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Audrei Gesser LIBRAS? que lingua é essa? (CRENCAS E PRECONCEITOS EM TORNO DA LINGUA DE SINAIS E DA REALIDADE SURDA * De um ideal precario a articulagao do 6ébvio que ainda precisa ser dito Prowo M. Gancez celebrado sociélogo Erving Goffman, na madureza de sua obra final, articula 0 ideal de todo palestrante de que a platéia esteja de fato engajada na escuta do que ele diz, pelo que diz, e que assim seja levada bem além do auditério para os cenérios e ocast- es no mundo onde o tema de que trata se faz vividamente relevante. Além de ser um ideal, esse & ainda um ideal precério, por- aque escutar é bem mais que ouvir Foi num encontro de sala de aula em meados da jé distante década de 1990 que, hoje sel, fui escutado, e 0 meu ideal precério tomou con- tornos definidos, Tratava da natureza da linguagem natural humana, me dirigindo a ingressantes no mestrado em inglés da Universidade Federal de Santa Catarina, quando surgiu a questo — fascinante e ainda incrivel- ‘mente desconhecida da platéla — de que as linguas de sinais sao linguas naturais tio humanas quanto as demais e que nao se limitam a um cédigo restrito de transposigao das letras do alfabeto. ive indicios de ter sido escutado logo quando se apresentou diante de mim uma aluna com sua curiosidade, que resulta na presente obra, De um ensalo sobre as questées suscitadas pela discussao na discipli- na, ela seguiu para localizar os espacos antes Invisiveis na universidade, B ness quiinaa res onde a tipras poderia estar disponivel, af encontrando a propria lingua, seus usudrios protagonistas, os surdos, bem como pais e educadores de surdos, uma prosaica gente como a gente, interessada em conceber um mundo feito também por quem, sem ouvir, pode escutar. 0 percurso nao parou af, e Audrei engajou-se em pesquisa sistemé- tica que indagava como se organizaria uma aula de LIBRAS como lingua adicional para pais e educadores de criangas surdas. 0 trabalho mostrou cenas de sala de aula, como a que tenho registrada na meméria, do profes- sor surdo virado para alousa, de costas para a turma, espera de atengo para ser escutado, Aprendemos todos a ver como era preciso que esses aprendizes ouvintes antes de tudo construfssem um entendimento do ‘que seria uma lingua nessa até entio insuspeitada modalidade espaciovi- sual. Em meio a isso, Audrel visitava escolas e se aproximava das comuni- dades surdas, de Campinas, SP a Washington, DC. [Nessas cidades, as reflexdes no IEL-Unicamp sobre as diversas comu- nidades sociolinguisticamente complexas no Brasil ea convivéncia em meio @ uma comunidade académica protagonizada por surdos na Universidade Gallaudet ampliaram o universo de escutas proveitosas da autora, amadure- cido em sua tese de doutorado sobre as identidades em jogo quando ouvin- tes aprendem LiBras. Por isso, 6 mais que oportuno que ela venha a piblico nesta obra para dizer um pouco do que, como ela mesma afirma na introdugao, 60 ébvio que ainda precisa ser dito para que mais ouvintes tenham conhecimento do rico ‘universo humano que se faz nas linguas de sinais, com as linguas de sinais,e particularmente com a Lingua Brasileira de Sinais, essa LIBRAS que nos toca de perto, se soubermos escutar para vé-la, & grande a satisfac de ter sido escutado naquela tarcle na UFSC e de ter participado do inicio do percurso que se revela aqui para tantos quantos venham a escutar PoRTO ALEGRE, AGOSTO DE 2009. Introdugao “Nenhums opto vedas ov aka, mas conc opi dominate ged, extabdeceu-se no rn isantaneament @ cam base rama emonsragio ice ple mas 8 orga de repetses porta de hibio" (eon peas £ Itmgua.” Fol este 0 titulo escolhido para a palestra apresentada por uma linguista em ‘um evento cujo piiblico alvo era o estudante do curso de letras. Uma professora que trabalha na drea da surdez, mencionando o titulo, fez 0 seguinte comentario: "De novo? Achei que essa questi j@ estava resolvida!” Fol esse epis6dio que me veio 8 mente no momento mesmo em que co~ mecel a reler este livro, eno j rematado, e que me fez,recomesar justamente partir desse protesto. De fato,o comentario faz.sentido, ea sensa¢ao émesmo ade um discurso repetitive. Ainda é preciso afirmar que L1BRAs € lingua? Essa pergunta me faz pensar: na década de 1960, foi conferido a lingua de sinais 0 status lingulstico, e, ainda hoje, mais de quarenta anos passados, continuamos. aafirmar e realirmar essa legitimidade. A sensagao é mesmo a de um discurso repetitive, Entretanto, para a grande maioria, trata-se de uma questao alheia,e pode aparecer como uma novidade que causa certo impacto e surpresa: ‘Na adianta, ésempreamesma coisa. Quando estamos em um evento que fla para ‘quer esté fora do meio da surdez, tudo é novidade mesmo! As pessoas cam espan- fadas quando tomam conheciment,e para quem est dentro da Grea o discurso é sempre a mesma coisa, ica esta cosa bata, ends ficamos nos repetindo.. Esse comentario pe em palavras minha propria surpresa. Uma sur presa "de dentro", que reclama também agora essa mesma repetiea0. 0 que vemos 6 que o discurso aparentemente “gasto” faz-se necessério, precisando ser repetido intimeras vezes para que a constituicao social dessa lingua mi noritéria ocorra, ou seja, para chegarmos & legitimagao e ao reconhecimen- to, por parte da sociedade como um todo, de que a lingua de sinais £ uma \ingua. Certamente a marca inguistica nao €tinica questo nas discusses sobre a surdez, mas 64 legitimidade da lingua que confere ao surdo alguma “libertago" e distanciamento dos moldes e representagdes até entdo exclu- sivamente patol6gicos. Tornar visivel a lingua desvia a concepcao da surdez 1D esque wnane ss como deficiéncia — vinculada as lacunas na cognigo e no pensamento — para uma concepgao da surdez como diferenga lingufstica e cultural. Qual é, pois, 0 objetivo de escrever este livro? Em primeiro lugar, 6 criar um espago em que esse tipo de discussio seja pensado. De forma mais geral, 0 desejo do livro origina-se de reflexdes sobre algumas ques tes relativas a area da surdez, pensando especificamente a relacao do ‘ouvinte com esse outro mundo. 0 momento parece oportuno e particular mente pertinente, na medida em que decisées politicas tém propiciado um olhar diferenciado para as minorias linguisticas no Brasil. Percebe-se que 08 discursos sobre o surdo, a lingua de sinais ea surdez, de uma forma am- pliada, “abrem-se” para dois mundos desconhecidos entre si: 0 do surdo em relagio ao mundo ouvinte e 0 do ouvinte em relagao a0 mundo surdo, 0 conteiido aqui esbogado pode alcangar diferentes leitores: surdos, ‘ouvintes,leigos, profssionais da surdez, estudantes, professores ou simples ‘mente curiosos. Varias so as preocupactes aqui delineadas. A principal é a de ilustrar falas recorrentes e repetitivas advindas de algumas situacées de interagao face a face com/entre surdos e ouvintes para trazer & tona algumas ‘erengas, preconceitos e questionamentos em tomno da lingua de sinais e da realidade surda. Essa discussdo é crucial, pois na e através da linguagem esta- ‘mos constantemente construindo representagies,crengas e significados afit- mados, consumidos, naturalizados e disseminados na sociedade, nos espacos escolares e familiares, muitas vezes como “normas’ e "verdades absolutas’ 0 leitor encontrara neste livro manifestardes discursivas organiza~ das em trés capitulos sob forma de perguntas ou afirmagdes que venho registrando e acumulando — por meio de conversas formais e Informais —nas minhas idas e vindas em contextos de ensino de LIBRAS para ou- vintes, em eventos académicos e em interacdes cotidianas. 0 leitor po- der vistumbrar no livro um ponto de partida para evocar o Repensar de algumas crengas compartilhadas, praticas, conceitos e posturas & luz de algumas transformacbes que marcam a érea da surdez na atualidade. Ou ‘eja, oque se espera é poder promover um direcionamento para um novo olhar, uma nova forma de narrar a(s) realidade(s) surda(). ‘Ao recuperar, no titulo, a fala de um pai que confessa seu estranha- mento em relagao a lingua do filho surdo, 20 dizer “Libaas? Que lingua é essa?" quero flagrar o total desconhecimento dessa realidade linguistica, tanto por parte daqueles que convivem de perto com a surdez, quanto por parte da sociedade ouvinte de maneira geral. Além disso, prope-se um es- pago de articulacao em que questdes similares possam ser pensadas e, sem evitar seu estranhamento, tornadas mais familiares, Essa fol a forma en- contrada para também sensibilizar ouvintes sobre um mundo sudo desco- rnhecido e complexo. Como disse o poeta Leopardi, ’8 forga de repetisdes, e, portanto, de habito’, podem ser criadas oportunidades para reflexdes e mu- dancas sobre algumas opinides e também crencas daqueles que nao esto ‘ou nunca estiveram em contato com o surdo, a lingua de sinais e a surdez. lingua de sinais cad vex que crm rae sues segura seu babs em seu peto eshalza sara cle (Hoss Ls A lingua de sinais é universal? ma das crengas mais recorrentes quando se fala em lingua de sinais é que ela é uni- versal, Uma vez que essa universalidade est ancorada na ideia de que toda lingua de sinais é um “c6digo" simplificado apre- endido e transmitido aos surdos de forma geral, 6 muito comum pensar que todos os surdos falam a mesma lingua em qualquer parte do mundo. Ora, sabemos que nas co- ‘munidades de linguas orais, cada pats, por exemplo, tem stia(s) prépria(s) lingua(s). Embora se possa tragar um his- t6rico das origens e apontar possivels parentescos e semelhancas no ni- vvel estrutural das linguas humanas (sejam elas orais ou de sinais), alguns fatores favorecem a diversificagdo e a mudanga da lingua dentro de uma comunidade lingulstica, como, por exemplo, a extensio e a descontinul- dade territorial, além dos contatos com outras linguas. Com a lingua de sinais no 6 diferente: nos Estados Unidos, os sur- dos “falam” a lingua americana de sinais; na Franga, a lingua francesa de 12 unas queinanessa sinais; no Japao, a ingua Japonesa de sinais; no Brasil, a lingua brasileira de sinais, e assim por diante. Vejamos abalxo a diferenga do sinal “mae” em 4 diferentes linguas de sinais: ‘Ungua panicle | Ung japoners Ung stata | Lngunamencane dese ‘eam sna os Reto aiptod de Mout Lian (38, ” Em qualquer lugar em que haja surdos interagindo, haverd linguas de sinais. Podemos dizer que 0 que ¢ universal 6 0 impulso dos individu- 0s para a comunicagao e, no caso dos surdos, esse impulso é sinalizado. A lingua dos surdos nao pode ser considerada universal, dado que nao funciona como um “decalque” ou “rétulo” que possa ser colado ¢ utili- zado por todos os surdos de todas as sociedades de maneira uniforme € sem influéncias de uso. Na pergunta sobre universalidade, esta também implicita uma tendéncia a simplificar a riqueza lingu(stica, sugerindo que talvez para os surdos fosse mais facil se todos usassem uma lingua tnl- a, uniforme. 