Você está na página 1de 44
ATEORIA DA EXPRESSAO FIGURADA NOS TRATADOS ITALIANOS SOBRE AS /MPRESE, 1555-1612 Nao existe atualmente um termo francés para designar a impresa, simbolo composto, em principio, de uma imagem ¢ uma sentenga, ¢ que serve para exprimir uma regra de vida ou um programa pessoal de seu portador. Dizia-se, no século XVI, devise, com o antigo sentido de projeto. intengio, propésito, que correspondia sa- tisfatoriamente a impresa, “empresa”. Alids, a invengio era francesa, ou passava por sé-lo; a primeira antologia é francesa’, e Giovio relata, num célebre trecho de seu Dialogy detl’imprese militar et amoruse, csctity por volta de 1550, que essa moda havia sido introduzida na Itilia pelos capities de Carlos VIII ¢ imitada inicial- mente pelos homens de guerra italianos, que desenhavam imprese em suas armas € bandeiras ¢ davam-nas a seus comandados para reconheeé-los na confusio © para estimular-Ihes a coragem. Pode-se acrescentar que a sociedade franco-italiana de Lyon foi das primeiras, no século XVI, a adotar o uso da impresa, “literalizando-a”, como sugeria a moda do emblema, nos mesmos citculos da époc: A narrativa de Giovio foi acvita ¢ repetida por todos os seus contemporaneos. A origem francesa cra quase Sbvia em raziio de ser o costume geralmente conside- LO Devises héviques de Claude Paradin, Lyon, 1881, com as imprese de virias porsonagens iustres, 2. AS edigées lonesas do Emblemuna de Alciato multiplicavam-se dese 1547. A difusio das “divisas” em Lyon deveu-se em grande parte a Gabriel Simeon, correspondente de Alciato. que preparou uma reediga0 lionesa,ilustrada, do Didlage de Giovio, enriquecida vom imprese de sua autora em 1559: a obra foi tra- dduzida para o francés no mesmo ano, Suas priprias “divisas” foram publicadas, com as de Paradin, em {atime franots, por Pantin, em 1562 ¢ 1563, respectivamente (com varias reedigbes). Ele tambéin ¢ 0 autor de um didlogo a esse respeito, Lyon, 1560; inprese inéditas (Florenga, Laurenviana, ms. Ashb, 1367) fox ‘Fain apontadas por Toussaint Renucei, Gabriel Symeont, Paris, 1943, pp. XVIN ¢ 202-212. uw A FORMA E 0 INTELIGIV — escrevia em 1562 Scipione Ammirato - de uma “filo- sofia do cavaleiro”, As primeiras antologias continham apenas divisas “amorosas militares” ou simpl depois a moda atingiu os saldes, nos quais a impresa logo se difundiu por seu cardter mundano de confissio velada. Fez-se dela o principio de numerosos jogos de sociedade, que permitiam caracterizar os outros ou a si mesmo por improvisagdes desse tipo. Entre 1570 ¢ 1580, foi a acade- mia dos Intronati de Siena o centro que deu o tom: Scipione Bargagli descreveu os jovens da cidade como “amantes... ndio menos que de poesia, pintura ¢ arquitetura, desse género de obras belas e engenhosas; considerando sobretudo que tantos en- genhos (belli ingegni) a elas se dedicam em nossos dias, seja discutindo, seja escre- vendo"; ¢ 0 Dialogo de'giuochi de Girolamo Bargagli, de Siena, codificou os divertimentos derivados da impresa, que foram adotados até no saldo de Rambouillet. Mas os Intronati, embora muito apegados a esse exercicio mundano (duas outras antologias ~ uma anGnima, o Rolo degli womini d’arme sanesi, outra devida a As nio Piccolomini, amigo de Galileu - provém desse meio), nao negligenciaram o si bolismo erudito: sabe-se que Cesare Ripa, autor do célebre Iconologia, foi um deles, A coincidéncia no & fortuita, ¢ seria surpreendente que o interesse pelo simbolo e pela pictografia, tio difundido nos meios italianos cultos desde a metade do século XV, nao tivesse nada a ver com a moda dessas imagens simbélicas. Giovio tinha quase 70 anos quando compés 0 seu Dialogo, ¢ mais de 50 anos haviam decorrido desde a queda de Carlos VIII. Isso explica por que sua versio so- bre a origem dessa moda na Itélia simplificou um pouco as coisas. O fato é que os italianos conheciam muito bem, desde antes de 1498. imprese que nio eram mili res; ¢ ~ circunstancia significativa — era aos poetas que as encomendavam, Polizi ano e Sannazzaro queixaram-se dos importunos que os assediavam com suas exigéncias‘, E verdade que no podemos afirmar com certeza se impresa significa- va, no século XV, o mesmo que nos tratados pedantes do século XVI; freqiientemente podia tratar-se de uma simples sentenga, de uma “divisa”, no sentido atual da pala- vra, ou ainda de uma imagem, espécie de bras%o pessoal, como a pedra de fogo de Carlos, o Temerario. Mas, de qualquer maneira, é a partir das imagens falantes do Quattrocento, dos hieréglifos e das alegorias que se pode compreender — bem me- thor do que a partir do uso militar — a evolugio da impresa italiana’. E os tratadistas rado cavaleiresco. Trata-s mente “herdicas”, 3. Dell’Imprese, 1578, p.2. 4, Negozj det secolo XV, Florenga, 1903. \lém de Poliziano ¢ Sannazzaro, Marcantonio Epicurio, Molza, Caro «¢ Rota foram particularmente solicitados a fazer imprese, mas ninguém pensava, antes de Giovio, em pu- blicé-las em antologia. 5, A obra antiga e conhecida de K. Giehlow, Die Hierglsphenkunde des Humnanismus in der Allegorie der Renaissance (Jahrb. der kunst hist. sammig. dall. Kaiserhauses, XXXU, 1915, pp. 1-232), j6 destaca no simbolismo do século XV todos os elementos que se encontram na inpresa do século XVI. us A TEORIA DA EXPRESSAO FIGURADA NOS TRATADOS ITALIANOS SOBRE AS IMPRESE que, depois de Giovio, relatam a origom da impresa nfo deixam nunea de citarcomo inventores, ao lado dos guerreiros (cles se referiam notadamente a uma passagem dos Sete contra Tebas, de Esquilo), todos os depositirios da sabedoria misteriosa dos antigos, os egipcios desenhistas de hierdglifos, os cabalistas, e muitas vezes Noé, Adio ou mesmo Deus Pai. Essa dupla origem mitica traduz bem a dupla origem real da moda: a afetagio cavaleiresca dos homens de armas ¢ a afetagio filos6f dos meios literdtios. Isso desembocaria necessariamente no pedantismo das acade- mias, ¢ 0 passo foi dado jem 1570-1580: as academias escolheram cada uma a sua impresa, obrigaram seus membros a adoté-la, publicaram antologias e tratados. Em vez de proezas militares ¢ de amor, as divisas falaram de virtudes morais. A defini- do de Andrea Chioceo (Discorso delle Imprese, Verona, 1601) evidencia bem sua data: a impresa é “um instrumento de nosso intelecto, composto de figuras ¢ de palavras que representam metaforicamente o conceito interior do académico”. “Ins- trumento do intelecto”, “composto”, “conceito interior”, “académico” - Giovio nio teria reconhecido, nessa desctigdo, a impresa que cle trouxera & moda num livro cuja composigao, dizia cle, 0 “remogava”. Nem se trata mais do que € 0 essencial da impresa cavaleiresca, 0 programa pessoal, a confissio colorida com uma nuan- ce de desafio que era sempre, na Idade Média, a proclamagio piblica dos senti- mentos de um cavaleiro (Ruscelli, em 1556, ainda toma muito cuidado em especificar como era preciso evitar que a impresa se tornasse jactanciosa ou presuncosa): para Chiocco, cla exprime simplesmente um “conceito interior”, qualquer que seja ele. Em 1612, 0 extenso livro de Ercole Tasso, uma suma completa com discussio detalhada de tudo © que havia sido © fim de uma etapa; pouco antes, Simone Biralli havia organizado em dois volumes, 1600 ¢ 1610, a mais completa das antologias, em grande parte recapitulativa. A im- presa havia atingido um patamar: tornara-se uma obra cujo principal mérito consis- tia na riqueza das significagdes e das alusdes que seria possfvel esconder ou descobri ‘em sua estrutura complexa; a “explicagZo” em verso ou