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~ Hobbes Os Pensadorés Hobbes *Seja 0 que for que imaginemos 6 finito. Portanto nao existe qualquer idéia, ou concepcao, de algo que de- nominamos infinito, Nenhum homem pode ter em seu espirito uma imagem de magnitude infinita, nem conceber uma velocidade infinita, um tempo in- finito, ou uma forga infinita, ov um po- der infinite. Quando dizemos que algu- ma coisa € infinita, queremos apenas dizer que no somos capazes de con- ceber os limites € fronteiras da coisa designada, n3o tendo concepgio da coisa, mas da nossa prapria incapaci- dade.” HOBBES: Leviata_ “Das paixdes que mais freqdente- mente se tornam causas do crime uma € a vangloria, isto 6, © insensato so- fbrestimar do proprio valor. Como se a diferonca de valor fosse efeito do talen- to, da riqueza ou do sengue, ou de cualquer outra qualidade natural, sem cepender da vontade dos que detém a autoridade soberana. De onde deriva a presungao de que as punicdes orde- nadas pelas leis, e geralmente aplicé- veis a todos os siditos, nao deveriam ser infligidas a alguns com © mesmo ri- zor com que so infligidas aos homens Pobres, obscuros e simples, abrangi- dos pela designagao de vuilgo.”” HOBBES: Leviata “Um Estado por aquisigao & aque le onde © poder soberano foi adquiri- do pela forga. E este € adquirido pela forga quando os homens. individual- mente, ou em grande némero e por Pluralidade de votes, por medo da morte ou do cativeiro, autorizam todas a agdes daquele homem ou assem- biéia que tem em seu poder suas vidas sua liberdade.” HOBBES: Leviata. Os Pensadoré CIP-Brasil, Catalogacio-1 ‘Camara Brasileira do Hobbes, Thomas, 1588-1679, Leviath ou Matéria, forma ¢ poder de um estado eclesidstico e ci- vil # Thomas Hobbes de Malmesbury ; tradugiio de Jodo Paulo Montei- 1o e Maria Beatriz Nizza da Silva. — 3. ed. — S50 Paulo ; Abril Cultu- ral, 1983, (Os pensadores) Inclui vida ¢ obra de Hobbes. Bibliografia, 1. © Estado 2. Filosofia inglesa 3. Hobbes, Thomas, 1588-1679 4, Poder (Ciéncias sociais) 5, Politica |. Titulo: Leviatl. II, Titulo: Maté- ‘tia, forma © poder de um estado eclesisistico e civil, Il. Séeie, Indices para catélogo sistemstico: 1. Cidneia polities 320 2. Estado ! Poder politico 320.1 3. Filosofia inglesa 192 4. Filoyofos ingleses.: Biografia ¢ obra 192 5, Poder politico do Estado 320.1 6. Politica 320 THOMAS HOBBES DE MALMESBURY LEVIATA OU MATERIA, FORMA E PODER DE UM ESTADO ECLESIASTICO E CIVIL ‘Traducdo de Joao Paulo Monteiro « Maris Beatriz Nizza da Silva EDITOR: VICTOR CIVITA ‘Titulo original: Leviathan, or Monier, Form and Power of a Commonwedlty Ecclesiastical and Civil © Copyright desta edigao, Abril S.A. Cultural, Sto Paulo, 1974 - 2,*edigao 1979 - 3.* edigho 1983, ‘Direitos exclusivos sobre a traducio deste volume, Abril $.A, Cultural, S30 Paulo, Direitos exelusivos sobre “HOBBES — Vida e Obra", ‘Abni §.A. Cultural, $40 Paulo HOBBES VIDA E OBRA Consultoria; Jodo Paulo Monteiro T homas Hobbes nasceu na Inglaterra, na aldela de Westport, adja- ‘cente a Malmesbury, no Wiltshire, a 5 de abril de 1588. De farni- lia pobre, filho de um clérigo semiletrado, muito cedo deixou de con- tar com a assisténcia paterna. Seus esiudos passaram a ser custeados por um tio, luveiro relativamente prdspero em Malmesbury. ‘Ags sete anos, Hobbes foi recebido come pupilo por Robert Lati- mer, preceptor versado na cultura classica e que fhe proporcionou s6- lidos conhecimentos de latim € grego. Pode-se dizer que essa forma- G40 inicial constitui o fundo sobre o qual se destacariam mais tarde seus pendores literdrios @ sua familiaridade com os cldssicos. Em 1603 ingressou no Magdalen Hall, em Oxford. Tinha entao catorze anos. De um ponto de vista convencional, sua passagem pela univer- sidade nao revelou um estudante que pudesse ser considerado dos mais brilhantes. © curriculo escolar, marcado pela Escolastica, era es- treito e rigido, exercendo pouca atragao sobre Hobbes. Sem muito en- tusiasmo, estudou vagarosamente a Logica e a Fisica, chegou a gostar de Astronomia e de Geografia — por "aliviar a imaginacio” — e dei- xOU-Sé impressionar pela Retérica. Apesar de conclyir @ bacharelado sem muito brilhantismo, em 1608, Hobbes foi incicado pela direcao do seu college para precep- tor do filho de William Cavendish, que, depois, seria o primeiro Con- de de Devonshire. A indicagdo foi decisiva, marcando o inicio de uma Convivéncia e amizade conservadas durante toda a vida, Apesar da inseguranca financeira da casa dos Cavendish, esse emprego per- mitiu-lhe poupar-se da humilhante pobreza em que geralmente vi- viam os preceptores no século XVII. A permanéncia de Hobbes na ca- sa dos Cavendish foi extremamente importante para seu desenvolvi- mento intelectual. Encontrou tempo e tranquilidade para dedicar-se & leitura ¢ a reflexio, e uma grande biblioteca permitia-lhe 0 acesso a centenas de obras literdrias, garantindo a continuidade e 0 aprofunda- mento-de seu contato com os classicos. Em 1610, Hobbes e seu aluno visitaram a Franca e a Itdlia, ende se aplicou ao estudo de idiomas estrangeiros. De volta a Chatsworth, Prosseguiu na leitura dos historiadores classicos, que lhe interessaram do 56 pelos aspectos literdrios como também pelas intuigées sobre o homem e a politica. Este ultimo aspecto ficaria claramente demonstra do no primeiro trabalho publicado por Hobbes, em 1629. Nesse ano veio a piblice sua tradugdo da Guerra de Peloponeso, de Tucidides, vill HOBBES Da literatura que, embora de cardter literdrio, apresentava antecipacoes do Levia- 48, sua principal obra. Essas antecipaces aparecem tanto nas insinua- 603 que Hobbes faz no prefcio, quanto em vigorosas frases da tradu- ¢40. Desde essa época jd manifestava sua aversio 4 democracia © por isso recomendava a Icitura de Tucidides: “um_ret é¢ mais capaz que uma repiiblica’’. Nessa época, elasorou, em latim, um longo poema descritivo (publicado apenas em 1636), no qual se encontra a narragae de uma viagem que fizera a regiao montanhosa préxima de Chatsworth. Além desse poema, literariamente pouco significative, a ligagao de Hobbes com a literatura se manifestaré até o fim da vida. Exemplo nesse senti« do 6 © ensaio de critiea literdtia no prefacio ao poema épico Gondi- bert de Sir William Davenant (1606-1668), bem como as traducGes da Iliada © da Ooisséia, feitas nos seus tltimos anos. A experiéncia literaria de Hobbes, todavia, ndo o afastou de um certo preconceito doutrindria. Acreditava no propésito didatico do poema herdico ¢ concebia a literatura como algo ornamental e secun. dario em relagdo a um tipo de discurso mais verdadeiro. Este seria a fi- a filosofia A problematica filosdfica de Hobbes, embora ja anunciada em suas incursées pela literatura, somente comecou a estruturar-se a par- tir do contato com Francis Bacon (1561-1626), do qual foi secretario entre 1621 e 1626. Bacon tinha Hobbes em alta conta, julgando-o ca- paz de compreender seu pensamento e chegando mesmo a aulorizar que traduzisse algumas de suas obras para o latim. Contudo, sua formacao filosdfica ndo se limiteu ao empirismo ba- coniano, Em sua segunda viagem ao continente, em 1629, leve a oportunidade de ler, em Genebra, na Suica, as Elementos de Geome- tria, de Euclides (sécule Ill a.C.), obra fundamental para a formulacgao do método proposto pelos grandes racionalisias do século XVII. Em nova viagem ao continente (1634/37), Hobhes entrou em contato com o Padte Mersenne, amigo ¢ correspondente de Descartes (1596-1650).. Em torno de Mersenne, em Paris, reunia-se uma pléiade de pensadores e homens de ciéncia ¢ foi através dele que Hobbes en- trou em polémica com Descartes. Igualmente importante para Hob- bes foi sett encontro com Calileu (1564-1642), na ttalla. Os novos horizontes intelectuais abertos por esses contatos, en tretanto, nado o desviaram da situacdo concreta em que se encontrava a Inglaterra. Era profundo o seu interesse pelos problemas sociais. De volta @ Inglaterra, em 140, colocou-se como defensor do rei, Carlos | (1600-1649), entio ameacado por uma revolucao liberal. Em apoio a0 soberana, compos seu primeiro tratado, Elementos da Lei Natural ¢ Politica, obra destinada a fundamentar a ciéncia da politica e da jus- tiga. O trabalho circulou em cépias manuscritas, vindo a ser publica- do apenas em 1650 na forma de dais tratados separados: Natureza Humana © Sobre 0 Corpo Politico, Hobbes colosava-se visivelmente ao lado do rei_e, como a forca do arlamento era coescenie, i_obri- ido 'alis, temenda a ameaca dos anti-realistas. VIDAEOBRA IX Em Paris, ainda em defesa do poder real, publicou. Sobre 0 Cida- dao, em 1642, ano em que se desencadeou a Guerra Civil na Inglater- ra. Mesmo exilado, Hobbes nao deixou de participar das controvér- sias politicas € religiosas com hamens da corte inglesa refugiados na Franca. A mais destacada dessas polémicas foi a que manteve com John Bramball, bispo de Derry, a proposito da questéo do livre arbi- Nessa ocasiao, 0 bispo acusouso de impiedade e, posteriormen: te, condenaria também o livre-pensamento veiculado pelo Leviata, publicado em Londres, em 1651. O livro Sobre o Cidadao ja exibia 0 que os adversarios consideravam sentimentos ateistas, o que dificul- tou a aceitagao de Hobbes como preceptor do prin de Gales, futu- ro Carlos Il (1630-1682) da Inglaterra, entag no exili, Frente a oposi- go que se criara em tomo de sua indicagdo, Hobbes viu-se obrigado a prometer que se limitaria estritamente ao ensino da Matematica, em. suas fungdes de preceptor. A publicacdo do Leviata precipitou as con- trovérsias a respeito-de suas opinides religiosas ¢ politicas, © a situa- g40 chegou a um ponlo tal que Hobbes foi banide da corte inglesa exilada em Paris. Em 1652, Hobbes retornou definitivamente & Inglaterra, encon- trando-a dominada pela atuagao de Cromwell (1599-1658), 0 Lord Protector que comandara a revolugdo liberal de 1642 e€ que, com macs fortes, garantia 0 sentido econdmico-burgués dessa revolugio. Nessa atmosfera, Hobbes retomou o trabalho, publicando a seguir So» ‘bre.0 Corpo (1654) e Scbre o Homem (1658). A Restauragao dos Stuart, em 1660, ocorreu quando Hobbes ja contava 72 anos e€ se sentia distante dos problemas politicos imedia- tos. Seu encontro com 0 novo rei (e antigo pupilo) marcou a reconci- liagdo entre ambos, mas Hobbes, nessa altura, j4 tinha retornado ao convivio dos Cavendis7 e retomado 0 estudo dos classicos, fazendo traducdes de partes da Iiada e da Odisséia. Depois de uma velhice tranqUila, durante a qual escreveu uma autobiografia em versos lati- nos, Hobbes faleceu em Hardwick, em 1679, dez anos antes do triun- fo das idéias liberais das quais fora fertenho adversério. Entre a razdo ¢ a experiéncia Todo historiador da filosofia sente-se obrigado a reconhecer, nos capitulos de abertura da Epoca Moderna do pensamento ocidental, a presenca decisiva da orientagdo baconiana e do caminhe cartesiano, Tanto a filosofia experimental de Francis Bacon quanto o racionalis- mo do francés René Descartes (1596-1650), apesar do antagonismo. que 0s separava, foram momentos bisicos na superagao da escolasti- ca medieval e constituiram, ao mesmo tempo, expressdes fundamen- tais de uma nava atituce do homem em face da natureza e do proprio homem. Essas duas posicdes apresentavam-se como opostas e conflitan- tes. Cada qual, reiterando seu prdprio extremismo,, justific; ragao do extremismo da outra, como se a razéo 36 existisse na trans paréncia de sua auto-atirmacao racionalista e como se a experiéncia 56 existisse na sua diluicdo empirica. Mas quando se estuda a filosofia de Hobbes 0 problema da domi- x HOBBES. nancia do racionalismo ou do empirismo pode ser colocado em ou- tras termos. £ possivel perguntar, por exemplo, se ndo havia um secre- to intercambio entre ambos, apesar das diferengas; se ndo. estavam constantemente voliados um para o outro, a espera de um terreno co- mum em que pudessem exercer ago conjunta. A obra de Hobbes abriu justamente um espago de convivéncia entre esses extremos, manifestando, assim, um campo de conciliacdo entre eles. £ preciso, contudo, evilar que essa visio geral do lugar te6- rico da obra de Hobbes derive para uma caracterizagdo ingenua de seu pensamento, Hobbes no foi o resultado mecinica do convivio com Bacon, do encentro com Galileu ou do contato com o Padre Mersenne. Sua obra nae constituiu uma simples justaposicao de va- fianles empiristas e racionalistas do século XVII; ele nao somou as pa- lavras de Bacon e as de Descartes. Hobbes impés a razic ¢ a expe- riéncia um modo particular de vida comum. Desvendar essa particularidade 6 uma forma de revelar a origina- lidade de sua filosofia, No se pode dizer apenas que seu “grande mé- rito"” esteja — como afirma Bertrand Russell — no fato de ter sido em- pirista e de ter “‘concedido, nao obstante isso, a devida atengo & ma- tematica’’. £ preciso ir aos detalhes que salientam a fisionomia do fil6- sofo, Do ponto de vista estritamente baconiano, a obra de Hobbes po- deria ser julgada coma demasiado carente de recurs aos fatos ¢ me~ todologicamente pobre em indugdes. Essa_interpretagdo, contudo, nao é inteiramente verdadeira. Apesar de deduzir sua ciéncia politica de conceitos ¢ definigées, esses conceitos correspondem para ele acs fatos da natureza humana; 0s capitulos | a XI do Leviata encerram Considerdvel numero de fatos da experigncia. Além disso, se Hobbes estrutura a teoria politica como um gedmetra, sua doutrina do hoe ‘em (fundamento da politica) admite apenas uma espécie de demons- tragdo @ mesmo essa no é dedutiva, nao se tratando, portanto, de de- monstragdo no sentido rigoroso da palavra, A nica espécie de de- monstrag¢do admitida por Hobbes, no caso, consiste em cada um ens contrar em si mesmo a “humanidade’ (a natureza do homem), que o Préprio autor encontros “lendo-se a si mesmo”. Dando continuidede ao pensamento de Bacon, Hobbes realizou seu préprio projeto filosdfico