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au 2B EM QUE SE PODE RECONHECER 0 ESTRUTURALISMO? ™ [1972] Perguntava-se outrora: “que € 0 existencialismo?”. Agora: que € estruturalismo? Essas questdes tém um vivo interesse, com a condigdo de serem atuais, de se referirem as obras que esto sendo feitas. Estamos em 1967, Portanto, nao podemos invocar o cardter ina tbado das obras para evitarmos responder; & somente este cardter que confere sentido & questo, Por isso, a questio “Que & 0 estruturalismo?” & chamada a softer algumas transformagGes. Em primeiro lugar, quem & estruturalista? Ha costumes no mais atual. 0 costume designa, escalona errada ou corretamente: um lingilista como R. Jakobson; um socidlogo como C. LévieStrauss; um psicanalista J. Lacan; um fildsofo que renova a epistemologia, como M. Foucault; um filésofo marxista que retoma 0 problema da interpretago do marxismo, como Althusser; um critico literdrio como R. Barthes; escritores como os do grupo Tel Quel... Uns no recusam o termo “estruturalismo”, € empregam “estrutura”, “estrutural”. Os outros preferem o termo saussuriano “sistema”. Pensadores bem diferentes, e de geragdes distintas, alguns exerceram sobre outros uma influéncia real. Contudo, o mais importante ¢ a extrema diversidade dos dominios que eles relay explora. Cada um encontra problemas, métodos, solugdes que s de analogia, como que participando de um ar livre do tempo, de um espirito do tempo, mas que se mede com as descobertas criagdes singulares [239] em cada um desses dominios. As palavras em -ismo, neste sentido, so perfeitamente fundadas. E com razdo que se apresenta a lingiiistica como origem do estruturalismo: no ‘ola de Praga. E se 0 somente Saussure, mas também a escola de Moscou, a estruturalismo se estende, em seguida, a outros dominios, nao se trata mais, desta vez, de analogia: nao é simplesmente para instaurar métodos “equivalentes” aos que antes tiveram éxito na andlise da linguagem. Na verdade, s6 ha estrutura daquilo que é linguagem, nem que seja uma linguagem esotérica ou mesmo ndo-verbal. $6 hé estrutura do inconsciente na medida em que o inconsciente fala e é linguagem. Sé ha estrutura dos corpos a medida que © In Frangois Chatelet, éd., Histoire de la philosophie, t. VIML Les Lumiéres XX" siéele, Paris, Hachette, “col. Pluriel", 1972, pp. 299-335, 212 se julga que os corpos falam com uma linguagem que € 2 dos sintomas. As préprias coisas s6 tém estrutura & medida que matem um discurso silencioso, que & a linguagem dos signos. Entdo, a questo “Que & 0 estruturalismo?” transforma-se ainda — Seria melhor perguntarmos: em que se reconhecem aqueles que chamamos de estruturalistas? E que & que eles préprios reconhecem? Tanto isso & verdade, que sé reconhecemos as pessoas, de um modo visivel, através das coisas invisiveis e insensiveis que elas reconhecem & sua maneira. Como fazem os estruturalistas para reconhecerem uma linguagem em alguma coisa, a linguagem prépria a um dominio? Que ¢ que eles reencontram nesse dominio? Portanto, propomo-nos somente extrair certos critérios formais de reconhecimento, os mais simples, invocando cada vez 0 exemplo dos autores eitados, qualquer que seja a diversidade de seus trabalhos e projetos. Primeiro critério: 0 simbélico Estamos habituados, quase condicionados, a uma certa disting&io ou correlagio entre o real eo imaginétio. Todo 0 nosso pensamento mantém um jogo dialético entre essas duas nogdes. Mesmo quando a filosofia classica fala da inteligéncia ou entendimento puros, trata. ainda de uma faculdade definida por sua aptidao a aprender o real em seu fundo, 0 real “em verdade”, o real tal qual ele &, por oposigdo, mas também em relagao aos poderes da imaginagio, Citemos movimentos [240] criadores completamente diferentes: 0 romantismo, o simbolismo, o surrealismo... Ora invocamos © ponto transcendente em que real e 0 imagindrio se penetram e se unem, ora sua fronteira aguda, como 0 gume de sua diferenga. De todas as maneiras, permanecemos na oposi¢Zo e na complementaridade do imagindrio e do real — pelo menos na interpretago tradicional do romantismo, do simbolismo etc. Até mesmo o freudismo ¢ interpretado na perspectiva de dois prineipios: principio de realidade com sua forga de decepsio, principio de prazer com sua poténcia de satisfagdo alucinatéria. Com maior razio, métodos como os de Jung e de Bachelard screvem-se inteiramente no real e no imaginério, no quadro de suas relagdes complexas, unidade transcendente e tensio liminar, fusdo e corte. Ora, o primeiro critério do estruturalismo € a descoberta e 0 reconhecimento de uma terceira ordem, de um terceiro reino: 0 do simbélico. E a recusa de confundir o simbélico 213 com 0 imaginério, bem como com o real, que const ui a primeira dimenstio do estruturalismo. Ainda af, tudo comesou pela lingtistica: para além da palavra em sua realidade e em suas partes sonoras, para além das imagens e dos conceitos associados as palavras, o lingilista estruturalista descobre um elemento de natureza completamente diferente, objeto estrutural. E talvez seja nesse elemento simbélico que os romancistas dop grupo Tel Quel queiram instalar-se, tanto para renovarem as realidades sonoras quanto os relatos associados. Para além da histéria dos homens, e da historia das idéias, Michel Foucault descobre um solo mais profundo, subterrineo, que constitui o objeto daquilo que ele chama de a arqueologia do pensamento. Por tras dos homens reais, por tras das ideologias ¢ de suas relagdes imagindrias, Louis Althusser descobre um dominio mais profundo como objeto de ciéncia e de filosofia, J4 possuiamos muitos pais, em psicandlise: em primeiro lugar, um pai real, mas tam imagens de pai. E todos os nossos dramas passavam-se nas tensas relagdes do real e do imagindrio, Jacques Lacan descobre um terceiro pai, mais fundamental, pai simbélico ‘ou Nome-do-pai. Nao somente 0 real ¢ o imagindrio, mas suas relagdes, ¢ as perturbagdes dessas rela devem ser pensados como o limite de um processo no qual eles se constituem a partir do simbélico. [241] Em Lacan, ¢ também em outros estruturalistas, 0 simbélico como elemento da estrutura esti no principio de uma génese: a estrutura se encama nas realidades © nas imagens segundo séries determiniveis; mais ainda, elas as constitui encarmando-se, mas no deriva delas, sendo mais profunda que elas, subsolo para todos os solos do real como para todos os céus da imaginagdo. Inversamente, catdstrofes proprias 4 ordem simbélica dio conta das perturbagées aparentes do real e do imaginario: assim, no caso de O homem dos lobos, tal como Lacan o interpreta, € porque o tema da castragdo permanece ndo-simbolizado (“forclusdo”) que ele ressurge no real, sob a forma alucinatéria do dedo cortado™ Podemos numerar o real, 0 imagindrio e o simbélico: 1, 2, 3. Mas talvez esses organismos tenham um valor cardinal tanto quanto ordinal. Porque o real, em si mesmo, no é separdvel de certo ideal de unificaydo ou de totalizaydo: 0 real tende a fazer um, ele & uno em sua “verdade”. Desde que vemos dois em “um”, desde que desdobramos, o imagindrio aparece em pessoa, mesmo que seja no real que ele exerga sua ago. Por °" CFI. Lacan, Eerits, Paris: Seuil, pp. 386-389. 