em prosa de uma impresa tomara-se um género literdrio & parte - oportunidade, naturalmente, para envaidecer © portador, mas também exercicio tipicamente conceptista. Apés a impresa manci- rista dos saldes e das academia, era o perfodo da impresa conceptista que iacomegar. A transformagio realizada durante a época do maneirismo é particularmente perceptivel na mudanga das exigéncias técnicas. Na realidade, as primeiras “regras nil passavam de preceitos de conveniéncia. Giovio formulou cinco delas, que per- maneceram célebres*: a “alma” ¢ 0 “corpo” (a sentenga e a imagem) devem ter es- ito sobre esse assunto desde Giovio, marcava 6, Dialogo, p.6. Ver, no fim deste capitulo, a lista eronoligica das obras utilizadas (contendo as primvciras cedigdes e, na falta delas as reedigdes consultadas). Salvo outta indicagao, as citagbes se referem aos titulos us A FORMA E 0 INTELIGIVEL, treita relagio; a impresa nao deve ser nem muito obscura, nem muito dbvia: deve ser agradavel & vista; exclui a figura humana; a sentenga, se possivel em lingua estran- geira, ndo deve ter mais do que trés ou quatro palavras, exceto se se tratar de verso ou hemistiquio de autor conhecido. Bem antes, em 1556, Ruscelli acrescenta uma zer sentido a partir de sua relagdo miitua’; Palazzi, reduzindo as cinco regras de Giovio a tés, conserva essa cléusula, Condena-se a famosa impresa do imperador Tito, o delfim em torno da Ancora, com a sentenga Festina lente, sob 0 pretexto de que a figura e a sentenga dizem a mesma coisa. Mais minucioso, Ammirato’ exclui até as sentengas que ape- nas explicam a figura, como 0 cominus et eminus sob o porco-espinho de Luts XI: “a alma ndo deve ser intérprete do corpo, nem o corpo da alma’. Todo mundo con- corda em desprezar as imprese-rébus", mas criticam-se também as colunas de Hér- cules com a sentenga Plus ultra adotadas por Carlos V, pois essaimpresa niio é baseada numa comparagio, apenas afirma um prop6sito. O teixo com a inscrigao Mtala sum, quiesce (supde-se que 0 leitor saiba que a sombra do teixo espanho! mata, enquanto a variedade italiana ¢ inofensiva) merece outra critica: a sentenga € pronunciada pela figura representada no desenho. Os apotegmas, provérbios, preceitos, enigmas ou perguntas no devem constituir sentengas, porque jé contém em si mesmos um sen- tido geral. Essas observagies € condigdes propriamente estéticas néio excluem, por isso, as questdes de conveniéncia ¢ de grau ~ ao contrario, o espirito contra-refor- mista tende a multiplicé-las -, mas 6 evidente que o ideal, por volta de 1600, é a ex- pressio que se basta e se “sustenta” tecnicamente ¢ cujos elementos sio todos indispensiveis e estritamente suficientes para traduzit um concerto tinico, ato ples do pensamento; para a impresa assim concebida, a dependéncia externa ¢ as consideragdes de pessoa nao passam, finalmente, de convengdes suplementares. primeira regra estrutural: as figuras e a sentenga s6 podem fa O Studies in Seventeenth Century Imagery de M. Praz, livro fundamental so- bre esse tema!", mostra a afinidade que existia, desde a origem, entre impresa e con- cetto ¢ permite que se compreenda a evolugdo que a produz. Como é natural, a anélise adota o ponto de vista da histéria do gosto, dos estilos, das concepgdes da arte. M. dessa bibliografia. As informagdes bibliogrificas completas encontram-se no tomo 1 do Studies in seven: teenth century imagery. de M. Praz, Londres, 1939-1947 (Swudies of the Warburg Inst. 3). 7. Op. cit. p. 208, 8. Op.cit. pp. 116-117. 9, Op. cit. p U4. 10, Por exemplo, uma pérola seguida de um T e de uma sola de couro: Margherita te sola di coramo. 11. Op. cit. O segundo volume & dedicado a uma bibliogratia prectosissima, Ro A TEORIA DA EXPRESSAO FIGURADA NOS TRATADOS ITALIANOS SOBRE AS IMPRESE. Praz nio se interrogou sobre o fundamento filoséfico, cido ¢ confesso, dessa nova linguagem simbélica'®; essa questo, de que nos ocu- paremos aqui, nunca foi colocada pelas proprias imprese, mas pelas introdugdes te6ricas das antologias e pelos discursos e didlogos a elas dedicados ~ apanhados de discusses estereotipadas sobre a origem da impresa, sobre o que a distingue dos brasées, cifras, reversos de medalhas, “hierdglifos”, emblemas etc., sobre as regras dessa arte ou sobre o papel respectivo da sentenga ¢ da imagem. Neles se encontra habitualmente, como pega central, uma definigdo longamente motivada e defendi- da contra as opinides diferentes. Esses discursos, aparentemente superficiais, na rea lidade tocam 0 ponto central da antropologia filos6fica do maneirismo: o problema da expresso. E para ele, nesses anos, que convergem 16; tcoria da arte, poéti- ca, retéricae, em algum sentido, a psicologia; é por meio dele que se elabora também © sentido exato de concetto, germe de uma nova estética: a impresa, imagem-idéia, “n6 de palavras e de imagens”, como dizia Ammirato, era com efcito, aos olhos de muitos, 0 concerto em estado puro. -ja implicito, seja reconhe- Os autores dos tratados sobre as imprese em geral possufam uma cultura filo- s6fica bastante rasa; 0 neoplatonismo de Alessandro Farra ¢ de Luca Contile, am- bos membros da Academia dos Affidati de Pavi sonhavam, oitenta anos depois de Pico de la Mirandola, eserever discursos sobre a dignidade do homem. Torquato Tasso conhecia bem a filosofia; mas seu didlogo sobre as imprese 6 precisamente um dos menos pretensiosos. O padre Horatio Montalto, jesuita, era leitor de ret6rica aristotélica em Milo, e pode-se pensar que 65 tratadistas préximos dos meios jesuiticos ~ Scipione Bargagli havia sido um dos primeiros alunos de seu colégio de Siena ~ dominassem bem scu Aristételes. Mas a maior parte dos autores de antologias ou de tratados era composta, nos anos da impresa “cavaleiresca”, de historiadores ou de engenhosos: Giovio e seus continua- dores diretos, Domenichi c Ruscelli, haviam escrito biografias, hist6rias, e nfo dei- xavam de interessar-se pelas questdes de epigrafia, de lingua, de critica literdria; 0 mesmo se pode dizer de Simeoni c de varios autores da geragio seguinte. Scipione Ammirato, bispo ¢ historiador, como Giovio, também era, como fora Claude Para- din antes dele, genealogista. Os escritores de profissio, desejosos de fazer frutifi- era tio desatualizado que os d 12, Entretanto le forneceu wma indicagio que s6 podemos confirmar amplamente (I, p. 50): Shall we be accu sed of exaggerating if we say that while Plaronism in the sixteenth century had dwindled inw treatises om love and ta the idle and mave ar less paradaxical questions discussed in them for the uses of polite eouver- ‘sation, Aristotelian dialects hadin the sume way degenerated into argument... over wity passtimes such as devices? Ra A FORMA E 0 INTELIGIVEL. ccarem suas dedicat6rias, naturalmente eram os mais numcrosos; encontramos so- bretudo secretirios cortesiios mais ou menos itinerantes, como, apés Simeoni ¢ Ruscelli, Comtile e Capaccio; Ruscelli e Capaccio, que sio tipos acabados de tante- cose literérias, deixaram inclusive modelos para “perfeitos secretérios”. Nas aca- demias, onde o engenho nao era questo profissional, contava-se entre os amadores de imprese um homem de armas aposentado como Farra, um jurista e criminologis- ta como Taegio; mas nas obras completas dos tratadistas figuram principalmente Rime (Caburacci, Ercole Tasso) ou controvérsias literérias, defesas de Ariosto. Mais tarde, na época conceptista, a orientagao intslectual dos autores e © pano de fundo filos6fico dos tratados mudam completamente. A teoria daimpresa foi anexada pelos