em obras que manifestam um encadea- mento ldgico-dedutivo, definindo previamente os termos dos quais se serviu, Esse procedimento reitera-se tanto nos escritos sobre aquilo que ele entendia por fisica, quanto nas obras politicas. Suas teses esto ¢s- calonadas. sucedendo-se umas as outras em rigorosa construgio |6gi a; no livea Sobre © Corpo encontra-se a declaraydy express segun- do a qual concluir é adicionar e subtrair. A filosofia seria, assim, “co- nhecimento adquirido por um raciocinio correto, dos efeitos ou fend- menos conforme as causas ou geragdes concebidas e, inversamente, das geragdes possiveis conforme os efeitos conhecidas”’. O racionalismo empirista (ou empirismo racionalista), formulado por Hobbes no texto ecima, consiste em partir da natureza e voltar a ela, percorrendo um trajeto em que 0 real é reduzido a elementos sim- ples, a fim de que se possa utilizd-los numa dedugdo capaz de recom- por as realidades concretas. Inicialmente atomizado, 0 real € ideal mente encontrado, visando-se ou nao 4 sua ttil transformacao. VIDAEOBRA — XI Em resumo, a originalidade de Hobbes no campo do empirismo encontra-se no racionalismo metodolégico e nominal que arma © en- cadeia suas teses. Corporalismo ¢ mecanicismo Um tal racionalismo, enquanto matematicismo, isto é, reducao das operagGes légicas 45 eperagées matemiticas de adigao e subtra- ¢ao, ndo basta para incluir Hobbes entre os seguidores de Descartes, Pelo contrério, sua posigao em relacao a Descartes era visivelmente polémica, chegando mesmo a mais profunda antipatia, como se verifi- ca na Correspondéncia entre os dois. Radicado na Holanda, Descar- tes recebeu, através do Padre Mersenne, as objegdes levantadas por Hobbes contra suas Meditagdes Metafisicas. A obra foi publicada por Descartes, em 1641, juntamente com as objegdes de Habbes e outros fil6sofos e as respostas do autor. A discussdo entre os dois fildsofos possibilita a caracterizagao do pensamento de Hobbes. Em certo momento de sua Segunda Obje- G40, Hobbes aceita que 0 conhecimento da proposigio "eu existo!” possa depender do conhecimento da proposigao “eu penso’’. Com is $0, assimila a célebre frase de Descartes “penso, logo existo”, mas, logo em seguida, coloca um problema; de onde viria o conhecimento da propesicdo “eu penso’’? Hobbes adianta sua propria resposta nos seguintes termos: como “néo podemos conceber qualquer ato sem seu sujeito, assim também nao pademos conceber o pensamento sem. uma coisa que pense, a ciéncia sem uma coisa que saiba e 0 passeio sem uma coisa que pesseie’. De onde se segue “que uma coisa que pensa é alguma coisa de corporal”. Essa conseqiéncia ¢ rejeitada por Descartes, dizendo que Hob- bes a acrescenta “’sem qualquer tazdo e contra toda boa Logica, ¢ mesmo contra 0 mode ordinario de falar". Descartes nao admite que todas as substancias sejam corpdreas. Com efeito — diz ele — “os su- jeitos de todos os atos sio bem verdadeiramente entendidos como sendo substancias (ou, se desejais, como matérias, a saber, matérias metafisicas), mas nem por isso como corpos"’, Mais adiante; Descar- tes reafirma 0 seu dualismo, dizendo que hi duas substancias, uma extensa, Corpérea, outra espiritual, pensante. A substancia extensa a pressuposta pelos “atos que chamamos corporais, como a grande- za, a figura, 0 movimento"; esses atos “‘residem’ em corpos. Porém — diz Descartes — “ha outros atos que chamamos intelectuais", co- mo o “querer imaginar’ etc., atos que dependem do ‘pensamento ou pereepcao", da “consciéneia @ conhecimento”; esses atos “'rosi- dem’ em ‘uma coisa que pensa”, tenha ou nao esta coisa o nome de espirito, pouco importa, "'conquanto no a Confundamos com a subs- tncia corporal, uma vez que os atos intelectuais nio tém qualquer afinidade com 0s atos cérporais”. Em suma ““o pensamento... difere totalmente da extensdo”, Hobbes manteve a.idéia de que o sujeito do pensamento é Corporal ¢ aliou a esse materialismo uma posicdo empi- rista, Radicalizando seu materialismo na Quarta Objecdo, Hobbes pergunta: “Cue diremos agora, se talvez o raciocinio nao seja outra coisa xi HOBBES sengo uma teuniéo e encadeamento de nomes pela palavra ‘é? De onde se seguira que, pela razao, nada concluimas no tecante a natu- reza das coisas, mas 56 no locante as suas denominacdes: isto 6, pela fa240, vemos simplesmente se reunimos bem ou mal os nomes das coisas, segundo as convengées que, de acordo com nossa fantasia, te- nhamos feito no tocanie as suas significagdes”. Nesse texto encontra- s@ 0 que 05 historiadores chamam de ‘’nominalismo” de Hobbes, isto ¢, a redugdo de conceitas a palavras, de significagdes ideais a signifi- cages convencionais Hobbes vai ainda mais longe: “Se isso ¢ assim, como parece ser, © raciocinio dependeré de nomes, os nomes dependeréo da imagina- a0, € a imaginacan talvez (e isto segundo 0 meu sentimente) depen- dera do movimento dos drgios corporais; e assim o espirito nao sera outra coisa seno um movimento em certas partes do corpo organi- co”. Hobbes cava cada vez mais fundo o abismo que o separa de Des- Cartes. Este rejeita a aproximacao entre espirita e movimento e nio admite contusdo entre a “imaginagia" ¢ o “puro conceito de entendi- mento"; do mesmo modo, nao aceita a redugdo da “idéia” a “imas gens de coisas materiais desenhadas na fantasia corporal”. Dessa diferenga em relagéo a Descartes 6 que se pode destacar 0 principio fundamental da filosofia de Hobbes, Para Descartes, as no» ges de extensdo e ce movimento bastam para explicar as substan- cias, propriedades e transfarmagées do mundo. corporal, e essa con- cepa mecanicista considera a movimento como puro entrechoque de corpos exteriores uns aos outros. Mas, para Descartes, 0 mecani- cismo € explicative apenas no que diz respeito: a0 mundo corpora nde sende valido para explicar 0 que acontece no mundo intelectual, na ordem psicoldgica etc. Hobbes universaliza 0 mecanicismo. Para ele, “toda mudanca se liga a um movimento de corpos modificados, isto é, de partes do agente ¢ do paciente”. O espaco @ a primeira das nogées fundamen- tais de sua filosofia. Para ele, espaco “6 o fantasma de uma coisa que existe enquanto existe, isto ¢, enquanto ndo se considere ela ne- hum acidente a nao ser aquele de aparecer fora daquele que a imagi- na”. Existir 6 existir no espace, 6 ser corpo em movimento, As palavras ¢ as coisas Estabelecidas as nogoes de corpo e de movimento, Hobbes leva © mecanicismo a invadir os dominios do espiritd. £ essa a finalidade de sua fisica e 0 sentico da obra denominada Sobre 0 Corpo, a primei- ra do seu “plano” filosafico. A fisica de Hobbes procura explicar meeanicamente a mancira pela qual os corpos exteriores afetam © corpo humano ¢ af produzem as percepgdes e os fendmenos que delas dependem, Afetados pelos movimentos dos objetos exteriores, os sentidos seriam pastos em mo- vimento @ este se transmitiria ao cérebro e, dal, ao coracéo; neste ér- Rae, comecaria um movimento de reacdo em sentido inverso, Para Hobbes, 0 inicio desse mavimento de reacdo € precisamente 0 que constitui a sensagaa: "a sensagdo ¢ 0 principio do conhecimento dos préprios principios, ¢ aciéncia é inteiramente dela derivada’’. VIDA EOBRA xi Alicercados nas sensagées, os elementos do edificio cientifico se- riam simples nomes. A proposi¢éo”, diz Hobbes, '“é constituida pe- la adigao de dois nomes; o silogismo, pela adigao de duas proposi- Ges; a demonstragao, pela adigdo de varios silogismas.”” Uma tal so- matoria conduziria a ciéncia, que se define, assim, como "conheci- mento das conseqliéncias de uma palavra a outra’’, Uma vez bem de- finidos, os nomes so conectados nas proposicoes € estas sao conecta- das nos silgismos. A conclusdo obtida — completa Hobbes — “é de todas as proposicées antecedentes’’. Na obra Sobre 0 Corpo, Hobbes explicita essa posi¢ao nominalis- ta no referente 3 célebre questia dos universais: “os Conceitos que, no espirito, correspondem aos nomes comuns (que designam colegio de individuos) sao imagens ou fantasmas de objetos singulares. Desse modo, para se compreender 0 valor do universal, ndo se tem necessi- dade de outra faculdade que a imaginativa, faculdade que nos lembra que as palavras desse genera suscitaram em nosso espirito uma coisa ou outra”. © hominalismo de Hobbes ¢ solidério, portanto, de um assocla- cionismo psicolégico que fara sucesso mais tarde. Para ele, as ima- Bens associam-se na consciéncia, formando um ‘‘discurso mental” e uma fal associagdo & um tanto quanto aventureira quando se estd so- nhando; porém, uma observacdo atenta poderia reencontrar o nexo que associa estas imagens aparentemente descoordenadas, A razo nao passaria, assim, de um uso aperfeigoado da imaginagao, pela aplicagao corretar da enélise (que descobre nocées e definicaes, par- do da experiéncia) © da sintese (isto é, dedugées que, a partir das primeiras idéias, provam ¢ explicam tadas as realidades). Em suma, © conhecimento humano é explicado por Hobbes a partir do entrechoque de corpos, a partir de movimentos exteriores que, por meio dos sertidos, atingem o espirito (este ndo passa de um “corpo ténue e sutil’’), repercutinda uns nos outros, associando-se & finalmente organizando-se na arquitetonica cientifica. Do conato & ago politica A teoria nominalista da arquiteténica cientifica e a teorla materia lista da estrutura da realidade, que se articulam como um todo siste- mitico nas obras de Hobbes, nao se esgotam em si mesmas. Pela con- trario, seu materialismo € nominalismo vinculam-se intimamente aos problemas praticos do homem. O mundo vivido por Hobbes era parti« Cularmente rico em contradicées politicas ¢ religiosas e 0 fildsofa mar- Cou sua presenca em intimeras polémicas, expondo suas idéias e de- clarando suas opcoes. Essas idéias e opgdes, que se encontram em seus escritos politicos, somente ganham dimensdo filosdfica a luz de seu materialismo e nominalismo. Querer isolar esta ou aquela parte de sua obra é uma das. possibilidades de leitura. Mas ndo 6 a melhor maneira de compreender’o pensamento do {ildsofo. Segundo Hobbes, 0 ponto de partida da agao humana e, conse- qientemente, da agio moral e politica ¢ 0 conato (conatus), ou scja, 0 esfor¢o ou empenho, Nos Elementos de Lei Natural e Politica, Hob- bes explicita essa idéa afirmando que “o movimento, que Consiste no prazer eno desgeste, é uma solicitagdo ou provocagdo para se xIV HOBBES aproximar do que agrada ou para se retirar do que desagrada; e essa solicitacao é o esforco ou comeco interno do movimento animal”. Desde esse movimento inicial, toda agao humana ¢ vista pelo au- tor de forma radicalmente determinista; isso acontece, por exemplo, quando explica a percep¢ao visual: ‘a visdo se faz por agao derivada do objeto; ora, toda ado 6 um movimento; 0 movimento €, pois, pro- pagado da luz ao olho”. Assim, para Hobbes, nao é de se estranhar, que a alegria seja causada pela posse de um objeto que favoreca ¢ in- dividuo. A tendéncia no sentido desse objeto chama-se “bem”: 0 “mal” seria, a0 contrario, a aversio ao objeto que causa dor, Como lembra Bertrand Russell, as definigées que Hobbes di das paixées baseiam-se, em sua maior parte, numa visdo competitiva da vida, A vida seria comparavel a uma corrida na qual € preciso vencer sempre. Para Hobbes, ela comeca com o esfarco inicial chamado “desejo", senda o “amor” definido como ligacéo a alguém, “Estar continuamente ultrapassado € miséria’, diz o autor do Leviatd. “Ultra- Passar continuamente quem estd adiante € feficidade. Abandonar a corrida & morrer.’” No racionalismo classico, a vontade implica a razdo. Em Hob- bes, ela se define como “iltimo apetite na deliberagio”. Liga-se, por- tanto, ao conjunto das paixées, alternando-se no jogo eslabelecido entre tendéncia e aversao ao objeto. Em suma, um determinismo me- canicista regeria nao 6 0s movimentos do universe como também a atividade psicolégica do homem, Nessa mesma ordem de idéias, a li- berdade, em Hobbes, reduz-se a “auséncia de tudo que impede a a¢40 e que nao est contido na natureza @ na qualidade intrinseca do agente’. O “livre arbitrio” nao passaria de ilusie: seria apenas uma expressdo destinada a ocultar a ignorancia das verdadeiras causas das decisoes humanas. Do estado natural ao estado social “O homem € a labo do homem’ é uma das frases mais repetidas por aqueles que se referem a Hobbes, Essa maxima aparece na obra Sobre o Cidaddo, coreada por uma outra, menos citada, mas igual- mente importante: “guerra de todos contra todos”. Ambas si funda- Mentais como sintese do que Hobbes pensa a respeito do estado natu- ral em que vivem os homens, O estado de natureza 6 0 modo de ser que caracterizaria 0 homem antes de seu ingresso no estado social. No estado de natureza, “a utilidade ¢ a medida do diteito’’. Isso signi- fica que, levado por suas paixOes, a homem precisa conquistar o bem, ou seja, as comodidades da vida, aquilo que resulta em prazer. ‘© altruismo nao seria, portanto, natural, Natural seria 0 egoismo, in- clinagdo geral do género humano, constituido por um perpétuo e ir- requieto desejo de poder @ mais pader que sé termina com a morte’. Essa idéia é afirmada por Hobbes em relagao a tados os homens. Ape- sar de defensor do despotisme politico e adverssrio da democracia po- litica, Hobbes afirma que “todos os homens sdo naturalmente iguais’’. a Essa igualdade baseia-se no desejo universal de autopreservacao, VIDAEGBRA = XV isto é, da procura do que é necessario e comodo & vida. Com isso, fi- ca estabelecido um direito fundamental de autoconservagao. Como todos os homens seriam dotados de forca igual (pois o fisicamente mais fraco pode matar o fisicamente mais forte, |ancando- méo deste ‘ou daquele recurso), e como as aptiddes intelectuais também se igua- lam, 0 recurso a violéncia generaliza-se e complica-se, cada qual ela borando novos meios de destruicao do préximo, com o que a vida se torna “‘solitéria, pobre, sdrdida, embrutecida e curta”’, na