0 paralelo é inevitavel: e no caso de nossa lingua oral, essa perspectiva se mantém? Mesmo que, do ponto de vista pratico, tal unifor- midade fosse desejével, seria possfvel a existéncia, nos cinco continentes, de uma lingua que, além de inica, permanecesse sempre a mesma? A lingua de sinais é artificial? renga. A lingua de sinais dos surdos é natural, pois evoluiu como parte de um grupo cultural do povo surdo. Consideram-se “artificais" as linguas construidas e estabelecidas por um grupo de individuos com algum propé- sito especifico. 0 esperanto' (lingua oral) e o gestuno (lingua de sinais) sao 7 awamente a igus aula planejada mas falada 6 o esperanto,OrussoLudhik Leer Za ‘menkoofalmologseflog,publico, om 1887, 2 verso iniial do idioma, com o objetivo de Nas De SNA 1B cexemplos de linguas “artficiais",cujo objetivo maior é estabelecer a comu- nicagdo internacional. Esse tipo de lingua funciona como uma lingua auxiiar ou franca, 0 gestuno, também conhecido como lingua de sinais intemnacio- nal, 6, da mesma forma que o esperanto, uma lingua construfda, planejada, (0 nome é de origem italiana e significa “unidade em lingua de sinais’, Fol ‘mencionada pela primeira vez no Congresso Mundial na Federacdo Mundial dos Surdos (World Federation of the Deaf - WFD) em 1951. Em meados da ddécatia de 1970, 0 comit da Comissdo de Unificacao de Sinais propunha um, sistema padronizado de sinais internacionais, tendo como critério a sele- fo de sinais mais compreensiveis, que facilitassem o aprendizado, a partir da integracao das diversas linguas de sinais. A comunidade surda, de forma geral, nfo considera 0 gestuno uma lingua “real, uma vez.que foi inventa- a e adaptada. Atualmente, entretanto, cursos so oferecidos, ¢ os adeptos, do movimento gestunista divulgam os sinais internacionais em conferéncias, mundiais dos surdos (Moody, 1987; Supalla & Webb, 1995; Jones, 2001). A lingua de sinais tem gramatica? Absolutamente. O reconhecimento linguistico tem marca nos estu- dos descritivos do linguista americano William Stokoe em 1960. No to- cante s linguas orais, as investigagdes vém acontecendo hi muito mais tempo, j4 que em 1660 (ou sea, trezentos anos antes) desenvolveu-se uma “teoria de lingua em que as estruturas e categorias gramaticals po- iam ser associadas.a padrdes Iégicos universais de pensamento” (Crystal, 2000: 204), postulada na Gramitica de Port-Royal’. As lnguas de sinats, ‘iar uma lingua de apendizagem muito fei que fntonasse come lus Franca Internacional ‘arn os powos de todos os cantos do mundo, Sabe-se entretanto, que nena napio aot © ‘esperanto como sua lingua, na regstrase um us por uma comunidad de mais de 1 mio de folate, lingua 6 empregadnem vrasstuagies eos adeptos do movimento esperatstaimple- mentam e desenivens curses do espersnta em alguns sitemaedeedvcas (Sintingo 1992). 2° Os seguldares do movimento esperanista nao vilizam o termo “artificial pois cream ‘que hi sim, aspectos ature na comuinicagio no esperato, epeferem termes como lingua- om piaejada ov auliar para defin-o Ele argumentam que as linguagens natura também ‘tm “certaarficlidade quando se pensa nas medidas normatvas(gramatlcas normativas) ‘ave postam regras para as lings de uma forma geal. Trata-se de uma quest concetval, polmica om constante debate (Santiago, 1992} 2° se nome é dado a um grupo de estudisos do século XVII que segula as Hela de René Descartes, Pare Royal era um convent 20s de Versailles, na Franca. nsatseltos com ome meas ue un Es como se vé, vieram a ser contempladas cientificamente apenas nos iltimos quarenta anos: antes, “sinal ndo era visto, mesmo pelos sinalizadores, como uma lingua verdadeira, com sua prépria gramatica’ (Sacks, 1990: 76), Ao descrever os niveis fonolégicos' e morfol6gicos da lingua ame- ricana de sinais (ast. daqui por diante), Stokoe apontou trés parametros que constituem os sinais e nomeou-os: configuragiio de mio (ci); ponto de articulagéo (PA) ou locagao (t), delimitado no desenho por um circulo; ‘emovimento (+4), cuja diresdo é indicada por uma seta. 0 exemplo a seguir ilustra esses trés parametros no sinal “certeza’, realizado em LIBRAS: “ oo Deseo apa cam ve em Capos & Raph 20D BA A partir da década de 1970, os linguistas Robbin Battison (1974), Edward S. Klima & Ursulla Belhugi (1979) conduziram estudos mats aprofun- dados sobre a gramitica da ast, especificamente sobre os aspectos fonolégi- 0s, descrevendo um quarto parametro: a orientagdo da palma da mao (0). Ficou demonstrado que dois sinals com os mesmos outros trés pardmetros iguais (coy, 1, mi) poderiam mudar de significado de acordo com a orientagiio ‘odo das gramitcas, ena busca de rigor clei, a Gramstica de Port-Royal &considerada © age da orientagio lca nos estudos. Noam Chom tom difundido a elas dass escola de Densamento e cassifica-a come “inguistica cartesian fondo “paralelos entre a deias do {grupo esua propria concepsto da rlacio ntrea lingua ea mente” (Crystal 1988; 204) 0p fonolgla da linguas de snais fi inicilmenteroferida por Stokoe como quirologia [auir- do prego, significa mio), © querema para o correspondents de fonema. Entretanto, esses termosnido vingaram Naliteraturs, font fonologla continua sendo usados para falar das unidades minimas daslinguas de sins Auscus ce suas 15 dla mao, Esse contraste de dois tens lexicais com base em um tinico compo nente recebe, em linguistica, o nome de "par minimo", Nas linguas oral, por cexemplo, pata e rata se diferenclam significativamente pela alteragdo de um “inico fonema: a substitulgéo do /p/ por /r/, No nivel lexical temos em Liseas pares minimos como os sinais grtis e amarelo (que se opdem quanto a cx), ‘hurrascariae provocar (diferencados pelo M), tere Alemanha (quanto a} Opasigio de CM Oe oe Arabs Oposicgo de M: Secs prnoar Resta aaa de Capt & Raph 200 25 16 une qQemanease Poclemos testar os pares minimos com varias outras palavras, mas vvejamos a seguir uma ocorréncia em LIBRAS no sinal “ajudar’, em que a orientagdo da palma da mio faz a distingao de significado, sendo val da, portanto, como mais um parimetro: 2 2 ‘LAjudar alguém 2.Ser ajudado eset aad nck ce Cp & Raped 200 OL 0 exemplo ilustra a diferenca marcada entre 0 sentido em (1) “eu ajudo X" em (2) “X ajuda a mim” Varios outros verbos fazem a flexao verbal dependendo da orientagdo da palma da mdo: respeitar, respon- der, telefonar, avisar etc. Esse parametro no serve apenas para marcar a flexao do verbo, mas também para a marcacio, por exemplo, de nega- tivas como em “querer” e “nao querer’, “saber” e “ndo saber’, “gostar* endo gostar”. 0s sinais também podem ser realizados com uma ou duas mios. Vejamos primeiro o exemplo da composigao, a partir da segmentagao dos quatro pardmetros, do sinal "conhecimento” em LisRas (uma mao apenas): Para uma eitra nas detahada sobre a estrutara linguists da uinmas, cf Ferreira Brito (1995), Quadtos Karnopp (2003), Xavier (2006), Leite (2008); eda ast, c Stokoe (1960), Friedman (1977), Klima &Bellugi (1979), Lidell (1984) e Liddell & Johnson (1986). a unaus or ns 7 Contgagio | _ Orertagio da tocagao Movinento demon | pa dio) o oo OF eae Deseo ata com bas rm Capt & Rapa 28:7, ‘A configuracdio de mao diz. respeito & forma da mao — na palavra “co- nnhecimento’, um sinal realizado com uma méo em numeral “4” ou na forma [52]. A orientagto de paima da mao indica que os sina tém diregao e que sua inversio, em alguns sinais, pode alterar o significado do sinal. A orientacao é a direcdo que a palma da mao aponta na realizacao do sinal — e no caso de “conhecimento’, para o lado direito (contralateral). locagdo refere-se ao lu- gar, podendo ser realizado em alguma parte do corpo, e no exemplo pademos verificar que ocorre em frente ao queixo, Finalmente, o movimento, que pode ‘ou nao estar presente nos sinais. No caso de “conhecimento’,alateral do dedo indicador bate préximo ao lado direito do queixo. Vejamos, a seguir, compo- sigdo dos quatro pardmetros do sinal“verdade’, realizado com as duas maos: ‘Configuasio da | Ofertaco da palma tocacio Mento mio (Go) aioe) 0 0 ws, a al SS 120) eset atc oom as Capi & Raphael ‘As maos nao so o ‘inico vefculo usado nas linguas de sinais para produzir informagdo linguistica. Os surdos fazem uso extensivo de mar- cadores ndo manuais. Diferentes dos tragos paralinguisticos das linguas 1B tans cues ese orais (entonagio, velocidade, ritmo, sotaque, expressées