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Sobre Etica e Psicandlise Maria Rita Kehl MARIA RITA KEHL SOBRE ETICA E PSICANALISE st reimpressio Eonrateara = Teas Copyign © 2002 by Maria Ria Reh Cope: Rew! Lowrie Preparaio Caras Abert foals “oagui Toledo Revisto: Chae Caer Aeabel Jorge Cary ir crcers de Can bio (0) eh tin Sete si / Ma Ria Keil Ss Pa: Comptia eo 2. mnsneasasnent |e? act Tl aon aornsis ——amaip 1 in pie FS a “Tos ost desta ego reservados DIORA SEHMIARCZ IDA, Rua Banda Paulista 702.32 (4352-002 — Sto Paslo—se Telefone (11) 3707-3500 Fax (1) 3707-3501 ww compunbiadasteteas comb SUMARIO INTRONUCKO — POR QUE ARTICULAR ETICAE PSICANALISE: oe cee Duas vertentes da crise ética contemporinea . . ‘As duas versdes da psicandlise para os kigos 1. 0 HOMEM MODERNO, O DESAMPARO E 0 APELO AUMA NOVA ETICA 0... 060s cece Perda da tradigao, perda da verdade......... O sujeito dividido.......... Um sujeto desamparado na linguagem No lugar da verdade, um saber que no se sabe . 50 60 66 -a 2. NEUROSE, RESPOSTA INDIVIDUAL A CRISE ETICA DA MODERNIDADE., .. seveee 76 © lugar vazio do bem supremo e o nome do Pai...... 84 © mal supremo, para além do princfpic do prazer,... 95 3.A VIRADA FREUDIANA..... +107 desejo se realiza no significante ............22.. 412 “Sem a loucura, que € 0 homem...?" A psicaniilise ¢ a microfisiea do poder...... = 125 133 4.A ETICA DA CURA EA SUBLIMACAO... +136 Criar um analistano analisando 62... 6.0.00 00 2 Dar nome ao que nde existe... 66... sees eevee AS? CONCLUSAO — HUMOR, POESIA E EROTISMO...., 171 Oriso ou oressentimento.......... 2. 177 © poeta, porta-voz do conflito.......... = 183 saber erético da psicandlise 188 Notas cote 193 Introdugao POR QUE ARTICULAR ETICA E PSICANALISE? mundo ndo marcha sendo pelo mal-entendido, E pelo mat-entendido universal que 0 mundo inteiro se entende, Pois se, por desgraga, os homens se compreendessem, née poderiam jamais entender-se. (Charles Baudelaire, Meu corapdo desnudado! Hi pelo menos duas maneiras de abordar as relagbes entre a psicandlise e a ética, A primeira, como uma ética da psicand- lise, no sentido de uma ética profissional. assim como se fala em élica médica, ética jomatistica ete. Essa abordagem diz respel- to tamio A protego dos “clientes” submecidos ao tratamento psi- canalitico — contra eventuais abusos cometidos pelos analistas ‘em sua posigio privilegiada em fungio do amor de transferen- seja da propria coneorréncia pro- fissional, seja da formagio institucional, que concemne &s con- digdes especificas da transmissdo desse saber tio singular. ‘A segunda refere-se as implicagdes éticas do advento da icandlise no Ocidemte, como um pensamento e uma prética questionadores dos pressupostos éticos tradicionais, que, de fa- 10, jd ndo se sustentavam como orientadores da ago moral nas sociedades do final do século xix. A psicandlise nfo surgiu co- ‘mo proposta de uma “nova ética” para 9 mundo moderno. No 7 entanto, a virada fieudiana abalou profundamente algumnas con vicgdes a respeito das relagdes do homem com o Bem, exigin- do que se repensassem os fundamentos éticos do lago social a partir da descoberta das determinagées inconscientes da ago homana, Embora niio desconsidere a importancia da reflexao sobre uma ética da psicandlise, meu interesse ao escrever este texto volta-se sobretudo para 0 segundo grupo de questées: qual foi © papel da psicandlise na desconstrugo dos pardmetros que ss- tentavam uma ética implicita na tradigdo pré-moderna? Qual a contribuigio da psicandlise frandiana para a eringio de novos vetores que orientem uma ética para a modernidade e, sobretu- do, para a vida contemporénea? A psicanilise tem sido cada vez mais questionada como um método terapdutico efieaz pelos defensores