214 exemplo: o pai real é um, ou quer sé-lo segundo sua lei; mas a imagem de pai, em s mesma, é sempre dupla, clivada segundo uma lei do dual. Ela ¢ projetada, no minimo, sobre duas pessoas, uma assumindo o pai de jogo, o pai-cémico, a outra, o pai de trabalho ¢ de ideal: tal como o Principe de Gales em Shakespeare, que passa de uma imagem de pai a outra, de Falstaff 4 coroa, O imaginério define-se por dois jogos de espelho, de desdobramento, de identificagdo ¢ de projegdo invertidas, sempre ao modo do duplo””. Mas, por seu turno, o simbélico talvez seja trés. Nao é somente o terceiro para além do real e do imaginério. Existe sempre um terceiro a ser procurado no préprio simbélico; a estrutura é, ao menos, triddica, sem 0 que niio “circularia” — terceiro ao mesmo tempo irreal e, no entanto, ndo- imaginavel. ‘Veremos porqué; mas ja 0 primeiro critério consiste nisso: a posigao de uma ordem simbélica, [242] irredutivel & ordem do real, & ordem do imagindrio, e mais profundo do que elas. Ainda no sabemos absolutamente em que consiste esse elemento simbélico. Podemos dizer, pelo menos, que a estrutura correspondente ndo tem relagio alguma com uma forma sensivel, nem com uma figura da imaginagdo, nem com uma esséncia inteligivel. Nada que ver com uma forma: porque a estrutura de maneira alguma se define por um a autonomia do todo, por uma pregnancia do todo sobre as partes, por uma Gestalt que se exerceria no real ¢ na percepgdo; a estrutura se define, ao contrario, pela natureza de certos elementos atdmicos que pretendem dar conta ao mesmo tempo da formaso dos todos ¢ da variagio de suas partes. Nada que ver, também, com figuras da imaginacdo, embora o estruturalismo seja inteiramente penetrado de reflexdes sobre a retdrica, a metafora e a metonimia; porque essas préprias figuras implicam deslocamentos estruturais que devem dar conta ao mesmo tempo do priprio e do figurado. Nada que ver, enfim, com uma esséncia; porque se trata de uma combinatéria referente a elementos formais que, em si mesmos, ndo tém nem forma, nem significagdo, nem representagdo, nem conteiido, nem realidade empirica dada, nem modelo funcional hipotético, nem inteligibilidade por detrés das aparéncias; ningum melhor do que Louis Althusser assinalou o estatuto da estrutura como idéntico a prépria “Teoria” — e 0 simbélico deve ser entendido como a produgdo do objeto tedrico e especifico. % Lacan €, sem divida, aquele que vai mais longe na andlise original da distingdo entre imaginatio € simbélico, Mesmo esta distingo, porém, sob formas diversas, encontra-se em todos os estruturalistas, 21s Ora o estruturalismo ¢ agressivo: quando denuncia o desconhecimento geral desta Ultima categoria simbélica, para alm do imagindrio e do real. Ora ele & interpretativo: quando renova nossa interpretagdo das obras a partir dessa categoria, ¢ pretende descobrit um ponto original onde se faz a linguagem, elaboram-se as obras, unem-se as idéias e as agdes. Romantismo, simbolismo, mas também freudismo, marxismo, tormam-se, assim, o objeto de reinterpretagdes profundas. Mais ainda: é a obra mitica, a obra postica, a obra filoséfica, as préprias obras préticas que estdo sujeitas & interpretago estrutural. Mas esta reinterpretagdo s6 vale 4 medida que reanima obras novas que sto as de hoje, como se 0 simbélico fosse uma fonte, inseparavelmente, de interpretagdo e de eriagdo vivas. [243] Segundo eritério: local ou de posicao Em que consiste 0 elemento simbélico da estrutura? Sentimos a necessidade de ir lentamente, de dizer e de redizer antes 0 que ele ndo €. Distinto do real e do imaginério, ele no pode definir-se nem por realidades pré-existentes ds quais remeteria, e que designaria, nem por conteiidos ima, os ou conceptuais que ele implicaria, e que the dariam uma significagdo, Os elementos de uma estrutura ndo tém nem designagdo extrinseca nem significago intrinseca, O que resta? Como lembra com rigor Lévi-Strauss, eles tém tdo- somente um sentido: um sentido que € necessiria e unicamente de “posigdo"™®. Nao se trata de um local numa extensdo real, nem de lugares em extensGes imagindrias, mas de locais ¢ de lugares num espaco propriamente estrutural, isto &, topol6gico. Aquilo que ¢ estrutural & © espago, mas um espago inextenso, pré-extensivo, puro spatium constituide cada vez mais como ordem de vizinhanga, em que a noso de vizinhanga tem precisamente, antes, um sentido ordinal ¢ ndo uma significagdo na extensio, Ou entio em biologia genética: os genes fazem parte de uma estrutura a medida que sto insepardveis de “loc , lugares: capazes de mudar de relagdes no interior do cromossomo. Em suma, os locais num espago puramente estrutural sdo primeiros relativamente &s coisas e aos seres reais que vém ocupé= los; primeiros também em relagdo aos papéis e aos acontecimentos sempre um pouco imagindrios que aparecem necessariamente quando sdo ocupados. A. ambigo cientifica do estruturalismo nio € quantitativa, mas topoligica ¢ relacional: Lévi-Strauss coloca constantemente este principio. E quando Althusser fala de °° Cf. Esprit, novembro de 1963, 216 estrutura econdmica, ele precisa que os verdadeiros “sujeitos” io sfio aqueles que vém etos no ‘ocupar os locais, individuos coneretos ou homens reais; também os verdadeiros obj sio os papéis que eles desempenham ¢ os acontecimentos que se produzem, mas antes os locais num espago topolégico e estrutural definido pelas relagdes de produgdo™. Quando Foucault define [244] determinagdes tais como a morte, 0 desejo, o trabalho, 0 jogo, nio as considera como dimensdes da existéncia humana empirica, mas antes como a qualificagdo de locais ou de posigdes que tornario mortais ¢ “morrentes”, ou desejantes, ou trabalhadores, ou jogadores aqueles que virdo ocupé-los; mas que s6 virdio ocupé-los secundariamente, desempenhando seus papéis segundo uma ordem de vizinhanga que é a da prdpria estrutura, E por isso que Foucault pode propor uma nova reparti¢o do empirico € do transcendental, sendo este dltimo definido por uma ordem de locais 5. © estruturalismo no é independentemente daqueles que os ocupam empiricamente’ separdvel de uma filosofia transcendental nova, em que os lugares prevalecem sobre aquilo que os preenche, Pai, mae etc. sto antes lugares numa estrutura; e, se somos mortais, & entrando na fila, vindo a tal lugar, marcado na estrutura segundo esta ordem topol6gica das vizinhangas (mesmo quando antecipamos nossa vez). “Nao somente o sujeito, mas também os sujeitos tomados em sua intersubjetividade que fazem a fila... e que modelam seu ser no proprio momento em que percorrem a cadeia significante... O deslocamento do significante determina os sujeitos em seus atos, em seu destino, em suas recusas, em suas cegueiras, em seus sucessos e em sua sorte, ndo obstante seus dons inatos e sua aquisigo social, sem levar em conta 0 cariter ou © sexo... Nao podemos dizer melhor que a psicologia empfrica achaese ndo somente fundada, mas determinada por uma topologia transcendental. Deste critério local ou posicional, decorrem varias conseqtiéncias. E, antes de tudo, se os elementos sit bélicos nao tém designagio extrinseca nem significagdo intrinseca, mas somente um sentido de posigdo, devemos afirmar em prinefpio que o sentido resulta sempre da combinagdo de elementos que ndo sao eles préprios significantes*”. Como diz Lévi-Strauss, e sua discussio com Paul Ricoeur, o sentido é sempre um resultado, um efeito: no somente um efeito como produto, mas um efeito de dptica, um efeito de #7. Althusser, Lie le Capital, Pais, Maspero, 1965, 1.1, p. 157 * M, Foucault, Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, pp. 329 ss. * J, Lacan, Ect, p30. 