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Avnais do Ciclo de Debates e Palestras sobre Reformulacao Curricular e Ensino de Geografia Departamento de Ciéncios Humanos @ Integragao Si NAPE/DEPEXT/SR-3/UER) 2002 Eavite De Ger cnnein to istiwre De ABiergm Ferwande todaues 09 Savens— Cap /Vens A contribuigéo social do ensino Antonio Carlos Robert de Moraes Mesmo nfo trabalhando diretamente com o ensino de Geogra- fia, mantenho contatos com as discusses desta 4rea, devido as de- mandas do meu campo de atuagio na Universidade de Sio Paulo: ensino de metodologia da ciéncia. Eu jé tive uma experiéncia, mais ou menos antiga, de docéncia no ensino fundamental e médio e sou con- vidado, com alguma freqiiéncia, para opinar sobre curriculos e livros didéticos. Recentemente, realizei a avaliago dos curriculos de ensino fundamental para a Fundagio Carlos Chagas, que serviria de subsidio para os Parimetros Curriculares Nacionais, mas, nio sei por que ra- 730, 0 MEC “colocou a carroga na frente dos burros” e lancaram os Parimetros Curriculares antes de publicarmos a avaliagio dos curri- culos. Mas, foi um trabalho muito interessante, cobrindo o pais como um todo, vendo, inclusive, a grande diversidade que h4 de estado para estado, em termos de contetido ménimo que é abordado pela Geogra- fia. Sera a partir dessa experiéncia que vou trazer algumas idéias e con- tribuigées para o debate. Como as boas sessées sio aquelas que geram polémicas, vou comegar a minha exposigio com uma posigio que defendo, j& ha alguns anos, que é, nio somente, bastante polémica nos féruns da fessor do Departamento de Geografia da Universidade de Sio Paulo (USP) ’ ria. E eu gostaria de trazer isto, nto que vale a pena ser discutido e noto refratérios, sequer dispostos a fazer esta Ha muitos anos eu venho defendendo uma posigio singular, que é a de uma maior diferenciagio entre a formagio do gedgrafo ea formagio do professor de Geografia. Eu acredito que na atual forma- fo unificada, como no caso da USP, o diploma de Bacharel pratica- mente niio se diferencia do diploma do Licenciado. O Licenciado faz apenas trés ou quatro disciplinas a mais na Faculdade de Educagio. Eu acho que essa foi uma ago excessivamente unificada (e estou toman- do a USP como parimetro) que, na verdade, traz maleficios & forma- Gio dos dois profissionais. Quando um determinado curso é voltado diretamente para um 6 desses profissionais, ou para 0 gedgrafo ou para o professor de Geo: grafia, o formando sai sem uma das duas habilitages. J4 6 um primeiro problema. Agora, problema maior é quando os cursos tentam cobrir as duas necessidades de formagio. Na verdade, acaba-se tendo uma carga, is vezes, muito aprofundada de conteiido em certos assuntos, ou de pou- co contetido em outros. Vou explicar melhor: a formagio, seja a do professor de Geografia, seja a do gedgrafo, & muito pesada. Sio varios 0 campos de estudo, so varias as discusses de que participamos, to- das extremamente diferenciadas, indo desde didlogos com as Ciéncias Naturais até didlogos com as Ciéncias Sociais, passando pelo necessério didlogo com a area de Educagio, no caso de quem seri professor. Nesse sentido, com a tentativa de cobrir as duas coisas, acaba-se utilizando um tempo que seria mais bem aproveitado, no meu modo de entender, num aprofundamento de cada uma das formagdes espe- cificas. Por exemplo, no caso da USP, uma pessoa que vai ser profes- sor acaba tendo contetido, talvez aprofundado demais, em sensoreamento remoto, em cartografia digital e, por outro lado, nio temos uma disciplina no nosso curriculo que aborde um tema funda- mental para o professor e que poderiamos chamar de “didética 0 clementar de uma carta como recurso em sala de aula. Isso seria vi também para varios campos da Geografia Fi duo para ser um pesquisador altamente especializado como a Pedologia, 4 Climatologia