das neurociéncias das diversas téenicas comportamentais que visam dimninuir ra- pidamente os sintomas do sofrimento psiquico. A sociedade con- tempordinea pensa a cura desse softimento como todo mal-estar, de toda angtistia de viver. As terapias exclusi- yamente medicamemosas, as técnicas de auto-ajuda € as novis formas de espiritualidade — uma “espiritualidade de resulta- dos”, praticada com finalidades terrenas bem especificas — partem do pressuposto de que o psiquisme pode se libertar dos. cémodos cfeitos do inconsciente ¢ servir as finalidades de um eu soberano, prugmitico, feliz, ajustado ds aspiragdes dos ‘membros da cultura do individualismo do narcisismo. Nao é de estranhar que a depressio seja-o sintoma predo- minante do softimento psiquico no final do século xx e inicio do Xx1, como fora ahisteria no final do x1x.O homem contem- pordneo quer ser despojado no apenas da angiistia de viver. mas também da ressonsabilidade de arcar com ela; quer dele- gar A competéncia médica e As intervengGes quimicas a ques- é {do fundamental dos destinos das pulsbes; quer, enfim, eli nar 2 inquietagao que o habita em vez de indagar seu sentido. Mas ndo percebe que é por isso mesmo que a vida Ihe parece cada ver mais vazia, mais insignificante Se a perda do sentido da existéncia esté na origem da de- pressio, que é o sintoma emergente do mal-estar contempord- ‘neo, isso é sinal de que o sentido nio é um valor inerente A pr6- pria vida: efeito de uma construgdo discursiva que confere significado ao aleat6rio, a0 sem sentido, a precariedade da exis- ‘éncia. “O informutavel a doenga do pensamento”, esereveu Lévi-Strauss na conclusio de seu texto magistral sobre a “efi- ciicia simb6lica”? indicando nossa intolerdincia aos aspectos da_ existéncia vazios de discurso. O homem est4 sempre tentando ampliar o dominio simbélico sobre o seal do corpo, da morte, do sexo, do futuro incerto. Mas essa produciio de sentido nao & individual — seu alcance simbélico reside justamente no fato de ser coletiva, ¢ seus efeitos, inscritos 1a cultura. ‘Assim como todo ato de fata s6 se consuma no enderega- mento a um outro (uté mesmo quando se trata de um maluco “falando sozinho” na rua), toda produgio de sentido, de signi- ficagiio, depende de sua inscrigio numa cadeia de interlocugdes. Dizer que uma vida faz, sentido do ponto de vista do vivente sig- nifica que existe a possibilidade de esse sentido ser reconheci- do pelo Outro, ou pelos outros que o rodeiam, Com excegio de algumas produgées muito delirantes na psicose, que mesmo assim so engendradas a partir de alguma forma de enderegamento imaginério, 0 sentido ou 0 significado de um ato, de uma experiéncia ou de uma inteira se reves lana interface entre o que é mais singular, mais particular para o agente/vivente, e sua inserigdo simbdlica na cultura em que vive, Quando os sentidos dados pela tradigio, pelas religides, pela transmissio familiar, deixam de... fazer sentido, o que po- demos colocar em seu lugar? O que conferiria sentido a nossas vidas? Essa questo tem um fundamento ético, pois se volta ‘0 que os antigos chamariam de bem supremo: se hoje nfo ace’ tamos mais a idéia de um valor inquestiondvel que justifique nossa existéncia —e temos que reconhecer a responsabilidade dda psicantlise pelo enftaquecimento dessa conviegdo (volio a es- se ponto no capitulo3) —, ainda assim esperamos que nossa pa sagem pelo reino deste mundo faga algum sentido, para nds ¢ Para os que nos rodeiam, ¢ dé origem a algum valor que sobre- viva apés @ nossa morte, Na modernidade, 0 sentido da vida nio € dado por nenhu ‘ma verdade transcendental que preceda a existencia individual; ‘entretanto, ¢ilusdrio pensar que a criagao de sentido para a exis- téncia possa ser umn ato