2, Lévi-Strauss, ef, Esprit, overbro de 1963, 217 linguagem, um efeito de posigo, Ha [245] profundamente um no-sentido do sentido, de onde resulta 0 préprio sentido. Nao que voltemos, assim, ao que foi chamado de filosofia do absurdo. Porque, para a filosofia do absurdo, € o sentido que falta, essencialmente, Para © estruturalismo, ao contrario, sempre ha demasiado sentido, uma superprodugdo, uma sobredeterminasio do sentido, sempre produzido em excesso pela combinagdo de locais na estrutura. (Donde a importineia, em Althusser, por exemplo, do coneeito de sobredeterminagdo). O nio-sentido nao € de forma alguma 0 absurdo ou 0 contrério do sentido, mas aquilo que 0 faz valer e 0 produz circulando na estrutura. O estruturalismo nada deve a Albert Camus, porém, muito a Lewis Carroll. A segunda conseqiéncia é 0 gosto do estruturalismo por certos jogos certo teatro, por certos espagos de jogo e de teatro. Nao € por acaso que Lévi-Strauss se refere freqiientemente a teoria dos jogos, € da tanta importéncia as cartas de jogo. E Lacan, a foras de jogos que sio mais do que metaforas: ndo somente o coringa que corre na estrutura, mas 0 local do morto que circula no bridge. Os jogos mais nobres, como 0 xadrez, sio os que organizam uma combinatéria dos locais num puro spativm infinitamente mais profundo que a extensio real do tabuleiro e que a extensdo imaginéria de cada figura. Ou entéo, Althusser interrompe seu comentario de Marx para falar de teatro, mas de um teatro que ndo é nem de realidade nem de idéias, puro teatro de locais e de posigdes cujo principio ele vé em Brecht, e que talvez encontrasse hoje sua expresstio mais acabada em Armand G: Em suma, 0 proprio manifesto do estruturalismo deve ser procurado na formula célebre, eminentemente poética e teatral: pensar é jogar os dados. A terceira conseqiléncia € que o estruturalismo nao € separével de um novo materialismo, de um novo ateismo, de um novo anti-humanismo. Porque o local é primeiro em relagdo aquilo que ocupa, nfo bastard certamente colocar © homem no lugar de Deus para se mudar a estrutura, E se este lugar & 0 lugar do morto, a morte de Deus também significa a morte do homem, em favor, esperamos, de algo a vir, mas que s6 pode vir na io do homem estrutura e por sua mutago. Eis como aparece [246] 0 cardter imaginé (Foucault), ou 0 cardter ideolégico do humanismo (Althusser). Terceiro critério: 0 diferencial e o singular 218 Em que consistem, afinal, esses elementos simbélicos ou unidades de posigi Retornemos 20 modelo lingiiistico. Aquilo que & distinto ao mesmo tempo das partes sonoras, ¢ das imagens e conceitos associados, é chamado de fonema. O fonema é a menor unidade lingitistica capaz de diferenciar dois termos de significagdo diversa: por exemplo, “bilhar” e “pilhar” “*", E claro que o fonema se encarna em letras, silabas e sons, mas nio se reduz a eles, Ademais, as letras, as silabas e os sons dao-lhe uma independéncia, ‘enquanto, em si mesmo, ele é inseparavel da relagdo fonematica que o une a outros fonemas: b/p. Os fonemas nio e: ‘tem independentemente das relagdes nas quais entram e pelas quais se determinam reciprocamente, Podemos distinguir trés tipos de relagdes. Um primeiro tipo se estabelece entre elementos que gozam de independéncia ou de autonomia: por exemplo 3+2, ou mesmo 2/3. Os elementos sio reais, e também essas relagdes devem ser ditas reais. Um segundo tipo de relay por exemplo x? + y? — R? = 0, se estabelece entre termos cujo valor especificado, mas que devem, no entanto, em cada caso ter um valor determinado. Mas 0 terceiro tipo se estabelece entre elementos que, entretanto, se determinam reciprocamente na relagdo: assim ydy + xdv = 0, ou dyldx = xly. Tais relagdes so simbilicas, e os elementos correspondentes so tomados numa relagdo diferencial. Dy & completamente indeterminado com relagio a y, dt é¢ completamente indeterminado com relagdo a x: nenhum tem nem existéncia, nem valor, nem significagdio. No entanto, a relagao dyld & completamente determinada, sendo que os dois elementos se deten ‘am reciprocamente na relagdo. F este processo de uma determinagdo reciproca no interior da relagdo que nos permite definir a natureza simbélica. Acontece que procuramos a origem do estruturalismo do lado da axiomatica. E é verdade que [247] Bourbaki, por exemplo, emprega 0 termo estrutura. Mas é, parece-nos, num sentido muito diferente do estruturalismo, porque se trata de relagdes entre elementos ndo-especificados, mesmo qualitativamente, e no de elementos que se especificam reciprocamente em relagdes. A axiomatica, neste sentido, seria ainda imaginéria, no propriamente falando simbélica. A origem matemética do estruturalismo deve, antes, ser procurada do lado do célculo diferencia , © precisamente na interpretagdio que dele deram Weierstras € Russell, interpretagdo estdtica e ordinal, que Ne [Deleuze exemplifica com “Billard” e “pillard” (bilhar e ladrio)] 219 libera definitivamente 0 célculo de toda referéncia ao infinitamente pequeno e o integra numa pura logica das relagdes As determinagdes das relagdes diferenciais correspondem _ singularidades, repartigdes de pontos singulares que caracterizam as curvas ou as figuras (um trifngulo, por exemplo, tem trés pontos singulares). Assim, a determinagao das relagdes foneméticas préprias a determinada lingua fornece as singularidades, na vizinhanga das quais se constituem as sonoridades e significagdes da lingua. A determinagdo reciproca dos elementos simbélicos prolonga-se, deste modo, na determinagdo completa dos pontos singulares que constituem um espago correspondente a esses elementos. A noso pital de singularidade, tomada ao pé da letra, parece pertencer a todos os dominios em que hi estrutura. A férmula geral “pensar jogar os dados” remete as singularidades representadas pelos pontos brilhantes sobre os dados. Toda estrutura apresenta os dois aspectos seguintes: um sistema de relagdes diferenciais segundo as quais os elementos. simbél 0S se determinam reciprocamente, um sistema de singularidades que corresponde a essas relages ¢ traga o espaco da estrutura. Toda estrutura é uma multiplicidade. A questo: ha estrutura em qualquer dominio? deve, pois, ser assim precisada: podemos, neste ou naquele dominio, extrair elementos. simbélicos, relagdes diferenciais © pontos singulares que Ihes so proprios? Os elementos simbélicos encarnam-se nos seres ¢ objetos reais do dominio considerado; as relagGes diferenciais atualizam-se nas relagdes reais entre esses seres; as singularidades so outros tantos lugares na estrutura, que distribuem os papéis ou atitudes imagindrios dos seres ou objetos que vém ocupéelos. [248] Nao se trata de metiforas matematicas. Em cada dominio € preciso descobrir os elementos, as relagdes e os pontos. Quando Lévi-Strauss empreende o estudo das estruturas elementares do parentesco, ndo considera apenas pais reais numa sociedade, nem as imagens de pai que tém curso nos mitos dessa sociedade. Pretende descobrir verdadeiros fonemas de parentesco, isto é, parentemas, unidades de posigdo que nao existem independentemente das relagdes diferenciais em que eles entram e se determinam reciprocamente. F. as im que as quatro relagdes irmAo/itma, marido/mulher, pai/filho, tio materno/filho da irma, formam a estrutura mais simples. E a esta combinago das “apelagdes parentais” correspondem, mas sem semelhanga e de maneira complexa, “atitudes entre pais” que efetuam as singularidades determinadas no sistema, Podemos 220 também proceder no sentido inverso: partir das singularidades para determinar as relagdes diferenciais entre elementos simbéli 108 Gltimos. E assim que, tomando o exemplo do mito de Edipo, Lévi-Strauss parte das singularidades dos relato (Edipo desposa sua mae, mata seu pai, imola a Fsfinge, € chamado de pé-inchado ete.) para dele induzir as relagdes diferenciais entre “mitemas” que se determinam reciprocamente (relagdes de parentesco subestimadas, negago da autoctonia, persisténcia da autoctonia)"*, Em todo caso, sempre 08 elementos simbilicos e suas relagdes determinam a natureza dos seres e objetos que vem efetud-los, a0 passo que as singularidades formam uma ordem dos lugares, ordem que determina simultaneamente os papéis ¢ atitudes desses seres enquanto os ocupam. A determinagdo da estrutura culmina, assim, numa teoria das atitudes que exprimem seu funcionamento. As singularidades correspondem com os elementos