qual cada um 6 lobo para 0 outro, em guerra de todos contra todos. Assim, 0 es- tado natural exige uma safda com base no préprio instinto de conser- vagao da vida. Deixaco a si, 0 instinto de conservacio € abertura pa- 1a a violéncia que o reitera e, aa mesmo tempo, para a paz titica que prometa conservagao. £ esse o campo da lei natural. A concepcio que Hobbes tem do estado de natureza distancia-o da maior parte dos filésofos politicos, que acreditam haver no ho- mem uma disposigae natural para viver em sociedade, Na obra Sobre © Cidadéo Hobbes argumenta contra Aristételes (384 a.C. — 322 a.C.) para quem o homem ¢ um animal social ¢ j4 est naturalmente inclufdo numa ordem ideal, Como o instinta de conservacao é basico na filosofia de Hobbes, para ele os individuas entram em sociedade 36 quande a preservacio da vida esté ameagada. Os homens nao vi- vem em cagperagdo natural, como o fazem as abelhas ou as formi- ae © acordo entre elas é natural; entre os homens, s6 pode ser arti cial. Guiado pela razao, 0 instinto de conservagao ensina que — diz Hobbes — “6 preciso procurar a paz quando se tem a esperanca de obté-la’", pois a vida de cada um estaria sempre ameacada se cada qual tudo fizesse para exercer seu poder sobre todas as coisas. Nao sendo possivel a paz, “é preciso.procurar em toda parte os recursos para a guerra, sendo licito emprega-los””. De qualquer modo, a paz & adimensao mais compativel com 0 instinto de conservagao. Nesse sentido, os homens sio levados a estabelecer contratos en- tre si, © contrato "6 uma transteréncia matua de direito’’, O pacto, to &, a promessa de cumprir o contrato, vale enquanto a conservagao da vida no estiver sendo ameagada. Para que seja durdvel a paz ob! da com © contrato social, "é necessdrio que a multid’o dos associa- dos seja t40 grande que os adversdrios de sua seguran¢a nao tenham a esperanga de que a adesio de um pequeno ntimero baste para asse- gurar-lhes a vitoria”. Para que a vida seja vidvel, impde-se, pois, uma sociedade civil. Assim, a paz imprescindivel a conservacdo da vida que a razao solicita cria o pacta social e, através deste, o homem ¢ in- troduzido em uma ordem moral. No nivel das relagées morais, ¢ preciso que cada um — segundo Hobbes — ‘nao faga aos outros o que nado gostaria que fizessem a si’; € preciso evitar a ingratidao, os insultos, o orgulho, enfim, tudo 0 que prejudique a concérdia; que o mal seja vingado sem crucldade, que haja moderagao ro_uso dos bens; que os bens sejam distribuides eqiitativamente e que haja uso comum daqueles que nado possam ser divididos; havendo disputas, que se recorra a um drbitro imparcial e desinteressado. Essas leis ndo sdo deduzidas por Hobbes de um instin- to natural, nem de um consentimento universal, mas da razio que procura os meios de conservagao do homem; elas seriam imutdveis por constituirem conclusées tiradas por raciocinio. XVI HOBBES Absolutismo sem teologia Para Hobbes, 0 pacto social, senda artificial e precdrio, ndo é su- ficiente para assegurar a paz, pois sempre existiriam pessoas que, acreditando saber mais do que as outras, poderiam desencadear guer- ras civis, a fim de conquistar o poder s6 para elas. Tal conseq@éncia somente poderia ser evitada se cada homem submetesse sua propria vontade & vontade de um Gnico homem ou a uma assembléia determi- nada, © escolhido para exercer o poder deveria ser totalmente segui- do pelos compenentes do corpo social no que se refere aos proble- mas da paz geral. Um tal poder s6 seria capaz de corresponder & sua finalidade se exercido despoticamente. Ai esta o que os historiadores chamam de originalidade € novida- de do sistema de Hobbes: 6 partidario do poder absoluto e admite, ao mesmo tempo, o pactc social. Hobbes nao estabelece contradi¢so en- tre 0 pacto eo absolutismo; quando bem compreendido, o pacto con- duziria necessariaments ao absolutismo, segunda o filésofo. Por isso, pode-se dizer que Hobbes é absolutista sem ser tedlogo, 0 que o dis- tingue dos outros absolutistas do século, desde Jaime | até Bossuet: ou seja, Hobbes nao deriva o absolutisma de um direito divino, mas do pacto. Além disso, conquanto manifeste sua preferéncia por um fei absoluto, Hobbes reconhece a legitimidade de outros tipas de go- verno; & que no admite & que o gaverno seja misto ou temperado, como a monarquia constitucional. A raze dessa restrigdo esté, para ele, no fato de que competigaes comprometedoras da paz derivam ne- cessariamente da presenca de varios detentores do poder. Esse equacionamento do problema politico deriva do modo co- mo Hobbes encara o pacto social. Para o autor do Leviata, 0 contrato € estabelecido unicamente entre os membros do grupo que, entre si, oncordam em renunciar a seu direito a’ tudo para entregi-lo a um so- berano encarregado de promover a paz. Um tal soberano nao precisa- tia dar satislagées de sua gestio, sendo responsdvel apenas perante Deus "sob pena de morte eterna”. Nao submetido a qualquer lel, 0 soberano absoluto é a prdépria fonte legisladora. A obediéncia a ele deve ser total, a nio ser que ele se torne impotente para assegurat paz duravel e prosperidade. A fim de cumprir sua uae © soberano deve concentrar todos os poderes em suas mios. “Os pactos sem a es- pada néo passam de palavras.” Seguranga interna © externa estio em suas mios, as mesmas que detém a legislagao suprema e€ o direito de guerra e paz. Para salientar'a concepgao social ¢ politica de Hobbes, os histo- riadores costumam confronté-la com a idéia de contrato social ¢ de vontade geral de Rousseau (1712-1778), para quem o homem € natu- ralmente bom, naturalmente livre ¢ naturalmente igual aos outros ho- mens, © contrato social, Gnica forma de associagio logitima, em Rousseau, manifesta-se em um pacto estabelecido entre 0 povo e os Governantes, Esse pacto estabelece a submissdo dos governantes, as. sim como de todas os cidadaos, & Vontade Geral. Esta se volta, nao para os bens particulares, mas para o bem comum. Nas assembléias, a Vontade Geral, segundo Rousseau, seria manifestada pela maioria absoluta, se bem que o nimera nao crie essa Vontade: ele apenas in- dica onde ela se encontra. VIDAEOBRA XVII Habbes pensa diferentemente. O autor do Leviata distingue as as- sembldias “soberanas!’ daquelas que cle chama ‘'sistemas sujeitos’. Derrubar as assembléies soberanas € ilegitima, mas os sistemas sujei- tos — para ele — sao todos suspeitos. Hobbes teme a ignorancia de seus membros, tanto no que se refere aos assuntos internos quanto no que diz respeito aos externos; estes devem permanecer secretos. Ele teme igualmente a eloqiiéncia, o que hoje se chamaria de demago- gia. “E a loucura do vulgo e a elogGéncia que concorrem para a sub- versao dos Estados’, diz Hobbes. Por isso, embora a sua filesofia ad- mita a democracia (no caso das assembléias soberanas), desde que os individuos abram mac do seu direito natural (fonte de desavengas), ele prefere um rei, assessorado por um conselho secreta de homens escolhidos. Ao soberario abscluto deve pertencer também — segundo Hob- bes — todo poder de decisao em matéria religiosa, em virtude de a re- ligido implicar a existéncia de um poder distinto da seberania civil, originando conilitos: “Nao ha quase nenhum dogma referente ao ser- vico de Deus ou as cifncias humanas de onde ndo nascam divergén- cias que se continuam em querelas, ultrajes e, pouco a pouco, no originem guerras; 0 que nao sucede por falsidade dos dogmas, mas porque a natureza dos homens é tal que, vangloriando-se de scu su- posto saber, querem que todos os demais julguem o mesmo”. Hobbes nao vé sclucao para esses conflitos a no ser pela entre- ga de toda autoridade religiosa ao soberano absoluto; caso contrario, a religido ameacaria a paz civil. A objecao de que o soberano poderia impor aos sdditos suas pré- prias crengas e sua propria forma de culto, @ autor do Leviatd respon- de afirmando nao acreditar que 0 soberano viesse a permitir 0 ensino: de idéias que poderiam implica sua condenacao eterna. Na verdade, a dificuldade apontada persist, sobretudo quando se verifica que reis catolicos governavam stiditos protestantes, na Inglaterra da época. Apesar disso, Hobbes desenvolve sua argumentagio, pondo de lado as possivei do soberane ¢ declarande que o Estado deve instituir um culto Gnico ¢ obrigatério: “porque, caso contrdrio, seriam encontradas em uma mesma cidade as mais absurdas opinides referentes 2 natureza divina ¢ as mais impertinentes ¢ ridiculas ceri- mOnias jamais vistas’. A Unica restrigao que Hobbes faz ao soberano em matéria religiosa € a de que os suditos nao deveriam obedecer-lhe se mandasse ultrajar a Deus € adorar um homer a quem conferisse atributos divinos, Outra dificuldade poderia ser levantada: ndo hi no Decilogo e nas preceitos evangélicas leis obrigatérias, diferentes por sua origem das leis civis? Para responder 4 objecdo, Hobbes afirma que os man- damentos do Decalogo sao leis civis, pois Moisés possufa soberania temporal sobre 0 povo judeu. Além do mais, um mandamento como. “nao roubaras” nao tem sentido se antes nao se definisse a natureza da propriedade; © mesmo ocorreria com todos os restantes manda- mentos. O pecado, 0 justo, 0 injusto, sd tem sentido na medida em que recebem sua existéncia das leis civis. Por outro lado, os preceitos dos evangelhos — segundo Hobbes — nio sio leis, mas chamados 3 f€; nos evangethos nao haveria regra alguma que permitisse distinguir entre ‘Yo teu @ © meu’, como também eles ndo estabelecem quais- xv HOBRES quer regras do intercambio comercial ou outras andlogas. Em suma, 86 ao soberano caberia distinguir entre o justo e o injusto, entre o cer. to eo errado. Por conseguinte, 0 fundamenio da paz religiosa, condicdo da paz social, é © conformismo ¢ nao a tolerancia, camo muitos contem- pordneos de Hobbes julgavam. O Leviaté expressa nitidamente a atitus de critica do autor diante do papel da Igreja. O veredicto da histéria As idéias de Hobbes sobre a religiio, assim como toda sua teoria da natureza humana e da organizacao politica, nao podem ser com- preendidas sem se levar em conta duas ordens de fatores. Por um la- do suas idéias constituem elementos que se vinculam a uma metafisi- Ca materialista e 3 sua tearia nominalista da natureza do conhecimen- to, compondo um sistema filoséfico rigid. Por outro lado, as teorias do homem e do Estado, formuladas no Leviatd e em Sobre @ Cidadao, inserem-se dentro de um proceso histérico de lutas sociais ¢ econd- micas bem definido: os conflitos entre o poder real e 0 poder do Parla- mento, na Inglaterra do sécula XVII. Apesar da rigorosa ordem de razdes Idgicas que concatenam as idéias do autor, elas constitem menos um conjunto de verdades ine temporais do que as opcdes concretas do homem Thomas Hobbes. Na realidade politica em que vivia, optou pelo fortalecimento. extre- mado da autoridade, pelo militarismo do executivo, pelo controle se- vero de todas as formas de criacao intelectual, A histéria ndo Ihe deu razdo, preferindo a solugdo liberal de seu ‘conterrineo Jahn Locke. Em 1689, as forcas liberais que predomina- vam no Parlamento inglés derrotaram definitivamente 0 absolutismo real, instituindo a separagio.¢ a autonomia dos poderes, fazendo pre= valecer a mentalidade civil, admitindo a pluralidade de confisses re- ligiosas e proporcionando a liberdade de pensamento ¢ de expressao. ‘CRONOLOGIA 1588 — A 5 de abril, nasce Thomas Hobbes, na aldeia de Westport, Malmes- bury, Inglaterra, 1603 — Morre Elizabeth |, a dltima dos Tudor, Sucede-a seu primo Jaime |, que inicia a dinastia dos Stuart, Hobbes ingressa no Magdalen Hail, Ox- ford. 1608 — Termina seu bacharelado em Oxford & & indicado para preceptor do filho de Lorde Cavendisi. 1610 — Faz sua primeira Viagem ao continente, 1625 — Morre Jaime |, sueedendo-0 no trano seu filho Carlos |. 1629 — Hobbes publica uma tradugo da Guerra do Peloponeso, de Tuerdi- des, 1640 — Produz sew primeiro watado, Elementos de Lei Natural e Politica, Ean face dos acontecimentes politicos ingleses, retira-se para a Franga, onde permanece onze anos. VIDA E OBRA XIX 41642 — Publica Sobre o Cidadao, Inicia-se na Inglaterra a Guerra Civil, quan do Carlos | é decapitado, ¢ inicia-se o perfodo da Commonwealth, sob a li- deranga de Cromwell. 1645 — Hobbes & nomeado preceptor do principe de Gales, que vird a ser 0 Rei Carlos li da Inglaterra. 1651 — Publica na Inglaterra o Leviata ou Matéria, Forma @ Poder de uma Comunidade Eclesidstica ¢ Civil, 1652 — £ banido da core inglesa no exilio © volta definitivamente @ Inglater- (a. 1654 — Publica Sabre 0 Corpo. 1658 — Publica Sole 0 Homem. Morte de Cromwell 1660 — Restauracao dos Stuart com Carlos II, 1668 — Hobbes traduz. em versos ingleses, partes da \l(ada © da Odisséia, 1679 — Morte de Hobbes em Hardwick. BIBLIOGRAFIA Gouwswins, M. M.: Hobbes’ Sefence of Politics, Columbia University Press, No va York @ Londres, 1966. Rosexrson, G. C.: Hobbes, Londres, 1886. Tawa A. E.: Thomas Hobbes, Londres, 1908, Baanor. F.: Thomas Hobbes’ Mechanical Conception of Nature, Copenhague e Londres, 1928. 