etc., oferecendo contetidos que dificilmente o profes- sor utilizard em sala de aula e, por outro lado, deixando lacunas incri- velmente grandes e fundamentais na formacio didético-pedagégica desse profissional. Muitos outros exemplos poderiam ser dados. Muitas vezes a indefinicio propicia isso. HA professores que dio aula pensando que es- tio formando professores e hi professores que dio aula achando que estio formando pesquisadores altamente especializados. E essa carga, que jé é pesada nos dois casos, acaba gerando uma situagio maléfica para a Geografia. Na verdade, na minha opinio,a re- cusa lara em discutir esse ponto nos féruns de Geografia esté associada 4 um conjunto de preconceitos e, por que nao dizer, um certo conservadorismo e uma certa inércia das instituigdes. Para nio se pro- mover essa discussio, se apresenta, como argumentacio (que do pon- to de vista abstrato é até simpdtica e charmosa), a velha idéia da unida- de entre ensino e pesquisa, ou seja, a idéia de que ambos sio indissociaveis, Isto é verdade, mas nio anula a diversidade do campo em que se exercem o ensino e a pesquisa. Nés poderfamos falar, tran- lamente, de uma unidade entre ensino e pesquisa, na pesquisa aca- démica da Geografia, e numa unidade entre ensino e pesquisa, no en- sino da Geografia. Desse modo, tal argumento perderia totalmente a eficacia. Por exemplo, a drea de ensino necessita ter um didlogo profundo, cons- ante, com as préprias ciéncias da Educacio e realizar pesquisas que apontem nesse sentido. Seja o professor de Geogralia, seja 0 gedgrafo profissional, ele tem um campo de interlocucio bastante amplo. Na verdade ninguém consegue fazer, por exemplo, Geografia Econémica sem ter um didlogo razoavel da Geografia com a Economia. Ninguém consegue fazer Geografia Politica sem estabelecer um diélogo profun- do com a Ciéncia Politica, Ninguém consegue gerar uma boa Climatologia sem entrar no campo da Fisica e da Mecinica dos Flui- dos. A mesma coisa é valida para o ensino. Uma reflexio profunda sobre o ensino de Geografia nio pode, de modo algum, abrir mio de uum didlogo constante com a Psicologia da Educagio, com a Filosofia da Educagio e todo um campo de didlogo necessario e extremamente grande, o que torna essa formacio unificada ainda mais problemitica. Em nome da unidade entre o ensino e a pesquisa, na minha ava- liagio, na maioria das instituigSes, a érea de ensino acabou ficando como uma espécie de apéndice do curso de Geografia. Isto é real, é uma constatagio. Isto fica muito claro em algumas atitudes que sio comuns no campo da atuagio da Geografia. A primeira delas e que felizmente comeca a mudar, mas que até cinco ou dez anos aris era preponderante, podia ser visualizada muito bem na pés-graduagio. Era 0 caso daquele professor de Geografia, que vivia como professor de Geografia, que era um profissional de ensino da Geografia e que, 20 ir fazer a pds-graduagio, adotava temas de grande especializacio em alguma rea de pesquisa da ciéncia, temas profundamente estra- hos ao seu cotidiano de trabalho docente. Isso era um quadro muito generalizado que, volto a dizer, por felicidade, esta mudando e hoje ha um volume muito maior de pesquisas de pés-graduagio especificas a respeito do ensino de Geografia. Na verdade, por tras disso, ficava clara a desvalorizagio que o proprio profissional fazia do seu trabalho. Ele almejava fazer a “Gran- de Geografia”, como se esta fosse apenas a Geografia de pesquisa nio ligada ao ensino e que trazia por contraste uma certa desvalorizagio do ensino de Geografia. Era como se 0 ensino da Geografia fosse uma espécie de “bico”, e 0 individuo ficava trabalhando até que encontras- se uma coisa melhor e a pés-graduagio era vista como um caminho para sair da area de ensino. Acho que esse tipo de raciocinio estava presente na cabeca de muita gente e a nio discussio das especificidades entre 0 