facials, hesita- sées, entre outros), nas linguas de sinais, as expressbes faciais (movimen- to de cabesa, olhos, boca, sobrancelha etc.) sao elementos gramaticais que compéem a estrutura da lingua; por exemplo, na marcagao de formas sintéticas e atuago como componente lexical: EXPRESSES NAO MANUAS, Component cl GAGES (Cha xe cna inna un pc pode aterano em confide com a cengresio faa por exempa Ae io se peso fal nog. ese atid com se em Cpls Raph 204 1-7 A partir da andlise desses parmetros, podemos perceber que as lin- {guas orais e as Iinguas de sinais so similares em seu nivel estrutural, ou ‘sas expresades nfo manuals, na funcosintitica, podem ser as perguntas retiica, or es relatives, topicalzagoes, Na constialg de components lexical, funciona como “ut feferénca especie ou como uma referéneia pronominal, uma partculanegativa, um adver bio, um movie ou una mares de aspect (ereera Brito, 1995: 240), A uNCUA pe sna 19 seja, séo formadas a partir de unidades simples que, combinadas, formam tunidades mais complexas. Como observa Noam Chomsky, todas as linguas funcionam como sistemas combinatérios discretos: “Sentencas e frases sio construfdas de palavras; palavras sao construidas a partir de morfemas; ‘© morfemas, por sua vez, so construfios a partir de fonemas” (Pinker, 1995: 162), Em que, entdo, as linguas orais e de sinais diferem? Diferem quanto a forma como as combinagées das unidades sao construfdas, Enquanto as linguas de sinais, de uma maneira geral (mas ‘nao exclusiva!), incorporam as unidades simultaneamente; as linguas orais tendem a organlzé-las sequenclalmente/linearmente”. A explicagao para essa diferenga priméria se da devido ao canal de comunicagao em que cada lingua se estrutura (visual-gestual x vocal-auditivo), pois essas ‘caracterfsticas ficam mais salientes em uma lingua do que em outra (Fer- ‘eira Brito, 1995; Wilcox & Wilcox, 1997). As investigagdes linguisticas apontam e descrevem a existéncia de caracteristicas linguistico-estruturais que marcam as linguas humanas naturais. A crenca, ainda muito forte na sociedade ouvinte, de que a lingua de sinais dos surdos nao tem gramatica est ancorada na crenga de que falamos a seguir: a de que elas nao passariam de mimicas e pan- tomimas, A lingua dos surdos é mimica? Falso. Para demonstrar a diferenca entre a mimica e os sinais, Klima ‘& Bellugi (1979) conduziram um estudo a partir da observagao de narra- tivas que necessitariam de pantomimas durante a contacio da historia, Nesse estudo, a narrativa estudada foi “O unicérnio no jardim’ de James ‘Thurber: Nela foram constatadas “invengdes” de sinais para a palavra *ca- misa de forea’ — em inglés straitjacket. Embora, em alguns momentos, + Noinfeo dos anos 1980, entretanto, ha formulagbes de alguns lngulstas quanto incorpo ‘ago motto evidente da sequencalidade n onologi da At. O mest éverdadeir em LisRAS (cf Witeox& Wilcox, 1997; Klima & Bellu, 1979; Ferrers, 1995; Quadros, 19973), 20 imma que incan Eessn os surdos usuarios de ast langassem mao desse recurso para sinalizar 0 conceito, ¢ cada sinal tivesse um jeito, fol possivel constatar que, no an- ‘damento da histéria, e mesmo em situagies de sua recontagem, o conceito supracitado na sinalizagao continuava icOnico, Entretanto, as investigacées ‘mostraram que houve uma simplificagio e uma estilizacao nos movimen- tos — os sinais pareciam mais sistematizados e convencionados, Veja abai- xo. progressao da pantomima em (a) para. sinal “inventado” em (b) (a) Pantomnima ce “camisa de fore” Read dea & Bai, Na sequencia, os pesquisadores procuraram estabelecer um critério especifico para fazer a distingao entre Asi. e pantomimas, Para tanto, in vvestigaram dez individuos nao sinalizadores para demonstrar em gestos algumas palavras do inglés. Veja 0 exemplo da palavra “ovo" (retirado de Klima & Bellugi, 1979: 17): (b) Tipo de reduc do sinal Rea de & Gai, ‘unas oe as 21 (Panis de no 1) Sal deo" em ASL. Constatou-se que, para o exemplo acima, as pantomimas observadas t- nnham muitas possibilidades, variando de um individuo para outro; enquanto nna lingua americana de sinais permanecia apenas uma variedade, ou seja, a variedade legitimada ¢ convencionada pelo grupo de usuarios estudados. utra diferenga é que as pantomimas ou mimicas — uma vez que tentavam representar o objeto tal como existe na realidade — eram muito mais deta- Thadas, comparadas aos sinals americanos, levando muito mais tempo para sua realizago. A pantomima quer fazer com que vocé veja 0 “objeto, en- ‘quanto o sinal quer que voce vejao simbolo convencionaclo para esse objeto. Quando me perguntam, entretanto, sea lingua de sinals 6 mimiea, entendo que est implicito nessa pergunta um preconceito muito grave, que vai além da discusséo sobre a legitimidade linguistica ou mesmo so- bre quaisquer relagdes que ela possa ter (ou no) com a lingua de sinais. Esta associada a essa pergunta a idela que muitos ouvintes tém sobre os surdos: uma visio embasada na anormalidade, segundo a qual o méximo que o surdo consegue expressar é uma forma pantomimiea indecifravel ¢ somente compreensivel entre eles, Nao A toa, as nomeacdes pejorativas anormal, deficiente, débil mental, muco, surdo-mudo, mudinko tm sido equivocadamente atribuidas a esses individuos*. A lingua de sinais tem todas as caracteristicas linguisticas de qual- quer lingua humana natural. £ necessério que nés, individuos de uma cultura de lingua oral, entendamos que o canal comunicativa diferente 5 Ca diseassio do capitulo 2 22. was quetnan ESN (visual-gestual) que o surdo usa para se comunicar nao anulaaexisténcia de uma lingua to natural, complexa e genuina como € a lingua de sinais, Aeesse respeito quero salientar trés definigées encontradas no Diciondrio diddtico de portugués (Biderman, 1998: 630-645): imimica sf mf-mi-ca. Expressio de idéias, palavras ou sentiments através de gestos expressivos que acompantam ou substituem a fala. Os mudos tusam mimica para comunicarem suas idéias. Durance o piquenique a tur- ‘ma fez varias brincadeiras; uma delas fo! o jogo de mimica./ pl: minvicas. [enfase minha) ‘muder sf mu-dez, Qualldade daquele que ¢ mudo, de quem néo fala. Mui- tas vezes, « mudez é provocada por problemas de audlirfo.// Nao se usa no pl adj: mudo/ cf: surdez. ‘mudo ad}, mudlo. 1. Que nao fala por problemas fisicos ou psicolégicos. [As definigdes inter-relacionadas acima perpetuam as ideias de que 0s surdos no tém lingua, e os desdobramentos dessas definices contri- >buem para que acreditemos que eles no podem produzir fala inteligivel ede que nao tém cordas vocais. Os surdos sao fisicamente e psicologica- mente normais: aqueles que tém 0 seu aparato vocal intacto (que nada tem a ver com a perda auditiva) podem ser oralizados® e falar a lingua oral, se assim desejarem, Entretanto, o que deve ficar registrado é forma pela qual constantemente se atribul a lingua de sinais um status menor, inferior e teatral, quando definido e comparado & mimica. E possivel expressar conceitos abstratos na lingua de sinais? Claro que sim! Nevamente,a pressuposigao de que nao se consegue expressar ideias ou conceitos abstratos esta firmada na crenga de que a lingua de sinais ¢limitada, simplificada, e nd passa de um e6digo prim tivo, mimica, pantomima e gesto. No Dicionério de linguisticae fonética, por exemplo, gestos sao considerados trapos paralinguisticos ou extralin- _guisticas das linguas orats Oras & um treinamento, com orintagio de foneaudléloges, pare que uma pessoa surda poss produzir as sos vocals da lingua oral. ssa praca €relizadajuntarente com pres deletura aba sas oe swas 23, Em seu sentido mais amplo, o termo se refere a qualquer coisa do mundo (que nio seja a Lincua) em relago& qual a lingua esta sendo usada —a''si- tuagdo extralingufstica’ A expressdo "trapos extralinguisticos” pode signifi- car qualsquer propriedades de tals situar0es, ou, em termos mais especifi- 0s, propriedades da comunicagao que ndo saa claramente analisaveis em termos LiNgulsticos (gestas, tom de voz etc). Alguns linguistas nometam a primeira classe de tragos como MsTALINGUISTICOs; outros nomeiam a se- ggunda classe como paraLinGufsticos (Crystal, 2000: 105-106), Para nos desvincularmos da acepeao exposta acima, devemos enten- _gestos. Pelo menos ndo se pensarmos gestos de acordo com a definicao anterior. Assim, é correto afirmar que as pessoas que falam linguas de sinais expressam sentimentos, emogies e quaisquer ideias ou conceitos abstratos. Tal como os falantes de linguas orais, os falantes de linguas de sinais podem discutir filosofia, politica, literatura, assuntos cotidianos ete. nessa lingua, além de transitar por diversos gé- neros discursivos, criar poesias, fazer apresentagdes académicas, pecas teatrais, contar e inventar histérias e piadas, por exemplo. Emmanuelle Laborrit, surda francesa, em seu belissimo livro 0 voo da gaivota, afirma: der que sinais Os sinals podem ser agressivos, diplomaticos, poéticos, floséficos, mate- rmaticos: tudo pode ser expresso por meio de sinais, sem perda nenhuma de contetido. E uma Ifngua exclusivamente ic6nica? renga. 14 uma tendéncia em pensar assim, e essa visio relaciona-se como fato de a lingua de sinais ser uma lingua cle modalidade espaciovisual; ou seja, a lingua, quando sinalizada, fica mais “palpavel’, “vistvel: Nesse sen- tido, relagdes entre forma e significado parecem ser mais questionadas. Essa associagao incorre, muitas vezes, em cairmos no risco de reforear a crenga de que a lingua de sinais seria apenas uma representagdo pantomimica — 0 que nao procede, pois, como argumenta Ferreira Brito (1995: 108), “a icon cidade 6 utlizada [na lingua de sinais] de forma convencional esistemitica’ Embora exista um grau elevado de sinais icOnicos (beber, érvore, casa, avido..