individual. E uma tarefa coletiva, umi tarefa da cultura, daqual cada sujeito participa com seu grio de invengdo. E uma tacefa simbslica, que se di por meio da pro- dugfio de discursos ¢ narrativas sobre “o que a vida &” ou “o que a vida deve ser”. Ora, nas tiltimas décadas, os discursos predominantes a res- peito do que a vida deve ser tém se empobrecido gradativamen- eA medida que se andiam cada vez. menos em razbes filossficas € cada vez mais em razdes de mercado. F que as razées filos ficas e religiosas, us grandes utopias politicas, apontam sempre part além dla banalidade do nosso dina-dia, para um devir. ‘uma transformagio do sujeito ou do mundo que ele habita. Ou entio, para ulguma Zorma de gozo que ultrapasse os limites de ‘nossa moracla corperal — a contemplagdo, por exemplo, para 0s antigos; o éxtase, para os misticos; 0 sublime, para alguns rominticos. Ao passo que as razées de mercado se consomem em si mesmas, produzem repetidamente sey, proprio exgoti- mento cada vez que so satisfeitas — pois sua satisfagio nao remete anada além da fruigdo presente do objeto, da mereado- ria, do fetiche. AS razoes de mercado 86 nos oferecem a repeticio de sua prépria trivialidude, revestida das apardneias de um “saber vi- 10 ver" que s6 funciona se conseguimos reduzir a vida & sua di- mensiio mais achatada: o cireuito da stisfagio de necessida- des, Esse circuit parece o da agitagio de um desejo insacidvel, tas ndo &; pois os objetos oferecidos para nossa saciedade so lo banais e equivalentes quanto todus as mercadorias, Além disso, s0 objetos que existem no mundo, criando a permanen- te ilusio de que o desejo pode ser satisieito — ao passo que 0 objeto clo desejo € um objeto inexistente, perdido desde sempre, cuja busca langa o sujeito numa incansivel repeticZo. Mas é nes- 5a mesma busca que se originam, vez por outta, todos os atos de criagdo humanos. Do mesmo modo, os discursos que orga- nizam as razdes de mercado consistem em cadeias metaféricas muito pobres, muito curtas, que vio do objeto ao sujeito (e niio ‘© contririo) e se encerram quando promevem a ilusio de um en- ‘contro entre 0s dois. [Nese contexto, em que as razdes filoséficas, religiosas e/ou tradicionais ndo dio conta das possibilidades de construgio de destino abertas no titimo século da moderfidade, e em que as raves de mercado achatam a esfera subjetiva, reduzindo-a.a um plano de pura fruigdo, depurado de qualquer outra dimenszo es- \ética on existencial, a psicanlise ocupa, além de uma fungo (erapeutica, o lugar de certa filosofia imanente da existéncia, preenchendo os vazios de discurso, to intolerdveis © angustian- {es, Essa capucidade de produrir sentido para as transformagies ‘que ainda ndo encontraram expressaio na linguagem signifiea que 1 psicansilise soja uma Weltanschawung, uma visio de mundo equivalente a muitas outras que a modernidade produziu? Nao ‘exatamente, pois o saber psicanalitico se escreve a partir de uma concepeao de sujeito originada da pratica elinica. Elisabeth Roudinesco aponta para o fato de que a psicani- lise vem se estabelecendo cada vez mais como uma referéacia para toda a sociedade: “A lingua da psicandlise se transformou num idioma comum, falado pelas massas ¢ pelas elites”." A im- prensa, a televislo, os conselheiros espirituais das mais diver- u“ sas téonicas, os educadores de boa-fé tentam fazer dos alicer- ces conceituais do sujeito freudiano os fundamemos de uma nova relagio entre c homem e seu Bem — seja esse bem coto- ado no lugar do objeto do desejo, do funcionamento do prin- cfpio do prazer ou mesmo da forga das pulsées de vida, Se essas tentativas de fazer ch teoria psicanalitica uma visio de mundo que nos assegure quanto ao lugar do Bem comportam uma gran- de dimensiio