ensino e a pesquisa acad&mica, no campo da Geografia, apenas escondia, ou en- vio perpetuava, esse tipo de visto. Isso trouxe uma série de maleficios, principalmente para o ensino. © primeiro deles correspondia a uma postura, entendida por alguns como de vanguarda na 4rea de ensino, de tomar as discusses de ponta da Teoria Geogrifica e tentar repassar essas discusses para © ensino basico. Isso aconteceu muito no Brasil. Seria algo como se nés comecdssemos o ensino de Fisica e discutissemos Mecinica Quintica e a Teoria dos Fractais. Quer dizer, vocé foca a discussio mais avancada na drea e tenta “jogla” como contetido minimo para a Educagio Bésica. Isso acarretou, entre outras coisas, algo que ainda se faz presente, que é uma auséncia de “pedagogizacio” das teorias mais complexas da Geografia contemporinea. Nao é raro encontrarmos em curriculos ou em livros didaticos a tentativa de tirar a iltima teoria de Harvey ou de Milton Santos e a fundamental, o que é um despropésito total. Falta “traduzir” essas teorias, que sio muito importantes, para que elas venham a iluminar o que seria um contetido bisico de Geo- grafia, Nao dé para fazer uma transposigo direta de uma discussio de ponta, de vanguarda sem nenhum tipo de “pedagogizacio” para o cam- podo ensino. Enfim, eu nio aceito essa idéia da Educagio como “bico” ou como uma érea marginal do universo da Geografia. Essa coisa que voce é professor até “melhorar de vida”. Isto é de uma perversidade social muito grande, pois o ensino, a0 meu ver, é a tarefa socialmente mais importante da Geografia. Sem abrir mio dos outros campos, no que toca & incidéncia social, no que toca ao impacto social da Geogra- fia, sem divida nenhuma, a drea de ensino é prioritaria. O professor de Geografia, nesse modo de entender, é mais im- portante do que o gedgrafo. Nao quero dizer que um prescinda do outro, mas, do ponto de vista social, 0 professor de Geografia é a figura essencial para a Geografia fornecer algo para o avanco social, para as discusses sociais. (O gedgrafo incide diretamente na formagio social do cidadio. O pro- fessor de Geografia esti participando com um contetido e com uma temitica essencial na formagio da cidadania. A visio de mundo do estudante-cida- ’ dio, a visio do pais, a visio da realidade local em que ele vive, tudo isso est profundamente permeado pelo contetido da Geografia escolar. A autolocalizagio do individuo no mundo é essencial na forma- io da sua consciéncia social. O em variadas escalas, para entendé-lo e se entender nele. Entio, na ver- dade, 0 conteiido da Geografia ilumina uma série de campos que di- zem respeito & construgio de valores morais e 4 propria sociabilidade do individuo, Por isso, 0 professor de Geografia atua num terreno extremamente delicado, de alta responsabilidade social. Realmente, & uma tarefa extremamente importante, extremamente delicada e de uma responsabilidade social imensa, 4 qual nés temos que estar a todo 0 momento atentos. O professor de Geografia tem a necessidade de desenvolver 0 raciocinio erftico do aluno, porém, ao mesmo tempo, de fornecer-lhe formagées fundamentais para ele entender 0 mun- do. Ele no pode, de modo algum, passar uma visio fechada e sectaria 0 6, uma explicagio pronta e acabada da real porém, sem engessar essa reflexio politica em modelos ideoldgicos sine eters E dificil, mas sio exatamente esses os de- ca, sem, con- a em modelos inquestionaveis; valorizar 0 multiculturalismo, o direito 4s diferencas, ao mesmo tempo em que alerta para as desigualdades existentes na sociedad. Sio sempre questées ténues e delicadas e nio se trata de tarefa simples combinar essas coisas. Nesse quadro, parece-me que 0 simplismo teérico e explicativo destaca-se como primeiro componen- te a ser evitado. Ter a consciéncia de que nés vivemos num mundo extremamente complexo, numa sociedade extremamente complexa. em