simbélicos e suas relagdes, mas nao se assemelham a eles. Diriamos, antes, que elas “simbolizam” com eles. Derivam deles, pois toda determinago de relagSes diferenciais acarreta uma repartigio de pontos singulares. Mas, por exemplo: os valores de relagdes diferenciais encarnam-se [249] em espécies, a0 passo que as singularidades se encarnam em partes organicas que correspondem a cada espécie. Uns constituem varidveis, os outros, fungdes. Uns constituem numa estrutura 0 domit io das apelacdes, 0s outros, 0 das atitudes. LévieStrauss insistiu sobre 0 duplo aspecto, de derivagdo e, contudo, de irredutibilidade, das atitudes com relagdo as apelagdes””. Um discipulo de Lacan, Serge Leclaire, mostra em outro dominio como os elementos simbélicos do inconsciente remetem necessariamente a “movimentos libidinosos” do corpo, enearando as singularidades da estrutura neste ou naquele lugar", Toda estrutura, neste sentido, € psicossomética, ou antes, representa um complex categoria-atitude. Consideremos a interpretago do marxismo por Althusser ¢ seus colaboradores: antes de tudo, as relagdes de produgdo af so determinadas como relagdes diferenciais que se estabelecem nao entre homens reais ou individuos concretos, mas entre objetos ¢ agentes que tém, antes, um valor simbélico (objeto de produgdo, instrumento de produgiio, forga de trabalho, trabalhadores imediatos, ndo-trabalhadores imediatos, tais como so tomados em °C. Lévi-Strauss, Anthropologie structurale, Pats, Pon, 1958, pp. 235 ss. © Ibid, pp. 343 ss. 2°, Leclaire, “Compter avec la psychanalyse", in Cahiers pour V'analyse, 9° 8 221 relagdes de propriedade e de apropriagdo”'. Cada modo de produgao E racteriza-se, assim, por singularidades que correspondem aos valores das relag € evidente que homens concretos venham ocupar os lugares e efetuar os elementos da estrutura, é desempenhando © papel que o local estrutural thes confere (por exemplo, 0 “capitalista”) e servindo de suportes as relagdes estruturais: embora “os verdadeiros sujeitos néo sejam esses ocupantes € esses funcionérios... mas a definigdo e a distribuigdo desses locais e dessas fungdes”. O verdadeiro sujeito ¢ a prépria estrutura: o diferencial e singular, as relagdes diferenciais e 05 pontos singulares, a determinagao reciproca e a determinacao completa. [250] Quarto critério: 0 diferenciador, a diferengagao As estruturas sto necessariamente inconscientes, em virtude dos elementos, relagdes © pontos que as compdem.Toda estrutura & uma infra-estrutura, uma microestrutura, De certo modo, elas ndo sdo atuais. O que & atual ¢ aquilo em que a estrutura se encarna, ou antes , aquilo que ela constitui encarnando-se. Em si mesma, porém, ela ndo & nem atual nem ficticia; nem real nem possivel. Jakobson coloca o problema do estatuto do fonema: este no se confunde com uma letra, silaba ou som atuais, ndo sendo tampouco uma ficgdo, se exatamente 0 modo da uma imagem associada’”, Talvez.o termo “virtualidade” designa: estrutura ou objeto da teoria, mas com a condigdo de retirarmos dele todo carter vago; porque o virtual tem uma realidade que Ihe € propria, mas que no se confunde com nenhuma realidade atual, com nenhuma realidade presente ou passada; ele tem uma idealidade que Ihe & prépria, mas que ndo se confunde com nenhuma imagem possivel, com nenhuma idéia abstrata. Da estrutura, diemos: real sem ser atual, ideal sem ser abstrata. Ii por isso que Lévi-Strauss freqiientemente apresenta a estrutura como uma espécie de YL. Althusser, Lire le Capital, tl, Paris: Frangois Maspero, 1965, pp. 152+157 (ef. também E. Balibar, pp. 208s.) NET [4 respeito do vocdbulo ‘dferenga’, hd dois verbos que nos interessam aqui: diferenciar e diferenear. ‘Achamos linglisticamente legitimo ~ e conceitualmente necessério na tradugio de textos escritos por Deleuze por volta de 1967 em diante —- empregar, a partic desses verbos, alguns vocdbulos que nos ajudam a caracterizar a distinglo deleuzeana do virtual e do atval. Na linha do diferenciar, teremos @ vocabulério do virtual: diferenciagio (traduzindo differentiation) ¢ diferencial (tr. diférentie). Na linha do diferengar (que 4 passou pelas formas deferencar’ (1562) 'differencar’ (1567) € que jé propiciou alguns vocabulos, como diferencado ¢ diferensével) teremos o vocabulirio do atual: diferengasio ({raduzindo différenciation) & diferengal (para diféreciel). Todavia, diférenciant e, dfférenciateur serao traduzidos por diferenciador (e différenciatrice por diterenciadora, porque dizem respeito ao “campo intensivo” sem o qual no hé passagens ‘entre virtual atual. Cf pp.135, 250, 252, 259, 260 do original] ®* Roman Jakobson, Essais de linguistique générale, Vol. 1, Paris: Minuit, 1963, cap. VI 222 reservatirio ou de repertério ideal, onde tudo coexiste virtualmente, mas onde a atualizagao se faz necessariamente segundo diregdes exclusivas, implicando sempre combinagdes parciais e escolhas inconscientes. Extrair a estrutura de um dominio é determinar toda uma virtualidade de coexisténcia que preexiste aos seres, aos objetos e as obras desse dominio. ‘Toda estrutura & uma multiplicidade de coexisténcia virtual. L. Althusser, por exemplo, mostra, neste sentido, que a originalidade de Marx (seu antichegelianismo) reside na maneira como 0 s istema social é definido por uma coexisténcia de elementos e de relagbes econémicas, sem que possamos engendri-los sucessivamente segundo a iluso de uma falsa dialética?”. © que & que coexiste na estrutura? Todos os elementos, as relagdes e valores de relagGes, todas as singularidades préprias ao dominio considerado. Semelhante coexisténcia nao implica confusdo alguma, nenhuma indeterminagdo: so relagdes [251] e elementos diferenciais que coexistem num todo perfeita e completamente determinado. Acontece que esse todo nio se atualiza como tal. O que se atualiza, aqui e agora, sdo tais relagdes, tais valores de relagdes, tal reparti¢@o de singularidades; outras atualizam-se alhures ou em outros momentos. Nao hé lingua total, encarnando todos os fonemas e relagdes foneméticas possiveis; mas a totalidade virtual da linguagem atualiza-se segundo diregdes exelusivas em linguas diversas, cada uma encamando certas relagdes, certos valores de relages e certas singularidades dessa linguagem. Nao ha sociedade total, mas cada forma social encama certos elementos, relagdes ¢ valores de produgao (por exemplo, o “capitalismo”). Portanto, devemos distinguir a estrutura total de um dominio como conjunto de coexisténcia virtual, e as subestruturas que correspondem as diversas atualizagdes no dominio. Da estrutura como virtualidade, devemos dizer que ela é ainda indiferengada, embora seja inteira e completamente diferenciada. Das estruturas que se encarnam nesta ou naquela forma atwal (presente ou passada), deveremos dizer que elas s4o diferengadas, e que atualizar-se, para elas, & precisamente diferengar-se. A estrutura ¢ insepardvel deste duplo aspecto, ou deste complexo que podemos designar pelo nome de diferenci/¢agao, onde ci/¢ constitui a relagdo fonematica universalmente determinada. 