de mabentendido, nem por isso devemos despre- zar o significado cla demanda. Como psicanalistas, temos de escuté-la ¢ verificar o que se pode produzir a partir dela. Qual © sentido de pedir justamente & psicandlise o restabelecimento de eritérios seguros para que seja possfvel o advento de una éti« ca contemporinea? Qual a responsabilidade da psicundlise, ¢ os psicanalistas, em relagio ao papel que nos 6 atribuido hoje? Paradoxalmente, quanto mais os psicanalistas sfio convo- cados a dar respostes éticas para os dilemas do mundo atual, mais a psicandlise & questionada ¢ criticada como teraptutica — pela lentidao de seu percurso, pela insisténcia em implicar © sujeito no enigma de seu sintoma, pela concepgio do conflito como elemento constitutive de todos os atos humanos. A midia ¢ 05 leigos no se dio conta de que existe uma conexio neces. séria entre 0 pensamento psicanalitico, a concep¢ao do sujeito proposta pela psicanilise e nossa prética clinica, Em outras pa- lavras: ndio € possive: dissociar a concepgiio psicanalitica sobre © mabestar de uma étien da cura e da condugio clinica do per- curso analitice. DUAS VERTENTES DA CRISE ETICA CONTEMPORANEA 50 no capitulo ). Mas, hoje, ela produz sintomas sociais alar- mantes, em decorréncia dos quais a sociedade ven reconhe- 2 cendo, explicitamente, a necessidade de encontrar respostas pa- mueles. Em principio, eu situaria essa crise ética em duas verten- tes principais: uma diz respeito a0 reconhecimento da lei, ov- 1a, A desmoralizagdo do cédigo. Ao aludit ao aspecto da crise étice contemporanea ligado 0 recouhecimento da lei, nio me refire 2 letra das leis impres- sas na constituigio de cada pais, mas & nica lei universal que funda nossa prépria condigao de seres de cultura: a que impoe uma rendineia a0 excesso de gozo, presente em todas as socie~ dades humanas na forma da interdigao do incesto. Essa lei nao estd escrita em lugar nenhum, ¢ ndo ¢ autorizada por nada além de si mesma, Ela se impde aos agrapamentos humanos como vinda de um Qutro lugar, que delimita e legitima a exist@ncia social. Sua origem, ao contrério dos eécigos legais e morais ventados pelas diferentes culturas e nagGes, nio se situa na his- t6ria € niio tem autoria, E uma origem mitica. A tradigio, a educagio, as religides, as grandes mitologias siio formagdes da cultura que tentam garantir uma certa estabie lidade {simbélica) ¢ uma credibilidade de base imagindria no que ‘concerne & transmissio da lei de geragio a geragio. A transmis- so, assim como a origem da lei, se inscrevem no inconscien- te; sua inserigdo subjetiva se dé por meio da linguagem, mas sua consist@ncia imagindria € preservada pelas grandes forma- ‘gbes da cultura. A incidéncia da lei sobre os sujeitos rouba-Ihes uma parcela de gozo que ¢ tributada a linguagem e & vida em so- ciedade. Ora, as sociedades modernas tém na liberdade, na autono- ial e na valorizagao narcfsica do individuo seus gran- des ideais, pilares de novos modos de al enacdo, orientacos para © gozo e para o consumo, Cada geragdo se constitui pelo rompi- mento com 0 que ainda teria restado de “tradigo” para as ge- rages anteriores. Cada individuo se cré pai de si mesmo, sem divida nem compromisso com os anterassados, ineapaz de ce- B conhecer o peso do Iago com os semelhantes, vivos € mortos, na Sustentagiio de sua posicZo subjetiva. A proposicio Iicanin- nna do “inconsciente como discurso do Outro”, sendo o Outro 0 ‘campo simbélico est-uturado pelas grandes formagées discur- sivas, nfo faria sentido fora das sociedades modernas, A crise que se refere ao reconhecimenta da lei, portanto, se deve 2 dificuldade do reconhecimento da divida simbélica — © prego que todos pagamos pela condige humana, mare da pela linguagem c pela vida