jesuftas, notadamente franceses, ¢ renovada no sentido de uma metafisica barroca. Nao se deve esperar, portanto, encontrar com freqiiéncia no século XVI uma consciéncia muito nitida dos problemas filo: aestrutura da impresa era tal que os lugares-comuns reunidos para fundamenti-la teoricamente agrupavam-se por si mesmos de acordo com linhas de forga que da- vam a uma filosofia subentendida uma forma de preciso es Sficos que esses textos levantavam, Mas antosa. ! A Expressio Figurada ‘Todos os autores so undnimes em colocar a impresa entre os meios de expres sio — un modo di esprimere qualche nostro concetto, diz, Palazzi"’. Scipione Barga- gli faz questo de destacar que define corretamente a impresa como “expresso de um concetto” ¢ nio como “concetto expresso”: ela no é um conceito, mas uma maneira de figuré-lo', © Materiale Intronato havia escrito, inadvertidamente, que a impresa era uma “comparagio muda"; em trés grandes paginas, Ercole Tasso repli- ca, citando dezessete definigdes de diferentes autores, que as imprese nao so “mu- das”, mas representam, significam, exprimem — numa palavra, que elas se dirigem sempre, mais ou menos explicitamente, a alguém. Podem até, como as imagens sim- bolicas que conservam a sabedoria mitica dos antigos, servir de ensinamento. Aos autores que, como Ruscelli ou Domenichi, admitiam que uma impresa, a rigor, podia dispensar palavras, Ercole Tasso respondia'® que, se assim fosse, qual- quer objeto, qualquer gesto, qualquer intengao seria uma impresa. Mas a objegio 13. Op. cit. p. 102. 14, Op.cit, pal. 13. Op. cirp. 103 2 A TEORIA DA EXPRESSAO FIGURADA NOS TRATADOS ITALIANOS SOBRE AS IMPRESE 86 faz exprimir a segunda intengiio dos adversirios: efeito, a expressio figurada por exceléncia; qualquer imagem que significa, ou ‘mesmo qualquer objeto considerado como imagem ou simbolo, num certo sentido € uma impresa. Tudo depende do contexto. O proprio Ercole Tasso mostrou'®, as- sim, que um ledo pode ser alternadamente animal, hierdglifo, signo herdldico, casa zodiacal, insignia, simbolo de Evangelista, impresa. Estabelecer distingdes entre os géneros de sfmbolos segundo seus dominios ou segundo os meios técnicos de sua figurago era um jogo bastante comum; especificava-se, por exemplo, que as cores servem exclusivamente para representar “algumas coisas incorp6reas” ~ as emo- Ges, os sentimentos”; distinguiam-se até trinta e duas espécies de “signos naturais € antificiais™; mas o interesse principal cra descrever uma escala de todos esses meios de expressio: gestos para os mudos, palavras para o vulgo, escrita para os “doutos ou medianamente doutos” ¢ impresa, sintese de todos os meios de expres- sio, para os espiritos refinados”. A gradagio de Scipione Bargagli® inclui gestos, gritos, sons articulados, palavras, escrita alfabética; a escrita com cifras ¢ figuras & uma especie de luxo intelectual, mas a mais rara e singular das mvengdes do espi- rito nesse dominio é a impresa, pois a interdependéncia das palavras ¢ das figuras faz dela o instrumento melhor estruturado e mais complexo. Ruscelli havia motiva- do 0 mesmo juizo de maneira diferente: a impresa, dizia cle, coroa a linguagem da imitagio, prendida ou “na- tural em poténcia”. A propria evolugio das formas simb6licas de expressio (isto é, das imprese em sentido amplo) mostra, segundo Taegio®, um esforgo semelhante cabala; depois 1 seus olhos, a impresa 6, com ata ou “natural em ato”, com a linguagem articulad: no sentido da perfeigio: houve inicialmente as palavras-simbolos, as figuras-simbolos ou hierdglifos; em seguida, a associagdo dos dois meios, mas ainda inepta ou “supérflua” (tautolégica); finalmente a impresa atual, que ¢ perfeita. Assim, 0 topo da escala no é ocupado pela expresso mais cmoda, mais sim- ples ou mais maledvel, mas pela mais complexa e mais ricamente organizada. Hi aqui uma notivel valorizagio da via indireta e do véu que ao mesmo tempo escon- de ¢ revela; podemos encontré-la, aprofundada, em Francesco Caburacci, que dis- Lingue trés atos expressivos: significar, por meios convencionais, representar ou imitar, criando um duplo do objeto, € mostrar, ato proprio da expressio discursiva ou figurada, em que o conceito é manifesto indiretamente por meio de um outro 16. Op. cit. p.21 17. G.Ruscelli, Discurso... p. 124 18. Giordano Bruno. De compositione imaginum, Opera latina. 3. pp. 106-111 (Edi. Naz. 19. G.A. Palazzi, op. cit pp. 4-5. 20. S. Bargagli. ap. cit, p. 14 21. Op. cit. F.6res. A FORMA E O INTELIGIVEL conceito. Como Vico faria mais tarde, Caburacci assimila aqui o discurso & expres- sio figurada c especifica claramente que a porsia nao “imita”, mas “mostra”, pois, assim como a impresa, que ndo deve ser confundida com uma representagdo imita- tiva de um objeto qualquer, ela 6 essencialmente figura? Taegio parece ir na mesma diregdo, pois vé na impresa “a imagem de um con- to expresso, de modo convenientemente breve, por palavras ou por figuras ou por ambas as coisas". A definigdo se refere, é claro, a impresa no sentido amplo, ou scja, a toda expresso simbélica; e seu tema nio € 0 conceito, mas a “imagem de um conceito” — imagem que, de acordo com o contexto, é anterior ¢ estranha a di- ferenca entre a expressao verbal e plistica. Entretanto, ela no é idéntica ao pensa- mento inicial que era preciso traduzir, designada habitualmente pelos tratadistas como intentione dell"autore € chamada aqui, por Taegio, de conceito; portanto a “imagem” desse conceito s6 poder ser uma primeira conformagio, ainda nao ex- pressa, um revestimento pensado do pensamento ~ esta significagao indireta de que fala Caburacci, a expresso de um conceito por meio de outro, em sintese, a meta fora. A “figura” de estilo €, com efcito, uma imagem pensada que substitui um con= ceito; alids, M.Praz mostrou como a imagem, nas imprese, quase sempre se reduz.& ilustragdo de uma metifora, A metéfora tomada ao pé da letra e desenvolvida ponto por ponto é 0 meio literdrio favorito do Seiscentismo engenhoso ¢ constitui tam- bém o mecanismo evidente da imensa maioria das hipérboles, como nas variagdes banais sobre os “rios” de lagrimas e 0 “vento” dos suspiros. Em outras palavras, a passagem da “figura” de estilo & representagao quase visual e a exploragio, pelo discurso, da “imagem” assim obtida constituem um dos procedimentos essenciais do conceptismo; 0 conceptismo é possivel esta ligado estreitamente a impresa porque a metéfora é, na origem, um revestimento do pensamento antes da expres so, imagem ao mesmo tempo discursiva e capaz de representagao visual, ou, me- Ihor, anterior & distingio dos dois meios que a exprimem. c " A Imagem Imeligivel As indicagdes de Caburacci e de Taegio mostram que o interesse filoséfico da impresa como forma de expressio estd na relagdo que ela supde entre idéia e ia € ou pode ser imagem? imagem: uma imagem pode ser universal? A i 2. Op. cit. p. SS. 23. Op.cit. St na A TEORIA DA EXPRESSAO FIGURADA NOS TRATADOS ITALIANOS SOBRE AS IMPRESE Essas questdes, no século XVI, eram de grande atualidade. A teoria da arte tinha como primeiro postulado o cardter universal do disegno ¢ a possibilidade de tomar a Idéia visivel. Para 0s l6gicos, a t6pica, que se tornara disciplina dominante, desenvolvia suas implicagdes “espaciais” nas artes inveniendi, transformadas em “teatros” de figuras simbolicas (Camillo, Bruno), ¢ no impulso da mnemotécnica, Na tcoria da alma, enfim, um papel capital foi atribuido, sobretudo por Bruno, i imaginagao, essa faculdade central & qual se perguntava ha doze séculos