27, Althusser, Lire fe Capita, t |, p. 82; I, p. 44, Paris: Frangois Maspero, 1965, 223 Toda diferengagdo, toda atualizagao, & feita segundo dois caminhos: espécies partes. As relagdes diferenciais encamamese em espécies qualitativamente distintas, a0 passo que as singularidades correspondentes se encarnam nas partes e figuras extensas que caracterizam cada espécie. Assim, as espécies de Iinguas, e as partes de cada uma na vizinhanga das singularidades da estrutura lingtistica; os modos sociais de produsio especificamente definidos, e as partes organizadas correspondendo a cada um de seus modos etc. Convém observarmos que o processo de atualizacdo sempre implica uma temporalidade interna, varidvel segundo aquilo que se atualiza. Nao somente cada tipo de produgdo social tem uma temporalidade global interna, mas suas partes organizadas tém ritmos particulares. Portanto, a posi¢do do estruturalismo relativamente ao tempo € bastante clara: o tempo € sempre um tempo de atualizago, [252] segundo o qual se efetuam, em ritmos diversos, os elementos de coexisténcia virtual. O tempo vai do virtual ao atual, isto é da estrutura io de uma forma atual a outra forma. Ou, pelo menos, o tempo concebido como relagdo de sucesso de duas formas atuais contenta-se em exprimir abstratamente os tempos internos da estrutura ou estruturas que se efetuam em profundidade nessas duas formas, ¢ as relagdes diferenciais entre esses tempos. E é justamente porque a estrutura ndo se atualiza sem se diferengar no espago ¢ no tempo, sem diferengar, assim, espécies ¢ partes que a efetuam, que devemos dizer, neste sentido, que a estrutura produz essas espécies © essas partes. Ela as produz como espécies ¢ partes diferengadas, embora no possamos opor o genético ao estrutural mais do que o tempo a estrutura, A génese, como o tempo, vai do virtual ao atual, da estrutura a sua atualizacdo; as duas nogdes de temporalidade miltipla interna, e de génese ordinal estatica, so, neste sentido, insepardveis do jogo das estruturas”. E preciso insistir sobre esse papel diferenciador. A estrutura &, em si mesma, um sistema de elementos e de relagées diferenciais; mas ela também diferencia as espécies ¢ as partes, os seres e as fungées nos quais ela se atualiza. Ela € diferencial em si mesma diferenciadora em seu efeito, Comentando Lévi-Strauss, Jean Pouillon definia o problema do estruturalismo: pode-se elaborar “um sistema de diferengas que ndo conduza nem a sua 20 liveo de Jules Vuillemin, Philosophie de Ualgebre, (PUF, 1960), prope uma determinagdo das cstruturas em matemitica, Fle insiste sobre a importincia, a esse respeito, de uma teoria dos problemas (segundo © matemitico Abel), e de principios de determinagao (determinagao reciproca, completa © progressiva, segundo Galois). Mostra como as estruturas, neste sentido, fornecem os tinicos meios de realizar ‘as ambigdies de um verdadeiro método genético, 224 simples justaposi¢ao, nem a seu apagamento artificial"?”°. A este respeito, a obra de Georges Dumézil ¢ exemplar, do ponto de vista mesmo do estruturalismo: ninguém melhor do que ele analisou as diferengas genéricas e especificas entre religides, e também as diferengas de partes e de fungdes entre deuses de uma mesma religido. E que os deuses de uma religio, por exemplo, Japiter, Marte, Quirino, encarnam elementos ¢ relagdes diferenciais, [253] a0 mesmo tempo que encontram suas atitudes e fungdes na vizinhanga das singularidades do sistema ou das “partes da sociedade” considerada: eles so, pois, essencialmente diferenciados pela estrutura que se atualiza ou se efetua neles, e que os produz atualizando-se. E verdade que cada um deles, considerado apenas em sua atualidade, atrai e reflete a fungdo dos outros, embora corramos 0 risco de nada mais reencontrar dessa diferengado origindria que os produz do virtual ao atual. Mas é justamente aqui que se passa a fronteira entre o imagindrio e o simbélico: o imagindtio tende a refletir e a reagrupar sobre cada termo 0 efeito total de um mecanismo de conjunto, a0 passo que a estrutura simbélica assegura a diferenCiagdo dos termos e a diferengagio dos efeitos. Donde a hostilidade do estruturalismo em relagdo aos métodos do imaginario: a critica de Jung por Lacan, a critica de Bachelard pela “nova critica”, A. imaginagio desdobra e reflete, projeta e identifica, perde-se em jogos de espelhos, mas as disting S que ela faz, como as assimilagdes que opera, sio efeitos de superficie que ocultam os mecanismos diferenciais, muito mais sutis, de um pensamento simbélico. Comentando Dumézil, Edmond Ortigues diz muito bem: “Quando nos aproximamos da imaginagio material, a funedo diferencial diminui, tendemos para equivaléneias; quando nos aproximamos dos elementos formadores da sociedade, a fungio diferencial aumenta, tendemos para valéncias distintivas” 7", As estruturas sao inconscientes, sendo necessariamente recobertas por seus produtos ou efeitos. Uma estrutura econémica nunca existe em estado puro, mas recoberta pelas relagdes juridicas, politicas, ideolégicas em que se encarna. Néo podemos /er, encontrar, reencontrar as estruturas sendo a partir desses efeitos. Os termos e as relagdes que as E atualizam, as espécies e as partes que as efetuam so confusdes tanto quanto expressde: 2° CF. Les Temps modernes,julho de 1956. ® P, Sollers, Drame, Paris, Seul, 1965, 2! JP, Faye, Analogues, Paris, Seuil, 1964 P&S, Freud, Oewrres completes, vol. IX, Paris, PUE, 1998. °C, Lévi-Strauss, Le Totemisme aujourd'hui, p. 115. 229 Tudo indica que estrutura envolve um objeto ou elemento completamente paradoxal. Consideremos 0 caso da carta, na historia de Poe, tal como Lacan a comenta; ou © caso da divida, em O Homem dos ratos. F, evidente que este objeto & eminentemente simbélico. Mas dizemos “eminentemente”, porque ele nao pertence a série alguma em particular: a carta esté, entretanto, presente nas duas séries de Poe; a divida esté presente nas duas séries de O Homem dos ratos. Um tal objeto sempre esté presente nas séries correspondentes, ele as percorre € se move nelas, ndo cessa de circular nelas, ¢ de uma a outra, com uma agilidade extraordindria, Diriamos que ele € sua prépria metifora e sua prépria metonimia, Em cada caso, as séries so constituidas de termos simbélicos ¢ de relagdes diferenciais; ele, porém, parece ter outra natureza. Com efeito, é em relagdo a ele que a variedade dos termos e a variagao das relagdes diferenciais so determinadas de cada vex, As duas séries de uma estrutura so sempre divergentes (em virtude das leis da diferengago). Mas este objeto singular & 0 ponto de convergéncia das s divergentes enquanto tais. Ele & “eminentemente” simbélico, mas justamente porque é imanente s duas séries ao mesmo tempo. Como denominé-lo, sendio Objeto = x, Objeto da adivinhagdo ou grande Mével? Todavia, podemos ter [259] dividas: o que J. Lacan nos convida a descobrir em dois casos, 0 papel particular de uma carta ou de uma divida, seria um artificio, a rigor aplicdvel a esses casos, ou seria um método verdadeiramente geral, vilido para todos os dominios estruturaveis, critério para toda estrutura, como se uma estrutura ndo se definisse sem a apresentagdo de um objeto = x que ndo cessa de percorrer suas séries? Como se a obra literdria, por exemplo, ou a obra de arte, mas também outras obras, as obras da sociedade, as da doenga, as da vida em geral, envolvessem este objeto muito particular que comanda sua estrutura, Como se se tratasse sempre de encontrar quem é H, ou de descobrir um x envolto na obra, Acontece 0 mesmo nas canges: 0 reftdo diz respeito a um objeto = X, 80 passo que as estrofes formam as séries divergentes onde circula este objeto. Eis porque as cangGes apresentam verdadeiramente uma estrutura elementar. Um diseipulo de Lacan, André Green, assinala a existéneia do lengo que circula em Otelo, percorrendo todas as séries da pe Falavamos também das duas séries do Principe de Gales, Falstaff ou o pai-cémico, Henrique IV ou 0 pai real, as duas imagens de pai. A coroa € 0 objeto = x que percorre as duas séries, com termos e sob relagdes 8 Green, “L’objet (a) de J. Lacan”, Cahiers pour Vanalyse, n° 3, p. 32. 