processose relagdes de uma complexida- de que nenhum raciocinio maniqueista, simplista - do bem e do mal, do certo e do errado ~ conseguir equacionar. Nés vivemos numa sociabilidade muito mais multifacetada do que aquela vigente no mundo do século XIX. Logo, teorias do século XIX nio podem explicar 0 mundo de hoje. Ha processos novos, ha atores sociais novos, h4 dinimicas novas. Nenhuma teoria do século XIX, gestada em uma época que mio vivenciou esses processos, teria condigio de dar conta desse mundo. Poderiamos dizer, fazendo uso .cinio de um enunciado bastante dialético, que o Capitalismo do re que nés vivemos hoje ainda é 0 mesmo daquele do século XIX mas, a0 mesmo tempo, é outro. Formulacio que seria impossivel de fazer 3 luz da légica formal, que consideraria isso um contra-senso: ou é 0 mesmo ou é diferente. Nao. Eo mesmo, mas é outro. Eu nfo vou me alongar nisto, mas poderia listar varios elementos para mostrar que 0 Capitalismo, que vivemos hoje, ¢ 0 mesmo do século XIX, mas é rente daquele do século XIX. Para pegar um ‘inico ponto que é central: nés vivemos num Capitalismo que hoje prescinde muito do trabalho vivo. Entio, hoje em dia, o capital se realiza de forma diferente. Se 0 Capitalismo do século XIX teve na exploragio do trabalho seu elemento-chave de geracio de lucro, hoje ele prescinde cada vez. mais de trabalho vivo. Tomando, por exemplo, 0 desemprego, que nio é algo mais funcional ao capital para abaixar salrio, mantendo um exército industrial de reserva, como era no século XIX, mas considerado como um dado estrutural, gerador de problemas sociais em qualquer sociedade capi- talista hoje, mesmo no centro do sistema. Entio, o Capitalismo, ainda hoje, é 0 mesmo e é outro. E estru- turalmente 0 mesmo, mas historicamente outro. E h4 muito que ex- car nessa realidade que nds vivemos. H muitas novidades su: do e numa velocidade desconhecida em épocas anteriores. Talvez essa aceleragio do tempo, como j4 apontaram varios autores, seja a marca mais forte da nossa época: uma profunda aceleragio, uma profunda rapidez. na mudanga das coisas. H4, inclusive, autores que dizem que essa velocidade da inovagio contemporanea é o processo, © elemento central para explicarmos essa angiistia do ser humano na atualidade, 15 No passado, vivia-se num mundo comandado pela tradigio e as pessoas nasciam e morriam no mesmo mundo. Hoje, vivemos num mundo que se move a cada momento, inclusive do ponto de vista dos valores culturais, Essa velocidade, essa mutagio das inovagées é de tal ordem, de tal ritmo, que deixa inclusive grande parte das Ciéncias ‘Humanas atordoadas com 0 seu objeto. O ritmo atual das inovagées faz com que muitas teorias, muitos pensadores cheguem a abrit mio do desejo de uma totalizagio, do desejo de uma busca de sentindo na Histéria, caindo para aquilo que é chamado de uma postura Pés-mo- derna. Eis af outro ponto bom para discussio. © Pés-modernismo como expressio dessa inseguranca advinda da rapidez das inovagdes vivenciadas na contemporaneidade. Entio, de um lado, temos que abrir mio de buscar um sentido, uma légica nessa realidade na qual estamos inseridos. Outros, no antipoda desses, se apegam a um passado teéri- co, em que as coisas estavam mais claramente nos seus lugares, onde a realidade era mais simples, onde os “mocinhos e bandidos” do proces- so histérico ficavam mais bem demarcados, acreditando que 0 apego a0 dogma fornega um sentido que as ruas, que a realidade nega. E esses passam a dar respostas metodoldgicas para tudo. Qualquer problema ico tem resposta metodolégica. Respostas metodoldgicas que, inclusive, explicam as coisas antes delas serem pesquisadas. Quer di- zer, nem pesquisei ainda e jA sei a resposta, pois a resposta esta n0 método, nfo est4 na realidade. Essa é outra postura absolutamente inadequada, Tudo est explicado no método. Pena que a realidade, miuitas vezes, nio