qual era 0 segredo da transformagiio das imagens recebidas pelos sentidos em nogdes mani- puladas pelo intelecto. Para a dificuldade de conceber a unio, supostamente realizada pela impresa, entre 0 visivel c 0 inteligivel, os fildsofos dos séculos XIII ¢ XIV haviam encontra- do, seniio uma solugdo, ao menos um enquadramento: a species intelligibilis, que intercalavam, na génese da idéia abstrata, entre a imagem mental ¢ 0 universal. Mas © que fizeram foi apenas deslocar a dificuldade: retomaram fielmente, a respeito dessa “imagem”, as discussdes ji conhecidas ¢ os argumentos trocados entre nomi- nalistas, empiristas (Roger Bacon), conceptualistas (lomas de Aquino) e “platonis- tas” (Mayron). No caso particular da impresa, e adificuldade suplementar de que o“con- ceito” a exprimir nao era uma nogdo, mas um juizo: metéfora, analogia ou compa- ragdo. Apenas um l6gico escoldstico, Pierre d’ Ailly, havia afirmado, como fizeram mais tarde alguns neokantianos, que 0 jufzo enquanto operagio do intelecto, pro- mples © sere ‘ofismas diffe jo composto de termos; essa distingd is que entio eram chamados positio mentalis, era um ato viu-lhe inclusive para explicar os insolubilia ¢ que se tornaram, apés sua redescoberta, os “paradoxos de Russell”. Sem citar e aparentemente sem conhecer Pierre d'Ailly, também os tedricos da im- presa tentaram, como veremos, atenuar 0 carter supostamente composto do juizo mental. Na realidade, nfo era na légica ¢ na teoria do conhecimento que era preciso buscar a explicagdo das imagens-idéias, mas, como ¢ evidente, numa teoria do sim- bolo. A idéia a ser mantida era aquela esbogada por Caburacci: nenhum sentido universal pode ser expresso a ndo ser por uma “figura” que o vela ao reveli-lo. Essa intuigfo no foi estranha 4 Idade Média, mas, como freq) na antropologia filos6tica, foi nas projegdes animistas que se encontrou inicial- mente aquilo que se precisava descobrir no homem. Roger Bacon indicou que toda agdo “natural”, isto €, toda ago de Deus, é uma manifestago, uma eriagZo de ima- gens: Transumitur hoc nomen (species) ad designandum primum effectum cuiusli- bet agentis naturaliter. O que age 6, em todo lugar, uma mesma forga cujos produtos sao sempre formas, reflexos, figuras, “sombras” falantes: Virrus haber mulra no- entemente ocorre ns A FORMA E 0 INTELIGIVEL mina, vocatur enim simititudo agentis et imago et species et idolum (= imagem na alma) et simulacrum et phantasmna et forma et intentio (= determinagio légica) et passio et umbra philosophorum (= nogio, imagem mental)™. E quase exa © que dir Giordano Bruno: Idea, adsimulatio, configuratio, designatio, notatio est universum Dei, naturae et rationis opus, et penes istorum analogiam est ut di« vinam actionem admirabiliter natura referat, naturae subinde operationem (qua si et altiora praetentans) aemuletur ingenium’s. Esses textos si0 apenas a amplificagiio metafisica ~ magnifica, € verdade ~ ¢ a aplicagdo & “linguagem de Deus” do que Caburacci, Taegio e, em certo sentido, Vico afirmam a propésito da expresstio humana, a respeito da “figura” como fonte comum do discurso ¢ da imagem. mente Representar uma idéia por meio de uma figura que “participa” da univer lidade ¢ da idealidade de seu objeto é como se sabe, a fungao prépria do simbolo, como a conceberam os neoplaténicos da Renascenga: signo magico ou expressi- vo, encanto evocador, encamagio ou reflexo do Arquétipo, presenga atenuada do inteligivel, “sombra” ou preparagio da intuigdo mistica. A essa riqueza do plato- nismo ¢ das correntes que o invocam, 0 aristotelismo s6 podia opor, segundo se diz, 0 signo convencional ou a alegoria como simples etiqueta e “definigao ilus- trada”, Mas Aristételes na realidade oferecia, por sua concepgio da relagio entre © pensamento e a expressio, entre a idéia e sua realizagdo na obra, um outro meio de aprofundar 0 sentido das imagens de idéias. Pode-se considerd-las sob d pectos, cuja complementaridade é bem caracterfstica do peripatetismo: a expres sio imita as articulagdes do pensamento, que sio as da coi logica das imprese: por outro lado, a invengao ¢ a representagao recriam 0 concei- to na matéria sensivel, ¢ esse proceso funda nfio uma estética, mas uma rekhine: uma cigncia da impresa-arte. Propomo-nos mostrar como a tradigdo de Aristételes foi aplicada a essas duas tarefas, no sem fornecer, alids, belfssimas provas de vi- talidade. as- 24. Opus mains ed, Jobb, Londres, 1733. p. 388; citado por Prantl, Geseh. d. Logik im Abendlande, 4 vols. Leipzig, 1855-1870, 1.1, p. 127.1, S76 25. De compositione imaginum, ctado. pp. 89-90. Ver thd. pp. 101-102 sobre as forma, simulacra signa ‘ula que si0 a0 mesmo tempo os “veiculos la ago divina, Elas produzem tanto os efeitos nnaturais quanto 0 conhecimento humano sensivel ¢ racional. as “eadcias" 126 ‘A TEORIA DA EXPRESSAO FIGURADA NOS TRATADOS ITALIANOS SOBRE AS IMPRE: mu Impresa € Pensamento Para os ldgicos da impresa, 0 que intcressa primeiramente é a possibilidade de considerar 0 concetto inicial uma nogo abstratra. Essa identificagio nao é evi- dente, pois 0 concetto explicito & mais um juézo do que um coneeito, Mas insiste-se em aproximé-los; ¢ para isso ¢ preciso antes distinguir entre a idéia da impresa ¢ 0 “conceito interior”, alégico, dos outros artistas. Ao menos essa é opiniio de Luca Contile; a impresa, para ele, mais que uma arte, é uma pois a inven- gio é um produto do pensamento, enquanto a imitagio (no sentido amplo: “imita- ‘so de objetos ou de outrem”) € 0 instrumento da invengao, ¢ a arte, finalmente, 0 ato da execugio, Esté bem claro que, concebida dessa maneira, a imi pressio do pensamento, e a arte sua realizagio duravel; Contile acrescenta que es- ses trés termos formam uma cadeia, sendo cada um deles 0 instrumento ou o auxiliar do precedente, Mas, assim aproximado do pensamento, 0 concerto de impresa s6 aparentemente se distancia da arte; bastard dar @ expressiio os caracteres préprios do artificio para restabelecer 0 equilibrio ~¢ foi o que fe7, entre outros, 0 proprio Contile, como veremos adiante. Esse “pensamento” é, tanto quanto possivel, reduzido & unidade de um ato simples da inteligéncia, para melhor assemelhar-se ao conceito. E apenas uma qu Go de astticia verbal: batiza-se de concetto ou pensiero 0 “firme propésito” a ex- primir; considera-se 0 desenho expressiio desse “concetto” ¢ faz-se da comparagio ou analogia uma relagdo entre os dois termos. O procedimento é logicamente ata- cével, pois niio se pode denominar uma mesma relagZo ora expressiio, ora compa- ragdo; mas obtém-se assim — e é 0 que importa ~ um concerto inicial simples. A impresa, diz Girolamo Bargagli, € una mutola comparatione dello stato, e del pen- siero di colui che la porlta, con la cosa nella impresa contenuta’, Ercole Tasso proibe © emprego da alegoria no desenho da impresa, alegando que assim se introduzi- riam significagdes secundarias numa obra que € ttta per stessa figura. Sem negar que a impresa € juizo, faz-se, dessa forma, que ela retorne ao pensamento-imagem tinico; Capaccio especifica que ela ¢ um ritratto del concetto che col penello dell’imaginativa (V'autore) ha lineato in quell'espressione, e parturendo una cosa simile a se, la manda fuori in quella demonstratione, non matematica, ma ombreg- giata di spirito del suo pensiero™. © proprio pensamento €, eto, uma imagem, 26. Op. cit. P26 27. Op. cit. p. 194. 