230 diferentes; 0 momento em que o principe experimenta a coroa, seu pai no estando ainda morto, marca a passagem de uma série & outra, a mudanga dos termos simbélicos ¢ a variagdo das relagGes diferenciais. O velho rei moribundo se zanga, e eré que o filho quer prematuramente identificar-se com ele; no entanto, o principe sabe responder e mostrar, num espléndido discurso, que a coroa ndo € 0 objeto de uma identificagdo imaginéria, mas, a0 contrério, o termo eminentemente simbélico que percorre todas as séries, a série infame de Falstaff e a grande série real, e que permite a passagem de uma a outra no seio da mesma estrutura. Havia, como vimos, uma primeira ferenga entre 0 imaginario e 0 simbélico: 0 papel diferenciador do simbélico, por oposigo ao papel assimilador refletidor, desdobrante € redobrante do imagindrio. Contudo, a segunda fronteira aparece melhor aqui: contra 0 caréter dual da imaginacdo, 0 Terceiro [260] intervém essencialmente no sistema simbélico, distribui as séries, desloca-as relativamente, fi-las comunicar, mas impedindo uma de dobrar-se imaginariamente sobre a outra. Divida, carta, lengo ou coroa, a natureza desse objeto & precisada por Lacan: ele esti sempre deslocado em relagdo a si mesmo. Tem por propriedade ndo estar onde ¢ procurado, mas, em contrapartida, ser encontrado onde ndo esti. Diremos que ele “falta a seu lugar” (ndo sendo, assim, alguma coisa de real). Diremos também que cle falta & sua propria semelhanga (ndo sendo, assim, uma imagem), que falta a sua prépria identidade (no sendo, assim, um conceito). “Aquilo que esté oculto ¢ sempre aguilo que falta a seu lugar, como se exprime a ficha de pesquisa de um volume quando esta extraviado na biblioteca, Com efeito, ainda que este estivesse sobre a prateleira ou sobre a ‘casa’ ao lado, ele se ocultaria, por mais vis ivel que parecesse. Pois s6 podemos dizer literalmente que isto falta a seu lugar, daquilo que pode mudar de lugar, isto 6, do simbélico. Porque, para o real, qualquer que seja 0 transtorno que possamos trazer-Ihe, ele est sempre e em todo caso presente, traz este lugar colado & sua sola, sem nada reconhecer que possa exili-lo dai”, Se as séries que 0 objeto = x percorre apresentam necessariamente deslocamentos relatives uma com relagdo a outra, é porque os lugares relativos de seus termos na estrutura dependem antes de tudo do lugar absoluto de cada um, em cada momento, com relagdo a0 objeto = x sempre circulante, sempre deslocado relativamente a si mesmo. E neste sentido que o deslocamento, € mais geralmente todas as formas de troca, no constitui um cardter 5 Lacan, Eos, p25 231 acrescentado de fora, mas a propriedade fundamental que nos permite definir a estrutura como ordem dos lugares sob a variagio das relagdes. Toda a estrutura & movida por este Terceiro originério — mas também que falta 4 sua propria origem. Distribuindo as diferencas em toda a estrutura, fazendo variar as relagGes diferenciais com seus deslocamentos, o objeto = x constitui o diferenciador da propria diferenga. Os jogos tém necessidade da casa vazia, sem o que nada avangaria nem funcionaria. © objeto = x nao se distingue de [261] seu lugar, mas é proprio deste lugar deslocar-se constantemente, como ¢ préprio & casa vazia saltar incessantemente. Lacan invoca 0 lugar do morto no bridge. Nas paginas admiriveis que abrem As palavras ¢ as coisas, onde desereve um quadro de Velasquez, Foucault invoca 0 lugar do rei, com relagdo a0 qual tudo se desloca e desliza: Deus, depois o homem, sem jamais preenché-lo ”*, Nao ha estruturalismo sem este grau zero. Philippe Sollers ¢ Jean-Pierre Faye gostam de invocar a tarefa cega, como designando este ponto sempre mével que comporta a cegueira, mas a partir do qual se torna possivel a escrita, porque af se organizam as séries como verdadeiros literatemas. J. A. Miller, em seu esforgo para elaborar um conceito de causalidade estrutural ‘ou metonimica, toma de empréstimo a Frege a posigo de um zero, definido como faltando 4 sua propria identidade, e que condiciona a constituigdo serial dos nimeros *”. E mesmo Lévi-Straus ; que em certos aspectos & 0 mais positivista dos estruturalistas, 0 menos roméntico, 0 menos inclinado a acolher um elemento fugidio, reconhecia no “mana” ou seus equivalentes a existe ante flutuante”, de um valor simbélico zero circulando na estrutura ”, Fle reencontrava, assim, 0 fonema zero de Jakobson que, em si mesmo, ndo comporta cariter diferencial algum nem valor fonético, mas em relago ao qual todos os fonemas se situam em suas préprias relagGes diferenciais. Se & verdade que a critica estrutural tem por objeto determinar na linguagem as “virtualidades” que preexistem & obra, a obra é em si mesma estrutural quando se propoe exprimir suas préprias virtualidades. Lewis Carroll, Joyce, inventavam “palavras-valises” ou, mais geralmente, palavras esotéricas, para assegurarem a coincidéncia de séries verbais sonoras ¢ a simultaneidade de séries de histérias associadas. Em Finnegan's Wake, é ainda uma carta que & Cosmo, © que retine todas as séries do mundo. Em Lewis Carroll, a 2M, Foucault, Les Mots et les choses, cap. I. 7), A. Miller, “La suture", Cahiers pour analyse, n° 1. °C. LévieStrauss, Introduction d Voeuvre de Marcel Mauss, pp. 49-59 (in Marcel Mauss, Sociologie et antrhropologie, Paris, PUF, 1950), 232 palavra-valise conota pelo menos duas séries de base (falar e comer, série verbal e série alimentar) que podem [262] ramificar-se: assim, o Snark, E um erro dizer que tal palavra tem dois sentidos; de fato, ela pertence a uma ordem diferente da ordem das palavras que tém um sentido, Fla & 0 ndo-sentido que, ao menos, anima as duas séries, mas que thes proporciona sentido circulando através delas. E ela, em sua ubiqilidade, em seu perpétuo deslocamento, que produz o sentido em cada série, e de uma série & outra, € ndo cessa de defasar as duas séries. E a palavra = x, enquanto designa o objeto = x, 0 objeto problemético. Enquanto palavra = x , ela percorre uma série determinada como a do significante; mas, a0 mesmo tempo, como objeto = x percorre a outra série determinada como a do significado. Ela nao cessa, ao mesmo tempo, de cavar e de preencher a distancia entre as duas séries: Lévi-Strauss mostra isso a propésito do “mana”, que ele assimila as palavras “trogo” ou “trem” *’, E desta maneira, como vimos, que 0 ndo-sentido nfo é a auséneia de significagdo, mas, ao contririo, 0 excesso de sentido, ou aquilo que proporciona sentido ao significado e ao significante. © sentido aparece aqui como o efeito de funcionamento da estrutura, na animagdio de suas séries componentes. E sem diivida, as palavras-valises no passam de um procedimento entre outros para assegurar esta circulagdo, Os termos téenicos de Raymond Roussel, tais como os analise Foucault, so de outra natureza: fundados em relagdes diferenciais fonematicas, ou em relagGes ainda mais complexas *”, Em Mallarmé, encontramos sistemas de relagSes entre séries, € méveis que os animam, ainda de tipo completamente diferente. Nosso objeto ndo é analisar 0 conjunto dos procedimentos que fizeram e fazem a literatura moderna, jogando com toda uma topografia, com toda uma tipografia do “livro por vir”, mas somente ressaltar em todos os casos a eficdcia desta casa vazi de dupla face, ao mesmo tempo palavra e objeto. Em que consiste este objeto = x ? E e deve permanecer 0 objeto perpétuo de uma adivinhagdo, 0 perpetuum mébile? Seria uma forma de lembrarmos a consisténcia objetiva que assume a categoria do problematico no seio das estruturas. Finalmente, é bom que a questo “em que se pode reconhecer 0 estruturalismo?” conduza a posigao de algo que ndo seja reconhecivel ou identificavel. Consideremos [263] a resposta psicanalitica de Lacan: 0 objeto =x & determinado como falo. Mas esse falo ndo & nem o érgdo real, nem a série das imagens associadas ou associdveis: € falo simbélico. Entretanto, é justamente de S' [arue”— “machin * Cf M. Foucault, Raymond Roussel [NRT: Paris, Gallimard, 1963] 233 sexualidade que se trata; nfo se trata de