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Buown, K, C.: Hobbes Studies, Blackwell, Oxford, 1965, LEVIATA OU MATERIA,FORMA E PODER DE UM ESTADO ECLESIASTICO E CIVIL ‘Tradusio de Jo’ Paulo Monteiro ¢ Maria Beatriz Nizza da Silva AO MEU MULESTIMADO AMIGO Sr. Francis Godolphin de Godolphin Estimado Senhor, Aproiive a vosso mui merecedor irmao, Sr. Sidney Godolphin, quando era ainda vivo, considerar dignos de aten¢o a meus estudos, ¢ além disso, privile- giar-me, conforme sabeis, com tesiemunhos efetivos de sua boa opiniao, testemu- nhos que cm si mesmos ja cram grandes, ¢ maiores eram ainda dado o mereci mento de sua pessoa. Pois de todas as virtudes que a homem é dado ter, seja a servigo de Deus, seja a servico de seu pafs, da sociedade civil, ou da amizade particular, nenhuma deixava de manifestamente se revelar em sua conversagio, nao que fossem adquiridas por necessidade ou constituissem uma afetagao de momento, mas porque lhe eram inerentes, ¢ rebrilhavam na generosa constituigao de sua natureza. portanto em sinal de honra e gratid’io para com ele, e de devo- ¢do para convosco. que humildemente vos dedico este meu discurso sobre o Esta- do. Ignoro como.o mundo ir recebé-lo, ou como podera refletir-se naqueles que parecem ser-Ihe favoraveis. Pois apertado entre aqueles que de um lado se batem por uma excessiva liberdade, e do outro por uma excessiva autoridade, ¢ dificil passar sem ferimento por entre as langas de ambos os lados, No entanto, crcio que o esforco para aprimorar 0 peder civil nda deverd ser pelo poder civil conde- nado, nem pode supor-se que os particulares, ao repreendé-lo, declarem julgar demasiado grande esse poder. Além do mais. nio ¢ dos homens no poder que falo, ¢ sim (em abstrato) da sede do poder (tal como aquelas simples ¢ imparciais criaturas no Capitdlio de Roma, que com seu ruido defendiam os que 14 dentro estavam, ndo porque fossem quem eram, mas apenas porque la se encontravam), sem ofender ninguém, creio, a nao ser os de fora, ow as de dentro (se de tal especie as houver) que thes sejam favoraveis. O que talvez: possa ser tomado como ofensa so certos textos das Sagradas Escrituras, por mim usados com uma finalidade diferente da que geralmente por outros é visada. Mas fi-lo com a devida submis- sio, e também, dado meu assunto, porque tal era necessario. Pois eles sio as fortificagdes avangadas do inimigo, de onde este ameaga 0 poder civil. E se ape- sar disto verificardes que meu trabalho € atacado por todos, talvez vos apraza desculpar-me, dizendo que sou um homem que ama suas prprias opinides, que acredito em tudo © que digo, que honrei vosso irmZo, como vos honro a vos, ¢ nisso me apoici para assumir 0 titulo (sem vosse conhecimento) de ser, como sou, Senhor, Vosso mui humilde mui obediente servidor THO. HOBBES Paris, 15/25 de abril de 1651, Introdugio Do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez ¢ governa o mundo) € imitada pela arte dos homens também nisto: que Ihe é possivel fazer um animal artificial. Pois vendo que a vida nao é mais do que um movimento dos membros, cujo inicio ocorre em alguma parte principal interna, por que nado poderiamos dizer que todos os atuématos (maquinas que se movem a si mesmas por meio de molas, tal como um relégio) possuem uma vida artificial? Pois o que ¢ o coragdo, sendo uma mola; ¢ os nerves, sendo outras tan- tas cordas; e as juntas, senao outtas tantas rodas, imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado pelo Artifice? E a arte vai mais longe ainda, imitando aquela eriatura racional, a mais excelente obra da natureza, 0 Homem. Porque pela arte ¢ criado aquele grande Leviasd a que s¢ chama Estado, ou Cide- de (em latim Civitas), que nao ¢ senio um homem artificial, embora de maior estatura e forga do que o homem natural, para cuja protegao ¢ defesa foi projeta- do. E no qual a soberania & uma elma artificial, pois da vida e movimento ao corpo inteiro; os magistrados ¢ outros fienciondrios judiciais ou executivos. juntas attificiais: a recompensa e 0 castigo (pelos quais, ligados ao trono da soberania, todas as juntas ¢ membros sao levados a cumprir seu dever) sia os mervos, que fazem 0 mesmo no corpo natural; a riqueza ¢ prosperidade de todos o5 membros individuais sao a forga; Salus Populi (a seguranca do pavo) & seu objetivo; os conselheiros, através dos quais todas as coisas que necesita saber lhe sao sugeri- das, sio a memséria; a justiga ¢ as leis, uma razdo ¢ uma vontade artificiais; a concérdia & a satide; a sedigdo & a doenga; ¢ a guerra civité a morte. Por tltimo, 0s paetos © convencdes mediante os quais as partes deste Corpo Politico foram criadas, reunidas e unificadas assemelham-se aquele Fiat, ao Facamos o homem proferido por Deus na Criagiio. Para descrever a natureza deste homem artificial, examinar Primeiro, sua matéria, ¢ seu ariffice; ambos os quais so 0 home. Segundo, como, ¢ através de que convencées € feito; quais sio os direitos € ‘© justo poder ou auioridade de um soberano; ¢ o que o preserva ¢ 0 desagrega. Terceiro, o que é um Estado Cristao. Quarto, o que é 0 Reino das Trevas. Relativamente ao primciro aspecto, ha um ditado que ultimamente tem sido muito usado: que a sabedoria nao se adquire pela leitura dos livros, mas do domem. Em conseqiiéncia do que aquelas pessoas que regra geral sao incapazes de apresentar outras provas de sua sabedoria, comprazem-se em mostrar 0 que pensam ter lido nos homens, através de impiedosas censuras que fazem umas as outras, por tris das costas. Mas ha um outro ditado que ultimamente nao tem sido compreendido, gragas ao. qual os homens poderiam realmente aprender a ler-se uns aos outros, se se dessem ao trabalho de fazé-lo: isto é, Nosce te ipsum, Lé-te a ti mesmo. O que nao pretendia ter sentido, atualmente habitual, de por sobre a barbara conduta dos detentares do pader para com seus inferiores. ou de levar homens de baixa estirpe a um comportamento insolente para com seus supe- riores, Pretendia ensinar-nos que, a partir da semelhanea entre os pensamentos & paixdes dos diferentes homens, quem quer que olhe para dentro de si mesmo, ¢ examine © que faz quando pensa, pina, raciocina, espera, receia, etc., € por que motivos 0 faz. podera por esse meio ler e conhecer quais so os pensamentos e paixSes de todos os outros homens, em circunsténcias idénticas, Refiro-me a semelhanca das paixdes, que sio as mesmas em todos os homens, desejo, medo, esperanca, etc., € nio 4 semelhanga dos objetos das paixdes. que so as coisas desejadas, temidas, esperadas, etc. Quanto a estas filtimas, a constituigao indivi- dual ¢ a educagdo de cada um sio tio varidveis, e so tio faceis de ocultar a nosso conhecimento, que os caracteres do coracio humano, emaranhados ¢ con- fusos como sao, devido a dissimulagao, 4 mentira, ao fingimento ¢ as doutrinas crrdneas, so se tornam legiveis para quem investiga os coragdes. E, embora por vezes descubramos os designios dos homens através de suas agdes, tentar fazé-lo sem compara-las com as nossas, distinguindo todas as circunstancias capazes de alterar 0 caso, é 9 mesmo que decifrar sem ter uma chave,e deixar-se as mais das vezes enganar, quer por exeesso de confianga ou por excesso de desconfianga, conforme aquele que lé seja um bom ou um mau homem. Mas mesmo que um homem seja capaz de ler perfeitamente um outro atra- vés de suas agGes, isso servir-lhe-a apenas com seus conhecidos, que sao muito poucos, Aquele que vai governar uma nagdo inteira deve ler, em si mesmo, nao este ou aquele individuo em particular, mas o géncro humano. O que é coisa difi- cil, mais ainda do que aprender qualquer lingua ou qualquer cigncia, mas ainda assim, depois de cu ter exposto claramente e de maneira ordenada minha propria leitura, o trabalho que a outros cabera sera apenas verificar se nao encontram 0 mesmo em si proprios. Pois esta espécie de doutrina nao admite outra demonstracao. PRIMEIRA PARTE DOHOMEM 1g 2) Gn a i doa ALY leben Capiruo I Da sensagio No que se refere aos pensamentos do homem, considera-los-ei primeiro isoladamente, ¢ depois em cadeia, ou dependentes uns dos outros. Isoladamente, cada um deles é uma representagdo ou aparéncia de alguma qualidade, ou outro acidente de um corpo exterior a nés, 0 que comumente se chama um objeto. O qual objeto atua nos olhos, nos ouvidos, e em outras partes do corpo do homem, ¢ pela forma diversa como atua produz aparéncias diversas. A origem de todas elas é aquilo que denominamos sensa¢io (pois nao ha nenhuma concepgao no espirito do homem, que primeiro nfo tenha sido origina- da, total ou parcialmente, nos dreaos dos sentidos). O resto deriva daquela origem, Para 0 que agora nos ocupa, nio é muito necess4rio conhecer causa natu- ral da sensacao, ¢ escrevi largamente sobre 6 assunto em outro lugar. Contudo, para preencher cada parte do meu presente método, repetirci aqui rapidamente 0 que foi dito, A causa da sensagdo é corpo exterior, ou objeto, que pressiona o drgao proprio de cada sentido, ou de forma imediata, como no gosto e tato, ou de forma mediata, como na vista, no ouvido, € no cheiro: a qual pressao, pela mediacaio dos nervos, ¢ outras cordas ¢ memtranas do corpo, prolongada para dentro em diregdo ao cérebro € coragio, causa ali uma resisténcia, ou contrapressao, ou esforgo do coragiio, para se transmitir; cujo esforgo, porque para fora, parece ser de algum modo exterior. E é a esta aparéneia, ou itusdo, que os homens chamant Sensagdo; ¢ consiste, no que s¢ refere a visdo, numa duz, ou cor figurada; em rela: so a0 ouvido, num som, em relagio ao olfato, num cheiro, em relagio 4 lingua ¢ paladar, num sabor, ¢, em relagao a0 resto do corpo, em fri, calor, dureza, macieza, ¢ outras qualidades, tantas quantas disccrnimos pelo sentir. Todas estas qualidades denominadas sensiveis estiio no objeto que as causa, mas sio muitos Os movimentos da matéria que pressionam nossos drgdos de mancira diversa. Também em nés, que somos pressionados, elas nada mais sio do que movimen- tos diversos (pois 0 movimento nada produz senio © movimento). Mas sua apa- Féncia para nds ¢ ilusdo, quer quando estamos acordados quer quando estamos sonhando. E do mesmo modo que pressionar, esfregar, ou bater nos olhos nos faz supor uma luz, © pressionar o ouvido produz um som, também os corpos que vemos ou ouvimos produzem o mesmo efeito pela sua ago forte, embora nao observada, Porque se essas cores sons estivessem nos corpos, ou abjetos que os 10 HOBBES causam, nfo podiam ser separados deles, como. nos ¢spelhos € nos ecos por réfle- xo vemos que ¢les sd, nos quais sabemos que a coisa que vemos esta num lugar ea aparéncia em outro. E muito embora, a uma certa distancia, o proprio objeto real parega confundido com a aparéncia que produz em nds, mesmo assim 0 obje- to € uma coisa, ¢ a imagem ou ilusdo uma outra. De tal modo que em todos os casos a sensagao nada mais é do que a ilusdo originaria, causada (como disse) pela pressao, isto ¢, pelo movimento das coisas exteriores nas nossos olhos. ouvi- dos ¢ outros drgaos a isso determinados, Mas as escolas de Filosofia, em todas as Universidades da Cristandade, baseadas em certos textos de Aristéreles, ensinam outra doutrina ¢ dizem, a res- peito da causa da visdo, que a coisa vista envia em todas as diregdes uma species visivel ou, traduzindo, uma exibi¢do, apariedo ou aspecto visivel, ou um ser visto, cuja reeepedo nos olhos ¢ a visds. E quanto a causa da audigao, dizem que a coisa ouvida envia uma species audivel, isto €, um aspecto audivel, ou um ser audtvel, © qual, entrando na orelha, faz a audigdo. Também no que se refere & causa do entendimento, dizem que a coisa compreendida emite uma species inteli- givel, isto é, um ser inteligivel, o qual, entrando no entendimento, nas faz enten- der. Nao digo isto para criticar o uso das Universidades, mas porque, devendo mais adiante falar em seu papel no Estado, tenho de mostrar, em todas as oca sides em que isso vier a propésite, que coisas devern nelas ser corrigidas, cntre as quais temos-de incluir a freqiiéncia do diseurso destituido de significado. Capituto IT Da imaginagio Nenhum homem duvida da verdade da seguinte afirmacio: quando uma coisa estd imovel, permanecera imével para sempre, a menos que algo a agite. Mas niio ¢ tio facil aceitar esta outra, que quando uma coisa esta em movimento, Permanecera etermamente em movimento, a menos que algo a pare, muito embora a razao seja a mesma, a saber, que nada pode mudar por si s6. Porque os homens avaliam, no apenas os outros homens, mas todas as outras coisas, por si mes: mos, ¢, porque depois do movimento se acham sujeitos 4 dor & ao cansago, pen. sam que toda 0 resto se cansa do movimento ¢ procura naturalmente 0 repouso, sem meditarem se no consiste em qualquer outro movimento esse desejo de repouso que encontram ¢m si proprios. Dai se segue que as escolas afirmam que ‘9s corpos pesados caem para baixo por falta de um desejo para 9 repouso, ¢ para conservagaio da sua natureza naquele lugar que é mais adequado para eles, atri- buindo, de maneira absurda, a coisas inanimadas o desejo & o conhecimento do que € bom para sua conservagio (o que é mais do que o homem possui). Quando um corpo esté em movimento, move-se eternamente (a menos que algo o impega), e seja o que for que a faga, nao 0 pode extinguir totalmente hum 86 instante, mas apenas com 0 tempo € gradualmente, como vemos que acontece som a gua, pois, muito embora o vento deixe de soprar, as ondas continuam a rolar durante muito tempo ainda. O mesmo acontece naquele movimento que se observa nas partes internas do homem, quando ele vé, sonha, ete.. pois apds a desapari¢ao do objeto, ou quando os olhos esto fechados, conservamos ainda a imagem da coisa vista, embora mais obscura do que quando a vemos, £ é a isto que os latinos chamam imaginagdo, por causa da imagem criada pela visio, ¢ aplicam 0 mesmo termo, ainda qué indevidamente, a todos os outros sentidos. Mas os gregos chamam-Ihe fantasia, que significa aparéncia, e & tio adequado a um sentido como a outro. A imaginaedo nada mais ¢ portanto seniio uma sensa- edo diminuida, ¢ encontra-se nos homens, tal como em muitos outros seres vivas, quer estejam adormecidos, quer estejam despertos. A diminuigao da sensagao nos homens acordados mio ¢ a diminuigao do movimento feito na sensagao, mas seu obscurecimento, um pouco 4 maneira como a luz do sol obscurece a luz das estrelas, as quais nem por isso deixam de exercer a virtude pela qual sio visiveis, durante o dia menos do que a noite. Mas porque, entre as muitas impresses que os nossos olhos, ouvidos e outros dreaos recebem dos corpos exteriores, s6 é sensivel a impressio predominante, assim 12 HOBBES também, sendo a tuz do sol predominanie, nio somos afetados pela aco das estrelas. E quando qualquer objeto