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Colegio ANTROPOLOGIA SOCIAL siretor Gilberto Velho +ORSo LORIE Verena Alberti + Movnvesto PUNE NA CADE Janice Canta +0 Bsrinro MauTaR +O Matranes 4 REvORUCA Celso Casts + Veutos Murraores Angela Castro Gomes, DDora laksman, Eduardo Stotz {Da Vipa Newwosa [Li Fernando Duarte + Gasoms be Procaann Maria Dulce Gaspar = CuLrura: unt Concer AwrRorovacico Roque de Barros Laraia Camas Charles Lindhol + AuromDaDe be AHETO ‘Myriam Lins de Barros lus be HistoR. ‘Marshall Sahlins Os Manaus Miackosos lzabethTravassos = Disqo # Diveecivens “INDWIDUALISMO # CULTURA = Paofr 0 & MEtAMONFOSE + Susjeripabe £ SOCEDADE SA Uro814 URBANA Gikerto Velho +0 Mono Funk Casuoca +O MistEX0 UO Sano Hermano Vianna +O Munpo bs Astwotocia ‘Luis Rodolfo Vilhena + Anasvert: os Drusts Camas [Eduardo Viesirosde Castro Gilberto Velho PROJETO E METAMORFOSE Antropologia das sociedades complexas 2 edigao Jorge Zahar Editor "Rio de Janeito Copyright © 199, Gert Velho “Teds os dinis rervados -Arepmslugio io autrizan desta publiasso 90 odo ‘rem parte const lao do copyright Le 598) 199 Dini pr ct eg conrad om "Rye Zar Er Lda tee Mara sb oth. Rio de es 24026 / oe) 22 5123 out eee leo arteroe: 1984 thal. Catalogassorna fete Sindicio clonal dos ore de as "athe, Gilbert V5tsp Payee e metamortse: antopologia das ‘Seledadescompleas / Gilberto etna. ea Rio de ner: Jorge Zaha, 1999 (Areopolgt sca) Inc ogra ISN 85 710-390-2 1. Aniopolgl soci. HS pp su6 o.0901 bu 5167 SUMARIO et Unidade e fragmentacto fem sociedades complexas ‘Tajetsria individual e campo de poseibllidades .......sccssceseeosee Individua ¢religito na cultura brasileira Cultura popular e sociedad de massas, ‘A vitiria de Collor Sobre homens marginals Dimensdo cultural e politica ‘do mundo das drogas erature desvio: Proust e Nelson Rodrigues ‘Meméria,identidade e projet. © grupo e seus limites Destino e violencia Refertncse bibliogrificas uw a ° N28 io B cereal UNIDADE E FRAGMENTACAO EM SOCIEDADES COMPLEXAS' ‘Quero narrar agul um episddio que me parece exemplar e itil ppara uma reilexio sobre o estudo das sociedades complexas. No caso, especificamente, estarei voltade para a contribuigio dde uma andlise antropoldgiea para vm melhor conhecimento dda sociedade brasileira, Bram cerca de dezessete horas na Av. Nossa Senhora de Co2a- ‘abana, Posto Ses, perto da esquina da Rua Francisco $8, Co>a- ‘abana, Zona Sul do Rio de Janelzo. Oepis6dio se passa no final dda década de 1970, agosto de 1978, exatamente. Era umn dla de Semana. Estava caminhando em direcio a Ipanema. Notel um Sjuntamento de pessoas. A primeira hipotese foi de algum ai ents ow do lguém passando mal. A medida que fi me apr ‘mando, o ajuntamento comesou a tomar forma, Notel uma espe tle de fila sendo organizada. No seu inicio, vi um senhor nes, forte, ce uns sessenta e pouicos anos, eabeca branca, com ties rodestos, sentado em um pequeno banco. Naquele momento, Se rotiaea eee omega en de meiaidade e mals velhas, brancos,negros e pardos. Brocorei me infonmar. Umm sollado da Plica Miliar judava a forganizar fila, Entabulei conversagie com um senior de tern, {guarentio, Na sus frente estavam duas empregadas coméstics, Vi senhoras de “classe média” vestidas com um certo apuro, 4, Confertnla proferda por anata do concur para professor tia ‘seu Nacloncl/ UFR ot 10 desea de 992 Publeada nga fn Velho, Ciberoe Vl Odeo: Donors. Ri dene, Ca {a East Avangados/C/ UPR, 1992, " 12 proto emetamofoe funcionsrios de um banco que encerrava oexpediente, motorstas fe tocadores de um ponto de Gnibus proximo. Alguns coleginis fondlavam a fila até que duas