}, & importante destacar que essa caracteris siva das linguas de sinais, As Inguas orais incorporam também essa ca- do 6 exelu- 24 urs: Que INGA FESS racteristica. Podemos verificé-la no cldssico exemplo das onomatopéias como pingue-pongue, ziguezague, tique-taque, zum-zum — cujas formas representam, de acordo com cada lingua, 0 significado. Além disso, mes~ mo sinais mais icdnicos tendem a se diferenciar de uma lingua de sinais para outra, o que nos remete ao fato dea lingua ser um fenémeno conven- ional mantido por um “acordo coletivo técito” entre os falantes de uma determinada comunidade (Saussure, 1995), Ainda amarrada a essa erenga esté o que Wilcox & Wilcox (1997: 6) destacam em seu livro: a de que as linguas de sinais seriam mais concei- tuais do que as linguas orais. Na verdade, todas as linguas sio conceltuals, a diferenga 6 de que forma cada lingua “empacota os conceitos em unida- es linguisticas". A metéfora do “pacote” isto &, o modo como cada lingua {4 forma aos conceitos em unidades linguisticas,ilustra bem a questo: ‘quem de nés jé ndo se perguntou, por exemplo, por que uma palavra, em dada lingua, quando traduzida para outra, pode ficar muito maior em seu tamanho? Ou mesmo uma sentenga, ou texto? Em alemio, o sintagma nominal a associagéio dos febricantes de copos de suco de laranja tem a seguinte forma: die Orangensaftglashersteller- vereinigung. Em LisRas, a pergunta que horas sdo? é a sinalizacéo apenas da palavra nome com expressao facial marcando a pergunta ead de Cpa & Raphi 208 TO Isso ocorre porque 0 contetido e a informagao nas palavras de certas linguas so “empacotadas’ distintamente, Nao significa dizer,entretanto, que ‘uma ou outa lingua seria simplificada por ter "pacotes menores" e no ne- cessitar, por exemplo, de conjungles, preposigées ou flexes verbais em sua A.INGUN be sas 25 estrutura”’, O inglés, se comparado ao portugués, tem uma construsio dis- tinta na conjugacio dos verbos, mas isso nao significa dizer que uma lingua seja simplificada e outra complexa. O mesmo serve para as Iinguas de sinais. ‘final, a complexidade é inerente a todas as linguas humanas e naturais, A lingua de sinais € um cédigo secreto dos surdos? Os surdos foram privados de se comunicarem em sua lingua natural dus rante séculos. Varfos estudos tém apontado a dificil retagao dos surdos com a lingua oral majortéria e com a sociedade ouvinte. Escolas, profissionais da salide, e familiares de surdos tém seguido uma tradiio de negagao do uso dos sinais, Groce (1985), por exemplo, oferece-nos um panorama das atitu- des dos ouvintes em relacao a surde, apontando que, por séeulos, os surdos nio tinham respeltados os seus direitos e reconhecidas suas responsabil dades, mesmo depois de receberem educacao. Padden & Humphries (1988) mostram que as escolas, em sua grande maioria, proibiam o uso da lingua de sinais para a comunicaedo entre os surdos, forgando-os a falar e a fazer lei tura labial. Quando desobedeciam, eram castigados fisicamente, e tinham as mos amarradas dentro das salas de aula. O desenho da surda Bey 6, Miller denuncia a protbigao da lingua americana de sinais nas eseolas de surdos: bP ey GM, Are Pie 072 Essa discussio tem impleagdes para traduedo,espedfcamente pensande a tradusto da Leas para o portugus vice-versa 26 vnnase Quen ss A maioria dos surdos fol educada em mosteiros, asilos ou escolas em regime de internato. Eles migravam para essas instituigdes, vistas como ‘imica possibilidade de receber instrugao. Lane (1984), por exemplo, dedi- caum livro para contar um pouco da histéria dos surdos nos Estados Uni- dos, mostrando que na batalha entre “manualistas” e “oralistas, a lingua — ainda que banida muito mais do que valorizada — e seus falantes — ‘muito mais oprimidos e discriminados do que os individuos ouvintes — resistiram, Embora essas situagdes sejam retratadas em obras publicadas ‘no exterior, no Brasil, a trajetéria dos surdos nao foi muito diferente (Reis, 1992; Rocha, 1997), Dentre algumas narrativas hist6ricas, conta-se que a sinalizagao era vista como um "cédigo secreto”, mesmo entre os surdos, pois era usada as escondidas, por causa de sua proibigao. Na perspectiva de tantos outros, a lingua era vista como algo exético, obsceno e extre- ‘mamente agressivo, jS que o surdo expunha demais 0 corpo ao sinalizar (Wright, 1969; Lane, 1984; Sacks, 1990; Bayton, 1996). Varias implicagies sociais, politicas, educacionais, psicol6gicas e lin- guisticas decorrem dessa proibicao. Porém, o que a histéria nos mostra & que a lingua de sinais, dferentemente da maioria das linguas minoritarias, ‘no morreu e nao morrerd porque, enquanto tivermos dois surdos compat tilhando 0 mesmo espago fisico, haverd sinais. Essa é a ironia da tentativa desenfreada de coibir seu uso: oagrupamento nos internatos que pregavam © oralismo a todo custo serviu para os surdos se identificarem como pares constituintes de um grupo, passando a usar, disseminar e reforcar um even tual sentimento de valorizado dos sinais e da identidade cultural surda. Outro apelo pejorative e muito distorcido sao algumas referencias € ‘comparagdes da lingua dos surdos com a comunicagao dos chimpanzés™ Lane (1984: 77) retoma em sua discussdo que uma das questées filoséficas centrais no Ihuminismo era especular sobre “o que nos tornaria humanos”. De Arist6teles a Descartes, a resposta era consensual: falar uma lingua. Nes- se cenario, "as crianas surdas e selvagens eram, todavia, um complicador 1 Na dade Média (476 .C-1452), nt ce mongeshenedinas empregavem uma forma seereta de sina para se comunlcarem entre si, afm de nao viola 0 rigdo voto de silencio (Lane, 1984; Sacks 1990}. "As obras de wg (1968), Lane (1984), Groce (1985) e Sacks (1990) relatam algumas formas pejorativasassciadar i inguas do surdos. Nea be Stas 27 para essa defini¢io de homem, ja que os surdos eram pensados como sem lingua e as criangas feras eram invariavelmente mudas’. A histéria tem rela- tado esse e tantos outros equfvocos e injusticas cometidos com os surdos.. Linguisticamente, pode-se afirmar que a lingua de sinais é lingua porque apresenta caracteristicas presentes em outras linguas naturals e, essenclalmente, por que é humana. Sabe-se que todos os seres vivos podem ter um sistema de comu- nicagdo. As pesquisas mostram a forma como as abelhas se comunicam, © sofisticado sistema de comunicago dos golfinhos e de tantos outros mamiferos; contudo, s6 os homens possuem lingua (Akmajian et alii, 1995). Essa é, sem diivida, uma das caracteristicas que nos distinguem das outras espécies. Entdo, a resposta para a pergunta dos filésofos turva 0 olhar, pois 0 foco para a resposta est voltado para a definicao que se tinha de lingua na época, isto 6, se « lingua de sinais ndo € lingua, entdo os surdes néo falam, logo, ndo so humanos.. A lingua de sinais, como 4 vimos, tem uma gramética prépria e se presenta estruturada em todos os nfvels, como as linguas orais: fonolé- gico, morfolégico, sintatico e semantico. Além disso, podemos encontrar nela outras caracteristicas: « produtividade/criatividade, a flexibilidade, a descontinuidade e a arbitrariedade. A primeira diz respeito & possibilidade de combinar unidades, de forma ilimitada, para formar novos elementos. Por exemplo, os sons das linguas orais podem ser combinados de varias formas para a produgio de novos conceitos, 0 mesmo para a produtividade de palavras e sentencas. Por isso falamos do processo criativo nas linguas: podemos falar diversas coisas de diversas formas a partir das regras de cada lingua; regras que de- terminama posigao que cada elemento pode ocupar — por exemplo: pode- ‘mos dizer “o menino caiu’, mas ndo podemos dizer "menino o caiu’, porque as regras do portugués nao permitem. 0 mesmo se aplica aos sinais. A flexibilidade se refere 4 mobilidade visivel nos diversos usos de uma lingua. A lingua € versdtil e, por isso mesmo, podemos falar do pas sado, presente, futuro; discutir, ameacar, prometer etc. Em relagdo a des- continuidade, tomem-se como exemplo as diferencas m{nimas na forma 2B aay queinan és centre duas palavras; diferencas mfnimas, mas que acarretariam mudanga no significado, como em maca e mala (alterando apenas um fonema), ou em LiBRas gréitis e amarelo (alterando apenas um parémetro, a cM). En- ‘tretanto, quando contextualizadas, podem ter seu sentido inferido, mes- ‘mo que haja um erro ou troca de fonemas/queremas por parte de quem fala ou sinaliza. Por isso, mesmo reconhecendo o valor especifico em cada fonema ou parametro, a contextualizacao nos ajuda muito, eé ela que nos faz compreender a diferenga de significado, por exemplo, em palavras ho- ménimas na lingua oral e na lingua de sinais. Quanto a arbitrariedade, dizer que as linguas tém essa caracteristica 6 dizer queas linguas s4o convencionadas e regidas por regras especificas. Nesse sentido, nao é possivel saber o significado de uma palavra somente ‘a partir de sua forma ou representagao linguistica. Na lingua portugues: nao ha relagdo entre a forma e o significado da palavra "conhecimento’ da mesma forma que ndo hd essa relaco na LiBRAs, A exce¢ao seria 0 caso das onomatopéias (Akmajian et alii, 1995; Quadros & Karnopp, 2004). A lingua de sinais é 0 alfabeto manual De forma alguma, 0 alfabeto manual, utilizado para soletrar manual- mente as palavras (também referido como soletramento digital ou datilo- Jogia), é apenas um recurso utilizado por falantes da lingua de sinais. Nao uma lingua, e sim um cédigo de representacao das letras alfabéticas: ALFABETO GREGO By