outra coisa aqui, contrariamente as piedosas tentagdes sempre renovadas em psicandlise de adjurar ou de minimizar as referéncias sexuais. Contudo, o falo aparece no como um dado sexual nem como a determinagdo empirica de um dos sexos, mas como o drgio simbélico que funda toda a sexualidade como sistema ou estrutura, e com relagdo ao qual se distribuem os lugares ocupados de modo varidvel pelos homens ¢ pelas mulheres, também as séries de imagens ¢ de realidades. Designando 0 objeto = x como falo, nfo se trata, pois, de identificar este objeto, de conferir-Ihe uma identidade que repugne & sua natureza; porque, ao contririo, 0 falo simbilico é aquilo que falta 3 sua propria identidade, sempre encontrado lé onde nao esté, pois ndo esté Id onde ¢ procurado, sempre deslocado em relagdo a si, do lado da mde. Neste sentido, ele & a carta e a divida, 0 lengo ou a coroa, o Snark e 0 “mana”. Pai, mae etc. so elementos simbélicos tomados em relagdes diferenciais, mas o falo € outra coisa, 0 objeto = fazendo de x que determina o lugar relativo dos elementos e 0 valor variavel das rel toda a sexualidade uma estrutura, E em fungdo dos deslocamentos do objeto = x que as relacdes variam, como relagdes entre “pulses parciais” constitutivas da sexualidade. © falo, evidentemente, nfo & dltima resposta. E mesmo, antes, o lugar de uma questo, de uma “pergunta” que caracteriza a casa vazia da estrutura sexual. As questdes como as respostas variam segundo a estrutura considerada, mas nunca dependem de nossas preferéncias, nem de uma ordem de causalidade abstrata. E evidente que a casa vazia de uma estrutura econdmica, como troca de mercadorias, deve ser determinada de forma inteiramente diferente: ela consiste em “algo” que no se reduz nem aos termos da troca, nem A propria relagdo de troca, mas que forma um terceiro eminentemente simbélico em perpétuo deslocamento, e em fungiio do qual vao definir-se as variagdes de [264] relagées. Tal & 0 valor como expresso de um “trabalho em geral”, para além de toda qualidade empiricamente observavel, lugar da questo que atravessa ou percorre a economia como estrutura ™ Decorre disso uma conseqiiéncia mais geral, que diz respeito as diferentes “orden: Sem diivida nfo convém, na perspectiva do estruturalismo, ressuscitarmos 0 seguinte problema: hd uma estrutura que, em Ultima instancia, determina todas as outras? Por exemplo, 0 que é primeiro, 0 valor ou o falo, 0 fetiche econdmico ou o fetiche sexual? Por © CE. Lire le Capital, «1, pp. 242 ss: a anlise que Pierre Macherey fas da nogdo de valor, mostrando que «este esté sempre defasado relativamente &troca em que ela aparece. 234 varias razGes, essas questes ndo tém sentido, Todas as estruturas so infra-estruturas. As ordens de estruturas, lingilistica, familiar, econémica, sexual ete., cara rizam-se pela forma de seus elementos simbélicos, pela variedade de suas relagdes diferenciais, pela espécie de suas singularidades, enfim e sobretudo, pela natureza do objeto =x que preside a seu funcionamento. Ora, n&o poderiamos estabelecer uma ordem de causalidade linear de uma estrutura & outra, a ndo ser que, em cada caso, conferissemos ao objeto = x 0 género de identidade que ele repugna essencialmente. Entre estruturas, a causalidade s6 pode ser um tipo de causalidade estrutural. Em cada ordem de estrutura, certamente, 0 objeto = x de forma alguma ¢ um incognoscivel, um puro indeterminado: é perfeitamente determindvel,, inclusive em seus deslocamentos, e pelo modo de deslocamento que 0 caracteriza. Simplesmente, ele nao é assinalavel, isto é, fixdvel num lugar, identificavel num género ou numa espécie. Pois ele mesmo constitui o género iltimo da estrutura ou seu lugar total: portanto, s6 tem identidade por faltar a esta lentidade, ¢ s6 tem lugar por deslocar-se relativamente a todo lugar. Assim, 0 objeto = x, para cada ordem de estrutura, o lugar vazio ou perfurado que permite a esta ordem articular-se com outras, num espaco que comporta tanta diregdes quantas ordens. As ordens de estrutura no comungam num mesmo lugar, ‘mas todas comunicam por seu lugar vazio ou objeto = x, respectivo. E por isso que, apesar de certas iginas apressadas de Lévi-Strauss, ndo reclamaremos um privilégio para as estruturas [265] sociais etnogeéficas, remetendo as estruturas sexuais psicanaliticas & determinagdo empirica de um individuo mais ou menos dessocializado. Nem mesmo as estruturas da lingiistica podem passar por elementos simbélicos ou significantes iiltimos: precisamente porque as outras estruturas ndo se contentam em aplicar por analogia métodos tomados de empréstimo & lingllistica, mas descobrem por si mesmas_verdadeiras linguagens, mesmo nio-verbais, comportando sempre seus significantes, seus elementos simbélicos e relagGes diferenciais Portanto, Foucault, ao levantar por exemplo 0 problema das relagdes etnografia-psicandlise, tem razo em dizer: “elas se cortam em Angulo reto; porque a cadeia significante por meio da qual se constitui a experiéncia tinica do individuo & perpendicular ao sistema formal a partir do qual se constitui as significagdes de uma cultura, Em cada momento, a estrutura prépria da experiéncia individual encontra nos sistemas da sociedade certo ntimero de escolhas possiveis (¢ de possibilidades excluidas); inversamente, as estruturas sociais encontram em cada um de seus pontos de escolha certo niimero de individuos possiveis (e de outros que ndo 0 so)". E em cada estrutura, 0 objeto = x deve ser suscetivel de explicar: 1°) a maneira como ele subordina a si, em sua ordem, as outras ordens de estrutura, estas s6 intervindo, entdo, como dimensdes de atualizaga0; 2°) a maneira como ele mesmo é subordinado as outras ordens, na ordem delas (e s6 intervindo em sua prépria atualizacdo); 3°) a maneira como todos os objetos = x e todas as ordens de estrutura se comunicam umas com as outras, cada ordem definindo uma dimensio do espago onde é absolutamente primeira; 4°) as condiges nas quais, em tal momento da histéria ou em tal caso, tal dimensio correspondendo a tal ordem da estrutura ndo se desenrola por si mesma, permanecendo submissa & atualizagdo de outra ordem (0 conceito lacaniano de “forclusio” teria. Ainda aqui, uma importancia decisiva). [266] Ultimos critérios: do sujeito a pratica Num sentido, os lugares s6 is & medida preenchidos ou ocupados por seres 1 que a estrutura é “atualizada”. Num outro sentido, porém, podemos dizer que os lugares ja esto preenchidos ou ocupados pelos elementos simbélicos, no nivel da prépria estrutura; e so as rela ‘es diferenciais desses elementos que determinam a ordem dos lugares em geral. Portanto, hd um preenchimento simbélico primério, antes de todo preenchimento ou de toda ocupagao secundaria por seres reais. Vé-se que reencontramos o paradoxo da casa vazia; porque esta € o unico lugar que ndo pode nem deve ser preenchido, nem mesmo por um elemento simbélico, Ela deve guardar a perfe jo de seu vazio para deslocar-se com relagdo a si mesma, e para circular através dos elementos ¢ das variedades de relagdes. Simbéli a, ela deve ser para si mesma seu préprio simbolo, e faltar eternamente a sua prdpria metade que seria susceptivel de vir ocupa-la. (No entanto, este vazio nao é um ndo- set; ou, pelo menos, este ndo-ser ndo é 0 ser do negativo, & 0 ser positive do “problematico”, o ser objetivo de um problema e de uma questo). E por isso que Foucault pode dizer: “ndo podemos mais pensar sendo no vazio do homem desaparecido. Porque este vazio no cava uma falta; ndo prescreve uma lacuna a ser preenchida. Ele nfo & nada MI, Foucault, Les Mots et les choses, op. cit, p. 392. 