adolescentes nos seus quinze anos fcabaram por aproximaremse. Eram, portanto, individuos de dlistntas categorias socais que se reuriam para participa, ou obsorvar participando” de um evento especifice. Com 0 que vi. ‘ecomasinformagoes obidas, rapidamente ficou delineado oque fstava se paseando, Osenhor, foc das atengoes,estavacaminhan- ddo s6 e, aparentemente sem maiores prefmbulos, teria incorpo- ado um “preto-velho”. Portanto, um esprit, uma entidade de ‘umbanda, “desceu”, tomando conta do médium/*cavalo”. A par~ tirdaquele momento, o senhorestavapossuid. Temporariamente, ‘0 dono do corpo passava a ser um espirito, reconhecido e iden- Uiicado pelas pessoas em volta como um “preto-velho"? Nesta situagdo, poderia até haver alguma redundincia devido a0 tipo fisico do medium: um senhor negro, sexagendrio, de cabega bran- ‘a. Isso no é regra geral. Um “preto-velho” pode incorporar em homens, mulheres, brancos, negros, pardos, pessoas mais velhas ‘4 mais novas.°O lato de haver no caso em pauta, esta “coinci- éncia”servia,talvez, como elemento de reforco da identidade {do.spirito, Nao se se alguém poderia ter pensado que ali estava '9 proprio “preto-welho” Ro apenss como expirito possestOr mas corporificado.O fato € que o modo de falar, o corpo meio encur- vvado e toto, toda a técnica de apresentagio, de postura e, de cea forma, de construgio do personagem, awnciavam a presenca de “um "preto-velho”incorporado Os consulentes aproximav am se 2. Na umbanda 0 “petotelho” &idenicad, em prnepi, om um Sotga eran, sdb, bondeao experene ebora psn tab apre- Ebr na dimer guerra Se vo ain FAssim como ta “pom ges" pose "Sexe" comunicarse através {Se median "avaon” do sox gnc mascin. {© Sire umbanda, tance e posses existe uma bibliografa brain ‘onhcida de bea gunidde, Para a peste discuss ver Maggi Yon" fn Guo derail snfto. Ru de Janel, Za 195, Upassre, George Luze Marco Auto. © serie da rcomts. Rio de (ard Bra ein decent abd mu feo Ri eae Rio de Jani, PPGAS/MN/UFRS (average masta), © Gon falves, Mizcia CO case da pola. Rio de Janeito, PPGAS/useu sae genta on wider snes 13 ‘em ordem, respetosamente, ¢ em voz mais baixa apresentavam “suas questoese problemas 20 “‘pretovelho" que os atendia, dan ‘do conselhos « orientacdo. A fila sumentow. Muitas curiosos f ram se aproximando. A essa altura, duas senboras e um senor ‘stavam desempenhando o papel de “ilhesdesanto”, fis mais fpraduados que assistiam & entidade ¢ organizavam a stuncio Definiam seus contornos e limites, Assim € que, depois de cerca de uma hora de consulta decidivam encerrala. Murmuraram palavrasininteligiveis para quem nfo estava pert, pararam 2 fila, eo médium salu do wanse, amparado.e ajudado. Em povcas minutos, fla se desfer, as pessoas se dspersaram © 0 proprio _éditim entzou em um 6nibus e foi embora sezinho * Quando tum antropélogo faz uma etnografia, uma de suas tar refas mais dices, como sabemos, aonarrar um evento, étrans- imitiro lima, 0 tom, do que esté descrevendo. A sucess30 dos fatos no tempo, onimere de participantes, a reconstituigs0 das {nteracies, slo etapas fundamentais mas, quase sempre, fici-se com a sensacio e/ou sentimento de que falta algo crucial. No faso, o que me parece mais importante 6 tontar transmit a Idéia de que, para as pessoas envolvidas, nada particularmente anormal estiva ocortendo. Havia uma certa surpresa, curosi- dade, graus diferentes de famillaridade mas, observel, sobre- tudo, um forte interesse combinado com evidente respeito.Cer- tamente, na multidao que percorria a Avenida Copacabana estavam pessoas que nio se preocuparam ou no notaram 0 {que estava se passand. Sem