ALFABETO ROMANO A B C Dae ALABETO MANUAL gh S98 Anas De ss 29 BRALE Acreditar que a lingua de sinais ¢ 0 alfabeto manual é fixar-se na fdeia de que a lingua de sinais é limitada, que a tinica forma de expres sto comunicativa seria uma adaptacao das letras realizadas manualmen- te, convencionadas e representadas a partir da lingua oral. Imaginemos, por exemplo, quanto tempo levaria um surdo para falar uma sentenga ou, ampliando bem a questdo, ter uma conversa filos6fica, se utilizasse ape- nas o soletramento manuaf? Travar uma conversa dentro deste enquadre nado senha cansat uefa), Entretanto, é importante que se diga que o alfabeto manual tem uma fungo na interagao entre os usudrios da lingua de sinais. Langa-se mao des- se recurso para soletrar nomes préprios de pessoas ou lugares, sigas, ¢al- ‘gum vocabulo nao existente na lingua de sinais que ainda néo tena sinal: ove i ope. come nes in Cangat de pesiase qe compro uns io acu nag Cnn de ‘alate de as dea ret cad, a, Eco po Sas cm pes oenguardo 0 saropacoora da cade ‘Sderar #OMO. ‘ees tad de Capo & Raphael a0 2, “Agradogo ao professor Dr Pedro M.Gateez gue, em uma dscpna de ntradusto aos est os linguisticos do mestraco em ltras/ingls, em 1997, pontuou essa questi, Lembo de ‘que na época todos os alunos (ineindo eu fiaram surpresos em out fal da legtimidade lingstica da lingua de sna, © nosso conheciment comesou a ser construide quando 0 pro fessor nos fx refletir sobre essa observasio. 3 ts que UNGLN EW ‘Além disso, os usuarios de lingua de sinais fazem, em algumas si- tuagdes, empréstimos da grafia da lingua oral, recorrendo a datilologia para realizar sinais de pontuacao (tais como, virgulas, ponto final, ponto de interrogacdo, sinais matematicos etc.) que, na maioria das vezes, s80 desenhados no ar, 0 mesmo pode ocorrer com as preposi¢ées ou outras classes de palavras Entretanto, soletrar ndo ¢ um meio com um fim em si mesmo, Palavras comumente soletradas podem e de fato so substituidas por um sinal. Assim, podemos afirmar que esse recurso funciona potencial- mente nas interagées para incorporar sinais a partir do entendimento conceitual entre os interlocutores — uma vez vez apreendida a ideia, convencionam-se os sinals para substituir a datilologia de um dado vo- cabulo, por exemplo. No Brasil, 0 alfabeto manual ¢ composto de 27 formatos (contan- do o grafema ¢ que é a configuragao de mao da letra ¢ com movimento trémulo). Cada formato da mao corresponde a uma letra do alfabeto do portugués brasile ORCERGA FL pie eee’ 4 a Uy A gy ‘Desens de Koyana Rae banca Pode-se dizer também que no uso do alfabeto manual alguns ele- ‘mentos linguisticos sao “reapropriados" pelos ususrios, ou seja, hd pa- A usaus pe swat 3 Javras que sdo soletradas de forma a se ajustarem as restrigGes da lin- gua de sinais, Esse proceso é natural em todas as linguas de contato. A lingua portuguesa, por exemplo, incorpora ou ajusta 0 termo delet do inglés: utiliza a terminagao no infinitivo ~ar ao dizer deletar (e se- {gue na mesma diregao na conjugaeao em deletet, deletamos e assim por diante). Esse fendmeno esta intimamente relacionado a0 uso. Quadros & Karnopp (2004: 91) ilustram essa questio no aifabeto manual verifi- cando 0 advérbio nunca (soletrado n-c-a ou n-u-n). 0 mesmo ocorre na realizacdo da conjungao se (soletrada s-1) e no uso do verbo ser/estar, no presente do indicativo, conjugado na terceira pessoa do singular 6 (Goletrado apenas 0 movimento de acento agudo no ar com aafirmacao positiva da cabera). Por ser uma convencao, o alfabeto manual se configura de uma for- ‘ma especifica nas linguas de sinais de cada pats. 0 alfabeto manual brita- nico, por exemplo, é feito com as duas mos: pasrANCO AMERICANO surco BAAR AMA hess ba TRE EM Saale eB eee aR RAGA Ae (As fee AH ® BR a a Boe) Bs" 19 we Existe também o alfabeto manual para surdos-cegos. Da mesma for- ‘ma que o soletramento do manual britanico, os individuos usam as duas ‘mos para soletrar as palavras, com a diferenca crucial de que os surdos -cegos precisam pegar na mao do interlocutor para tatear o sinal — 32 as queuNan cess Forte tindbdaindcomcutis £ importante ressaltar que o soletramento, tanto na sua forma re- ceptiva (do ponto de vista de quem I8) quanto produtiva (do ponto dle vis ta de quem realiza), supde/implica letramento, 0 soletrante que nao for alfabetizado (escrita/leitura) na lingua oral de sua comunidade de fala, por exemplo, tera as mesmas dificuldades de um individuo iletrado para eae eee Deserted apo de Cpa & phn DO: T=, ‘AUNCUA oe snows 38 Enesse sentido que as criangas surdas, ainda em processo de alfabe- tizacio da escrita da lingua oral, poderdo ter também dificuldade com essa habilidade. Mais uma prova para desconstruira crenca de que a lingua de sinais pudesse ser 0 alfabeto manual/datilologia, anal, para ser compre- endido e realizado o abecedario precisa ser ensinado formalmente. A lingua de sinais é uma verso sinalizada da lfngua oral? Insistimos em que a lingua de sinais nao é a datilologia ou mimica (como muitos podem pensar), também nao é universal (igual em todos 0 paises), muito menos artificial (uma lingua inventada). Ligada a essas crengas, vem a seguinte Indagag4o: ento, seria a lingua de sinais uma ‘adaptasao” das linguas orais? Ou, dito de outra forma, seria a LiBRas um portugués sinalizado, por exemplo? Nao. A lingua de sinals tem estrutura prépria, ¢ 6 autOnoma, ou seja, independente de qualquer lingua oral em sua concepeao linguistica. Edu- cacionalmente, o uso do portugués sinalizado tem sido alvo de muitas cri ticas, porque se insere na filosofia do bimodalisme. Dentro dessa visto, en cara-sea lingua de sinais como um meio para se atingir um fim, ou seja, um recurso para ensinar a falar uma lingua oral (no Brasil, 0 portugues), fan- cionando como um amélgama dos sinais e de fala. Ferreira Brito (1993), por exemplo, fala da impossibilidade de preservar as estruturas das das linguas usando a lingua de sinais para falar a lingua oral. No nivel lexi- cal, por exemplo, sinais como lingua e nada ilustram a questao (cf. figura abaixo). Além disso, Sacks (1990), entre outros, critica a proposta bimo- dal, pois, embora preconize uma tentativa de facilitar a aprendizagem da estrutura da lingua oral pelo surdo, ela funciona como uma “pseudalingua intermedidria’ afirma. 34 ums queucuse swe era de Cn Raphael GO 326 20) ‘Vejamos essa questo, no entanto, do ponto de vista da sociolinguistica. 0 fato dea comunidade surda sera tinica comunidade que, em qualquer pals, esta inserida na e cercada pela comunidacle majoritéria ouvinte faz com que as linguas de sinais estejam em contato direto com as linguas orais locais, Nessa “coabitagao” linguistica, é natural ocorrerem empréstimos, mesclas e hibridismos. A relagdo entre as linguas, entretanto, no é nem nunca fol neutra ou simétrica, Como no caso de quaisquer outras linguas que estao ‘em contato, ha sempre em jogo questdes de poder e as decorrentes situa- ‘es de conflito! Em estudos sobre comunidades indigenas, Maher (1997) observa que a relagio entre linguas com status distintos funciona como um ‘A socolinguistiea de perifria (Hamel & Sierra, 1903) ea socilingisticaIntractonal (Ribeiro & Gare, 2002) apontam, em suas ivestgagbes soe comunidades bilngues, que 8 relago entre as lingua e seus alates & sempre conlitoss« assimétrca Portano, dst ‘am-se da visio da sociolinguistic tradicional que altingue apenas as diferencas funcional, dentro de una ingus, entre variedades em contato: referee 8 variedade alta (high wary), ‘sada em amblentes formas, variedade batta (ow varie), usa em stuades informal, Essa distngo por sl s6 nao lumina a questo pars entender, por exemple, como e por que a8 lingua so socimentedlerencadas,confarme airmou Ferguson na decal de 1950, Aun pe seas 35, “jogo de ocupacio linguistica onde a lingua dominante tenta ‘abocanhar’ a lingua dominada' (p. 22). A metéfora ilustra bem como o portugués acaba se sobrepondo & lingua de sinais nas interagoes entre surdos e ouvintes, por cexemplo. f faciimente demonstravel que hé marcas de imposicéo da estru- tura do portugués em alguns ‘falares" sinalizados, especialmente nas mos dos ouvintes (Gesser; 2006). Mas, por que isso ocorre? A motivacio para a ocorréncia das marcas 2struturais do portugués za sinalizagdo, ¢ mesmo na comunicagio simultanea'* no caso do sinali- zador ouvinte brasileiro, acontece por vérias razdes: pode ser um movi- ‘mento em diregdo ao uso de uma tinica lingua, no caso, a LiBRAS; ou pode ser, ainda, 0 uso de uma forma “hibrida” funcionar como uma estratégia utilizada por alguns ouvintes que esto iniciando o contato ea aprendiza- ‘gem da lingua de sinais — sendo a fala oral inerente & cultura dos ouvin- tes (Gesser, 1999) e, portanto, to dificil desvencilhar-se dela, Em muitos ‘outros momentos, todavia, o portugués sinalizado pode ser 0 reflexo de uma ideologia e, entao, ha que averiguar mais de perto para saber se es- ‘es usos, Se esses falares so ou ndo uma tiltima tentativa, um diltimo grt- to da maioria ouvinte para rejeitar e banir a lingua de sinais dos surdos (Gesser; 2006; 2007). Acredito ser esse ultimo sentimento que, remetido £s filosofias oralista e bimodal, paira no ar, ¢ evoca mal-estar quando se fala em portugués sinalizado entre usuarios da LIBRAS. A lingua de sinais tem suas origens hist6ricas na lingua oral? Essa pressuposi¢ao esté relacionada a anterior e, da mesma forma, no passa de uma fiegdo, Cada lingua de sinais tem suas influéncias e raf- es histéricas a partir de Iinguas de sinais especificas. Ha poucos do mentos registrados por surdos, e sobre os surdos, que possam fornecer Informagdes sobre a origem eo desenvolvimento das Iinguas de sinals, 'Comunicario simultinea é— como o nome sugere —o uso simultineo das duas modal dade: (orale sinal) na expresso linguistics, Critca-e muito esse uso, uma ver que se acreita ‘ave 08 snais so suprimidos em favor da lingua oa 36 urease queue é1sse entre surdas, Mas Wilcox & Wileox (1997) argumentam que ha dois tipos de evidéncia que mostram o uso natural da lingua pelos surdos. 