28. Op. cit, 23, “7 A FORMA E 0 INTELIGIVEL. que copia a imagem da impresa; a sentenga, para Capaccio, nem é indispensdivel - pode servir para especificar, particularizar, por em relevo esse ou aquele aspecto; em resumo, ela é a “cor” que se acrescenta a esse desenho™. Em Scipione Bargagli, © equivoco entre expressiio ¢ comparacdo chega ao maximo: l"impresa é espres- sion di singolar concetto per via di similitudine con figura d’alcuna cosa naturale (fuor della spezie dell‘huomo) ovvero artifiziale, da brevi et acute parole necessa- riamente accompagnata. E. para evitar 0 pleonasmo que Bargagli exclui do dese- nho a figura humana: 0 homem ja esta implicado no concetto inicial daquilo que se chama sua impresa = scu “empreendimento™. Pela mesma razao, a sentenga nao deve conter 0 nome de um objeto figurado no desenho; € seria bom que ela dispensasse um verbo num modo pessoal: deve ser, de algum modo, substantivada, para ser 0 termo de uma comparagio, € nio a expressiio auténoma de uma idéia, Vé-se que tudo 0 que € relago ou analogia se encontra relegado 4 ordem instrumental ¢ su- bordinado a um concerto que nao ¢ obrigatoriamente uma nogio simples, mas cujo eventual cardter composto no tem nenhum papel positivo. padre Horatio Montalto publicou, com o pseudénimo Cesare Cotta, um tra- tado que parece dirigido contra 0 de Ercole Tasso™ e que deve ter sido um exemplo perfeito, mas bem pedante, de aristotelismo aplicado. Comega estabelecendo que a facultas, quae tradit rationem condendi Impresiam, nao € parte de nenhuma outra arte, mas utiliza pintura, poesia (métrica), hist6ria, retérica ~ 6, portanto, uma arte autGnoma, pertencente, como a arte dos emblemas ¢ algumas outras, ao grupo das facultates, quae leges tradunt constituendi peculiaria Symbola (Ass. 1V). Os ele mentos da impresa sio: figura extranea (desenho), consilium mentis (concetto) e, como elo entre os dois, similitudo (Ass. V). O concetto é a idgia a ser expressa; a figura exterior, segundo termo da comparagao, ¢ a “matéria” “enformada” pelo concetto (Ass, XIX). Esse composto constitui a impresa quatenus (habet) vim ap- tam ad exprimendum quidquid materia potest esse Impresiae (Ass. VII) ~ matéria que 6, bem entendido, 0 “firme propésito” ou 0 estado de alma do portador. A sen tenga é facultativa, Em linhas gerais, esse esquema ¢ 0 de Scipione Bargagli, em de Aristételes, que 86 serve para batizar de “lago entre a matéria ¢ a forma” a semethanga necesséria entre © concer Jo € sua representacio, Mais uma vez, a metifora ou a comparagao € deixada fora do conceito; nao est nele, nem na figura, mas entre os dois: 0 consilium mentis aparece entio, teoricamente, como um elemento simples, préximo do universal- que Montalto insiste em introduzir a metafisi 29, Mhid.. f T34-74¥. 30. A obra. que deve datar de 161: tos hactante sign ou1613, perdeu-se: mas o Risposte de Ercole Tasso fornecem dela excer- Rs A TEORIA DA EXPRESSAO FIGURADA NOS TRATADOS ITALJANOS SOBRE AS IMPRESE imagem, Curiosamente, retorna-se assim, em todos es talis de Pierre d’ Ailly, ato simples do intelecto. ies autores, A propositio men- Nao importa o que se faga, permanece que a coisa a exprimir, 0 “propésito”, um pensamento, um juizo, ¢ freqiientemente um jufzo sobre si mesmo. A impresa , para enuncié-lo, certas propriedades das coisas: [le imprese] furono ritro- vate per un certo occulto discoprimento nella similitudine c’hanno le cose con i pen- sieri e con i disegni honorati dell’huomo, escrevia Contile™; cla é, dizia Chiocco, un instromento dell’intelletto, composto di Figure e di Parole, rappresentanti me- taforicamente l'interno concetto dell'accademico™. Portanto & como “instrumen- to” de uma expresso do pensamento - expressio indircta e metaférica, € verdade ~ que se deve consideré-la. Apesar de sua forma conereta, ela é de ordem I6gica. Isso explica a natureza dos juizos criticos sobre as imprese: nunca se questiona a qualidade ou a “felicidade” da expressiio, mas pergunta-se se elas esto de acor- do com as regras, Basta & impresa, assim como ao silogismo, corresponder exata- mente & sua definigao e respeitar todas as condigdes materiais e sobretudo form: requeridas. Um verdadciro silogismo & necessariamente um silogismo verdade uma verdadeira impresa 6 necessariamente “perfeita”. A associagaio com a légica, ou antes com os Analiticos, é levada longe demais ‘em Farra: l'impresa @ operatione dell’intelletto, 0 seconda (jutzo) 0 ultima (rac cinio), dimostrata con parole brevi, e con figure sole, o necessarie™. A representa- im eseudo vazi giio de uma canga, com a sentenga soave, 6 uma impresa jutes com a sentenga non est mortale quod opto, € um entimema. Caburacci, mais siste- mitico, estende a analogia a0 Organon quase inteiro; nas imprese-silogismos, a maior € sempre um lugar-comum: portanto cabe & Tépica intervir; outras imprese, que servem de exempla, dependem naturalmente da Ret6rica; € quanto a terceira espé- cie, as imprese que so apenas imagens tém a vantagem de ser tratadas como juf 208, com 0 atributo expresso pela sentenga™, Desde seu infcio, a Iégica humanista foi caracterizada por um movimento em favor da Tépica contra os Analiticos, portanto em favor da Igica-arte contra a 16- gica-ciéncia™. E para a tépica que tende um bom mimero de tratados: 0 de Torqua- 31. Op. cit, 2. 32. Op. cit, p.376. 33. Op. cit, P2746. 34. Op. cit, p. 12s. 35. A conviegto difundida de que existe af wma reagdo contra 0 “formaisimo” das escola da tdade Média pode acarretar algunas reservas; pois, num certo sentido, a légica humanista apenas prolonga tend& Re A FORMA £ 0 INTELIGIVEL, to Tasso ¢ o de Capaccio sao, em grande parte, inventirins da Criagia, cam a lista das imprese que se pode tirar de cada classe de objetos; Ammirato, mais fiel a0 espirito de Aristételes ~ e, convém dizer, ao da impresa -, procede de acordo com as categorias do semelhante, do mais ou do menos, do contrério; Caburacci, cujo texto sobre esse ponto é incompleto (a edigio de 1580 é péstuma), a0 menos defen- deu longamente a possibilidade a necessidade de uma t6pica das imprese, contra aqueles que dio regras sem antes haver ensinado a “invengo” (os partidérios, de algum modo, de uma Analitica) e também contra aqueles que acreditam que a in- vengio nao permite regras, sendo ventura di capriccioso cervello, ou contra aque- Jes que consideram a t6pica classica dos oradores ¢ dos dialéticos suficiente para todos os casos”, A Retérica, anexo do Organon, também foi considerada modelo da arte das imprese; pois essa arte, dizia-se, tem a finalidade de “persuadir”, inflamar os cora- ges para os empreendimentos nobres. Tais idgias, levadas a inverossimeis exage- ros, tomam-se mais freqiientes @ medida que se aproxima o século XVII; depois de Torquato Tasso, que, como muitos outros, ainda sonhava apenas com a “dignida- de” ou a nobreza dos sentimentos expressos, Chiocco se langava em fantasias pe- dagégicas e morais. Mas 0 Gnico a extrair daf conseqiiéncias precisas para a teoria das imprese foi Caburacei”. Vv A Impresa como Obra de Arte O conceito inicial, considerado negativamente, enquanto diverso da intengao ou da palavra que o exprimem, parece-nos permit, a rigor, uma lgica da impresa; mas 08 te6ricos do século XVI viam-no de bom grado também em seu aspecto po- sitivo, enquanto discurso e imagem concomitantes. Essa uniao nada tinha de cho- cante numa época em que o ut pictura poesis dava lugar a desenvolvimentos tio surpreendentes™: a literatura no era “semelhante & pintura”, mas, para Lodovico cas medievais, neste caso: as artes inveniendi ja eram “anes” e, pode-se dizer, também tépicas; a die fusto de Lillio desde 0 final do século XV & significativa a esse respeito. A principal e 6gica medieval, a teoria das suppesitiones, em por objeto nfo as formas do pensament ‘do mais “concreto” que em Aristételes, a aplicagio do pensamento ao real 36. Op. cit.p. 12s. 37. Op. cit, p. 26: aassimilagto de alguns ipos de imprese aos exempla dos oradores: a assimilagao do “or- rnamento” das imprese ao dos discursos 38, R.W. Lee, "Ut pietura poesis”, Art Bulletin, XXI, 1940, pp. 197-208. 