diivida, nem todos pararam para Ingressar na fla da consulta, Portanto, nto s6 nao afirmo que todos os passantes fossem umbandistas, como estou certo que poderiamos encontrar individuos esticos,indiferentes, ou mes- Naconal/UFR (dlssertagio de mestrado), 1983; entre outros. Para ema dy on Morac Eioysyciay. Berkeley, University of California Press, {97 Bate, Johne Middleton oh (orgs). Spt Maamip and Saely fr Af Landes, Routledge & Kegan Pal 1988 14 proto emtanorfie mo hostis aquela manifestagio, Como discutie! no decorrer deste trabalho, esta ¢ uma das prineipais caractersticas das sociedades comploxas — a coenisténcia de diferentes estilos de ‘ida e visdes de mundo No entanto, neste caso, ficou bem ‘ritido que fol formado um grupo com uma agio coletiva orga- nizada, sustentada em crengas e valores compartilhados. Ou Seja, em um ambiente exemplarmente metropolitano, com to- {das a5 caracterstcas clsssica, inclusive de relative anonima- to produziu-se um intoresse, um foco de atengio que congre- _gou individvos e categorias socials nitidamente distintos edi ferenciados, O mais relovante para a dimensio cultural do ‘episodio & a identiicagso de uma linguagem, expressdo de uma ride de signficalos nos termos de Geertz — web of meanings.” fara as pessoas que se aproximaram ou mesmo para as que ppassavam sem se deter, a informacao de que alguém estava recebenclo um preto-velho” era compreendida e assimilada. Por outro Indo, como ja observet, houve consenso na identifi- cagio da entidade. As técnicas do corpo, a apresentagio, 0 Imodo de falar, 9 postura ste, constitsiam um outro po de linguagem, conhecido pelos que ali se reuniam. Convém regis- ‘rar que néo é comum a ocorréncia deste tipo de situacao no ‘meio da mua, no horirio de tabalho. As entidades descem Ihabitualmente em ferreirose em lugares e momentos especais, situalizados, como nas fests de passagem de ano nas praas. 5, Ver Velho iro nai ctr: nl pare we enboptgia te sce cnteporas, Ri do Jno, Zar 185, Cap, 3 od Jorge 6. er Sims, Gaorg “The Mtropalis and Mental Life in On Iiua- iy au Soot Forms. Donald Levine (org), Chitage, Univeral of Ching Pres (1902197, p. 24-38 Pak, Raber. “The Ci: Suggestions for the Envesiatonof hun ehacar nthe oun envionment” ime fara of Solegy, XX 916» 57-612. Trade baal "A cidade sugetoes [ama ivesbgasi so comportaments amano no ro urban”, OIC rNetho (org) 0 Jeninen arb. Rode anc, Zany 1967, p. 29-72 ‘eho ier e Machado da Sia, Lats Ants, OrganizarSo social do eto urbane” Amun Antoolgel6 1977p. 7182 Pee Gear, Clon Tie heermention of Cues. Nowa York Basie Hooks 1973 Traduca ati A beopiage dr cae Bio defane, Zahae 1978. anid apenas cpein 15 Havia, por conseguinte, algo de atipico naquela incorporaci. O individuo $6, fora do terreiro e do ritual, entrou em tianse recebendo am “preto-velho”, Como disse, no inicio, nko era tuma aberragio na medida em que parecia ser um fendrieno conhecido, embora nao banal, para aquele universo. Conversei {depois com colegas antropéloges, estudiosos do assunto, iim como umbandistas, que, de certa forma, confirmaram 0 inusi- tado do episodio. A possessao, em principio, se da dentzo do ritual. No‘entanto, pode acorrer que uma entidade se incoxpore fora de um terreiro.e dos momentos previstos. Soube de outros episédios semelhantes que iustram essa possiblidade. A-déia bisica 6 que o controle sobre os espiritos € sempre um tanto precio e que ha, inevitavelmente, uma margem de imprevi sibilidade na rolagao com o sobrenatural. Nas sessbes, nos tor- reiros fora deles,em momentos esitungdes especinis hi uma certa domesticagao dessa relagio, com especialistas presentes {que devem saber lidar com os espiritos e com a possessio, * Quero dar destaque a dus vertentes do episédio narado Sugiro que, através do jogo e da relacao entre estas, é possvel pperceber mecanismos e caracterstcas fundamentals da sacie- dade brasileira o que também contribuiré para uma teoria mais, ‘eral das sociedades complexas Enfatizala presenga e participagto de individuos de categarias “sociais dstntas. Convém esmiucar isso um pouce mais. Mexco- net empregadas damésticas e senuoras de “classe média” que, em tse, poderiam ser suas patroas.Certamente, nSo era a hora de Jnvocar 0 “vost sabe com quem esti falando?”, nos termes da analise de Roberto da Matta ‘Arelagio hierérqica entre estas catogoris desaparecia fila dle consulentes, sem nenhuma precedéncia explicita, ano sor ‘aquela estabelecda pelomomento de chegada Isto, ais, seapli- Ds Mate, Roberts Carmi, atid dR de cs Za, ww. 16 peje metanofo fava a todos 05 membros da fla. Motorists e trocadores de Snibuis, com seus uniformes maltratados, misturavannse a ban- trios de temo e gravata — une carregande o palets, outros com fa gravata desabofoada et: Sabemos que podemosdistinguir tipos ocinis no s6 pelos temos ov qualquer outraindumentaria, mas ‘pelo modo de usilos. eterno. gravata estavam também alguns profissionals liberais, Conversei com um engeniro, com um [hdvogado e com um professor de geografia de curso secundario. ‘As pessons mais veltas ineluiam alguns aposentados civis e mi Iitates. Além dos estudantes uniformizados,estavam presentes ‘outros jovens, como buys e mogas vestidas com roupas de lojas ‘conhecidas.A diferenciag estabelecou-se com a atuacio dos tres individuos, f mencionacos, que assumiram 0 papel de expers, de conhecedoves do ritual. Eram, no minimo, frequentadares re~ glares de tereiros,talvez acupando alguma posigto na hierar- {ui teligiosa, Nao se se isso fot anunciado ou se, simplesmente, les se impuseram pela sua atitude © performance. O fato & que ‘assumiram alideranga da sitvaco, organizando-a,contando com ‘ajuda, nfo 56 do polical militar, como de todas, em uma de- rmonstracio insofiansvel de reconhecimento de sua habilitacio. DDialogavam com a entidade, chamavam os consulentes, e acaba- am por encerrar o evento no momento que julgaram oportuno. Foi enunciada, de maneira clara, a inconveniéncia de prolongar ‘as constltas, pois “havia hora pra tudo” e “muita gente js tinha Sido atendida”- Alguém informou que aquele “preto-velho traba hava” em um terreiro em Madureira — subtrbio do Rio de Janeito, Nao chegou a ser uma operacio cle marketing. Foram ‘comentérios discretos, sem distibulgio cle cartbes e enderes. “Aparentemente ninguém ficou sabendo com precisto quem era fo médism, Chegou andnimo,recebeu a entidade, deu consulta e depois voltow a0 anonimato * “Assinalei, portanto, a densidade de uma situacio social, encon- tro de diferentes indivigwos que clave ina das pee cipais vias da Zona Sul do Rio de Janeiro. Enquanto estiveram. juntos, participaram do mesmo interesse,tinham um foc0 €0- iad fo ‘mum deatengio e suspenderam,ou adiaram,outras atividades @ compromissos, Compartlharam, por algum tempo, de uma {efinigho comm de realidade, operaram na mesma provtucia de Signficado, nos termos de Alfred Schutz” Interagiram atrevés de uma rade de signicaios, conforme a definigio de Geer." ‘Atuaram dentro de um sistema compartilhado de crencas valores. Mesmo admitindo uma certa variagao individual, 0 Comportamentoe a atitude dos paticipantes apresentevam - tvel homogeneidade. Uns estavam mais sérios e quietos. Ou- {ros conversavam e se agitavam mais. Como ja observei, oom clominante