0 primeiro é 0 relatado em uma pequena ilha comunitéria nos arre- dores da costa de Massachusetts, Estados Unidos, chamada cle Martha's Vi- neyard, onde uma elevada incidéncia hereditéria da surdez foi observada entre os séculos XVII e meados do século XX. No livro Everyone Here Spoke ‘Sign Language, Nora Groce (1985) dedica-se a descrever essa rara situag0 na ilha, A autora conta a histéria dos surdos nessa comunidade, mostrando que os primeiros habitantes da ilha vinham da Inglaterra e falavam algum tipo de lingua de sinais, Estavam tio integrados ao dia a dia da ilha que no se consideravam nem eram considerados deficientes ou um grupo & parte, Até os dias de hoje, essa ilha € conhecida como a tinica comunidade bilingue na qual tanto os ouvintes como os surdos usam sinais na mesma pproporgdo que a lingua inglesa em todos os ambitos da interacao cotidiana, (0 segundo tipo de evidéncia vem da Franga, e esta relatada em um livro escrito em 1779 por um surdo chamado Pierre Desloges. 0 livro se intitula Observations of a Deaf-Mute, e o autor escreveu-o para defender sua prépria lingua contra aqueles que achavam que os sinais deviam ser banidos (Wilcox & Wilcox, 1997). ‘Tanto a lingua americana de sinais (american sign language - ast) quanto a lingua brasileira de sinais (tipras)}* tém suas origens na lingua francesa de sinais, No caso americano, o protestante americano Thomas Hopkins Gallaudet decidiu viajar para a Europa”, a fim de buscar ajuda para Alice Cogswell, uma garotinha surda de 8 anos, filha de seu vizinho. Depois de algumas tentativas com os oralistas franceses, Gallaudet desis- tiu de seguir esse caminho, visto que nao confiava no método empregada para oralizar criancas surdas. Foi entdo que contatou o surdo francés Lau- ‘© Deacordo com Rocha (1997) lingua brasileira de snaspadtdo 6 referida como unaas. Essa denominacSo fr estabelecida em assembléia por membros da FederagSo Nacional de Educaeioe Integrio do Surdo (FENEIS) em outubro de 1993, etem sido reconhecida pela Federaeio Mundial dos Surds (WD, polo Ministrio da Educaco (MEC) e por educadoras¢ slentstas do camp, L19R4s ft oilalzada pela Senado Federal em abril de 2002 "Na cenéro francés de século XVI das figuras epanentes marcam dots caminhos distin tos: Jacob Rodrigues Pereie considerad o principal fundador do oraliso) eo Abade TEpSe [seguidor do manualisme), que desou pupils como Abade Siar fount}, Jean Massien {sur} Laurent Cer (urd). Os dois educaram crangassurdas dentin de suas respectvas hlosotias eestas se espalharam pela Europa no século XX (Lane, 1984). a usenn pe sts 37 rent Clerc. Na Franca, ficou muitos meses aprendendo a lingua francesa de sinais, e entdo teve a ideia de convidar Clerc para ir morar nos Estados Unidos, para que eles abrissem a primeira escola para surtdos. A escola foi inaugurada em 1817 e tinha o nome de: The Connecticut Asylum for the Education and Instruction of the Deaf and Dumb. Os surdos de todos os cantos do pais migraram para a escola, enquanto, com o pasar dos anos, otras escolas iam sendo abertas em diferentes regides. 0 filho de Gallau- det, chamado Edward, fundou, em 1864, a Gallaudet University. Embora 60s sinais americanos tenham rafzes nos sinais franceses, a asi. também sofreu influéncias dos sinais dos fndtos locats, Essa combinagao formou a SL moderna (Lane, 1984; Bayton, 1996; Wilcox & Wilcox, 197), Da mesma forma que na ASL, na Lisras também se observa algum tipo de influéncia dos sinais franceses. Em 1855, um surdo francés chama- do Ernest Huet chegou ao Brasil, com o apoio do Imperador dom Pedro Il, para criar a primeira escola para surdos brasileiros™. De acordo com os registros hist6ricos disponiveis (Reis, 1992), no esté claro por que dom Pedro Ilestava interessado na fundagao da escola. Rocha (1997: 53) espe- cula sobre pelo menos duas possibilidades: uma seria a possibilidade de a princesa Isabel ter uma crianga surda; e a outra teria relagio com uma visita do imperador Universidade Gallaudet (EUA) para discutir a fun- dacdo de uma escola similar no Brasil. 0 fato & que em setembro de 1857 foi fundado 0 Instituto Nacional de Educacio de Surdo (INES), no Rio de Janeiro, no mesmo endereco em que se localiza até hoje. Durante anos, 0 INES tem sido o centro de referéncia e de formacao dos individuos surdos. Embora, naquela época, as pessoas nao fizessem men¢ao & LIBRAS, sinais eram privilegiados na educacao das criancas. Huet trabalhou também na formacao de outros dots professores, conhecidos como os irmaos La Pea, que ajudavam na instrugao dos surdos. A escola passou por mudancas radicals com a safc de Huet (ento com sérios problemas financeiros e conflitos familiares) e com a entrada na administrago de um médico cha- mado Tobias Rabello Leite (de 1868 até sua morte em 1896)™, 5 Posteriormente, nome da escola mudou para American Asylum at Hatfod for the Educa tion and intricton ofthe Dea and Dib. 1 Eimbora a primeira escola para suros date do ano de funda com a chegada de Huet erm 1855, a primeira tencativa fol eta em 1835, quando o deputado Cornélo Rerrera aprosentou 2 Assembléla um estatuto para estabelaceros objtvas de professors primarios na educagio dos suris e dos cegos (Res, 1992: 57). » O dietor Leite pareca compreender que o métade orl no era essenctal 2s suds, en- 3B unease Eun eae Outro fato importante nesse processo foi o Congresso de Miléo, em ‘1880, que, em funao do impacto mundial de sua decisao em favor das filo- Sofias e métodos oralistas a qualquer custo, afetou a educagéo dos surdos ‘em todas as partes do mundo, No Brasil, a idefa do oralismo comecou a ser disseminada em 1911, ¢ a superintendente do INES, Ana Rimoli de Faria Doria, que acatow a filosofia, separava os surdas mais velhos dos mais no- vvos para evitar 0 contato e uso de Iingua de sinais, Outra figura nesse ce- nario foi Ivete Vasconcellos, que, inspirada na abordagem da comunicagao total, influenciada pela Universidade Gallaudet, defendia que fala, gestos, pantomima e sinais deveriam ser empregados na formacao dos individuos surdos. Muitas criticas foram feitas a essa filosofia, mas o debate propiciava tum repensar de tudo o que fora feito em termos linguisticos e educacionais. Na década de 1980, fundou-se a FENEIS (Federago Nacional de Educagao e Integragéo de Surdos). Trés amigos surdos encabegaram a fundagdo da instituigio — Ana Regina S. Campello, Fernando M. Valverde e Anténio ©. Abreu —, significando um grande avango em favor da defesa dos direi- tos dos surdos. Em resumo, a origem da LiBRAs esté intimamente ligada a0 rocesso de escolarizagao dos surdos, e mesmo que nas instncias educa- cionais a lingua legitima dos surdos tenha sido banida em muitos momen- tos, os surdos sempre a utilizaram entre si, 0 contato do professor surdo frances Huet com os alunos brasileiros proporcionou, em grande medida, varios empréstimos linguisticos da lingua francesa de sinals para a LIBRAS. Entretanto, é importante dizer que a coabitagdo dla maioria das lin- suas de sinais com as linguas orais faz cam que empréstimos, alternan- cias ¢ trocas lingu(sticas acontecam, inevitavelmente, Mas isso no quer dizer que as inguas de sinais tenham suas origens ou raizes histéricas has linguas orais. A relagdo ¢ justamente inversa: na histéria da evolugdo do homem, constata-se que o uso de sinais pelas mos como forma de co- municagdo pelo homem é anterior ao da fala vocal — uma das evidéncias Jinguisticas para afirmar que o homem tem uma capacidade inata, instin- tiva para desenvolver linguagem”, "stato sua compreensdo da situago como un todo ea limitadas em relag0&capacdade in telectual humana argumentava por exemplo, que somente 15% dos suoscongestes thane ‘ntliginela sufciente para se tornarem letrados, enquanto apenas 659% de suntos seldom feriam a mess inteligénciacomparados aos ouvintes (Let, 1862 apud Rete, 1992), Ane Regina ¢doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UES), tingusta John Lyons (1987: 38-39) relata: ‘A ingua pode, a principio ter evolido a pare ‘We deum sistema gestual numa énoca em que os acestals dos homens adtavam a postara Anau oe ss 39 A upras ‘falada’ no Brasil apresenta uma unidade?”? renga. Em todas as linguas humanas, hé variedade e diversidade. 