130 A TEORIA DA EXPRESSAO FIGURADA NOS TRATADOS ITALIANOS SOBRE AS IMPRESE. Dolce ou para Michelangelo Biondo, era um género particular de pintura; inversa~ mente, toda uma estética das artes plisticas baseava-se no axioma de que pintar é discorrer, expressar “invengdes” e “conceitos”. Os tratados de pintura, citando a impresa ao lado dos hieréglifos como prova de que a pintura é poesia, atribuem-se conscientemente 0 dominio do universal; Zucearo, com sua teoria do disegno in terno™, fala do pensamento acreditando falar da arte. Mas tudo muda quando se trata do “prazer” propiciado pela obra artistica: a partir de entao, o interesse se ori- enta na diregdo do procedimento do espitito que nela se exprime. Assim, Cesare Ripa, estabelecendo que 0 poeta parte do “acidente inteligivel” para sugerir 0 sen sivel e que 0 pintor, inversamente, parte do sensivel para chegar as significagdes apreendidas pelo espitito, conclui: “e o prazer que se obtém com uma ou outra des- sas profissdes nada mais é que o fato de que, pela forga da arte ¢ enganando, por assim dizer, a natureza, uma nos faz. compreender com os sentidos, ¢ a outra, sentir com 0 intelecto™’, Se, desde o fim do século XVI. a portante e o mais difundido dos exercicios da “faculdade simbdlica”, é porque, por definigdo, cla € o ato de manifestagdo de um espirito, mais do que simbolo a deci- frar. A beleza da obra € a do ingegno ~ do engenho; o proprio termo concerto, de- pois de haver designado a idgia inicial, chega a significar, no conceptismo, a forma astuciosa da expressio. Todo o gosto caracteristico da arte-eseritura: os programas, 5 hierdglifos, as festas ~ esse gosto no qual humanistas, fildsofos, “antiqurios” te6logos se irmanam & multidio dos amadores ~ revela uma tendéncia a remontar para além da arte e, freqiientemente ao lado dela, ao ingegno criador. E 0 espirito fala 20 espirito: os s chael Majerus*!, sfo os mais altos € os mais raros, ideogue intellectu comprehendenda prius, quam sensu; conseqiien- temente, ele os manifestou a todos os sentidos a0 mesmo tempo, exprimindo cada segredo em verso, em prosa, pela imagem e pela musica: assim a alma pode ultra- passar todos esses meios de expresso para atingir o conceito puro. Mas as imprese € os emblemas que eram metiforas ilustradas, ¢ as metaforas petrarquistas que eram emblemas, se siio logicamente possiveis apenas porque o pensamento é também imagem, sio, aos olhos do puiblico, artisticamente validos porque a expressio joga nos dois quadros ¢ porque esse jogo constitui um convite expresso para encontrar, além da obra, 0 concetto ambfguo que a criou. impresa é de longe o mais im- edos da alquimia, dizia Mi 39, Liideu de’ pinori, sculto’ ed architeni, 60: €4, consultada: Roma, 1748, 40. Keonologia, ed, Siena, 1613, 1, 155,5.v. Piura 41, Atalanta fugiens, Oppenheim, 1618, 214p. Ver o pretécio. 42, Petrarchism is realy sort of picture language: Fr Yates, “The emblematic conceit in Giordano Bruno's De li eroici furor", Journal of the Courtauld and Warburg Inst, Vi, 1943, p. 101 Bt A FORMA £ 0 INTELIGIVEL, Falar da impresa como arte - quasi poesia, dizia Scipione Bargagli*® — signi fica entdo, antes de tudo, considerd-la um produto do engenho, uma obra do espiti- to, Ela nao é “imitagio” propriamente dita: Bargagli é formal a esse respeito, assim como Contile, pelo que vimos. O livro aristotélico em que ele se inspira para tratar a impresa como arte nao € a Poética, mas a Etica a Nicémaco ¢ as passagens da Fisica ¢ da Metafisica que descrevem a estrutura do artificio, a tekhne: ¢o, segundo regras precisas, de uma idéia concebida previamente. Essa idéia a “realizar” ou a exprimir, Bargagli a encontra na “semelhanga”: E ingegnosa cosa veramente la similitudine ¢ degna di lode in chi trovar la sa; da intelletio ella nas- cendo (!), che, 0 per sua acutecza e bonta, o per certa scienza e longa sperienza che tenga delle cose, riconosce in quelle per natura fra loro diverse, le simiglianze € conformira loro. Essa semelhanga ja havia sido reconhecida, no momento em que Bargagli escrevia, pelo que cla era: a fonte da meraviglia, a ponta conceptista, Foi em Népoles, naturalmente, que ela se definiu: Deve l'impresa eccitare la mera- viglia nelle persone dotte; la quale non nasce da l'oscurita delle parole, né dalla recondita natura delle cose, ma dall'accoppiamento, e misto dell'una, e Valtra, per cagione di che vien poscia constituito um terzo, de natura da lor diverso, produ- cente essa meraviglia’’. A recomendagio de construir a sentenga numa lingua es- trangeira, perché difficilmente si cava stupore dalle cose communi, aqui & quase supérflua para nos fazer reconhecer a agudeza, 0 wit, o espirito conceptista, Basta- ria substituir a teoria aristotélica da poesia por sua teoria geral da arte para passar de Trissino ao cavaleiro Marino, a realiza- Praticamente, reconhece-se a concepgo “artistica” da impresa no papel atri- bufdo & expressiio como coisa; para 0 “Iégico” puro, como Torquato Tasso, a figura € a sentenga exprimem igualmente bem concetto inicial e podem ter duplo em- prego, como signos paralelos de uma mesma idéia, Para um “artista”, como Ercole Tasso, 0 sentido da impresa deve derivar apenas da relagGo miitua sentenga-figura. Scipione Ammirato ou Montalto concebem essa relago como uma “semelhanga”; segundo Capaccio, a sentenga deve determinar, pOr em relevo, particularizar, “co- lorir” o aspecto da figura referente & impresa; Farra e Caburacci descobrem, entre figura ¢ sentenga, a relagio entre sujeito e atributo, ou entre maior € menor num silogismo; Ercole Tasso apega-se, mais simplesmente, & complementaridade. 43. Op. cit. p38, 44, Op. cit.v.43. 45. Ammirato, segundo Ere. Tasso, p. 127. 132 ‘A TEORIA DA EXPRESSAO FIGURADA NOS TRATADOS ITALIANOS SOBRE AS IMPRESE, Oessencial em tudo isso é a autonomia da impresa — expressiio em relagiio ao concetto inicial. Foi uma autonomia adquirida lentamente. A medida que “a arte” se complicava, a impresa demandava um nimero maior de qualidades técnicas; em vez de testemunhar sobre 0 portador e seu temperamento, ela testemunha sobre 0 autor e seu ingegno. E definida como una mistura mistica di pitture e parole®, un nodo di parole e di cose", un componimento di figure e di moo", acrescentando- se, 6 claro, que essa “composicao" esconde ¢ revela uma intengiio de nosso espi t0.A definigio-tipo dessa categoria € a de Ercole Tasso: Impresa é Simbolo constante necessariamente di Figura naturale (tolrane U’humana semplicemente considera- 1a) overo artificiale, naturalmente prese, et di Parole proprie, o semplicemente trans- late: dalle quali Figura e Parole tra se disgiunte, nulla inferiscasi, ma insieme combinate, esprimasi non proprieta alcuna d'essa figura, ma bene alcun nostro ins- tante affetto, 0 aitione, o proponimento®. F. significativo que Tasso tenha recheado sua definigZo com precisdes diversas, que constituem na realidade mais regras (0 desenho sé deve comportar figuras humanas se se tratar de heréis histéricos ou miticos, deuses etc.; os outros objetos representados devem ser considerados no sentido proprio, no metaférico; as palavras da sentenga s6 podem ser considera- das no sentido figurado se se tratar de metéforas correntes etc.): como para as obras de arte, as regras silo constitutivas da esséncia. A despersonalizagio da impresa no anula a obrigago de se prender ao par- ticular; Ercole Tasso insiste varias vezes nesse ponto, assinalando que uma impresa € tanto melhor quanto melhor convém ao cardter ¢ a situagio particular do porta- dor, ¢ ele niio é 0 tinico a ter essa opinido®, Mas 6, na realidade, uma conseqiiéncia direta do partido “artistico” ¢ engenhoso, pois a arte, por definigao, concerne ao particular, e a obrigago de conformar-se a ele é uma dificuldade “técnica” a mais, que torna mais brithante a performance. As especulagdes sobre a alma ¢ sobre 0 corpo da impresa concordam com a nova tendéncia, A identificagao simples, por Giovio, desses dois elementos da divi- sa com a figura ¢ a sentenga raramente é mantida; ainda ¢ encontrada em Ammirato ou Palazzi. Mas Ruscelli ji protesta: seria o mesmo que chamar de alma, diz ele, as 46, Como Amigio, Rime e Inprese dei Accademici Occult di Brescia. 