era respeitogo e atento, Havia 0 zeconhecimento da ‘presenga do sobrenatural, com a incorporagio de entidade co- Ibhecida, A heterogeneidade sob o ponto de vista sociolégico, quanto d estratificasSo social, fainas etdrias, distribuisSo ocu- facional, diversidade étnica etc, nao obscurecia o fendmeno ‘He uma partcipagio comum naquele cantexto religioso, ria ado por uma relacio particular com os espietes e, de modo famplo, com o sdbrenatural. Simbolos compartlhades, Tinguagem basica comum, gramaticalidade no processo de in- teracio e negaciagao do realidad, expectativas e desempenhos de ‘paptis congruentes, tudo isso configurava um quadro do que Poderiamos chamar de consisteacia cultural. ‘Mas hé também um outro nivel de anslise necessério. Georg Simmel, em seu artigo clissico “A metropole ea vida mental’, de 1902, chamava a atensSo para a especifcidade da vida social nos {grandes centros urbanos surgidos da Revolugao Industrial da formagio dos grandes esiadosnacionais e de um complexo mer ‘ado internacional.” A obra de Simmel é vastae densa, apresen- {ando diferentes Enfases eplanos de andlise. Um de seus objeivos ‘ness texto era contrasta um estilo de vida metropolitano ccm 0 modo de vida tradicional, rural. A grande cidade — trata de artigo que faz noventa anos — caracterizarsea, sobretudo, pela 10. Goon opt 11, Yor Snel, Georg. On fuduaty and Sca Forms. Donald Lavine (ore Chicago, Unsveraty of Chicago Prey, 1971 0 pret minoe {grande quantidade e diversidade de estimulos. Isso geraria um “excesso", provocando uma adaptagso no nivel individual que dlofiniu como blsé. Desenvolverse-a uma expécie de capa pro- {etora, umaindiferenca, como defesa da ameaca de fragmenta. Simmel, aqui e em otros momentos de sua obrs, via ne mult plicdade e diferenciacto de dominios « niveis de realidade da sodedade moderna um desafo a integridade do individuo psi {oldgieo. Em outro trabalho importante, “Subjective Culture” de 1946, analisava o enorme desenvolvimento e crescimento de wma dimensto externa aos individuos, que denominos de cultura ob- jetioa, em detrimento da nqueza e harmonia interas do que Aefiniu como cultura subjeton.® Esse desequilorio entre as diss dimensées e/ou culturas seria, também, uma das marcas da mo ddemidade. Pode-se aventar uma possvel nostalgia ou idealizagio do passado por parte de Simmel. Na ealidace,estava expressan- ‘do uma tradicio humanista onde as elas de Bildung e sef-culi- ‘tion rementavam, pelo menos, a Goethe. Nessa linha de pens ‘mento, a modemidade da metropole e da sociedade industrial Consituriam, sento impectimente, pelo menos um forte dbice a0 desenvolvimento integrado dos individuos. ‘A antropologia, em geral,e, particularmente, os estudos em ‘meio urbano, tom lidado de diversas maneiras com essa proble- :mitiea. Creio que 0 caso narzado do “preto-velho” em Copacaba- na pode sjudar nesse sentido a aprofndar nossa reflexto. ‘De uma multidao, aparentemente de andnimos, de transeuntes| de diversos tips, destaca-se um individuo que entra em transe fe recebe, incorpora, um espirito conhecido dos terreiros de um- banda. Algumas dezenas de pessoas se detém e participam de ‘um ritual improvisado mas nfo desorganizado. Temos um come- ‘soe um fim claramentedefinidos e marcados.Seré que os rel6gios ppararam, nos termos da indagacao de Simmel sobre Belin: 0 que acontece numa metrépele moderna quando param os relégios? ‘Nocaso, ciou-se um intervalo que nio deixon de ser controlado ‘eavaliado. Eetivamente, processou-se uma neyocigd da realidad, io totalmente explicitada, que permitiu que aquela sitscS0 se 12. Simmel opt. aida fapnenino co ini