é afastado dos nossos olhos, muito embora permanega a impressio que fez em nés, outros objetos mais presentes sucedem-se © atuam em nds, € a imaginacao do passado fica obscurecida ¢ enfraquecida, tal como a voz de um homem no ruido diario, Daqui se segue que quanto mais tempo decorrer desde a visto ou sensagio de qualquer objeto, tanto mais fraca é a imaginagao. Pois a continua mudanga do corpo do homem destréi com o tempo as partes que foram agitadas na sensagdo, de tal modo que a distancia no tempo € no espago tém ambas © mesmo ¢feito em nds, Pois tal como a distancia no espa- go os objetos para que olhamos nos aparecem minisculos ¢ indistintos em seus pormenores ¢ as vozes se tornam fracas e inat ladas, assim também, depois de ‘uma grande distancia de tempo, 4 nossa imaginagao do passado é fraca e perde- mos, por exemplo, muitos pormenores das cidades que vimos, das ruas, ¢ muitas circunstancias das agGes. Esta sersagdo diminufda, quando queremos exprimir a propria coisa (isto é a propria tlusdo), denomina-se imaginaedo, coma ja disse anteriormente; mas, quando queremos exprit inuigdo ¢ significar que a sensagao € evanescente, antiga ¢ passada, denomina-se memoria. Assim a imagi- nagdo ¢ a meméria sto uma ¢ a riesma coisa, que, por razdes varias, tem nomes diferentes. Muita meméria, ou a meméria de muitas coisas, chama-se experiéneia, A imaginagao diz respeito apenas aquelas coisas que foram anteriormente percebi- das pela serisagaio, ou dé uma s6 vez, ou por partes em varias vezes. A primeira (que consiste em imaginar o objeto em sua totalidade, tal como ele se apresentou na sensagio) & a imaginagao simples, como quando imaginamos um homem, ou um cavalo que vimos antes; a outra ¢ composta, como quando a partir da visio de um homem num determinado momento, ¢ de um cavalo em outro momento, concebemos nO nosso espirito um centauro. Assim, quando alguém compoe a imagem de sua prdpria pessoa com a imagem das ages de outro homem, como quando alguém se imagina um Hércules, ou um Alexandre (o que freqiientemente acontece dqueles que léem muitos romances), trata-se de uma imaginagio com- posta ¢ na verdade nada mais é do que uma ficgdo do espirito. Existem também outras imagens que surgem nos homens (ainda que em estado de vigilia) devido a uma forte impressio feita na sensagio, como acontece quando, depois de olhar- mos fixamente para © Sol, permanece diante dos nossos olhos uma imagem do Sol que se conserva durante muito tempo depois; ou quando, depois de atentar longa e fixamente para figuras geométricas, o homem (ainda que em estado de vigilia) tem no escuro as imagens de linhas ¢ angulos diante de seus olhos. Este tipo de ilusio nao tem nenhum nome especial, por ser uma coisa que nao aparece comumente no discurso dos homens. As imaginagdes daqueles que se encontram adormecidos denominam-se sonhos, E também estas (tal como as outras imaginagdes) estiveram anterior: mente, ou em sua totalidade ou parcialmente, na sensagao. E porque, na sénsa- G80, © cérebro & os nervos, que constituem os Orgios necessarios da sensagao, ssti@ de tal modo entorpecidos que nao sio facilmente agitados pela acdo dos LEVIATA -1 13 objetos externos, nc pode haver no sono qualquer imaginagao ou sonho que nao provenha da agitagao das partes imernas do corpo do homem, Estas partes inter- nas, pela conexao que tém com o cérebro e outros érgaos, quando esto agitadas mantém os mesmos em movimento. Donde se segue que as imaginagdes ali ante- riormente formadas surgem como se 0 homem estivesse acordado. com a ressalva que. estando agora os orgaos dos sentidos entorpecidos, a ponto de nenhum novo objeto os poder dominar ¢ obscurccer com uma impresséo mais vigorosa, um sonho tem de ser mais claro, em meio a este siléncio da sensagao, do que nossos pensamentos quando despertos. E daqui se segue que ¢ uma questao dificil, e tal- vez mesmo impossivel, estabelecer uma distingZo clara entre sensagao e sonho. No que me diz respeito, quando observo que nos somhos nao penso muitas vezes hem constantemente nas mesmas pessoas, lugares, objectos, agdes que ocupam 0 meu pensamento quando estou acordado, ¢ que nao recordo uma tao longa cadeia de pensamentos coerentes, sonhande como em outros momentos, e porque acor- dado observo muitas vezes o absurdo dos sonhos, mas nunca sonho com os absurdos de meus pensamentos. déspertos. contento-me com saber que. estando desperto, nio sonho, muito embora, quando sonito, me julgue acordado. E dado que os sonhos sao causados pela perturbagao de algumas das partes internas do corpo, perturbagdes diversas tém de causar sonhos diversos. E daqui s¢ segue que estar deitado com frié provoca sonhos de terror ¢ faz surgit o pensa- mento ¢ 4 imagem de alguns objclos temerosos (sendo reciprocos o movimento do cérebro para as partes internas, ¢ das partes internas para o eérebro). E que do mesmo modo que a célera provoca, quando estamos acordados, calor em algu- mas partes do corpo, assim também, quando estamos dormindo, 0 exeesso de calor de algumas das partes provoea a célera, ¢ faz surgir no eérebro a imagina gdo de um inimigo. Da mesma maneira, tal como a bondade natural causa desejo quando estamos despertos, ¢ 0 desejo provoca calor em certas outras partes do corpo, assim tambem o excesso de calor nessas partes, enquanto dormimos, faz surgir no cércbro uma imaginagao de alguma bondade manifestada. Em suma. Nossos sonhos sio o reverso de nossas imaginagdes despertas, iniciando-se o movimento por um lado quando estamos acordados, e por outro quando sonhamos. Observa-se a maior dificuldade em discernir 0 senho dos pensamentos des- pertos quando, por qualquer razdio, nos apercebemos de que ndo dormimos, 0 que € facil de acontecer a um homem cheio de pensamentos terriveis ¢ cuja cons- éncia se encontra muito perturbada. e dorme sem mesmo ir para a cama ou tirar 4 roupa, como slguém que cabeceia numa cadeira, Pois aquele que se esforga por dormir ¢ cuidadosamente se deita para adormecer, no caso de lhe aparecer algu ma ilusdo inesperada e extravagante, s6 a pode pensar como um sonho. Lemos acerea de Marcos Bruto (aquele a quem a vida foi concedida por Jitio César ¢ que foi também o sew valido, ¢ que apesar disso o matou) de que maneira em Fil. pi, na noite antes da batalha contre César Augusto, viu uma tremenda aparigdo, que é freqiientemente narrada pelos historiadores como uma visio, mas, conside- radas as circunstincias, podemos fecilmente ajuizar que nada mais foi do que um 4 HOBBES surto sonho. Pois estando sentado em sua tenda, pensativo e perturbado com 0 horror de seu ato iemerdrio, no the foi dificil, ao dormitar no frie, sonhar com aquilo que mais o atemorizava, ¢ esse temor. assim como gradualmente o fez acordar, também gradualmente deve ter feito a aparigdo desaparecer. E, nao tendo nenhuma certeza de ter dormido, nao podia ter qualquer razio para pensa- Ja como um sonho, ou quaiquer outra coisa que nao fosse uma visio. E isto nao acontece raramente, pois mesmo aqueéles que estdo perfeitamente acordados, se foram temerosos ¢ supersticiosos, se se encontrarem possuidos por contos de hor- for, ¢ estiverem sozinhos no escuro, esto sujeitos a tais ilusdes ¢ julgam ver espi- ritos ¢ fantasmas de pessoas mortas passeando nos cemitérios, quando ou é ape- nas ilusdo deles, ou entio a velhacaria de algumas pessoas que se servem desse temor supersticioso para andar disfarcados de noite a caminho de lugares que nao gostariam que se soubesse serem por elas freqiientados. Desta ignordncia quanto 4 distingdo entre os sonhos, ¢ outras ilusdes fortes, © a visdo € a sensacdo, surgi. no passado, a maior parte da religiao dos gentios, os quais adoravam satiros, faunos, ninfas, ¢ outros seres semelhantes, ¢ nos nos- 808 dias a opiniao que a gente grosseira tem das fadas, fantasmas, e gnomos, ¢ do poder das fei ras. Pois, no que se refere as feiticeiras. nao penso que sua feiti- garia seja algum poder verdadeiro; mas contudo clas sio justamente punidas, pela falsa crenga que possuem, acrescentada ao seu objetivo de a praticarem se puderem, estando sua atividade mais proxima de uma nova religido do que de uma arte au uma ciéncia, E quanto as fadas e fantasmas ambulantes, a idéia deles foi, penso, com o objetivo ou expresso ou nao refutado, de manter o uso do exar- cismo, das cruzes, da agua benta, ¢ outras tantas invengdes de homens religiosos, Contudo, nao ha davida de que Deus pode provocar aparigses ndo naturais, mas nao & questo de dogma na {é cristd que cle as provoque com tanta freqiiéncia que Os homens as devam temer mais do que temem a permanéncia, ou a modificagao do curso da Natureza, que ele também pode deter ¢ mudar. Mas homens perver. sos. com a pretexto de que Deus nada pode fazer, leyvam a sua ousadia ao ponto de afirmarem seja o que for que hes convenha, muito embora saibam que é men- tira. Cabe ao homem sensato sé acreditar naquilo que a justa razao Ihe apontar como crivel. Se desaparecesse este temor supersticioso dos espiritos, ¢ com ele os prognésticos tirados dos sonhos, as falsas profecias, ¢ muitas outras coisas dele decorrentes, gragas 4s quais pessoas ambiciosas ¢ astutas abusam da eredulidade da gente simples, os homens estariam muito mais bem preparados do que agora para a obediéncia civil. E esta devia ser a tarefa das Escolas, mas clas pelo contrario alimentam tal doutrina, Pois (ignorando o que seja a imaginagao, ou a sensagao) aquilo que recebem, ensinam: uns dizendo que as imaginagdes surgem deles mesmos € ndo tém causa; outros afirmando que elas surgem mais comumente da vontade, e que as bons pensamentos siio insuflados (inspirados) no homem por Deus, ¢ os Maus. pensamentos pelo Diabo. Ou entio que os bons pensamentos sao despejados (infundidos) no homem por Deus, e 0s maus pensamentos pelo Diabo. Alguns dizem que os sentidos recebem as espécies das coisas, ¢ as transmitem ab sentido LEVIATA-I 1s comum, e o sentido comum as trensmite por sua vez 4 fantasia, e a fantasia & memoria, ¢ a memoria ao juizo, tal como coisas passando de mao em mao, com muitas palavras que nada ajudam acompreensio. A imaginagao que surge no homem (ou qualquer outra criatura dotada da faculdade de imaginar) pelas palavras, ou quaisquer outros sinais voluntarios, €.0 que vulgarmente chamamos entendimento, ¢ comum ao homem € aos outros animais. Pois um cao treinado ertendera 9 chamamento ou a reprimenda -do dono, ¢ 0 mesmo acontece com outros animais. Aquele entendimento que & pro- prio do homem é 0 entendimento nao sd de sua vontade, mas também de suas concepgGes ¢ pensamentos, pela seqiiéncia e contextura dos nomes das coisas em afirmagdes, negagées, ¢ outras formas de discurso, ¢ deste tipo de entendimentos falarei mais adiante. CapiTuLo TIT Da conseqiiéncia ou cadeia de imaginagdes Por conseqiiéneia, ou cadeia de pensamentos, entendo aquela sucesso de um pensamento.a outro, que se denomina (para se distinguir do discurso em pala- vras) discurso mental. Quando o homem pensa scja no que for, o pensamento que se segue nao é tao fortuito como poderia parecer. Nao @ qualquer pensamento que st segue indiferentemente a um pensamento, Mas, assim como nao temos uma imaginacio da qual nao tenhamos tido antes uma sensagio, na sua totalidade ou em parte, do mesmo modo nao temos passagem de uma intaginagao para outra se nao tiver- mos tido previamente.o mesmo nas nossas sensagdes, A razio disto é a seguinte! todas as ilusdes siio movimentos dentro de nds, yestigios daqueles que foram fei- tos na sensagio; ¢ aqueles movimentos que imediatamente se sucedem uns aos outros na sensagao continuam também juntos depois da sensagdo. Assim, apare- cendo novamente o primetro ¢ sendo predominante. o outro segue-o, por coerén- cia da matéria movida, 4 mancira da agua sobre uma mesa lisa, que, quando se empurra uma parte com o dedo, 6 resto segue também. Mas porque na. sensag’io de uma mesma coisa percebida ora se sucede uma coisa ora outra. acontece no tempo que so imaginarmos alguma coisa nao ha eerteca do que imaginaremos em seguida. S6 Lemos a certeza de que sera alguma coisa que antes. num ou noutro momento, se sucedeu dquela. Esta cadeia de pensamentos, ou discurso mental, é de dois tipos. O primeira é livre, sem designio, ¢ inconstante. Como quando nao hi um pensamento apaixo- nado para governar ¢ dirigir aqueles que se lhe seguem, como fim ou meta de algum desejo, ou outra paixdo. Neste caso diz-se que os pensamentos vagueiam, © parecem impertinentes uns aos outros, como acontece no sonho. Assim sio comumente os pénsamentos dos homens que n&o sé esto sem companhia mas também sem quaisquer preocupagdes, embora mesmo entdo seus pensamentos estejam to ocupados como em qualquer outro momento, mas desta vez sem har- monia, como o som de um alaiide fora de tom, ou, mesma dentro do tom, wcado por alguém que nao saibs tocar. E contudo, nesta selvagem disposicdo de espiri- 0. 0 homem pode muitas vezes perceber o seu curso ¢ a dependéncia de um pen- samento em rclagio a outro. Pois num diseurso da nossa atual guerra civil, que coisa pareceria mais impertinente do que perguntar (como efetivamente ueonte- ceu) qual era o valor de um dinheiro romano? Contudo para mim a coeréncia cra assaz manifesta, pois o pensamento da guerra trouxe o pensamento da entrega do LEVIATA -1 rei aos seus inimigos; este pensameato trouxe o pensamento da entrega de Crist € este por sua vez o pensamento dos trinta dinheiros, que foram o prego da trai gao: ¢ dai facilmente se seguiu aquela pergunta maliciosa. E tudo isto num breve momento, pois 0 pensamento € célere. A segunda € mais constante por ser regulada por algum deseja ou designio. Pois a impressio feita por aquelas coisas que desejamos, ou receamos, é forte permanente. ou (quando cessa por alguns momentos) de rapido retorne. E por vezes tao forte que impede e interrompe nosso sono. Do desejo surge 0 pensa- mento de algum meio que vimos produzir algo de semelhante Aquilo que almeja- mos; ¢ do pensamento disso. 