tenha sido avisada disto e contrarie totalmente estas teorias. Isto me faz lembrar algo de bom nas tradiges criticas do século XIX, em Karl Marx, em particular, ao dizer que as teorias tinham de vir da realidade para os livros e nio 0 inverso, dos livros para a realidade. Nessa Babel metodoldgica, ideol6gica que vivemos hoje, a ques- tho, talvez, mais central que se coloca, e ai toca direto naquelas tare- fas que estio 18, dificeis para o professor de Geografia, é a questio da legitimagio das teorias cientificas. Esse problema emerge como o tema central para as Ciéncias Humanas e para a Geografia nesse inicio do novo século. Como se legitimam as teorias? Essa é uma questo para a qu: nio se aceitam as respostas do passado, principalmente nio se aceita a autolegitimagio. Eu retino uns dez amigos que pensam igual a mim e dizemos um para o outro: “Voce esti certo, voce esti certo, voc’ esta certo!” e vocé acaba se iludindo de que esta certo mesmo. Porém, como legitimar as teorias? Como dizer que uma dada explicacio da realidade social écerta ou errada, é verdadeira ou falsa? Eu diria que esse é0 tema central que se apresenta para as teorizagées mais avancadas em Ciéncias, Humanas hoje em dia. E isso vem, de certa forma, aduzir complicagdes ificeis tarefas que se pdem para o professor. Explicar 0 mundo complexo sem simplificé-lo. Quer dizer, explicar simplisticamente, abrin- do mio da complexidade, ¢ facil. Agora, explicar esse mundo complexo, “pedagogizé-lo”, sem cair na simplificacio, ¢ extremamente dificil. Quer dizer, explicar criticamente o mundo, sem transformar essa explicagao num dogma, que cristaliza acriticamente pretensas verdades. E a tarefa que est af fora, dificil, extremamente dificil, mas ¢ 0 desafio que se poe. Acatar o pluralismo democritico sem cair num relativismo cinico quea tudo justifica. Acatar as diversidades de opiniées como um valor, sem pretender ser uma espécie de “dono da verdade”, porém, sem cair naque- la posigio da “noite escura” do relativismo onde “todos os gatos sio par- dos”, justificando qualquer atitude. Principalmente, cando esse trago tio nefasto da nossa época que é 0 individualismo exa- cerbado. Enfim, trata-se de uma agenda consideravel que pede, a0 pro- fessor de Geografia, nio apenas o dominio do contetido especifico da disciplina, mas também uma formagio pedagégica e humanista am- pla. Certos temas da Filosofia ¢ da Ciéncia Politica, por exemplo, se impéem na sua formas, somando-se aos temas di cos, j4 comentados, e a0 contetido especifico da disciplina. Por isso, acredito que deve haver separacio na formacio do gedgrafo e do pro- fessor de Geografia. Além do contetido especifico da disciplina, além do contetido especifico da Pedagogia, hi a necessidade dessa formagio cri- tica e humanista, em cujo campo bisico nés teremos de avangar, no meu modo de entender, em termos de Filosofia e de Ciéncia Politi E aqui se abre, por essa necessidade de diflogo, a possibilidade de outros equivocos. E 0 principal deles, que € outro ponto que eu gostaria de trazer para a nossa discussio, & que, nesse didlogo com éreas afins, acabese saindo do campo da Geografia, posigio que também nio é dificil de se encontrar no universo do gedgrafo. Quer dizer, eu comego a dialo- gar tanto com a Sociologia, com a Ciéncia Politica que, de repente, eu perco 0 foco da Geografia. Isto me parece um equivoco muito grande. Ter uma visio clara da disciplina é um pressuposto bisico para um bom ensino de Geografia. Eis o primeiro lugar, onde jé se pode fazer um exercicio da acei- tacZo do pluralismo, tendo claro que nio existe apenas uma Geografia ow apenas uma teoria em Geografia, mas, como em qualquer outro campo do conhecimento, vai viver e se alimentar de polémicas entre posicionamentos tebricos distintos, inclusive sobre a prépria natureza desse conhecimento. Eu tenho uma visio sobre o que seja