si, talvez por influéncia de judeus convertidos. Teme-se 0 periga, jd no de idolatria, ‘mas de presungao; ao representar seres vivos 0 artista usurpa um ato criador reservado a Deus, Os objetos decorados Em principio, todas as figuras humanas ou de animais foram proibidas. Na prética, 2 interdi¢ao apenas foi rigorosa quanto as representagdes em tamanho natural, ou maior. Parece que se desenvolveu a convicedo, em especial nas faustosas cortes dos ealifas e de outros principes, de que as imagens de seres vivos escapavam a alcada da lei desde que nao projetassem sombras, fossem de pequenas dimensdes ou reproduzidas em artefatos de uso corrente — tapetes, loucas, tecidos, etc. E assim 0 homem e os animais permanece- ram na arte do Iski, reduzidos pouco a pouco a motivos ornamentais, sem mais importén- cia que a decoragao geométrica ou fitomérfica, De resto, essa tendéntia era de tradi¢ao antiquissima entre os povos que forjaram a civilizacdo islimica. Arabes, persas, turcos mongéis, todos tinham em comum o amor pelos objetos portateis ricamente decorados, heranca do seu passado de nomades, O Isla A arte muculmana 355 apenas reforgou um gosto que Ihe era natural. Quando as técnicas das artes dos nomades — fabricagdo de tapetes, ourivesaria, trabalho de couro — se fundiram com 0 vaste reper- trio de formas ¢ materiais acumulado pelos artificies do Fgito, do Oriente Préximo e do mundo greco-romano, as artes decorativas muculmanas atingiram um grau de suntuo- sidade jamais igualado desde ento. Os exemplos que mostramos néo podem dar mais que uma remotissima idéia da sua infinita variedade. E caracterfstico que uma boa parte dos mais belos espécimes se encontre em igrejas ¢ palicios da Europa Ocidental; quer fossem obtidos por compra, por dédiva ou como despojos de saque pelos cruzados, foram apreciados através da Idade Média como mara- vilhas de artesanato imaginativo ¢ muitas vezes imitados. Assim & 0 Manto bordado da ‘coroagio dos imperadores germanicos (fig. 349), feito por artifices muculmanos de Paler mo para Rogério II da Sicilia, em 1133-34, meio século depois de os normandos terem ~conquistado a cidade a0s islamitas (que foram senhores dela durante 241 anos). O agrupa- mento simétrico de dois ledes atacando camelos, de ambos os lados de uma simbélica Arvore da vida, é um motivo cuja ascendéncia remonta a milénios no Oriente Préximo _-aitigo (fig. 107); aqui, inscritos em quartos de circulo e cobertos de variadas espécies de ornamentos, os feroz2s animais constituem um admirével motivo decorative que 0s apro~ xima do estranho quadriipede de bronze executado cingllenta anos depois numa parte muito diferente do mundo iskimico, o nordeste da Pérsia (fig. 350). Tem quase um metro de altu- rae € uma das maiores esculturas de vulto redondo de toda a arte islamica, Contudo, nio se pode chamar a estatua de um animal, pois the falta esse cardter. EB um vaso, um defumador perfurado, de configuracio semelhante & de um quadripede, mas 0 aspecto representativo das formas parece secundério e fortuito. Nao podemos dizer de que espécie de animal se trata e, se apenas uma parte dele subsistisse, poderidmos ter muitas diividas de que representasse qualquer coisa, to abstrato ornamental € o tratamento do corpo. 249, Manto da coroasdo dos impecadores germnicos. 1133-34. Seda vermelha, bordada a ouro; larg. 3,40. Kunsthistorsches Museum, Viena 356 Histéria da arte san, [rd 1181-82, Bronze al, 0,85 m. The Metropolitan Museum of Art, No. va Torque (Rogers Fund, 1951) Pintura © destino da pintura islémica, entre os séculos VEIT e XIII continua quase inteiramen- te desconhecido. Ficaram tao poucas obras dos cinco séculos que se seiguiram 20s mosaic cos de Damasco, que acreditarfamos no completo desaparecimento da expressao pictural 50b o Isl se as fontes lterdrias nao nos dessem a prova do contrério, Mesmo assim, pare- ce evidente que a tradicdo da pintura foi mantida gragas a artistas de utras religides. Mes. tres bizantinos estiveram a servig de soberanos érabes eas comunidades crstas do Oriente que sobreviveram no império maometano deviam incluir muitos pintores. Mas que espécie de pintura poderiam desejar os mugulmanos? E de supor que havia uma maior ou menor procura, exigida pela ilustragio de textos ientificos. Os drabes tinham herdado esses manuscritos dos Bizantinos, no Oriente Pro- ximo ¢; como estavam vivamente interessados na ciéncia grega traduziam-nos para a sua propria lingua. Isso implicava também a reprodugao das ilustracdes, pois que formavam ‘uma parte essencial do contetido, quer fossem diagramas abstratos