0 pensamento de meios para aquele meio: e assim sucessivamente. até chegarmos a glgum inicio dentro de nosso proprio poder. E porque o fim, pela grandeza da impressio, vem muitas vezes ao espirito, no caso de nossos pensamentos comecarem a divagar. eles sao rapidamente trazidos de Move ao caminho certo, O que, observade por um dos sete sibios. 0 levou a dar aos homens o seguinte preceito, que hoje esti esquecido, Respice finem, o que sig- nifica que em todas as nossas ages devemos olhar muitas veces para aquilo que qucremos ter, pois deste modo concentramos todos os nossos pensamentos na forma de o atingir. A cadeia dos pensamentos regulados € de duas espécies: uma, quando. a partir de um efeito imaginado, procuramas as causas, ou meios que o produsi ram, ¢ esta espécie ¢ comum ao homem ¢ aos outros animais: a outra é quando, imaginando seja o que for. procuramos todos os possiveis efeitos que podem por essa coisa ser produzidos ou, por outras palavras, imaginamos © que podemos fazer com cla, quando a tivermos, Desta espécic s6 tenho visto indicios no homem., pois se trata de uma curiosidade pouco proviivel na natureza de qualquer ser vivo qué ndo tenha outras paixdes além das sensuais, como por exemplo a fome, a sede, a lascivia c a célera. Em suma, o discurso do espirito, quando @ governado pelo designio, nada mais é do que procura, ou a capacidade de inven- G40, que os latinos denominaram sagacitas ¢ solertia, uma busca das causas de aalgum efeito presente ou passado, cu dos efeitos de alguma causa passada aw pre- senate. Umas vezes 0 homem procura aquilo que perdeu, ¢ daqucle lugar e tempo em que sentiu a sua falta, o seu espirito volta atrés. de lugar em lugar, de momen to em momento, 4 fim de encontrar onde € quando o tinha; ou, por outras pala- Was, piira encontrar algum momento ¢ lugar certo ¢ limitado no qual possa come- gar um método de procura. Mais uma ver. dai os seus pensamentos percorrem os mesmos lugares ¢ momentos, a fim de descobrir que agdo, ou outra ocasiao o podem ter feito perder. A isto chamamos recordapdo, ou o ato de trazer a0 espiri to; 08 latinos chamavam-lIhe reminiscentia, por s¢ tratar de um reconhecimento das nossas acdes passadas. As vezes 0 homem conhece um lugar determinado, no Ambito do qual ele deve procurar, @ entdo seus pensamentos acorrem de todos os lados para ali, como quando alguém varre uma sala para encontrar uma jéia, ou quando um cachorro percorre um campo parz encontrar um rastro, ou quando um homem percorre o alfabeto para iniciar uma rima. 18 HOBBES As vezes 0 homem deseja conhecer 0 acontecimento de uma agio, ¢ entdio pensa em alguma agso semelhante no passado, e os acontecimentos dela, uns aps 0» outros, supondo que acontscimentos semelhantes se devem seguir a agdes semelhantes. Como aquele que prevé o que acontecera a um criminoso reconhece aquilo que ele viu seguir-se de crimes semelhantes no passado. tendo esta ordem de pensamentos: 0 crime, 0 oficial de justiga, a prisdio, o juiz e as galés. A este tipo de pensamentos se chama previséo, e prudéncia, on providéncia, e algumas vezes sabedoria, embora tal conjetura, devido a dificuldade de observar todas as cireunstincias, seja muito falaciosa. Mas isto é certo: quanto mais experiéncia das coisas passadas tiver um homem, tanto mais prudente é ¢ suas previsdes raramente falham, Sé © presertie om existéncia na natureza; as eoisas passaday tém existéncia apenas na meméria, mas as coisas que esta para vir no 18m exis- téncia alguma. sendo o futuro apenas ima ficgao do espirito, aplicando as conse- qiéncias das agdes passadas As agdes que sdo presentes, o que é feito com muita certeza por aqucle que tem mais experiéneia, mas nao com a certeza suficiente. E muito embora se denomine prudéncia quando 0 acontecimento corresponde a Rossa expectativa, contudo, em sus propria natureza, nada mais é do que suposi- Gao. Pois a previsdo das coisas que esto para vir, que é providéncia, 63 compete Aquele por cuja vontade as coisas devem avontecer. Dele apenas, ¢ sobrenatural- mente, deriva a profecia. O melhor profeta naturalmente é 0 melhor adivinho, e melhor adivinho aquele que ¢ mais versado ¢ erudito nas questdes que adivinha, pois cle tem maior niimero de sinaie pelos quais se guiar, Um sinal o evento antecedente da conseqiiente, e contrariamente, o conse- aiiente do antecedente, quando conseqiiéneias semethantes foram anteriormente observadas. E quanto mais veces tiverem sido observadas, menos incerto & 0 sinal. E portanto aquele que possuir mais experiéncia em qualquer tipo de assunto tem maior niimero de sinais por que se gular para adivinhar os tempos futuros, ¢ conseqiientemente ¢ o mais prudente. E muito mais prudente do que aquele que & Rovato nesse assunto, desde que ndo seja igualado por qualquer vantagem de uma sabedoria natural € extemporaria, muito embora os jovens possam pensar 0 contrario, Contudo niio é a prudéncia que distingue © homem dos outros animais, Ha animais que com um ano obscrvam mais ¢ alcangam aquilo que ¢ bom para eles de uma mancira mais prudente do que jamais alguma crianga poderia fazer com dez anos. Do mesmo modo que a prudéneia é uma suposi¢do do futuro, tirada da experiencia dos tempos passados, tambem ha uma suposigao das coisas passadas tirada de outras coisas, nio futuras, mas também passadas. Pois aquele que tiver visto por que graus e fases um Estado Morescente Primcire entra em guerra ¢ivil © depois chega a ruina, ao observar as ruinas de qualquer outro Estado, pressu Pora uma guerra semelhante e fases semelhantes ali também. Mas esta conjewra fem quase 4 mesma incerteza que a conjetura do futuro, sendo ambas bascadas apenas na experiéncia, Nao ha qualquer outro ato do espirito humano que cu possa lembrar, natu- LEVIATA -1 19 ralmente implantado nele, que exija alguma coisa mais além do fato de ter nasci- do homem e de ter vivido com 9 uso de seus cinco sentidos. Aquelas outras facul- dades das quais falarei a pouco ¢ pouco. e que parecem caracteristicas apenas do homem, sao adquiridas e aumentadas com o estudo ¢ a indistria, ¢ sfo aprendi- das pelo homem através da instrugao c da disciplina, e procedem todas da inven- cao das palavras ¢ do discurso. Pois além da sensagdo ¢ dos pensamentos ¢, da cadeia de pensamentos, o espirito do homem nao tem qualquer outro movimento, muito embora, com a ajuda do diseurso edo método, as mesmas faculdades pos- sam ser desenvolvidas a tal ponto que distinguem os homens de todos os outros seres vivos. Seja o que for que imaginemos é finito, Portanto nio existe qualquer idéia, ou cencepgiio, de algo que denominamos infinito. Nenhum homem pode ter em seu espirito uma imagem de magnitude infinita, nem conccber uma velocidade infinita, um tempo infinito. ou uma forga infinita, ow um poder infinite. Quando dizemos que alguma coisa é infinita, queremos apenas dizer que no somos capa- zes de conceber os limites ¢ fronteiras da coisa designada, nao tendo concepeao da coisa, mas de nossa propria incapacidade. Portanto o nome de Deus é usando. no para nos fazer coneebé-Io (pois ele & inconipreenstvel ¢ sua erandeza e poder so inconcebiveis), mas para que 0 possamos venerar. Também porque (como disse antes) seja o que for que conecbamios foi primeiro percebido pela sensacio, quer tudo de uma vez. quer por partes. O homem nao pode ter um pensamento Tepresentando alguma coisa que nao esteja sujeita a sensacao, Nenhum homem portanto pode conceber um coisa qualquer, mas tem de a conceber em algum lugar, ¢ dotada de uma determinada magnitude. e suscetivel de ser dividida em partes. Que alguma coisa esté toda neste lugar, ¢ toda em outro lugar ao mesmo tempo; que duas, ou mais coisas, padem estar num e no mesmo. lugar ao mesmo tempo: nenhuma destas coisas jamais ocorreu ou pode ocorrer na sensagiio; mas siio discursos absurdos, acgitos pela autoridade (sem qualquer signi filésofos iludidos, ¢ de escolasticos iludidos, ou iludidores. Cariruto IV Da linguagem A invengdo da imprensa, conquanto engenhosa, comparada com a invengio das detras, é coisa de somenos importancia. Mas ignora-se quem pela primeira vez descobriu 0 uso das letras. Diz-se que o primeiro que as trouxe para a Grécia foi Cadinus, filho de Agenor, rei da Fenicia. Uma invengdo fecunda para prolongar a meméria dos tempos passados, : estabelecer a conjungao da humanidade, dis- persa por tantas e tao distantes regides da Terra, ¢ com dificuldade, como se vé pela cuidadosa observagio dos diversos movimentos da lingua, palato, labios, ¢ ‘outros érgdos da fala, em estabelecer tantas diferengas de caracteres quantas as Necessirias para recordar. Mas a mais nobre ¢ titil de todas as invengdes foi ada linguagem, que consiste em names ou apelacdes e em suas conexdes, pelas quais ‘9s homens registram seus pensamentos, os recordam depois de Passarem, ¢ lam- bém os usam entre si para a utilidade e conversa reciprocas, sem o que nao have- entre os homens nem Estado, nem sociedade, nem contrato, nem paz, tal como nao existem entre os ledes, 05 ursos ¢ os lobos. O primeiro autor da linguagem foi © proprio Deus, que ensinou a Adio a maneira de designar aquelas criaturas que colocava 4 sua vista, pois as Escrituras nada mais dizem a este respeito. Mas isto foi suficiente para leva-lo.a acrescentar mais nomes, a medida que a experiéncia € 0 convivio com as criaturas Ihe forneciam ocasiao para isso, ¢ para ligd-los gradualmente de modo a fazcr-se compreender. E assim com o passar do tempo pode ser encontrada toda aquela linguagem para a qual cle descobriu uma utilida- de, embora nao fosse tdo abundante como aquela de qué necessita 0 orador ou 0 filsofo. Pois nada encontrei nas Escrituras que pudesse afirmar, dircta ou indire- tamente, que a Addo foram ensinados os nomes de todas as figuras. nimeros, medidas, cores, sons, ilusdes, relagdes, ¢ muito menos os nomes de palavras ede discursos, como geral, especial, afirmativo, negativo, interrogativo, optativo, infi- nitivo, a quais sio todas itteis, e muito menos os de entidade, intencionalidade, qliididade, e outeas insignificantes palavras das Escolas, Mas toda esta linguagem adquirida © aumentada por Ado e sua posteri- dade, foi novamente perdida na torre de Babel, quando pela mao de Deus todos os homens foram punidos, devido a sua rebeliao, com o esquecimento de sua pri mitiva linguagem, E sendo depois disso forgados a dispersarem-se pelas varias partes do mundo, resultou necessariamente que a diversidade de Iinguas que hoje existe proveio gradualmente dessa separacao, a medida que a necessidade (a mae de todas as invengdes) os foi ensinando, ¢ com o passar dos tempos tornaram-se por toda a parte mais abundantes, LEVIATA -I 4 uso geral da linguagem consiste em passar nosso discurso mental para um discurso verbal, ou a cadeia de nossos pensamentos para uma cadeia de palavras, E isto com duas utilidades, uma das quais consiste em registrar as conseqiiéncias de nossos pensamentos. os quais, podendo escapar de nossa memoria ¢ levar-nos deste modo a um novo trabalho, podem ser novamente recordados por aquelas palavras com que foram marcados. De maneira que a primeira utilizagao dos nomes consiste em servirem de marcas, ou notas de lembranga. Uma outra utili- zagGo consiste em significar, quando muitos usam as mesmas palavras (pela sua conexao € ordem), uns aos outros aquilo que concebem, ou pensam de cada assunto, ¢ também aquilo que desejam, temem, ou aquilo por que expetimentam alguma paixao. E devido a esta utilizagio sao chamados sinais. Os usos especiais da linguagem so os seguintes: em primeiro lugar, registrar aquilo que por cogita- go descobrimos ser a causa de qualquer coisa, presente ou passada, ¢ aquilo que achamos que as coisas presentes ou passadas podem produzir, ou causar, 0 que em suma € adquirir artes. Em segundo lugar, para mostrar aos outros aquele conhecimento que atingimos, ou seja, aconselhar e ensinar uns aos outros. Em tereeiro lugar, para darmos a conhecer aos outros nossas vontades ¢ objetivos, a fim de podermos obter sua ajuda. Em quarto lugar, para agradar ¢ para nos deli- ciarmos, e aos outros, jogando com as palavras, por prazer e ornamento, de maneira inocente. A estes usos correspondem quatro abusos. Primeiro, quando os homens registram erradamente seus pensamentos pela inconstancia da significagdo de suas palayras, com as quais registram por suas concepgGes aquilo que nunca conceberam, ¢ deste modo se enganam. Em segundo lugar, quando usam palavras de mancira metaférica, ou s¢ja, com um sentido diferente daquele que thes foi atribuido, ¢ deste modo enganam os outros. Em terceiro lugar, quando por pala- vras declaram ser sua vontade aquilo que nao é Em quarto lugar, quando as usam para se ofenderem uns aos outros, pois dado que a natureza armou os seres vivos, uns com dentes, outros com chifres, ¢ outros com maos para atacarem 0 inimigo, nada mais ¢ do que um abuso da linguagem ofendé-lo com a lingua, a menos que se trate de alguém que somos obrigados a governar, mas entio nao é ofender, ¢ sim corrigir ¢ punir. A linguagem serve para a recordagao das conseqiiéncias de causas ¢ efeitos, através da imposi¢o de nomes, e da conexdo destes. Alguns dos nomes sao prdprios, e singulares a uma s6 coisa, como Pedro, Jodo, este homem, esta drvore; © alguns sia comuns a muitas coisas, coro homem, cavalo, arvore, cada um dos quais, apesar de ser um s6 nome, é contudo o nome de varias coisas particulares, em relac¢do as quais em conjunto se deno- mina um universal, nada havendo no mundo universal além de nomes, pois as coisas nomeadas sao, cada uma delas, individuais ¢ singulares. Um nome universal é atribufdo a muitas coisas, devido a sua semelhanga em alguma qualidade, ou outro acidente, e, enquanto o nome préprio traz ao espirito uma coisa apenas, os universais recordam qualquer dessas muitas coisas. E dos nomes universais, uns so de maior ¢ outros de menor extensiio, os @. HOBBES mais amplos conipreendendo os menos amplos, ¢ alguns de igual extensao compreendendo-se uns aos outros reciprocamente. Como, por exemplo, 0 nome corpa tem maior significagao do que a palavra homem, e a compreende, € os nomes homer e racional sio de igual extensio, compreendendo-se um ao outro mutuamente. Mas aqui devemos chamar a ateng4o para o fato de por um nome nao s¢ entender sempre, como na gramatica, uma so palavra, mas as vezes. por circunlocugao, muitas palavras juntas, pois todas estas palavras “aquele que em suas ages observa as leis do seu pais” constituem um s6 nome, equivalente a esta simples palavra justo. Por esta imposigaio de nomes, uns mais amplos, outros de significagao mais restrita, transformamios o caleulo das. conseqiiéncias de coisas imaginadas nto espirito num calculo das consegiiéncias de apelagdes. Por exemplo, um homem que nao possui qualquer uso da linguagem (como aquele que nasceu ¢ permaneceu completamente surdo ¢ mudo), se tiver diante dos olhos um triangulo ¢ também dois Angulos retos (como os dos cantos de um quadrado), pode, através de medigao, comparar e descobrir que os trés angulos daquele triangulo sio iguais Aqueles dois angulos retos que esto ao lado, Mas, s¢ lhe for mostrado um Outro trigngulo diferente do primeiro na forma, ele nio pode saber sem um novo ‘trabalho s¢ os trés angulos desse tridngulo s4o também iguais 20 mesmo. Mas aquele que tem o uso das palavras, quando observa que tal igualdade era conse- qiente, nio do comprimento dos lados, nem de qualquer outro aspecto particular do tridngulo, mas apenas do fato de os lados serem retos ¢ os angulos trés, e de isso ser aquilo que o levava a denominar tal figura um triangulo, nao hesitard em concluir universalmente que tal igualdade dos Angulos existe em todos os tridngu- los, sejam eles quais forem, ¢ em registrar sua invengdo nestes termos gerais: “Todo triangulo tem seus trés angulos iguais a dois angulos retos”. E assim a conseqtiéncia descoberta num cuso particular Passa a ser registrada e recordada, como uma regra universal, e alivia nosso calculo mental do espago e do tempo, & liberta-nos de todo o trabalho do espirito, economizando o primeiro, e faz que aquilo que se descobriu ser verdade aqui ¢ agora seja verdade em sodos os tem- pose lugares, Mas 0 uso de palavras para registrar nossos pensamentos nao é tio evidente como na numeragao, Um louco natural que nunca conseguisse aprender de cor a ordem das palavras numerais, como wm, dois, trés, pode observar cada pancada de um relégio ¢ acompanhar com a cabega, ou dizer um, um, um, mas nunca pode saber que horas estfo batendo. E Parece que houve uma época em que esses nomes de nimeros nao estavam em uso, € os homens contentavam-se em utilizar 98 dedos de uma ou das duas maos para aquelas coisas que descjavam contar, ¢ dai resultou que hoje as nossas palavras numerais sO sio dez em qualquer nagdo, ¢ em algumas s6 so cinco, caso em que se recomega de novo. E aquele que sabe contar dez, se os recitar fora de ordem, perder-se-A ¢ nao sabera o que esteve a fazer. E muito menos sera capaz de adicionar ¢ subtrair e realizar todas as outras ‘operagoes da aritmética. De modo que sem palavras nao ha qualquer possibili- dade de reeonhecer os nimeros, ¢ muito menos as grandezas, a velocidade, a LEVIATA - 1 Fad forga, € outras coisas, cujo calculy ¢ necessario a existéncia. ou ao bem-estar da humanidade, Quando dois nomes esto ligados numa conseqiiéneia, ou afirmagio, como por exemplo “O homem é um ser vivo”, ou esta outra, “Se ele for um homem. é um ser vivo", se 0 ultima nome ser vivo significar tudo © que o primeiro nome homem significa, entdo a afirmagao. ou conseqiéncia, ¢ verdadeira: de outro modo ¢ falsa. Pois 0 verdadeiro e 0 falso sfio attibutos da linguagem, ¢ nao das coisas. E onde nao houver linguagem, nao ha nem verdade nem falsidade. Pode haver erro, como quando esperamos algo que n&o acontece. ou quando suspei- tamos algo que nao aconteceu, mas em nenhum destes casos se pode acusar um homem de inveracidade. Vendo entao que a verdade consiste na adequada ordenagdo de nomes em nossas afirmagdes, um homem que procurar a verdade rigorosa deve lembrar-se que coisa substitui cada palavra de que se serve, ¢ coloca-la de acorde com isso: de outro modo ver-se-a enredado em palavras, como uma ave em varas envisca- das: quanto mais lutar, mais se fere. E portanto em geometria (que ¢ a tinica cién- cia que prouve a Deus conceder & humanidade) os homens comegam por cstabe- lecer as significacdes de suas palavras. ¢ a esse estabelecimento de significacdes chamam dofiniedes, ¢ colocam-nas no inicio dé seu calculo, Por aqui se vé como é necessério u qualquer pessoa que aspire a um conheci- mento verdadeiro examinar as definigdes dos primeiros autores, ou para corrigi- las, quando tiverem sido estabelecidas de mancira negligente, ou para apresentar AS suas proprias. Pois os erros de definigdes se multiplicam a medida que © cal: culo avanga ¢ conduzem os homers a absurdos, que finalmente descobrem, mas que nao conseguem evitar sem calcular de novo, desde o principio, no que reside 4 base de seus erros. De onde s¢ segue que aqueles que acreditam nos livros pro. cedem como aqueles que somam muitas pequenas somas numa maior, sem aten- tarem se essa pequenas somas foram ou nao corretamente somadas; ¢ finalmente encontrando o erro visivel, e nfo cuvidando das suas primeiras bases, nao sabem que caminho seguir para se esclareeerem, mas gastam tempo azafamando-se em toro de séus livros, como aves que. entrando numa chaminé e vendo-se fechadas fum quarto, adejam em torno da enganadora luz de uma janela, por no possui- rem a sabedoria suficiente para atentarem por que caminho entraram. De tal modo que na correta definigdo de nomes reside o primeiro uso da linguagem, © qual consiste na aquisicao de ciéncia; e na incorreta definigio, ou na auséneia de definigdes, reside © primeiro abuso, do qual resultam todas as doutrinas falsas ¢ destituidas de sentido: 0 que torna aqueles homens que tiram sua instrugao da autoridade dos livros, ¢ nao de sua propria meditagao, tio inferiores & condigaio dos ignorantes, quanto sao supericres a estes os homens revestidos de uma verda- deira ciéncia. Pois entre 9 verdadeira ciéncia ¢ as doutrinas erréneas situa-se a ignorancia, A sensagéo ¢ a imaginagéo naturais nao esto sujeitas a absurdos. A natureza em si nao pode errar; e 4 medida que os homens vao adquirindo uma abundancia de linguagem, vio-se tornando mais sabios ou mais loucos do que habitualmente. Nem é possivel sem letras que algum homem se torne ou extraor- u HOBBES dinariamente sabio. ou (a menos que sua meméria seja atacada por doenga, ou deficiente constituigaa dos éreaos) extraordinariamente louco. Pois as palavras so os calculadores dos sibios, que 36 com elas calculam: mas constituem a moeda dos loucos que a avaliam pela autoridade de um Arisiéreles, de um Cice- ro, ou de um Tomds, ou de qualquer outro doutor que nada mais é do que um homem. Sujeito aos nomes & tudo aquilo que pode entrar, ou ser considerado, num calculo, € ser acrescentado um ao outro para fazer uma soma, ou subtraido um do outro ¢ deixar um resto. Os latinos chamavam aos cémputos de moeda ratfo- mes, € a0 caleulo ratiocinatia, e aquilo que nds em contas ou livros de cAleulo denominamos izes, chamavam nomtina, isto é. nomes: @ dai parece resultar a extensio da palavra rasio A faculdade de contat em todas as out Tas coisas. Os gre- gos tém uma s6 palavra, dégos, para linguagem e razéo, nio que eles pensasscin que ndo havia linguagem sem razdo, mas sim que nae havia raciocinio sem lin- guagem. E ao ato de raciocinar chamaram silogismo, 0 que significa somar as conseqiléncias de uma proposigio aoutra. E porque as mesmas coisas podem en- trar em cémputo para diversas acidentes, scus nomes so (para mostrar essa diversidade) diversamente deturpados, € diversificados. Esta diversidade dos nomes pode ser reduzida a quatro grupos gerais. Em primeiro lugar, uma coisa pode entrar em conta para maséria ou corpo, como vive, sensivel, racional, quente, frie, movido, paraio, com todos os quais nomes a palavea maréria ou corpo ¢ entendida, sendo todos cles nomes de matéria, Segundo. pode entrar em conta, ou ser considerada para algum acidente ou qualidade, que concebemas estar nela, como para ser movido, ser to longo, ser quente, etc.; ¢ entio, do nome da prépria coisa, Por uma pequena mudanga ou alteragao. fazemos um nome para aquele acidente que consideramos, e para vivo fazcmos vida, para movido. movimento, para quente, calor, para comiprido, comprimento, ¢ assim sucessivamente, E. todos esses nomes so os nomes dos aci- dentes ¢ propriedades pelos quais a materia eo corpo se distinguem um do outro, A estes nomes chama-se nomes abstratos, porque separados, no da matéria, mas do caleulo da matéria, Em tercciro lugar considerames as propriedades de nossos proprios corpos mediante as quais estabelecemos distingdes, como quando alguma coisa é vista Por nds, nds contamos nio a propria coisa, mas a visdo, a cor, a idéia dela na fan- tasia, e quando alguma coisa ¢ ouvida, nao a contamos. mas a audiedo ou o som apenas, que ¢ nossa fantasia ou concepg’o dela pelo ouvido, e estes sao nomes de fantasia, Em quarto lugar levamos em conta, consideramos ¢ denominamios os pro Prios nomes e diseursos. pois geral, universal, especial, equivoco, sao nomes de nomes. E affrmagdo, interrogacdo, ordem, narracao. silogismo, sermde, oragae, ¢ tantos outros. sfio nomes de discursos. E esta é toxda-a variedade de nomes positt- vos, que sd usados para marcar algo que existe na natureza, Ou que pode ser eenechido pelo espirito do homem, como corpos que existem, au que podem ser LEVIATA -1 25 concebidos como existentes. ou corpos cujas propriedades sio. ou podem ser coneebidas, ou palavras ¢ discursos. Ha também outros nomes chamados negatives, que sao notas para significar que uma palavra nao é 0 nome da coisa em questo, como estas palavras nada, ninguém, infinite, indiztvel, trés ndo sdo quatro, ¢ outras semclhantes. que contu- do se usam no cémputo, ou na corregdo do cémputo, e trazem ao espirito nossas eogilagdes passadas, muito embora nao scjam nomes de coisa alguma, porque nos fazem recusar admitir nomes que nao sio adequadamente usados. Todos os outros nomes nada mais sao do que sons insignificantes, ¢ estes sdo de duas espécics, Uma delas, quando sio novos ¢ o seu sentido ainda nao foi explicado por uma definigio, € desta espécie existem muitos. inventados pelos ho- mens das Escolas ¢ pelos filésofvs confusos. Uma outra espécie, quando se faz de dois nomes um sé nome, muito embora suas significagdes sejam contraditérias ¢ inconsistentes. como por exemplo este nome. corpo incorpéreo, ou (o que é o mesmo) substeineia ineorporea, e um gran- dé niimero de outros como estes. Pois sempre que qualquer afirmagao Seja falsa, os dois nomes pelos quais ¢ composta, postos lado a lado € tornados num s6, nao significam absolutamente nada. Por exemplo, se for uma afirmagao falsa dizer “um quadrangulo é redondo”. a expressio quadrdngulo redonda nada significa e um simples som. Do mesmo modo, se for falso dizer que a virtude pode ser infundida, ou insuflada ¢ retirada. as expressdes viriude infundida, virtude insu- flada, so tio absurdas ¢ insignificantes, como um quadrdnguto redondo. 1. por- tanto dificilmente encontraremos uma palavra destituida de sentido ¢ insignifi cante que nao seja formada por a'guns nomes latinos ou gregos. Um francés raras yezes uve chamar nosso Salvador pelo nome Palavia, mas muitas vezes pelo nome de Verbo, ¢ contudo Verbo ¢ Palavra em nada mais diferem sendo no fato de uma ser latina e outra francesa Quando um homem ao ou qualquer discurso tem aqueles pensamentos para os quais as palavras desse diseurso ¢ a sua conexiio foram ordenadas ¢ constituidas, entao dizemos que ele o compreendeu, nao sendo o entendimento outra coisa sendo a concepgio causada pelo discurso. E portanto s¢ a linguagem ¢ peculiar uo homem (como pelo que sei deve ser), entao também o entendimento the é peculiar. E portanto nao pode haver compreensao de afirmagdes absurdas ¢ falsas, no caso de serem universais: muito embora muitos julguem que compreen- dem, quando nada mais fazer do que repetir tranqililamente as palavras, ou gra- va-las em seu espirito Quando falar das paixdes, falarei dos tipos de discurso que significam os apetites, as aversées, ¢ as paixdes do espirito do homem, ¢ também de seu uso-e abuso, Os nomes daquclas coisas que nos afetam, isto ¢, que nos agradam ¢ desa gradam, porque todos os homens nao sao igualmente afetados pelas mesmas coi sas, nem o mesmo homem cm todes os momentos, so nos discursos comuns dos homens de signifiengdio inconstante. Pois dado que todos os nomes s80 impostos para significar nossas concepgdcs, ¢ todas as nossas afeigdes nada mais sdo de 26 HOBBES que concepeoes. quando concebemos as mesmas coisas de forma diferente, dificil: mente podcmos evitar denomin4-las de forma diferente também. Pois muito em- bora a natureza do que concebemos seja a mesma, contudo a diversidade de fossa recepedo dela. no que se refere as diferentes constituigSes do corpo, ¢ aos Preconceitos da opinido, dé a tudo a coloragio de nossas diferentes paixdes. Por- lanio, ao raciocinar, o homem tem de tomar cautela com as palavras, que, além da significacao daquilo que imaginamos de sua natureza, também possuem uma Significagaio da natureza, disposicdo, e interesse do locutor. Assim s40 os nomes de virtudes ¢ vieios, pois um homem chama sabedoria aquilo que outro homem chama termor, crueldade o que pata outro é justica, prodigalidade 0 que para outro € magnanimidade, gravidade o que para outro é estupidez, ete. E portanto tais nomes aunca podem ser verdadeiras bases de qualquer raciognio. Como também nao o podem ser as metéiforas. ¢ os trapos do discurso, mds