cogient 1 susteniase por alum tempo Por oto lado, sallentando aca wertnte do scontecnentor enone o fate decentenas de pe tous passarem por aly no expago de uma hora sem se deta. Guom cm eses utes anseuics Pela spend de wh ‘modo geal no parecam dfersGramatcamentedaguols que four a fla mpresscnatcarente, pode arcs dade jel os conslenes xii ua proporgo in pouco malt de peson mals modes decor segundo 0 serao com, representa, sbretudo, plas emprogadas doméstins «do. Wiirios Ess, rept, omreavam com homene e mulheres de {amadat midis de vros ios brancos, educados, com sls declan, goa, ac to noe, podriam si est denon membros de eles adic econtics Hd viria explics para a pessoas nio se deterem. Aigms podem nio tr bdo sa enelo seer dexprtada, abate rt sae alividade. Outros talver no tivewem curiedade sufcienemente forte parade ‘arse de so rumo. Tab & pone noar 0 ajetameno, Poctbero queer posers. contin decid pomp comet areres Nios pode tambien descarta ees Ge medo, So, ou ate repugnela. over apresntr oes pomblidades, mas ceo ter feo ik core» extenia de wna manger de rags, pes «ser: Eatvas Conamente nigestvaalotndo suid rial que ongepise dao quase oda acomunidade como em css ‘cemplontbat® Nem er un loa sagrado, com deniade Sietina onde rein grupo de spre ina cena preistaem um calendéso. De algum mode, parte dos eampor- Fnnentes desis pode esarasciada tate Dla, deta or Stine com osindiviuoes pretegendo de umn exces de Etimule, Mas oq jogo mais sigs festive expt de ican deposhades proprio sociedad complesa mode Alc amgoil pase nagacle period da rip, azaremar vi ja tla rls scopes ecularal Aston por un do denifcamos 4 cenga en eptios ee ponsstSs cm foto ltr apatnair de um verso ndash 15, Ver, poreemple, Beate, John Midleton, Jha. opt. 20 prec metamorfce terogéneo, por outro, encontramos uma gama de opcées, expres- io de um espectro de possibiliades, da metropole brasileira ccontemporsnes CCrvio que a problemstica anunclada por Simmel, no inicio do séeulo, ¢ absolutamente atual, assumindo, no entanto, matizes, ‘nuangas e, em iltima anslise, maior complexidade, em fanca0 das proprias transformacbes das sociedades contemporineas. ‘Oui elissico dos estudes urbanos, Robert E. Park, falava cos mundos que se tocavam mas alo se penetravam” na grande ‘idade moderna." Esses mundos estariam demarcados, 9 vezes ‘mesmo espacialmente, como nos guctos, mas, em geral, por fron- feims Sinicas, socioldgiss eculturais. Sus reflexes, inevitavel- ‘mente, estavam vinculadas a uma experiénciade época sobretudo referida aos grandes centro urbanos norte-americanos das quais ‘Chieago tomou-se paradigmtica. Pesquisas mais recentes, realie _zadas principalmente por antropdlogos, tenderam a relativizar ‘esas fronteiras sem, contudo, negi-las. Guetos variados, por ‘exemplo, nio $6 continuam exitindo, mas mulliplicaramse nas ‘glomeracées urbanas. Os trabalhos de Clyde Mitchell e Epstein, entre outros, na Africa, e Raymond Firth, Elizabeth Bott, com tassociades na Inglaterra, a partic des anos 50, complexfcaram nossa discussio. Nos priprias Estados Unidos, socdlogos como William Foote White, Everett Hughes, Howard 8 Becker, Herbert J.Gans ete, ullizando métodos qualitalivos de trabalho de cam po, dentro da tradicio da Escola de Chicago, seguindo os proprios passos de Park tamisém contribuiram para maior sofisticagio da abordagem. Antzopslogos como Robert Redfield, Horace Miner, ‘Oscar Lewis e Loyd Warner dialogaram e contribufram substan- cialmente para 0 desenvolvimento do campo da discussi0 com suas investigagdes em cidades tradicionais e mademas. Eases cientistas socials, estudiosos da sociedade