esse objeto da Geografia, mas tenho claro, também, que essa visio nao é a unica e nem é exclusiva. Num campo tio vasto podem conviver hipéteses bastante diferencia. das, cada uma podendo trazer, inclusive, contribuigdes extremamente ricas para a explicagio desse mundo complexo e opaco no qual vive- mos, Sem divida alguma, a idéia de uma relagio entre a sociedade e 0 espago se impde como uma idéia forte para clarificar esse campo da Geografia. Porém, vendo esta relagio sociedade-espaco como uma |, posi¢ao que ja traria alguma polémica entre os que véem amente como objeto € no a relagio, e os que véem a telagio sociedade-espago como uma relagdo propria e nio como uma das relagdes sociais, Enfim, af temos um grande ponto de polémica e estamos me- xendo com 0 cerne, com a esséncia mesmo do que se considera Geo- grafia, O estudo da espacialidade da vida social, 0 estudo da dimensio espacial da totalidade social. So muitas as formulagdes e é necessirio, para nio sair da Geografia, baixar esse nivel de generalidades para ex. ages mais especificas, para conceitos mais operacionais, tendo claro que a perda da abordagem geogréfica seria uma perda extrema- mente grande no poder explicativo da realidade social como um todo. Isto é, a Geografia, a especificidade da abordagem geogrifica, tem uma potencialidade critica e explicativa imensa. A maior contribuigio que podemos dar para explicar o Brasil, no campo das Ciéncias Humanas, é exatamente gerar uma bela interpretacio geogrifica do Brasil. Na verdade, a Geografia e a dimensio espacial tém uma grande centralidade na explicagio da realidade social como um todo. Eu acho que, se hi algo nesse final de século que as Ciéncias Humanas como um todo acataram, é exatamente essa revalorizacio da Geografia, que andou, em um certo momento, meio em baixa no rol das Ciéncias Humanas. em dia, ela conhece um momento que propicia até algumas estultices como a de achar que a Geografia é a coisa mais importante que existe no mundo, posicio também que encontramos em alguns autores contemporiineos, gerando idéias estapafiirdias como, por exem Edward Soja, sugerindo substituir 0 materialismo-histérico dialético por um materialismo-geogrifico dialético. Ai ji é um exage- ro, uma certa soberba da Geografia, mas, sem cuivida nenhuma, acons- ciéncia da centralidade explicativa desta ciéncia, com relagio 4 totali- dade social, é um fato que hoje esta evidente, mesmo quando lemos em autores de outras Areas. Acredito que, por exemplo, a aceitacao do livro de David Harvey sobre a condigo pés-moderna nas 4reas de Antropologia, Ciéncia Politi- ca, Economia etc., é um exemplo claro dessa revalorizacio da dimensio espacial e da Geografia. Entio, quanto mais gedgrafos nds conseguirmos ser, maior contribuigio daremos para interpretagio de nossa realidade social. Uma posigao que venho defendendo, jé ha alum tempo, e da qual estou plenamente convencido, éa de que nos paises de formacio colonial essa centralidade da Geografia adquire ainda maior relevo. Por qué? Por- que exatamente os paises que tiveram berco colonial, sio paises que sur- gem de processos de expansio espacial e de conquista de territérios. A prépria colonizacio é isso: uma apropriacio de terras. Entao, nesses paf- ses, a Geografia teria um peso explicativo ainda maior do que em outros. © Brasil é exemplar, nesse sentido. Nao dé para compreender 0 Brasil sem entender a Geografia do Brasil. E isso, no sou eu que estou falando, isso esta numa das tiltimas entrevistas dadas pelo Prof. Caio Pra- do Junior que, sem divida nenhuma, foi uma das figuras centrais na explicagio deste pais. Ele disse, numa entrevista & Folha de Sao Paulo pouco antes de morrer, que sem entender a Geografia, nio se entende o Brasil. Eu estou plenamente de acordo com ele. Este é um pais extre- mamente complexo. A Geografia é reveladora da sua esséncia. Nés vivemos