em sociedade. E uma divida com 6s antepassacios ¢ com a coletividade a que pertencemos, seja ela representada por um pais, uma cultura, uma religio ou uma classe social Essa crise agravou-se nas titimas décadas do século xx, ‘com 0 declinio da ers industrial € de toda uma ética do traba- Iho, do sacriffcio e do adiamento do prazer que a amparava. A nova economia gera grande parte de seus lucros a parti dain formatica, da indisttia virwal das comunicagées ¢ também do consumo de bens supertluos, servigos ¢ lazer. Essa economia pro- duz grandes ¢ ripidas concentragies de riqueza e alimenta-se, acima de tudo, da circulagio de um tipo de bem que exclui enor ms fatins pobres ca popwlago mundial. A globalizagio dese- uihou um nove mapasmindi, no qual nagées multinacionais r= Presentam interesses inlionérios e deixam & margem, fora de suas. reas de protegii ¢ interesse, mais da metade da humanidace, Nesse quadro, nio se trata de dizer que as pessoas sejum naturalmente indiferentes ao imperativo da tei, mas sim que a Ici, tal como costumamos pensi-la — imperativo de rendnci ‘a0 gozo —, vai perdendo sustentagao na cultura, Nenfuma 16- ica se sobrepdc & légica do capital (ou, como escreveu Balzac hha 150 anos, nenhum devs fala mais alto do que o cleus do ci heiro...), que hoje depende de um mercado movido por um apelo no a centincia, mas ao proprio gozo. Niio vamos nos iludir: 0 pletto gozo € tio impossivel de se realizar quanto a reniincia absoluta a qualquer forma de 2070. i“ Quando afirmo que hoje vivemos sob o imperativo do gozo, is- 0 nio significa que estejamos todos libertos da lei que nos im- de uma certa reniincia, A perda do gozo, ou seja, a impossibi- lidade (¢ no a proibigdo) de satisfagao direta, sem rodeios, da pulsio, se da pela entrada do sujeito na linguagem, isto é, num mundo organizado pela linguagem (anterior, evidentemente, & aquisigio da fala), Dizer que o gozo é impossivel e que a ori- gem da Lei nao se inscreve na hist6ria individual equivale a di- zer que nio existe, para o humano, um momento anterior & sua entrada no munde organizado pela linguagem. A linguagem nos precede; as estruturas de parentesco, muito menos forma- lizadas na modernidade do que nas sociedades tribais descritas por Lévi-Strauss, determinam nossa pertinéncia simbélica a tum lugar: o§ desejos ¢ fantasias de nossos pais emprestam nificados & nossa existéncia muito antes do nosso nascimento. Estes sio os fundamentos do inconsciente como discurso do Outro, discurso inscrito em nds € no entanto inacessivel & nos- sa consciéneia ‘Uma vez que a entrada na linguagem por efeito da Lei é a condigao da participagio dos sujeitos no Iago social, 0 efeito do imperative do gozo nao € 0 de nos fazer gozar mais. O que o apelo comtemporsineo 20 gozo az & dificultar 0 nosso reconhe- cimento da lei, por falta de uma base discursiva que confira apoio ¢ significado & impossibilidade do gozo. Isso afeta ne- cessarinmente o efeito da Lei sobre as pessous? Talvez, na me- dida em que nos propomos um gozo impossivel como ideal a ingido ¢ no — como no caso dos membros de uma socie- dade vitoriana, por exemplo — como mal a ser evitado, Assim, ‘apelo ao gozo produz mais angiistia do que gozo propriamen- te dito, mais violéncia (pois é.com violBncia que reagimos & vi Jencia dos imperativos) do que fruigo. A violncia de que © homem contemporiineo tanto se quei- xa parece ser efeito dessa produgio significante a respeito do g070, que confere um lugar de prestigio aos atos destrutivos ¢ 1s as afirmagGes de onipoténcia daqueles que se dio 0 direito de extrair do corpo alheio uma parcela do gozo que acreditam Ihes ser devida. Nao € tanto 0 caso de um aumento efetivo dos uios. de delingiiéncia que nos ameaga, mas uma espécie de