ou imagens figurativas (como nos tratados de medicina, de zoologia ou de botdnica). Fstas obras situam.se entre os mais antigos manuscritos ilustrados isldmicos, embora nenhuma seja anterior a 1200, A figura 351 ¢ extrafda de uma tradugdo arabe, assinada e datada de 1224, do livio De Materia Medica, de Dioscérides; ai sc vé o médico grego Erasistratus reclinado num leito ¢ conversando com um ajudante (ambos providos de uma auréola, como figuras veneré. eis). Note-se que o escriba também executou a iluminura ou, melhor, copiou-a juntamen. A arte muculmana 357 351, Brasistratus e umn Disco, ‘minara de uma tradupto érabe do. De ‘Materia Medica de Doscirides, 1224 Smithsonian Institution, Frees Galery of Art, Washington, D.C. 352, Desenho a pena, a tnta verme- tha, dem manusrito de Hariri. Me- sopatimico (2), 1323. Museu Bitini- 0, Londres te com o texto. A fonte original deve ter sido uma miniatura antiga tardia, com figuras ‘em trés dimensdes, num fundo com perspectiva, mas é preciso um grande esforeo de ima- ginacio para encontrar vestigios dessas caracteristicas nas verso presente, em que tudo ; perdeu 0 relevo ou ganhou carter ornamental. As formas permanecem rigorosamente na | superficie da pagina, como 0 texto, e 05 tragos & pena denotam uma firmeza ritmica a0 fim da caligrafia. Poderia pensar-se que ilustrago de manuscritos abriu caminho na arte islamica gracas 0s escribas que desentiavam por necessidade do oficio, porque entre os muculmanos esta profissio era muito antiga e considerada; um caligrafo habil podia executar ilustragdes, ‘se 0 texto as exigisse, sem corter o risco de ser chamado de pintor (uma abominagao aos olhos de All). Assim ou de outro modo, o estilo caligréfico das representagdes 4 pena, | ‘com ou sem aplicagdo de cores, aparece cedo na literatura arabe profana, como no Maga- 358 Hisidria da arte ‘mat de Hariri. Estes deliciosos contos, escritos por volta de 1100, foram provavelmente ilustrados logo nos cem anos scguintes, pois se conhecem manuscritos ilustrados dessa obra desde o século XIII. © desenho da figura 352, de um exemplar com a data de 1323, € um inequivoco descendente do estilo que encontramos na iluminura de Dioscdrides, da. tada de um século antes. i PERSIA, Os comerciantes drabes tinham estado em contato com 0 Extremo-Oriente mesmo antes do advento do Isla, ¢ algumas alusdes incidentais a pintores chineses por autores muculmanos antigos indicam que esses contatos thes tinham dado um certo conhecimento da arte da China. Mas foi s6 depois da invasio mongol do século XIII que a influéncia chinesa se tornou um fator importante na arte maometana. Sente-se mais fortemente nos ‘manuscritos ilustrados persas, realizados durante 0 dominio mongol, de 1300 em diante, {ais como a Paisagem de Verdo da figura 353, estampa 35, Mais de trés séculos antes, durante a dinastia de Sung, os pintores chineses tinham criado umia arte paisagistica de grande profundidade atmosférica. As montanhas envolvidas em brumas e as torrentes cau dalosas traduziam uma visio poética da natureza selvagem, O pintor mongol deve ter co- nhecido bem esta tradigio, pois os elementos essenciais reaparecem na sua obra, enrique. cidos por um novo sentido de cor que o levou a acentuar 0 vermelho ¢ o amarelo das folhas mortas no outono. Teriam paisagens deste género alcangado a Europa medieval? Nao sabemos, mas o fato de a pintura paisagistica no Ocidente, que tinha estado adorme- cida desde os fins da Antigilidade, ter comecado a ressurgir justamente nesta época (figs, 496, $01) pode ser mais do qué uma coincidéncia, ALE que ponto essa influéneia enriqueceu ¢ transformou a tradigao da iluminura isla- mica vé-se bem na cena da Luta entre o Principe Humay e a Princesa Humayun (fig, 354): ndo é um desenho colorido, mas uma ambiciosa composig&o pictural que enche toda a Pagina. A narrativa a ilustrar serviu meramente como um ponto de partida para o ar 353. Paisagem de Verdo, do Album: do Conquistador (SultZo Maomeé I} Mongol (. es. 35), Museu do Pal cio de Topkapu, Istambul 4354, JUNAYD. Luta endre 0 Prin ‘ine Humay ea Princesa Humayun, dev manuserito persa, 1396. Mu- seu Britnico, Londres muito do seu esforgo foi dedicado ao cenirio mais do que & propria aco. Deve ter sido dim grande admirador das paisagens chinesas, porque as rochas, érvores ¢ flores, sombrea- das com graga ¢ delicadeza, refletem a sua origem extremo-oriental, Ao mesmo tempo, tragado possui uma qualidade decorativa que é caracteristicamente mugulmana; sob esse Gspecto, parece mais proximo dos motivos dos tapetes persas que da etérca amplidio