47. Ammirato, op. cit. p10. 48. Comtile, op. cit. 31. 49. Op.cit.p.24. ‘50, Erc. Tasso, pp. $9, 96, 360, 363 etc.; Caburacei,p. 29: Palazz.p. 101, Lanci da Fano. itando uma definigo de Francesco 13 A FORMA E 0 INTELIGIVEL, palavras de uma canco ou o tema de um quadro — sontilerze da risa, dignas de um Jfilosofo bestiale*. Essa sutileza ridicula foi, entretanto, muito corrente: Ficino a havia introduzido a propésito da misica®, e os exemplos nos tratados de pintura sfio bas- tante numerosos**, Ruscelli propde, alias, sensatamente, que se denomine anima - se for absolutamente necessério que se encontre uma ~ a intengo do portador, ¢ no a sentenga que acompanha a figura, Essa nova idéia, seguida, entre outros, pelo Materiale Intronato™, abriu cami- nho para estranhas distingdes. Se a intengdo do autor é a alma eo desenho, 0 corpo, asentenga —cuja fungao ¢ justamente relacionar a figura a intengao, criar o elo entre elas (como, por exemplo, quando a borboleta que voa em diregdo & chama é acom- panhada das palavras: sd bene) — sera o “espirito animal” dos médicos, o spiritus. Essa foi a opinidio de Capaccio, ponto de partida, para Ercole Tasso, de uma outra complicagao: ele distingue 0 concetto (a “comparagio” ou 0 simbolo inicial) da in- tengo (0 “sentimento” do portador) ¢ estabelece uma cadeia intengo-concetto-sen- tenga-figura, em que a analogia organicista vale para os trés tiltimos termos. Assi v conceuy as uterine: la U CoNjunty sentenya-figura, sendo a s didrio, “forma” do desenho*; quanto a intengZo, ora parece ser a forma primeira, ora a matéria do conjunto, Cada autor, ou quase, acrescentava sua pequena observagao original. Contile via na sentenga a alma “particular” da figura, pois a sentenga nao esta “inteira em cada ponto” do objeto representado, mas ressalta somente um aspecto dele*”. Chiocco identificava as palavras com a alma sensitiva, porque elas conferem & impresa o ser substancial, a individualidade e a faculdade de “operar”; mas essa alma sensitiva, toma-se racional se se abstrai o corpo: a sentenga, considerada em si mesma, con- tém um sentido geral*, Farra, enfim, desenvolve com cuidado todo o sistema das analogias: ao intelecto (mens) corresponde a intengao primeira do autor; & alma ra- ional, a sentenga; ao espirito vital, a relagao sentenga-figura; a qualidade (ao “tem- peramento”) do corpo, a significagio imediata da figura; € ao corpo material, 0 desenho material. Farra consegue até deduzir dessa dupla escala algumas das re- gras conhecidas da impresa®, 1yat © Spiritus 21; Opera, Basiléia, 1576, p. 563. 53. Como Paleott, Discorso intorno alle imagini sucre e profane, Bolonha, 1582, f 634. 54. Op. cit, p.190. 55. Op. cit, #71r. 56. Op. cit, p83. 57. Op. cit, £29V-30r 58. Como Ercole Tass0, op. ci, pp. 393-394. 59. Op. cit, P2714. ne A TEORIA DA EXPRESSAO FIGURADA NOS TRATADOS ITALIANOS SOBRE AS IMPRESE v A Teoria Geral da Expresso Vé-se que para os autores de imprese nio existe, afinal, diferenga essencial entre a arte ¢ a expressio de um pensamento; trata-se, nos dois casos, de encarnar um conceito. O que as distingue é mais uma questo de tom do que de espfrito: seja © conceito abstragdo pura ou pensamento-imagem, ele é sempre objeto de uma I6- gica; e para fazer dessa légica uma arte basta apoiar-se no carder estruturado, “ar- quitetonico”, do meio de expressao ¢ na engenhosidade do procedimento. A época era favordvel, de um lado, aos sistemas em que a l6gica surgia como uma arte ¢, sobretudo, as artes inveniendi, t6pica tra que assimilavam a arte & expres de que, no que concerne a arte da impresa, pode-se separar sumariamente os “J6gicos”, que insistem na analogia com o Organon e destacam as semelhangas entre © concetto ¢ a apreensio simples de um universal, ¢ os “artistas”, que elaboram igura, detalham as correspondéncias da iagéticas; de outro lado, as teorias da pi io direta do pensamento ou do saber. E verda- regras, estabelecem interagées sentenga- impresa com 0 composto humano. Pode-se até constatar, cronologicamente, certa evolugio da atitude logicista para a atitude artistica; mas permanece que esses dois pontos de vista ni so absolutamente incompative! E que, no fundo, toda atividade do espirito, Iégica ou artistica, é inicialmente, enquanto expresso, metafora ~ pensamento-imagem, ou, no duplo sentido do ter- mo, concerto; ¢ jf que a arte consiste, como vimos, em chegar, ultrapassando-se 0 objeto proposto, ao ato do engenho que o criou, toda arte, assim como todo pensa- mento, reduz-se, enfim, ’ metafora. A afirmagio freqiiente de que “aquele que pos- sui uma arte a fundo, possui todas elas” significa exatamente que no hi, no essencial, sendo essa tinica atividade do espirito. vi A Intuigdéo Intelectual Esse pano-de-fundo filoséfico parece bem distante do aristotclismo que pre~ sumivelmente explicava a teoria da impresa: o espitito como criador de imagens- simbolos é aos nossos olhos, antes de tudo, uma idéia do neoplatanismo renascente. Foi do neoplatonismo que partiu E, Gombrich para estudar, no exemplo de um dis- curso de Giarda (1626), a estrutura da alegoria conceptista. Mas 0 valor da alego- ‘cones symbolicae". Journ, ofthe Warb, and Court, Inst. X1, 1948, pp. 162-192. 0 jesuita Christoforo 60. ribs cupiendis, si mode quisyue ad id pruccipue se acconnudet, cui ex praecipae subditus. O capitulo XXIII, pp. 366-68, tem por titulo: “Ut propere vivas agasque, in primis cognosce ingeniuin, sidus, geniumn twurn, et locum eisdem convenientem: hic habita, profesionem sequere naturale”. Cf também o capitulo seguinte: “Qua raione literati cognoscantingenium suum, sequantugue victum spiritui consentaneutn”. No mesino sentido, Comm, Agrippa, 1,67, p. 156, citado adiante,n. $0. 