0 sociolinguista Marcos Bagno faz uma bela discussio em torno da des- construgao de alguns mitos sobre a lingua portuguesa em seu famoso livro Preconceito linguistico — o que é, como se faz, escrito em 1999 , desde entio, seguidamente reeditado. Segundo 0 pesquisador, o mito da “unidade linguistica do Brasil” 0 maior e mais sério de todos, pois est presente no discurso nao somente da populagao, mas de muitos intelec- tuais. A escola, por exemplo, tem se apropriado desse mito, tormando-o natural. Uma vez. naturalizado, deixa de ser crenga e passa a funcionar como um principio normalizador, impondo sua norma linguistica como se ela fosse, de fato, a lingua comum a todos 0 160 milhdes de brasileros, ndependente de sua idade, de sua origem geogrifica, de sua situacio socioeconémica, de seu grau de escolarizagao etc. (Bagno, 1999: 15) A lingua portuguesa é “uma unidade que se constitui de muitas va- riedades" (Parametros Curriculares Nacionais, 1998: 29 apud Bagno, 1999: 19). Portanto, dizer que todos os brasileiros falam o mesmo por- tugués é uma inverdade, na mesma proporgio em que é inverdade dizer que todos os surdos usam a mesma L1BRas. Afirmar essa unidade é ne- gar a variedade das linguas, quando de fato nenhuma lingua é uniforme, homogénea. A variacdo pode ocorrer nos nivels fonolégico (promincia), morfolégico (palavras) sintatico (sentencas) e esto ligadas aos fatores sociais de idade, género, raca, educacio e situago geogréfica. Assim, os surlos adultos ¢ adolescentes variam em seus sinais, da mesma forma seal asic enn enix snatandodeann al ‘do poten par tesco de conpers ngs de procesameto mo hens ‘Sin Cho sere ae trations qs dwoalde pr Hoppe pot ato uo deep alin tacoma gaa db sos anes No refrac arse ngs sia surdos, 2 lot exes cm omits ngs pores ado Bis presenta sani dae specnente de Moric Baga Asaerdesque ne ode os ces bros quo tin 0 mesmo tent ach icrsnt eomar est nnd allo coma dscinta, m sproprtaa de ogre (1999) 40 ums que inane nse {que os surdos cearenses, paranaenses, cariocas...". Quem jé néio ouvit alguém dizer “esses sinais so ‘antigos; do tempo dos avés!” ou ainda, “na- quele lugar se fala diferente’. Essa diferenca nao deve ser encarada como erro, entretanto: \VARIAGAO PALIT ECAROCA DO SIAL “ACLEDADE Qe ye 2 af esr irda apd de Capri & Rap 18 Na ilustracio, é possivel constatar que a variagao lexical ocorre em diferentes estados (como a comparacao do sinal faculdade usado no Rio e «em So Paulo) e também dentro de um mesmo estado, a depender da co- munidade de fala de cada regiao (como nos exemplos da palavra espanhol em Sao Paulo}, Esse tema é importante porque, em algumas situagdes, alguns sinalizadores da lingua de sinais resistem a aceltar a diversidade e acabam dizendo algo como “esse sinal é errado” ou “esse sinal ndo exis- te quando de fato se trata de variantes da lingua (Gesser, 2006: 176). A lingua de sinais, ao passar literalmente, “de mio em mao", adquire novos Entre essas variedades,entretanto, sempre haver uma relarBo (nao neutraassimétrica© & A ldeia de representar as linguas de sinais remete-nos & histéria de uma coredgrafa americana, chamada Valerie Sutton. Em 1974, Valerie chamou a atensio da comunidade cientifica dinamarquesa das linguas de sinais com a criaeao de um sistema para registrar as dangas de seus alunos. A transigao dos "sinais da danca’ para “a escrita dos sinal -se a partir do contato dos pesquisadores da Universidade de Copenha- gen com a colaboragao de Valerie com base em seus registros gravados. Decorre dessa ago o primeiro encontro de pesquisadores, nos Estados Aucune sas AB Unidos, organizado por Judy Shepard-Kegl, e dele um grupo de surdos adultos aprende a escrever os sinais de acordo com o “SignWriting”®, Alguns livros e historias foram registrados. Inicialmente escritos & mio, hoje ja ha programas desenvolvidos para o registro da escrita via computador. A popularidade do sistema de escrita foi pouco a pouco se instaurando nos Estados Unidos, Projetos de pesquisa e varios tipos de suporte sao oferecidos a algumas escolas que tém interesse em promover a alfabetizacdo em SignWriting. O sistema pode ser aplicado na represen- tardo de qualquer lingua de sina. 0 Brasil inicia sua tradigao, em 1996, com um grupo de pesquisa co- ordenado por Anténio Carlos da Rocha Costa, na PUC de Porto Alegre, No projeto, destaca-se a participacao da surda Marianne Stumpf, que de- senvolveu trabalhos de alfabetizacao com criangas surdas, sinalizadoras da Bras. Observou-se que os surdos expostos ao sistema SignWriting tinham muita facilidade para escrever. Um dos grandes desafios dos pes- quisadores no processo de sistematizagao é tornar a grafia o mais conci- sae clara possivel. Ha alguns sinais em taBRas que sao muito complexos para registrar no sistema (é 0 caso de chocolate, por exemplo), mas, da mesma forma que a escrita da nossa lingua oral, a escrita em sinais tende ase modificar com o tempo, no sentido de ser "mais répida, mais simpli- ficada, mais esquematica’ (Stumpf, 2003: 65)". pa de chee on gu ce si O sistema no Brasil é ainda incipiente e est em fase de experimen- tacdo, pois a propria grafia da Lipras passa por um processo de padroni- "Para conhecer mals sobre eserita da lingua de stats americana ef site: tp: /wwrw sementingore 2 Paramaisdetalhes, acessaro ste htp://rochacpelchebr/signwiting, 44 nse queuvan fesse zapdo, Nota-se uma diferenga de surdo para surdo no uso dos “grafemas” — uns so mais detalhistas, outros menos. Ainda h4 muita especula¢io sobre o assunto, por isso so necessdrios mais estudos para compreender 0s simbolos e criar uma tradicao na sociedade para o letramento na es- crita de sinais. Sua importancia, entretanto, 6, sem sombra de duivida, um bem cultural com positivas implicagdes para o fortalecimento ea emanci- aco linguistica do grupo minoritério surdo. O surdo € to natural. Alguns ounem com mais prazer com os aos do que com fa eunéos Fu augo com os aos” (Ge Ste, se ale, 1869, Surdo, surdo-mudo ou deficiente auditivo? maioria dos ouvintes desconhece a carga si mantica que os termos mudo, surdo-mudo, € deficiente auditivo evocam. £ facilmente obser- vavel que, para muitos ouvintes alhelos & dis- cussao sobre a surdez, 0 uso da palavra surdo areca Imprimir mais preconceito, enquanto o termo deficiente auditivo parece-Ihes ser mais politicamente correto: Eu achava que “deficiente auditivo” era menos ofensivo ou pejorative do que ‘surdo".. mas, na convivéncia cam as préprias surdos ful oprendendio que eles preferem mesmo é que as chamem de surdos e uns ficam até irrtados quando sdo chamados de deficientes..(aluno ouvinte, 2004). Sobre essa questio terminolégica, muitos surdos tém a oportunida- de de se posicionarem nos cursos de L1BRAS que ministram para ouvintes: ssa hist6ria de dizer que surdo ndo fale, que é mud, esté errada. Bu sou contra o termo surto-mudo e dficiente auditivo porque tem preconceito. Voces sabem {quem inventow o termo defciente auditivo? Os médicos! Eu no estou aqui sb para vocés aprenderem a isRas, eu estou agui também para explicar como 8a vida do surdo, da cultare, da nossa identidade...(professora surda, 2002}. (0 termo surdo-mudo ndo é carreto porque osurdo tem aparelho fonador, ese {for treinado ele pode falar. Eu sou surdo, fui oralizado endo ougo nada, masa ‘minha lingua & de sinais.. (professor surdo, 2003). AG unnsse EUG EES {As falas acima caminham no trilho que rejeita @ ideologia dominan- te vinculada aos esterestipos que constituem o poder e o saber’A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, em pareeria com outras 14 insti brasleras, passou a promover, em 2008, o primelre curso de bacharelado pata formagao de inérpretes ¢tradutores de UBRAS/portuguds na modalidade de edueagio a distinea. As InscugBes parceiras si UFHA, UFC INE, CEFET/GO, INES/R, UFRGS, UFPR, UFG, UFES, LUNICAMP, UEPA, UFPE, LGD, CEFET/AN, AB wnnas: cue UNGLA Ee gua est, do ponto de vista dos ouvintes, culturalmente conjugada 20 som, afinal, como me disse uma das ouvintes em conversa pessoal, “os surdas Jalam com as maos eas maos nao fazem barulho, ndo emitem som. Por definicgo, barulho é a auséncia de siléncio; é um rufdo ou som aciistico perceptivel aos ouvidos. Para a cultura surda, todavia, o barulho e o siléncio adquirem novas versbes. Em uma conversa com um colega sur- do, pude compreender um pouco essa nogio a partir da perspectiva surda, Relatou-me que quando esté em uma comunidade com/entre surdos, e se todos esto usando sinais ao mesmo tempo, tem a sensacao de “barulho" ‘muito grande, afinal, diz ele, “ouco com os olhos’, e 0 mesmo também proce- de quando esta em uma multidao de ouvintes que falam a lingua oral. 0" rulho’, neste Gltimo caso, 6 perceptivel a visio do surdo através da dindmica dos objetos e das pessoas, manifestada, por exemplo, em forma de movimen- to, conversas paralelas, isos, expressGes facial, corporal e manual. Poderia- ‘mos, entao, nos referir a uma espécie de rufdo visual (Gesser, 2006), pois 0 surdo pode nao saber 0 que est sendo falado, mas percebe visualmente a ‘movimentagao das pessoas através da visdo. Isto porque os sons extrapolam sua caracteristica fisico-actistica e adquirem significados culturalmente re- lacionados. 