num pais que é, 20 mesmo tempo, periférico € moderno. Um pais que é pobre e rico. Esta ai, de novo, a dialética. Um pais profundamente desigual. Nao é novidade nenhuma para nin- guém, mas é mais uma razio para estarmos atentos contra sim, Ges e simplismos teéricos. Nenhuma teoria simples vai dar conta da complexidade da armacio social deste pais. Um pais que combina tra- 0s de pré-modernidade com tragos de pés-modernidade. O Brasil vive desde situagdes que poderiamos chamar de super-modernidade, pois estio af as redes, a informatica, o Just-in-time em varios processos, tudo isso convivendo com tragos pré-modernos, a exemplo do desigual aces- so A cidadania, Sio tragos da prémodernidade que nos marcam pro- fundamente. Entio, esse jogo entre atraso e modernidade vai ser um dos ele- mentos caracterizadores do pais, eeu, particularmente, acho que, se fi zermos um balango, nés estamos mais para um pais pré-moderno do que para um pafs pés-moderno. A pés-modernidade é residual, é espacial- mente seletiva, enquanto que os elementos da pré-modernidade sio ma- joritdrios ¢ estio em qualquer lado que se olhe o pais. Isso coloca, como foco central paraa reflexio (de todas as Ciéncias Humanas e da Geogra- fia em particular), a questio da inclusio/exclusio. Esse ¢0 tema central no equacionamento do pais. E uma questo que vale para segmentos so- ciais ¢ também para lugares. Hi lugares incluidos e ha lugares nio-inclu- dos, por exemplo, as redes. E a nio-inclusio nas redes significa atraso, ia. Eu inclusive tenho uma posi¢io muito particular a respeito de «um conceito, origindrio da Antropologia, que vem sendo bastante utiliza- do pelo gedgrafo, que éo conceito de ndo-lugar. Na concepsio original cde Marc Augé, que propés esse conceito, um nao-lugar seria um lugar da super-modernidade, aquele lugar sem identidade: 0 aeroporto, o shopping center etc. Porém, acho isso equivocado, acho que o nio-lugar é exata- mente 0 contrério disso. Nao-lugar é o lugar nio inserido nas redes. 20 Aquele lugar que o Capitalismo nao quer explorar. O Haiti é um bom exemplo de nio-lugar. O problema do Hi 14 outro ponto para pensarmos, nio éa exploracio direta do capital, mas sim o desinteres- se do capital em relagio a esse pais. Esses seriam os verdadeiros nio- lugares, os lugares excluidos das redes que, cada vez mais, conformam e comandam a vida econdmica contemporinea. Bem, com isso, aponto para aquilo que seria a principal tarefa posta para a nossa geragio de gedgrafos, e para a qual o papel dos professores de Geografia adquire um relevo fantistico: a de articular a Geografia com um PROJETO NACIONAL nesses tempos de Globalizagio. Tendo claro, em primeiro lugar, que nio é a Geografia nem o gedgrafo que fario isso sozinhos. Seria uma grande soberba achar que os gedgrafos sio ungidos para determinar, decidir e fazer 10. Nao! Um Projeto Nacional deve expressar a vontade nacional, logo nao poderia ser obra s6 de gedgrafos, mas do conjunto dos cidadios. Porém, o ensino da Geografia atua diretamente na for- magio desse cidadio. E isso coloca para nés, como questio-chave, definir qual é 0 contetido bisico dessa disciplina que deve interessar na formagio de todos os cidadios. Acho que é esta a questio. Ao pensar um curriculo, ao estruturar um livro diditico, ao pensar uma reforma educacional, acho que é esta a questio bisica, até para fugir daqueles erros, que eu coloquei, de “pegar” teorias de ponta e sair da Geogralia. A questio basicaé esta: qual é 0 contetido bisico dessa disc- plina que deve estar presente na formacio de todos os cidadios? A pedra angular é discutirmos 0 contetido geografico minimo. Nao éa formacio do Gedgrafo, mas a formacio do cidadio. Quer dizer, o grande livro de- veria ser assim: 0 que todo 0 cidadio deve entender de Geografia? isso que seria a virtude de um programa de ensino de Geografia para o ensino fundamental e