urbana, mostraram, ‘entre outros fatos,aexisténcia de redes de relagdes — networks — {que atravessavam o mundo social de modo horizontal e vertical (Ou seja, por mais signiicativas e inclusivas que pudessem ser 14 Park op. nid mental meas comple ‘ategorias como fama e parentesco, bain e vizinhanea,origem tribal e/ou eta, grupos de status, estratos e clases socials, registravanse circulate, interagio socais assocladas a experitn. ia, combinacbese identidaces particulares,individualizadas. O ‘mercado e o trabalho, a vida politica com suas transformacies ‘Ho, sem divida,fatores estimUladores dessas "tavessias sec logicas” com miores ot menores custos individuais e soca “Atuam recorrente e coercitivamente como forgas sobre as quais [grupos e pessoas tém pouco ou nenhum controle, tematicafun- ‘damental dos lasicos das cinciassocais como Marx, Durkheim fe Weber ‘A Revolugio Industrial e o processo de urbanizagdo assocado constituem exemplos paradigmaticos desse fendmeno. Mais re Ceentemente, as cidades do tereeim mundo com &xodo rural, mi- _graghes, explosso demogrifica, pobreza ¢ marginalidade apre- Senlam um quadro fagrante da fragilidadee relativa impotincia {da esmagedora maiorin dos individuos e das categorias soca. Sabendo e considerando tudo isso, procure mapea?e resgatar 2 [possivel margem de manobrae inicatva dos agentes sociasen- Yolvidor, Continuo lidando com duas vertents os pontos de vista: 0 da tunidade e o da diferenciacio. Creio que através dessa dialéica, sdesses deslocamentos e oscilagdes, podemos analisa, com pro- veito,caractersticas e expernclas que, embora nto exclustas, Cstio fortemente associadas 3s mettépoles contemporineas. © [Proprio Simmel, em diversas oportunidadescaracterizou asitua- ‘odo individuona sociedade moderna como ponto de inteseglo de varios mundes. Logo, sem ignorar a forca de coersto de > ‘estos soriais abrangantes,velto-me para o nivel que Firth den ‘minou de organiaapo social, once, através da interagao entre indi- -viduos e suas redes de relagies, podemos lidar com o fenémeno dda negocagio do reaidade em aniples planos:™ A pripria én dle negocagio implica © reconhecimento da diferenga como ele- ‘mento constitutivo da sociedade, Como sabemos, no $60 con- Alito, mas a toca, aalianca ea interacio em geral, constituem 3 15. Firth, Raymond. lene of Scie Ogoniaton. Lanes, Wats, 1951 22 pre mtenerfe propria vida social através da experiencia, da produto e do uconecimento explicit ou implicto de nteresses valores di ferentes. © fendmeno da negocio realidad, que nem sempre sedi como processoconsciente iabiiza-se através da inguagem no seu sentido mais amp, solidaria, preduzida e produtora da rede de sigrfietos, de que fala Geertz. Em ovtras palavras a ullura, nos termos de Schutz, enquanto comunicagio,nSo excl a5 diferensas mas, pelo contrério, vive delas. Vjo no cxs0 do “proto-velho”, aqui narrado, tuma clara demonstrosio dessa pers- pectiva de anilise, A diferenciacio sociologica do universo des- {rita 6 evidente e simultines ao enfendimento ¢ comunicagto ‘estabelecidos. Is0 no se di, do mesmo moda, em qualquer situaglo socal. Em principio, 0 acondo é uma possibilidade, e 0 ‘consenso problematico. Certamente, nfo se trata de um flaxo de ‘comunicagSo perpetuamente harmonioso. Vale inistir em uma ‘éarce antropologica em que adiferenga no nivel dos discursos ‘edas representacbes nko ets colada 3s fronteras sécio-econmi- ‘as. sas tém repercussOese esto associadas 0 mundo simb6- ico que, por sua ver, se manifesta através de Lnguagem, igo € discursos ndo redutiveis a variaveis externas. Na abordagem fenomenolégica de Schutz eno