0 som de uma tossida, por exemplo, pode ser, segundo Padden & Humphries (1988: 92) "um espontineo produto de limpeza da traquéia, ou pode ser uma forma de indicar reprovaedo, ou para dar um sinal" Esse signi- ficado é culturalmente construfdo, ¢ cada cultura organiza seus significados diferentemente. Assim, “o som no tem um significado inerente, mas pode ter uma mirfade de interpretagbes e selegdes". Essas convencées culturals so aprendidas e construidas dentro das nossas praticas cotidianas. Aprender a lingua de sinais, fazer parte das comunidades surdas, es- tar em contato com o mundo dos surdos, por exemplo, sao iniciativas que pociem nos fornecer subs{dios para compreender melhor as questdes de- lineadas. Na cultura surda, o barulho/som tem outros significados — 6 0 caso da luz que acende quando a campainha toca em sua casa, a vibracao do despertador colocado embaixo do travesseiro (Lane, 1984), ou mesmo os ruidos aciisticos percebidos através dos aparelhos auditivos para sen- tir o som da campainha da porta, do telefone, da ambulancia: {As pessoas surdas constroem seu mundo em torno dos dispositives do movl- ‘mento, forma e som. A vida dos sudos est longe de se silenciosa, mas multo chia de cliques, zunidos,estalose grunhidos (Peden & Humphries, 988: 109). oa200 49 Para muitos ouvintes, é sempre um estranhamento muito grande quando um surdo diz, por exemplo, que gosta de “ouvir” misica. Isso ‘ocorret comigo, quando tive a oportunidade de conviver com surdos americanos na Universidade Gallaudet, nos Estados Unidos: Hoje passei por uma sttuagdo constrangedora, Estvamos tados reunidos em uma saia de estar. Havia muitas conversas animadas entre os surdos, todos se divertiam e contavam um pouco da sua vida, de suas historias. Quando che- gowa minha vez, uma surda americana pedlu-me para falarum pouguinha do Brasil, das pessoas, da cultura. Ainda com certa dificuldade para me expres. sarna lingua americana de sinais falei sobre alguns lugares bonitos, sobre o lima tropical e sobre a comida caseira de que eu sentia falta. Tinka mais fa- cilidade para entender os sinais americans, entdo vi, paralefamente,alguém Jfatando do carnaval, das dancas, das mulatas, das proias. Bsses comentirfos do corriqueiras ¢ inevitéveis quando um brasileira “pinta” na drea. Ainda assim, esperei que algum tipo de pergunta fasse dirigid diretamente.a mim, endo demorou muito, um deles indagou: como se danca samba? No tmpulso, Imediatamente respondi que ndo poderia mostrar porque ndo tink a misica Entio ele disse para eu fechar os olhos emaginar a misica. Imaginar a mist ca? Como assim? Claro, eu deveria recorrer é minha meméria acistca...Senti uma limitagdo muita grande e vio quanto dependa do sam da musica para dangar. Conversa vat, conversa ver, um surdo me tirou para danger. Fiquei constrangida, Havia miisia no ambiente, mas por saber que era surdo endo uvia, preconceituasamente achei que ele néo seria capaz de seguir o ritmo dda misiea. Alguns colegas surdos brusileirosjé tinham me falado sobre a re lagao que os surdos estabelecem com a misica. Quvi virias relatos dos surdos dizendo que eles gostam de cangar e tal. Mas fot convivendo em wm cantexto cde imersio com os surdos nesse ambiente universitiri, eexperimentando com elas essa situagdo, que construi meu entendimento sobre camo eles con- cebem a misica e o ritmo: através da vibragdo, através da observagao a mo- vimentagao dos outros individuos, através do contato corporal com alguém que thes guie 0 ritmo, ¢ assim por dante. Tal como nés, ouvintes, os surdas distinguem ritmos e géneros musica... (rio retrospectivo, 2004), 0 que temos nesse relato é justamente uma faceta de como cada cultura lida com 0 som musical. Nas artes plasticas, também temos uma expressio a esse respeito. 0 dleo sobre tela da artista surda Mary J. Thor- nley, intitulada Two Deaf Musicians, procura desconstruir a crenga de que 0s surdos nao entendem ou apreciam miisica: As pessoas surdas apreciam misica também; néio é uma ‘cotsa' de ouvinte, & apropriado ~ e tardio ~ representar dois misicas surdos cubicamente friccio- nando com 0 arco em seus instrumentos. BO unnase cue vicar E6560 ‘Como se pode ver, nio ha desvan- tagem na surdez quando se fala em co- ‘municagio e em linguagem, visto que do 6 a modalidade da lingua que de- fine se estamos em siléncio ou no. Os surdos dangam, apreciam e ouvem mti- sica a seu modo, tém sensagdes de ba- rrulho, constroem seus mundos e suas ssubjetividades na e através da lingua de enfim, concebem e redefinem seu ‘Mary § Thome Tio Deaf Miss 87 mundo através da visio. E uma crenga oe equlvocada pensar que lingua de sinais dos surdos é uma lingua silente, ou que os surdos vive no siléncio total O surdo precisa ser oralizado para se integrar na sociedade ouvinte? Nao. Aoralizago deixou marcas profundas na vida da maioria dos sur- dos, Pode-se dizer que a busca desenfreada pela recuperado da audigao e promogio do desenvolvimento da fala vocalizada pelo surdo sdo objetos que se traduzem em varios sentimentos: desejo, dor, privagio, aprovacao, opressio, discriminaco e frustragao. Essa histéria dos surdos é narrada em muitos capitulos, e todos os surdos tm um fato triste para retatar. Ela ‘raz resquicios muito vivos dos traumas que alguns surdos viveram em tempos em que a lingua de sinas foi violentamente banida e proibida. Oralizar &sindnimo de negagao da lingua dos surdos. &sinénimo de corresio, de imposisio de treinos exaustivos,repetitivos e mecsnicos da fala. figura do adepto convicto do oralismo, Alexandre Graham Bell, por exemplo, ganhou forca durante 0 movimento eugénico e, especialmente, no famoso Congresso de Milo em 1880, durante o qual ele pregava que a surdez era uma aberracdo para a humanidade, pois perpetuava carac- teristicas genéticas negativas. Nesse cenério, internatos de surdos,cas2- Imentos entre cles e qualquer tipo de contato eram protbidos, etal proibi- io foi entendida como uma medida preventiva, capaz de “salvar” a raga humana. Dado seu prestigio de homem brilhante na sociedade da época, entende-se que Graham Bell contribuiu de manetra crucial paraanegacao a opressio da lingua de sinais. Por isso é rechagado com mais veemén- cia pela comunidade surda em todo 0 mundo, do mesmo modo como so rechagados todos os que se inscrevem nessa filosofia, Ha um grande mal-estar impregnado na palavra oralizacdo. E ndo podia ser diferente, Mas tomemos essa questo da perspectiva relatada or uma colega surda. Vou chamé-la de Paula, 0 irmao mais velho de Pau- Ja também é surdo. Paula me disse que, ao contrério da sua experiéncia com a surdez e com a lingua de sinais, a experiéncia de seu irmao tinha ‘sido muito diferente. Ele foi oralizado, ¢ ela ndo. A ele foi negado, em mul- tas ocasides e contextos, 0 acesso & lingua de sinais, vista como uma lin- gua perversa ¢ inadequada. Mas sempre que ele estava com um grupo de amigos surdos, os sinais eram naturalmente utilizados. Paula me contou que, quando ela nasceu, os tempos eram outros: seus pais jé respeitavam. mals a lingua de sinais e também algumas escolas permitiam seu uso. Nessa histéria, Paula ndo foi oralizada como seu itmao, os dois so mu to fluentes em Lipras; contudo, enquanto Paula demonstra curiosidade em fazer treino labial e fono-articulatério, seu irmo — com o intulto de preservé-la e protegé-la— tenta convencé-Ia a todo custo a desistir disso, Porque “a lingua dos surdos é a lingua de sinais e os surdos tém precon- ceito contra aqueles que querem ou gostam da oralizacio” Desenham-se af dois exemplos opostos, duas trajetérias distintas no seio da mesma familia, Mas, o que é revelador nessas duas posturas sur- das? 0 irmao reage politica e ideologicamente & oralizagio com base em sua experiéncia de vida, marcada pela discriminagao do uso dos sinais e pela valorizagdo da leitura labial e da oralizagao, Ele sofreu muito nesse perfodo e, como nao tinha escolhas, a oraliza¢io Ihe foi imposta, Ja Paula, >bem-sucedida nos sinais, aponta em seu discurso uma vontade de domi- nar, como o irmao, a leitura labial e a fala na lingua portuguesa. A irma nasce em um ambiente nada opressivo, tem no irmao um exemplo e um. interlocutor com 0 qual se identifica por meio da lingua, Esse ambiente linguisticamente mais confortivel desperta em Paula a curiosidade e 0 desejo de participar de treinos fonoaudiol6gicos... 2 moe ete ee £ recorrente ouvir, nos discursos mals extremistas, entretanto, que ‘0 surdo oralizado nao 6 "surdo de verdade": “Surdo que é surdo defende e 86 usa a Iingua de sinais’: Parece que, além de uma questo muito forte (e naturalmente compreensivel, dado que este é um momento de transi¢ao), hha também imbricagGes tanto de um discurso de contrarreacao (também disseminador de preconceitos, ou seja, um tipo de preconceito As avessas) como o de uma visdo essencialista em prol de um purismo linguist cultural surdo, A rejeig&o da oralizagao a todo custo por surdos mals po- litizados e militantes é mais uma discussao politico-ideolégica e definiti- ‘vamente pertinente e importante para a visibilizago da LIBRAS. Contudo, assumo, com a pedagoga surda Perlin® (2004:72), que nao se trata de ser surdo que oraliza ou nao, mas de "ser surdo em sua lingua e linguagem prépria’; nesse caso, ele pode optar por utilizar ou nao a lingua portu- guesa para promover o intercdmbio cultural... Se respeitamos a lingua de sinais ¢ 0 direito do surdo a ser educado em sinais, devemos também res- peitar o direito daqueles surdos que optam por também falar (oralizar) a gua portuguesa, 0 perigo esta quando certas decisdes so impostas, eas imposigdes e opressdes, sabemos, vém de todos os quadrantes. O surdo tem uma identidade e uma cultura proprias? Sim, Esse discurso, aliés, 6 muito disseminado pelos surdos ¢ ou- vvintes em muitos ambientes sociais que discutem e articulam questes proprias a area da surdez. Contudo, acrescentaria a assergao um plural, e diria que somos permeados, sejamos surdos ou ouvintes, por miitiplas identidades e culturas (Gesser, 2006: 136-144). No singular, a afirmacao sublinha a ideia do purismo identitério e cultural. E ¢ essa ideia que a pesquisadora surda Karin Strobel acertadamente procura desconstruir ‘quando fala de varias culturas surdas: Gladys Perliné primeirssurda a obter o tule de doutora no Brasil, Trabalha como pro- {essora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina no Centro de Educa, senda inte arante do Grupo de Estudos Surdos (GES). 300 5B Ao analisarmas sua historia, vemos que a cultura surda foi marcada por ‘muitos esteredtipos, seja através da imposicaoe da cultura dominante, sa ‘das representagdes sociais que narram 0 povo surdo como seres defcientes, ‘Muitos autores eserevera lindos livras sabre oralismo, blinguismo, comuni- cagdo total, ou sobre as sujeitos surdos...Mas eles realmente conhecern-nes? Saber o que é a cultura surda? Sentira na prépria pele como é ser surdo? Esta é uma reflexio importante a ser feita atualmente, porque as metodolo-

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