médio, tendo clareza que apenas uma parcela diminuta daquelas pessoas se tornario gedgrafos. Os que se encantarem com a Geografia fario, depois, uma Faculdade de Geografia. Mas 0 que o traba- lhador, 0 médico, 0 técnico, deve saber de Geografia para que ele tenha capacidade de influir, decidir, opinar nesse Projeto Nacional? Entio, estariamos discutindo a questio do contetido minimo. Nio as especificidades, mas o basico, 0 universalizado, aquilo que de- a veria estar presente na formagio de todo o cidadio. Ou até fazer a pergunta invertida: quais as informagées geograficas que niio podem faltar, e 0 caminho para nés elaborarmos isso, na formagio do cida- dio? Acoplada a estas duas, porém bem mais perigosa e delicada, que nio resolvemos as questées fugindo delas, mas discutindo-as com seriedade ¢ a fundo, uma questio que emerge &a seguinte: qual o con- tetido ideoldgico de tratamento dessa informacio geografica mii que é democraticamente aceitivel, para uma formagio plur: individuo? Acho essa pergunta basica. E chata, mas essenci isto eu estou balangando o dirigismo ideoldgico muito presente no ensino de Geografia. Nio estou propondo uma Geografia asséptica, apolitica, mas discutindo os limites até onde uma explicacio parcial do mundo pode ser apresentada para os alunos como uma explicacio universal do mesmo. Isso decorre de posigées didatico-pedagdgicas e volto iquelas questées iniciais: como estimular 0 juizo critico pessoal do aluno, isto sua capacidade de julgamento? Ou posto em outros termos: como estimular o livre arbitrio dos individuos? Vimos que h& uma agenda razoavel. Realizar isso no 6 pouca coisa. E a pergunta basica que se impée, que nés devemos nos fazer é: © professor de Geografia est4 preparado para o exercicio dessa tarefa? Os atuais curriculos, a atual formac%o nos capacita a saber o que & esse conteiido minimo? Sera que sabemos qual é esse limite ideolgico na sala de aula? E ai, realmente, o professor é 0 elemento bisico. Nao ha sistema de ensino adequado que no seja calcado na figura do professor. Nio ha boa educagio sem um bom educador. Qualquer iniciativa, nes- se setor, deve partir dessas primicias. Nao adianta inovagdes tedricas, ndo adianta investimentos em infra-estrutura, nio adiama nada disso, se no tocarmos nesse ponto bisico: 0 professor e sua formacio. Eu diria que, de um ponto de vista amplo sobre o Brasil, 0 qua- dro no é dos mais alentadores. Movimentos ou campanhas de capacitagio aguerridas séo fundamentais. Ha um grande niimero de professores hd muito tempo afastados de qualquer atividade de reciclagem, e af se abre uma grande tarefa para as Universidades, espe- 2 . Faz-se necessirio pressionar as Secretarias de Educagio municipais, estaduais, o MEC, porque nio teremos nenhum avango no ensino se nio houver um cuidado na melhoria da capacitagio dos professores. Buscando chegar a um conhecimento efetivo do pais, dentro daquelas informagdes minimas necessirias, precisamos claramente de- tar qual é a carga empirica essencial para ser passada nos cursos, assim como, por outro lado, ou conectado a isso, definir uma visio ara do proprio objeto geogrifico. Isto é, combinar a constatacio da realidade brasileira com o estimulo a construgio de ideais. Eu acho que esse é ponto que interessa, ou seja, de um lado o realismo de avaliagio do mundo empirico e, de outro lado, 0 esforgo pelo desen- volvimento da capacidade critica do aluno. Af esta o nosso desafio, que é um desafio coletivo e nele est’ o grande, talvez 0 maior, engate que a Geografia pode ter com a transformagio dessa ordem social cional profundamente injusta. Se ha algo que nos anima na Geografia brasileira, diante do tamanho dos desafios propostos, é 0 fato dela ser, majoritariamente, uma Geografia progressista, uma Geografia preo- cupada com a problemitica social.

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