ambign autorizagao da delingiiéncia implicita nos eédigos morais con- temporiineos, em que a castragio se confunde com a privagio. Ou seja: niio se tratade uma falta de gozo, pois esta é constitu- tiva da condigio hurtana, mas da suposicZo de falta de um ob- Jeto imagindrio do qual o sujeito se acredita privado (pelo Ou- tro), e que cabe a ele recuperar a qualquer custo. Mesmo que seja A custa de danos ao corpo do outro, esse corpo que supos- tamente goza daquilo que o sujeito tambem se ve impelido a — ¢ impossibilitado de— gozar. Quanto & outra vertente, creio que estamos diante de uma crise que concerne A desmorulizagdo do cédigo que regeu a vi- daburguesa durante pelo menos dois séculos, submetendo as ou- tras classes sociais avs valores e ideais dessa mesma burguesiu. ‘Uma nova classe emergente est deslocando a burguesia tradi- cional de suas posigies de poder, no que se refere tanto & prod- iio e acumulagio de riquezas como ao poder de ditar as normas: da vida civitizada, Nenhum modo de produgao foi tao abrangen- te quanto o capitalisno, nenhuma classe social foi to eficiente em imprimir seu modo de vida ao-mundo todo quanto a bur- guesia. No entanto, o apogeu da cultura e dos vatores burgue- ses teye vida curt, E verdade que, ja na segunda metade do século xIx, um autor como Freud oaservava e lamentava os efeitos di rigidez dos costumes burgueses na produgao de sofrimento neurético, numa época em que 2sses costumes parcciam to araigados que © proprio inventor da psicandlise ndo supunta que puclesse ha- ver outro modo de viver em sociedade.* Os conservadores tém razao em acusar a psicanilise de scr uma das responsiveis pela desmoralizagio do modo de vida I6 burgués. A psicanilise revelou ao século xx 0 prego pago pelo controle excessivo dos impulsos que as sociedades oitocentis- tas haviam imposto a seus membros. A eficdcia desse controle eexigin, entre outras coisas, um silenciamento sobre tudo 0 que fosse proibido. Ao romper esse siléncio, a psicanalise contribuiu para a desmoralizagio de uma série de tabus ¢ restrigSes, carac- teristicos do apogeu da dominagao do modo de vida burgués. J4 na segunda metade do século Xx, alguns grandes criti- cos da cultura — como Theodor Adorno, por exemplo — la- ‘mentaram o barateamento e a decadéncia de um certo bom gos- to, certa delicadeza no trato com os outros e com as coisas que a burguesia do sécuto xix, depois de conquistar a duras penas, imitando a cortesia aristocratica do perfodo da decadéncia, im- és as outras classes sociais como normas de convivia civiliza- do, Hoje, diante de uma nova burguesia emergente, diante de hhordas adolescentes que, desde a década de 1960, tém na rebel- dia seu valor maior, os herdeiros de certa “boa educagio” oito- ceatista lamentam a desmoralizagio do cédigo de boas manei- ras que aparava as arestas do convivio dito eivilizado, HG pouco fui surpreendida por uma cena exemplar do que estou chamando de desmoralizagio do cédigo burgués, Num museu bem frequentado da cidade de Sio Paulo, um rapaz mui- to jovemn, talvez cansado das muitas horas de pé, acompanhan- do a exposigio, deitou-se sobre um baxco e comegou a fazer uma espécie de gindstica lenta, um exerefeio de ioga ou alon- gamento, Imediatamente um guarda, desses que passam os dias observance os visitantes sem ter muito do que se ocupar, inter- ferin, dizendo que era proibido fazer gindstica naquele local. Nao se ratava de um apelo i Lei, mas ao e6digo: isso niio se faz. Mas, © que pode parecer evidente para mim e para alguns leitores, no era para 0 rapaz, que retrucou com a perguata abomindvel, pergunta sempre sem resposta quando s¢ trata dos fundamen- tos de um cédigo de conduta estabelecido jd h4 muitas décadas: ‘mas por que no? E prosseguiu: ndo hd ninguém usando o ban- 7 . co, ndo estou estragando 0 patriménio do museu, Por que no posso continuar? Por alguns minutos o guarda se viu desarmaclo dante da falta de um porqué consistente que justificasse 0 cédigo de boa conduta que ele € pago para defender. A “desobediéncia civi do rapaz (que hoje ficou vazia: € uma rebeldia que se exerce contra as coergdes em nome apenas do “cada um por si vvidvalista) revelou a faléncia do pacto simbélico que, por dois séculos, sustentou as boas maneiras nas sociedades burguesa E verdade que esse cédigo caiu niio por forga de alguma con- quista antiburguesa, mas por ter entrado em contradigfio com os pr6prios termos do individualismo que sustenta imaginariamen- te 05 sujeitos nas sociedades de mercado, O “é proibido proi- bir” que os estudantes picharam nos muros de Paris hii mais de tr@s décadas pode ser lide, hoje, como a bandeira da garotada consumisa, filhos dos rebelados de maio de 68, encampada pe~ a publicidade que nos convoca a ir além de todos os limites. E verdade também que o estabelecimento do cédigo bur- aués tem sua histéria, tem sua origem na necessidade de pro- mover a inelusio social, estendendo a grandes massas incultas 60s beneficios secundiirios do capitalismo em expansio. O historiador Peter Gay, em 0 eoragao desvelado, conta lum pouco sobre as origens da instauragao desse eddigo, destle © final do século xvi, quando se criaram dispositivos para en- sinar as pessoas recém-admitidas a0 convivio coma elite a mt- neita “correta” de se comportar nos museus, nas salas de con- certo, nos teatros. Antes dele, o socidtogo Norbert Elias — quem devo me referir no capitulo 2 — pesquisou os primdrdios da instauragio do comportamento cortés, num Jongo pracesso que foi do século xtv até o século xvat. Ao contriirio da Lei, o eédigo tem uma origem; tem certa autoria, ainda que diftsa, e depende de éenicas de divulgagio © propaganda para se tornar consensual, dispensando razdes e explicagies: “Isto nao se faz”. “Mas por qué?” “Porque mio.” 18 Em sua vigencia méxima, o o6digo dispensa até mesmo 0 es- clarecimento sobre o porqué. Quando perguntamos “por qué?”, & porque a sustentagao simbélica (inconsciente) do codigo jé se esfacelou, questionada por discursos que representam outros puctos, outras demandas sociais, Exemplo disso foram as alteragdes de comportamento que se estabeleceram na Europa ¢ nas Américas depois da primei- 1a “globalizagio”, possibilitada pela expansdo da industria cule tural na dlécada de 1960: queda de tabus sobre 2 vida sexual, mudangas na estrutura autoritéria das escolas, produgdo de ati- tudes em piiblico radicalmente diferentes das que nos haviam sido impostas até ento. Uma nova formagio social — os ‘o- vens", categoria produzida pela indistria cultural — criou seu ‘c6digo proprio e o imps ao resto da sociedade. Voltando ao episécio do rapaz no museu: diante de um cer- to excesso de liberdade a que o jovem se autorizou, o guarda do museu deparou com a falta de um consenso "“espontineo”, legitimador de sua pequena autoridade, Desamparado diante da moderna Iégica do consumidor, segundo a qual quem paga tem senipre razdio, o guarda langou mio do seguinte argumento: por favor, ndo faga gindstica nesta sala porque, se algum superior parecer. 0 prejudicado serei eu, Argumento que pode ser inter- pretado assim: meu trabalho € impor a voe8 um comportamen- to cujo sentido eu mesmo desconhego, e meu emprego, meu sustento, dependem de que vocé finja reconhecer minha auto- ridade aqui. Essa explicacio capenga no justifica 0 cédigo, ‘mas funcionon para deter 0 rapaz. O apelo a identificagio subs- ‘ituiv, com eficdcia, 0 apelo ao eédigo. Talvez 0 rapaz. fosse um

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