236 mais, nada menos, que a dobra de um espago onde, finalmente, se toma novamente possivel pensar”, Ora, embora o lugar vazio nao seja preenchido por um termo, ele ndo deixa de ser acompanhado por uma insténcia eminentemente simbélica que segue todos os seus deslocamentos: acompanhado sem ser ocupado nem preenchido. E ambos, a instancia e 0 lugar, no deixam de faltar um ao outro, e de se acompanharem dessa forma. O sujeito & precisamente a instncia que segue o lugar vazio: como diz. Lacan, ele ¢ menos sujeito que assujeitado — assuj ido a casa vazia, assujeitado ao falo ¢ aos seus deslocamentos. Sua agilidade é sem igual, ou deveria sé-lo, Por isso, 0 sujeito & essencialmente intersubjetivo. Anuneiar a morte de Deus, ou mesmo a morte do homem, nada significa. O que conta & 0 como. Nietzsche jé mostrava que Deus morte [267] de varias maneiras; ¢ que os deuses mortem, mas de rir, quando ouvem um deus dizer que é 0 Unico. © estruturalismo ndo é absolutamente um pensamento que suprime o sujeito, mas um pensamento que o esmigalha © 0 distribui si8stematicamente, que contesta a identidade do sujeito, que o dissipa e 0 faz passar de um lugar a outro, sujeito sempre némade, feito de individuagdes, mas impessoais, ou de singularidades, mas pré-individuais. E neste sentido que Foucault fala de “dispersdo’ e Lévi-Strauss s6 pode definir uma insténcia subjetiva como dependente das condigdes de Objeto sob as quais sistemas de verdade se tornam conversiveis e, por conseguinte, “simultaneamente recebiveis para varios sujeitos” *°. Assim, dois grandes acidentes da estrutura deixam-se definir. Ou a casa vazia e mével nao & mais acompanhada de um sujeito némade que sublinha seu percurso, e seu vaio tora-se uma verdadeira falta, uma lacuna; ou ela é, a0 contrério, preenchida, ocupada por aquilo que a acompanha, e sua mobilidade perde-se no efeito de uma plenitude sedentiria ou fixa, Poderfamos ainda dizer, em termos lingiisticos, ou que 0 “significante” desapareceu, que a onda do significado nao encontra mais elemento significante que 0 mega, ou que o “significado” desvaneceu-se, que a cadeia do significante nao encontra mais significado que a percorra: os dois aspectos patoligicos da psicose *. Poderiamos ainda dizer, em termos teoantropoldgicos, que ora Deus faz erescer o deserto & cava na terra uma lacuna, ¢ ora o homem a preenche, ocupa o lugar, ¢ nesta va permuta faz-nos passar de um 25M, Foucault, Les Mots et les choses, p. 353 2 C, LévieStrauss, Le Cru et le cui, Pars, Plon, 1964, p19. Cf. o esquema proposto por S, Leclaire, em seguida a Lacan, in “A la recherche des principes d'une psychothérapie des psychoses", na revista Z ‘Evolution psychitrique, t. 23, 2, 1958. 237 acidente ao outro: eis porque 0 homem e Deus so as duas doengas da terra, to & da estrutura, © importante & sabermos sob que fatores e em que momento esses acidentes so determinados em estruturas desta ou daquela ordem. Consideremos novamente as andlises de Althusser e de seus colaboradores: de um lado, eles mostram como, na ordem. econdmica, as aventuras da casa vazia (0 Valor como objeto = x) sdo marcadas pela mercadoria, pelo dinheiro, pelo fetiche, pelo capital etc., que caracterizam a estrutura [268] capitalista. Por outro lado, eles mostram como contradigdes nascem dessa forma na estrutura. Enfim, como 0 real ¢ 0 imaginério, isto é, os seres reais que vém ocupar os lugares © as ideologias que exprimem a imagem que se faz deles, so estreitamente determinados pelo jogo dessas aventuras estruturais e das contradigdes que delas decorrem. Certamente, nao que as contradigGes sejam imagindrias: elas so propriamente estruturais, € qualifieam os efeitos da estrutura no tempo interno que Ihe & préprio. Nao diremos, pois, da contradigdo, que ela & aparente, mas que € derivada: deriva do lugar vazio e de seu devir na estrutura. Em regra geral, 0 real, 0 imagindrio e suas relagdes sempre so engendrados secundariamente pelo funcionamento da estrutura, que comeca por ter seus efeitos primdrios em si mesma. E por isso que nao é absolutamente de fora que chega & estrutura aquilo que chamamos hé pouco de “acidentes”. Trata-se, a0 contrario, de uma “tendéncia” imanente **, Trata-se de acontecimentos ideais que fazem parte da propria estrutura, e que afetam simbolicamente sua casa vazia ou seu sujeito. Chamamo-los de “acidentes” para melhor ressaltar, nao um cardter de contingéncia ou de exterioridade, mas este cardter de acontecimento bastante especial, interior & estrutura enquanto esta jamais se reduz a uma esséncia simples, Assim sendo, um conjunto de problemas complexos coloca-se ao estruturalismo, concernentes as “mutagdes” estruturais (Foucault) ou as “formas de transi estrutura 4 outra (Althusser). E sempre em fungdo da casa vazia que as relagGes diferenciais so susceptiveis de novos valores ou de variagGes, e que as singularidades so capazes de atribuigdes novas, constitutivas de outras estruturas. Ainda é preciso que as contradigdes sejam “resolvidas”, isto é, que o lugar vazio seja desembaragado dos acontecimentos simbélicos que o ocultam ou o preenchem; que ele seja devolvido ao sujeito que deve © Sobre as nogdes marxistas de “contradigdo” e de “tendéncia", ef. as andlises de E. Balibar, Lire le Capital, 1, pp. 2965s. 238 acompanhé-lo sobre novos caminhos, sem ocupi-lo nem abandoné-lo. Por isso, hé um heréi estruturalista: nem Deus nem homem, nem pessoal nem universal, ele & sem identidade, feito [269] de individuagdes ndo pessoais e de singularidades pré-individuais. Ele garante a explosio de uma estrutura afetada de excesso ou de caréncia, opde sew proprio aconteciment5o ideal aos acontecimentos ideais que acabamos de definir **, Que caiba a uma nova estrutura no recomecar aventuras andlogas 4s da antiga, impedir o renascimento de contradigdes mortais, isso depende da forga resistente e criadora desse heréi, de sua agilidade em seguir e salvaguardar os deslocamentos, de seu poder de fazer com que as relagSes variem e de redistribuir as singularidad sempre jogando ainda os dados. Este ponto de mutagio define precisamente uma praxis. Porque o estruturalismo nao & somente insepardvel das obras que cria, mas também de uma pratica relativamente aos produtos que interpreta, Seja esta prética terapéutica ou politica, ela designa um ponto de . ou de transferéncia constante, revolugdo permanent Estes tiltimos critérios, do sujeito A préxis, so os mais obscuros eritérios do futuro. Através dos seis caracteres precedentes, quisemos simplesmente recolher um sistema de ecos entre autores bastante independentes uns dos outros, explorando dominios bastante diversos; mas também a teoria que eles priprios propdem desses ecos. Nos diferentes niveis da estrutura, o real e o imagindrio, os seres reais e as ideologias, o sentido e a contradigao sto “efeitos” que devem ser compreendidos no témino de um “processo”, de uma produgo diferengada propriamente estrutural: estranha génese ca para “efeito fisicos (6pticos, sonoros etc.). Os livros contra o estruturalismo (ou aqueles contra 0 novo romance) ndo tém, estritamente, importincia alguma; no podem impedir que o estruturalismo tenha uma produtividade que & a de nossa época. Livro algum contra o que quer que seja jamais tem importincia; somente contam os livros “prs” alguma coisa de novo, e que sabem produzi-lo. Tradugdo de Hilton F. Japiassi’** Cf, Michel Foucault, Les Mots et les choses, p. 230: a mutagao estrutural, “se ela deve ser analisada, © ‘minuciosamente, no pode ser explicada nem mesmo recolhida numa palavra tiica; ela & um acontecimento radieal que se reparte sobre a superficie visivel do saber e cujos signos, sacudidelas, efeitos, podemos seguir asso a passo”. ' [Tradugdo brasileira originalmente publicada em Frangois Chatelet (Dir.), Histéria da filasofa., vol. 8, O séeulo XX, RJ, Zahat, 1974, pp. 271-303,]

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