47, Frauato, V1, 34, pp. 481-486, 156 A FORMA E 0 INTELIGIVEL. sta, OS neo Contra a anarquia pura que marcava o remate da tcoria subjeti plat6nicos tentavam garantir-se mediante a atribuigo as regras de um papel a0 me- nos subordinado; sua justificagio encontra-se nos prineipios que presidiram 4 criagio do universo, ordo, modus e specie: se & de “prepara- ges”. Esse termo essencialmente magico designava os ritos ow as figuras que tor- navam um orante ou um objeto capazes de captar o influxo de um planeta ou de um espirito™ ele foi aplicado por Ficino a ordo, modus e species como que para opor- se & concepgio tradicional que deles fizera os prinefpios da beleza natural e, com Alberti, da beleza artistica®’. O capitulo em que Vasari descreve 0 estilo perfeito dos artistas desde Leonardo ¢ devedor, sem diivida inconscientemente, dessa concep- do das relagdes entre a regra-preparagio e 0 espitito que sobrevém, pois os tragos distimtivos da nova arte sio, de acordo com ele, buona regola, miglior ordine, reita misura, disegno perfetto ¢ grazia divina. Reconhecem-se em ordine, misura ¢ di- segno 0s clissicos ordo, modus ¢ species; a grazia divina ~ que 0 contexto al identifica com a maniera ~ ¢ entao apenas rada por tudo isso". O préprio Lomazzo, que se contentara em co} de Ficino, desta vez estd recuado em relagio & aplicagio critica de Vasari. mas sua importincia limi atese geral i O Trocadilho Plastico A tomada de consciéncia, ocorrida por volta de 1600, das diversas possibili- dades da relagio entre a forma eo sentido de que era portadora foi acompanhada de um fendmeno paralelo que se refere, por assim dizer, a relagio dos objetos com . Os historiadores da arte observaram, desde Pinder, que, no maneirismo, a organizagao de um quadro em superficie contradiz. deliberadamente a ilusdo de profundidade e dobra os contornos, com ostensiva arbitrariedade, num jogo de curvas planas; neutraliza-se, por exemplo, um escorgo violento, prolongan- 48. Ver, por ex. Ficino, De vita cvelitus compara tt, Opera, p. 49. Convita, V, 6, passagem copiada por Lomazz0, ide, XXVI. 50. De re aed 1. Eles perdem todo 0 seu cariter quantitativo num enunciado de Cométio Agrippa, 1.67, p. 156, curioso porque, estrtamente limitado aos ritwais mégicos, reine a respeito deles virios dos temas ‘que. oitenta anos mais tarde, tomar-se-iam importantes conquistas da teora da arte: Et est eneralis rey Jain istis, quod onmis annus qui est magis excelfens in suo desiderio et affect ips. effcitsibi res huius- ‘modi magis apts. efficaces ad id quod appetit, Oporterigitur quemeumgue volentem operari in magia, scire et cognoscere suae ipsius aninue proprietate, virtaem, mensurum, ondinem et gradu in potentia ipsius universi 1. Ver tambien 9 foutra parte por Bruno, De vinculis, I, 1, Piheae, j6eitada, pp 140, 071 ogo entre etimero, eile, meitita + entucineme 137 A FORMA E 0 INTELIGIVEL do-se sua linha, no plano do quadro, pelo contorno de um objeto cuja orientagio espacial é completamente diferente ou oposta. O resultado & a nitida consciéncia de uma espécie de separagao entre a coisa em si e sua forma aparente. Trata-se af de um pressuposto bastante generalizado, que se pode verificar em varias categorias de exemplos. Assim, a perspectiva, no tempo de Brunelleschi ¢ de Alberti, impunha a representagao dos volumes do espago um aspecto geométrico que naturalmente coincidia com um estilo, uma “poética” dos volumes regulares ¢ = como se demonstrou para 0 caso de Piero della Francesca ~ com a exigéncia da compartigao harmoniosa da superficie; ela também determinou um impulso decisi- vo da marchetaria, porque essa técnica concordava com o estilo assim fixado, e um acordo como esse nao podia deixar de ser explorado®. No maneirismo, ao contri , Se a perspectiva racional, a organizagio da superficie pintada ¢ a exigéncia estilistica nova continuam a concordar, isso é devido a um arranjo engenhoso, como se cuidou de ressaltar: descentralizagao, escolha insélita da distancia ou do hori- zomte, etc, Essas linhas que definem o espago cénico ainda organizam a imagem, ‘mas segundo um esquema muito diferente, abstrato: sua fungao dupla é, como tal, manifesta, Tintoretto mostrou com freqiigncia como se podia tirar vantagem desses meios; mas jd em sua época um novo emprego da perspectiva ~ que seria o prefe~ rido de Rubens ~ anuncia-se com Veronese: o Angulo da tomada representa, a ser- vigo da expresso, o papel que hoje the atribuem os cendgratos cinematogritficos. filogo ao da perspectiva mancirista, 0 contorno dos obje- oa Por um mecanismo at tos pode igualmente, num jogo duplo proposital, separar-se de sua significag a importincia dos grotescos, que apresentam essa abstragiio in fieri: basta acentuar igeiramente a curva de uma perna para que seja a de uma folha, cuja haste se torna, com um leve reforgo de seu carter grafico, o pé de um satiro, Em grande parte, os grotescos sto apenas exercicios de visio “abstrata”. Um passo a mais e che; 0 principio das figuras de Arcimboldo: assim como no trocadilho @ som de uma palavra se separa de seu sentido, sofre uma transformago auténoma e recai assim sobre um sentido novo, que “como que por acaso” esclarece ou comenta o prime’ ro, também em Arcimboldo as formas ¢ as cores dos livros e dos instrumentos de escrita, “abstraindo-se” a realidade dos objetos a que elas pertencem, agrupam-se para constituir um conjunto que tem, “como que por acaso”, 0 aspecto do Bibliot cério. O efeito tem mais impacto quando, para descobrir numa paisagem o perfil de um sitiro, ou numa panela cheia de legumes a cabeca do cozinheiro, é preciso girar © quadro ou vird-lo de cabega para baixo, pois entio se torna mais evidente que a passagem de uma significa fo, Dat igo a oultra se faz através da forma abstrata. 52. A, Chastel, "Marqueteri et perspective au XV” sidele”, Rex des wrts,n. 3, 1953, pp. 141-14, 15s A FORMA £ 0 INTELIGIVEL O salto duplo ¢ @ choque dos achador silo aqui ¢ is; na eseultura roma- nica, como na arte mancirista, as formas dos objetos so dobradas com violéncia se~ gundo as exigéncias da composigao, os grotescos sfio abundantes ¢ os motivos ornamentais freqientemente se agrupam para esbogar, por um falso acaso, figuras aparentemente arcimboldescas; mas essa arte, em geral, niio € maneirista, porque 0 ser vivo é aqui uma interpretagdo fantastica do esquema ornamental, ¢ no 0 orna- mento uma “abstragio” tomada auténoma em relagdo a forma das coisas. A arte ro- ménica no conhece o salto desrealizador, que leva do plano da significagio ao da forma pura. Sabe-se que Arcimboldo foi elevado iis nuvens por seus compatriotas milane- ses; mas os elogios comportam diferengas de motivagao bastante significativas, Numa troca de madtigais sobre a Flora composta de flores, Comanini ¢ Giov. Fil. Gherar- dini divertiam-se sobretudo em repetir as palavras Flora ¢ fiori, sob 0 pretexto de celebrar a engenhosa unido pintada da deusa e de seus atributos®; seu objetivo é imitar com palavras essa cascata de flores ou essa redita de motivos que é a figura arcim- boldesca: questo madrigale imita ben davvero la pittura dell’Arcimboldo, atesta Comanini®, Pode-se dizer que é a interpretagio sensualista, em que a prépria im- ‘ter formal da obra presumivelmente comtém, gragas a sua ncial da “mensagem”. Por outro lado, Comanini, diante de um Cagador composto de feras, langa-se a uma longa exegese simbélica, explicando em detalhes por quais razdes, extraidas dos bestidrios e da filosofia moral, tal animal foi colocado em tal parte do rosto®, A apologia adota o partide aristotélico extremista, que situa a beleza suprema da obra no agenciamento da “idéia”, revela da apenas pela andlise intelectual. Enfim Lomazzo, em sua apresentagio de Arcim- boldo, nio se cansa de maravilhar-se diante da ambigiiidade da forma: de longe, pensa-se que se trata de um retrato assemethador, de perto se ve que & composto de objetos também perfeitamente reproduzides, ¢ contudo a semelhanga com a figura humana nio desaparece. Arcimboldo, 0 pi se da passa gem do idealismo negador da forma ¢ 0 sensualismo que reduz.a idéia & expresso da forma, pode assim ser, por sua vez, interpret wultaneamente no sentido in- mbigilidade er tor que melhor ilustra a cri los

Você também pode gostar