da pintura paisagistica chinesa. ‘Outro resultado importante da influéncia do Extremo-Oriente foi, ao que parece, a apariglo de temas religiosos em miniaturas persas. Os soberanos mongéis, familiarizados com a rica tradigo da arte religiosa budista da {ndia ¢ da China, nao partilhavam 0 hor- ror dos seus predecessores & simples idéia de representar Maomé. Em todo 0 caso, apare- do Profeta em manuscritos iluminados persas desde o século XIV. Como uncer tintiam sido representadas, os artistas encontraram nas artes cristd e budista as fon- tes de inspiragdo. O resultado foi uma curiosa mistura de elemieitos, com frequiéncia mal assimilados. G 360 Histéria da arte Apenas em raras ocasides a pintura religiosa muculmana atingiu um nivel que permita ‘a comparagio com a arte das religiGes mais antigas. Uma dessas composicdes ¢ a maravi- Thosa miniatura que mostra a Ascensdo-de Maomé (fig. 355, est. 36). No Cordo, lemos que o Senhor “disse ao seu servidor que fizesse uma viagem de noite... até o remoto lugar de oragiio que rodeamos de béngaos, a fim de que nos possamos manisfestar a Ele.” ‘Vieram depois autores que acrescentaram minuciosos pormenores a este breve texto: a as- censao dera-se em Jerusalém, e fora guia 0 anjo Gabriel; Maomé elevou-se através de sete éus, onde encontrou os seus precursores, ineluindo Adio, Abraio, Moisés ¢ Jesus, antes de ser conduzido a presenga de Ald, Toda a viagem foi concebida como andloga a de Elias, que subiu ao céu num carto de fogo. F ainda se dizia que Maomé cavalgara numa miracu- osa montaria branca chamada burag, mais pequena que um macho ¢ maior que um bur- To, € com 0 focinho semelhante a um rosto humano; alguns até Ihe davam asas... A ascendéncia desta cavalgadura ¢ facil de encontrar; deriva dos monstros guardiaes, alados #355, Ascenafo de Maomé, de um ma uscrito persa, 1539-1543, British Li. brary, Londres A arte muculmana 361 € de cabega humana, da Mesopotamia antiga (fig. 101), ¢ dos seus parentes proximos, fas esfinges ¢ centauros que tinham sobrevivido, apenas como motivos ornamentais, no ‘grande cadinho da arte decorativa islamica: Af jaziam adormecidos, por assim dizer, até ue alguns escritores os identificaram ao burag. Nesta iluminura, as asas ficaram redus das ao colar de penas em volta do pescoco do animal, para néo prejudicar a reprodugao da sela. Gabriel indica o caminho, através de um céu azul profundo, salpicado de estrelas; debaixo, entre as nuvens, hé um corpo celeste luminoso, provavelmente a lua. Os elemen- tos extremo-orientais manifestam-se claramente nesta visio poética. Encontramo-los nos halos dourados chamejantes, atrds de Gabriel e do Profeta, trago freqiiente na arte budis- tar ha tstilizacdo ondulada e “intestinal” das nuvens, nas vestes ¢ tipos fisiondmicos dos anjos. Todavia, a composigio, no seu conjunto — 0 movimento agitado dos setvidores, angelicais convergindo de todos os lados para Maomé — lembra fortemente a arte cristal. ‘A iluminura representa deste modo um verdadeiro — e singularmente feliz — encontro do Oriente ¢ do Ocidente. Apenas foi feita uma pequena concessio 2 iconoctastia islami- tex 6 rosto do profeta esté em branco, manifestamente por se entender que seria uma here- sia representé-lo, Cenas como estas aperecem em obras historicas ou Titerarias mas nunca em manuscri- tos do Cordo, Nem mesmo os persas ousaram, segundo parece, ilustrar diretamente 0 Li- vo Sagrado, ainda que — ou talvez por isso — cOpias iluminadas da Biblia nao fossem de todo desconhecidas no mundo islamico. 0 Cordo permaneceu um dominio reservaclo 356. Péginacaligrtica, do Albu do Conquistador (Suliéo Maomé 1). ‘Trabalho tuo (7), ste. XV. Museu do Paldcio de Topkapu, Istanbul onic ec 362 Historia da arte aos caligrafos, como fora desde o inicio do Isla. Nas suas mos, os caracteres drabes converteram-se num conjunto de formas assombrosamente flexiveis, capazes de uma infi- nita variedade de combinagdes decorativas, tanto geométricas como curvilineas. Os me- Ihores desses tragados s4o obras-primas de imaginiarao disciplinada que parecem anunciar, de modo estranho, certa arte abstrata do nosso tempo. A pagina reproduzida na figura 356, estampa 37, devida provavelmente a um caligrafo turco do século XV, representa ape- nas o nome de Ald. E, na verdade, maravilhosa em complexidade, dentro de um severo jogo de regras formais, possuindo juntamente as caracteristicas de um labirinto, de um motivo de tapete ou de algumas pinturas ndo-figurativas. E, mais que em qualquer outro objeto, nela estd resumida a esséncia da arte muculmana,

Você também pode gostar