interacionismo de Simmel enfa- tiza-coa distingto ea autonomia de diferentes murdos e provincia de significado, nieise dimensies do real. Por outro lado, Miklsil Bakhtin fala de uma feterogiosi,coexistincia de diferentes dls ‘curios em uma mesma sociedade que embora relacionados, man tm suas particularidades* Estas esto, para 0 pensador russo, ‘inculadas 3 estratura social, mas nto de modo mecsnicoe linear. De alguma forma também ressalta um maior grau de autonomia € Togiea proprias ao que chamariamos de cidigos cuturais. A ‘eistencia do filings, explorada também por Peter Burke”, indica a possibilidade de membros de uma categoria socal par- ticular participarem e acionarem céiges,originalmenteligados 3 categoria socials diferentes da sua. No caso da Idade Média 16, Bain, Mia M-The Dis Ito for ess y MM. Balin. 17 Burke, Peer Culture pyaar hohe moder So Palo, Compania fin tras 1969.0 iad fngmenegio ox bee comps Ocidental esses autores chamam a atengio para. a coenisténca de ‘uma cultura letrada, de corte e/ou aristocratic, com uma citura popular: Naquele periodo da historia exam, sobretudo, ‘duos daselites que poderiam exercer esse hiligiismo, pois ingam fcesso e participavam dos dais mundos. Enguanto o inverse no ‘se dava, pelasrazdes da logica da hlerargula 0% ‘Ao explorar a hipétese da coexsténcia de discursosevisdes de rmuindo, como ficaria 0 “caso do preto-velho"? De imediato, fica ‘evidente a importineia da histéea para a investigagio antropo lgica das scciedades complexas. No Brasil, ostrabalhos de Laura de Mello e Souza, Luis Mot Joto José Reis, assim como ante- ‘lormente de Roger Bastide, demonstram com riqueza de dados 4 existéncia de cultos de possessio ha quae trésséculos, jf com Indicios de ineragio entre categorias sociais distintas.* Ou ea, desde pelo menos o final do século XVI, inicio do XVI, pesqui- Ssadoresidentificam rituss que, conforme observa Mott, sho Pra- ticamente idénticos a rituals contempordneos,descitoseancliso dos por antzopSloges.” O episédio do “preto-elbo” em Copaci- bana, em 1978, tem, portanto, uma dimensio historica de faigue durée, Em trabalho recente, Marise Meyer, em intressantssia pesquisa, estabelece uma relagdo de continuidade entreaentidade Maia Paditha, uma “pomba-gira” da umbanda contemporinea, ‘om figura histriea do século XIV, da corte de Castel, personae igem do romanceroibérico. O trabalho, complexo e minucios, de inspiracso guinzburguiana, acompanina as transformaes € patigbes da personagem histricaentidade sobrenaturalem di- ferentes momentos da sociedade e cultura Iuso-brasileras. Hoje, ‘Maria Padiiha € uma das pombacgiras que convivem com 0s 18, Mello Sousa, Laura O dae ea Te de Senta Cr, Sto Pau, Zom ‘ania das Letras, 1986; Mot, Lal. "Acofunda tata setecentisas do Scetismo religinaa sobre” Ret do Ms Pit 1, 1986, abe Ress Jos Jor. "Mapa Joe na Boia iaso do alu do Ps de Cachan 1785" Rete Bra de stir, So Pa 16 ape Sse Gate, Roger Ar res afrons no Bra, 3 ed SO 2. Moyes Marine, Mari Palle nad ue qari de mae de re 1 Epon pia de unbonds, Ss Pauly Du Cds 1993, 2 peje meaner pretos-velhos nos terreiros de umbanda. A investigacao de Meyer ‘nos permite acompanhar, no tempo, a constituigo de, pelo me- ‘nos, parte do universo de crengas, representagies e valores de ‘nossa sociedade,heterogénea e diversfcada, Assim, 0 cdigo € ‘0 discurso associados 8 crenca em esplnitos e a possess30 apre- ‘sentam no apenas uma signifcativa amplitude sociligion, mas lama considersvel profundidade histories. Sem divida, si0 as ‘dus faces do mesmo fendmeno. Estar vivo é ser capaz de rela-

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