estes sio Menos perigosos, pois ostentam sua inconstdncia, ao Passo que Os Outros nado o fazem. Capituto V Da taziio e da ciéncia Quando alguém racioeina, nada mais fae do que coneeber uma soma total, a partir da adigdo de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtragde de uma soma por outra; o que (se for feito com palavras) é conceber da conse- iéncia dos nomes de todas as partes para o nome da totalidadc, ou dos nomes da totalidade ¢ de uma parte. para o nome da outra parte. E muito embora em algumas coisas (como nos niimeros), além de adiefonar e sudirair, os homens nomeiem outras operagGes, come multiplicar ¢ dividir, contudo sio as mesmas, pois a multiplicagio nada mais é do que a adigao conjunta de coisas iguais, ¢ a visio a subtragio de uma coisa tantas vezes quantas for possivel. Estas opera- gGes nao sao caracteristicas apenas dos nimeros, mas também de toda a especie de coisas que podem ser somadas juntas ¢ tiradas umas das outras. Pois do mesmo modo que os aritméticos ensinam a adicionar ¢ a subtrait com muimeros, também os gedmetras ensinam ¢ mesmo com Jinhkas, figuras (sdlidas ¢ superfi- ciais), dngulos, proporgdes, tempos, graus de veloctdade, forca, poder, ¢ outras coisas semelhantes. Os légicos ensinam 6 mesmo com consegtiéncias de palavras, somando juntos dois names para fazer uma affrmacdo, e duas afirmacées para fazer um silogismo, e muitos silogismos para Tazer uma demonstragdo; e da soma, ou conclusao de um silogismo, subteaem uma proposi¢do para encontrar a outra. Os escritores de politica adicionam em conjunto pactos para descobrir os deveres dos homens, ¢ Os juristas leis ¢ fatos para descobrir o que ¢ certo ¢ errado nas agdes dos homens privados. Em suma, seja em que materia for que houver lugar para a adipdo ¢ para a subfragdo, ha também lugar para a razdo, ¢ onde aquelas nio tiverem o seu lugar, também a razio nada tem a fazer. A partir do que podemos definir (isto é, determinar) que coisa é significada pela palayra raza, quando a contamos entre as faculdades do espirito. Pois razdo, neste sentido, nada mais é do que edfcitlo (isto €, adigdo e subtragao) das conseqiiéncias de nomes gerais estabelecides para marcar ¢ significar nossos pensamentos. Digo marcar quando calculamos para nés proprios, e sigmificar quando demonstramos ou aprovamos nossos calculos para os outros homens. E tal como. na aritmética os homens sem pratica, ¢ mesmo professores, podem muitas vezes errar e contar falso, também em qualquer outro tema de raciocinio, os homens mais capazes, mais atentos ¢ mais praticos se podem enga- nar @ inferir falsas conclusdes. Nao porque a razao em ci propria nao seja campre uma razao certa, tal como a aritmética ¢ uma arte infalivel ¢ certa. Mas a razdo 23 HOBBES de nenhum homem, nem a razdo de seja que nimero for de homens. constitui a certeza, tal como nenhum compute € bem eito porque um grande numero de ho- mens 0 aproyou unanimemente. E portanto, tal come quando ha uma contro- vérsia a propésito de um ¢dlculd as partes tém de. por acordo miituo, recorrer a uma tazao certa, & razdo de algum arbitro, ou juiz,,a cuja sentenga se submetem, a menos que sua controvérsia sé desfaga ¢ permanega indecisa por falta de uma Fazao certa constituida pela naturcea, 0 mesmo aeontece em todos os debates, sejam de que natureza forem. E quando os homens que se julgam mais sabios do que todos os ouiros clamam e exigem uma razao certa para juiz, nada mais pro- Curam sendo que as coisas sejam determinadas, nao pela razao de outros homens, mas pela sua propria. E tao intoleravel na sociedade dos homens come no jogo. uma vez escolhide o trunfo, usar como trunfo em todas as oca: es aquela série de que se tem mais cartas na mao. Pois nada mais fazem do que tomar cada uma de suas paixdes, & medida que vao surgindo neles. pela certa razdo, ¢ istoem suas préprias controvérsias, revelando sua falta de justa razdo com a exigéncia que fazem dela, 0 uso ¢ finalidade da razdo nao é descobrir a soma. ¢ a verdade de uma, ou varias conseqiiéneias. afastadas das primeiras definigdes, © das estabelecidas significagdes de nomes, mas comecar por estas ¢ seguir de uma conseqiléncia para outra. Pois nio pode haver certeza da iltima conclusao sem a certeza de todas uquelas alirmagdes e negagdes nas quais se baseow ¢ das quais foi inferida. Como quando um chefe de familia, ao fazer uma conta, adiciona as somas de todas as notas de despesa numa sé soma, ¢ no considerando de que modo cada nota foi feita por aqueles que Ihe apresentaram a conta, nem aquilo que esta Pagando, procede como s¢ aeeitaisse a conta total. confianda na habilidade & na honestidade dos contadores; do mesmo modo no racioeinio de todas as outras coisas, aquele que tira conclusdes confiado cm autores, € ndo as examina desde os Primeiros itens em cada céticula (os quais sao as significagdes de nomes estabele- cidas por definigdes) perde 0 seu esforco e nada fica sabendo; apenas julga que sabe. Quando alguém ealeuts sem o uso de palayras, o que pode ser feito em casos especiais (como quando ao ver qualquer coisa conjeturamos 0 que provavelmente @ precedeu, ou 0 que provavelmente se Ihe seguir), se aquilo que julgou provavel que se seguisse ndo se seguir, ou se equilo que julgou provavel que tivesse prece- dido, nao tiver precedido, isto chama-se erro, a0 qual esto sujeitos mesmo ox ho mens mais prudentes. Mas quando racioeinamos com palavras de significagio eral, ¢ chegamos a uma inferéncia geral que é falsa. muito embora seja comu- mente denominada erro, é na verdade um absurda, ou um discurso sem sentido, Pois o erro & apenas uma ilusio, ao presumir que algo aconteceu, ou esti para acontecer, acerer do que, muito embora nao tivesse acontecido. ndo existe contu- do nenhuma impossibilidade aparente. Mas quando fazemos uma assereao geral, & menos que seja uma asser¢ao verdadeira, sux possibilidade & inconcebivel. E as palavras com as quais nada mais concebemos senao 0 som sio as que denomi- nanos absurdas, insignificamtes, e sem sentido. FE. Portanto se alguém me falasse LEVIATA -1 9 de um quadréngula redondo, ou dos acidentes do pao no queijo, ou de substén- cias imateriais, ou de um sujeita livre, livre arbitrio, ou qualquer coisa livre, mas livre de ser impedida por oposieao, no diria que estava em erro, mas que as suas patavras eram destituidas de sentido, ou seja. absurdas. Disse anteriormente (no scgunde capitulo) que o homem na verdade supera todos os outros animais nesta faculdade, que quando ele concehe seja o que for & capaz de inquirir as conseqiléncias disso € que efeitos pode obter com isso. E agora acrescento este outro grau da mesma faculdade, que ele sabe com as pala- vras reduzir as conseqiiéneias que descobre a regras gerais. chamadas feoremas, ou aforismags, isto & sabe raciocinar, ou caicular. nio apenas com nimeras, mas com todas as outras coisas que se podem adicionar ou subtrair urtas as outras, Mas este privilégio ¢ acompanhado de um outro, que € 0 privilégio do absur- do, ao qual nenhum ser vivo esta sujeito, exeeto o homem. E entre os homens aqueles que professam a filosofia sao de todas os que Ihe estéo mais sujeitos. Pois € bem verdude ayuilo que Cicere disse algures a seu respeito: que nada ha mais absurdo do que aquilo que se engontra nos livros de filosofia, E a razdo disto € manifesta. Pois nao ha um s6 que comece scus raciocinios com definigées. ou explicagdes dos nomes que ira usar,o que ¢ um método que s6 tem sido usado em geometria, cujas conclusdes foram assim tornadas indiscutiveis, Atribuo a primeira causa das conclusdes absurdas a falta de método, pelo fato de nao comegarem seu racivcinio com detinigdes, isto & com estabelecidas significagses de suas palavras, como se pudessem comtar sem conhecer o valor das palavras numerais, um, dois, ¢ és. E atendendo a que todos os corpos entram em conta:sob diversas considera- gdes (que mencionei no capitulo precedente), sendo estas consideragdes designa- das de mancira diferente, varios absardos decorrem da confusao ¢ da inadequada conexiio de'seus nomes em assergdes. E portant A segunda causa das assergdes absurdas & por mim atribuida ac fato de se darem aos acidentes nomes de corpas, ou aos corpos nomes de acidentes, coma fazem aqueles que dizem “a fé é infundida, ou inspirada”, quando nada pod infundido ow insuflado, a nao ser no corpo, ou os que dizem que a extensda & corpo, ¢ que os fantasmas sao espiritos, ctc. Atribuo a terceira ao fato de se darem nomes de acidentes de corpos exterio- res a nds a acidertes de nossos propries corpos, como fazem aqueles que dizem “a cor esti no corpo”, “o som est oar”, ete. A quarta ao fato de se darem romes de corpos a nomes ou discursos, como fazem aqueles que dizem que “ha coisas universais”, que “uma eriatura viva é gé- nero ou uma coisa geral”’ etc, A quinta ao fato de se darem nomes de acidentes a nomes ¢ discursos, como fazem aqueles que dizem “a natureza de uma coisa é sua definigio”, “a autori- dade de um homem ¢ sua vontade”, ¢ outras coisas semelhantes, A sexta a0 uso de metaforas. uopos c outras figuras de retorica, em vez das palavras proprias. Pois, embora seja licito dizer, por exemplo, na linguagem comum, “o caminho vai ou conduz aqui ¢ ali”, “o provérbio diz isto ou aquilo”. 30 HOBBES quando os caminhos nao vao nem os Provérbios falam, contudo no calcula ¢ na Procura da verdade tais discursos nao padem ser admitidas A sétima aos nomes que nada significam, mas que se tomam e aprendem por habito nas eseolas, come hiposidtico, transubstanciar, consubstanciar, eterno- agord ¢ outras semelhantes cantilenas dos escolasticos, Para aquele que sabe evitar estas coisas nda é facil enir em qualquer absur- do. & menos que seja pela extensio do céleulo, no qual pode talver esquecer o que ficou para tras. Pois todos og homens por natureza raciocinam de forma seme- Ihante, ¢ bem, quando tm bons principios. Quem é tao estiipido a ponto nao 2 de cometer erros em geometria como também de persistir netes, quando outra Pessoa Ihos aponta? Por aqui se vé que a razao no nagee conosco como a sensagdo € a memoria, nem € adquiricla apenas pela experi¢ncia, como a prudéneia, mas obtida com esforgo. primeiro através de uma adequada imposigdo de nomes. ¢ em segunda lugar através de um método bom ¢ ordenado de passar dos elementos, que sdo homes, 2 assergdes feitas por conexdo de um deles com 9 outro, e dai para os silo. isms. que so as conexdes de uma assergiio com outra, até chegarmos a tum conhecimento de todas as conseqiiéncias de nomes referentes ao assunto em ques: to. € € a isto que os homens chamam ciéneia. E enquanto a sensagao e a memé. tia apenas sio conhecimento de fato, o que é uma coisa passada e irrevogavel, a cigneia € © eonhecimento das conseqiiéncias, a dependéncia de um fato em rela G40 a outro. pelo que.a partir daq silo que presentemente sabemos fazer, sabemos come fazer qualquer outra coisa quando quisermos, ou também, em outra oca. sido. Porque quando vemos como qualquer coisa acontece. devido a que causas, & Por que maneira. quando causas semelhantes vierem ao nosso poder, sabemos como fazé-las produzir os mesmos efeitos, AS criancas portanto nao sio dotadas de nenhuma razio até que atinjam 0 uso da linguagem, mas séo denominadas seres racion: is devido & aparente possi- bilidade de terem o uso da razio na sua devida altura. E a maior parte dos homens, muito embora tenham 0 uso da Tazao em certos casos. como em contar até certo grau, contudo serve thes pouco na vida comum. na qual se governam, uns melhor, outros pior, segundo suas diferentes experiéncias, rapidez de memo. ria ¢ inclinagSes para varios fins, mas especialmente segundo a boa ou ma forty a, € Os eros de uns em relagho aos outros. Pols no que se refere a ciéncia, ou a cerlas regras de suas agdes, esto tao afastados dela que nem sabem que coisa é Considernm a geometria como magia, mas em relagdo as outras ciéncias. aqueles & quem ndo foram ensinados os fundamentos nem algum progresso nelas a fim de Poderem ver como foram adquiridas e geradas, so neste ponto como criangas, que, nao fazendo qualquer idéia da geragdo, sao levadas pelas mulheres acredi tar que seus irmos ¢ irmas no nasceram. mas foram encontrados no jardim, Contudo, aqueles que ndo possuem qualquer ciéncia encontram-se numa condigao melhor e mais nobre, com sua natural prudéneia do que es homens que, Por Faciocinarem mal ou por confiarem na incorreta razao, caem em regras getais falsas e absurdas, Porque a ignorincia das causas e das regras nao afasia tanto os LEVIATA -I u homens de seu caminho como « confianea em falsas regras ¢ 0 fato de tomarem, como causas daquilo a que aspiram, causas que 0 nda sao, mas sim causas do contrario. Para finalizar. a luz dos espiritos humanos sao as palavras perspicuas. mas primeiro limpas por meio de exatas definigdes ¢ purgadas de toda ambigilidade. A razdo é 0 passo, o aumento da cidncia, o caminko e o beneficio da humanidade o fim, Pelo contratio, as metaforas ¢ as palavras ambiguas c destituidas de sentido sao como ignes fatui, ¢ raciocinar com elas é 0 mesmo que perambular entre int meros absurdos, € 0 seu fim & a disputa. a sedigdo ou a desobediéncia. Assim como a muita experiéncia ¢ prudéneia, também a muita cigncia sapiéncia. Pois muity embora so tenhamos o nome de sabedoria para as duas. contudo os latinos cfctivamente distinguiram entre predéncia e sapiéncia, ligando a primeira a experiéneia ea segunda a ciéncia. Mas para que a diferenga entre elas aparoga de maneira mais clara, suponhamos um homem dotado de um exce- lente uso natural e dexteridade em mexer os bragas, ¢ um Ulf que acrescentou a essa dexteridade uma ciéncia adquirida acerea do lugar onde pode ferir ou ser ferido pelo seu adversario, em todas as possiveis posturas e guardas. A habilidade do primeiro estaria para a habilidade do segundo assim como a prudéneia para a sapiéncia: ambas iteis, mas a segunda infalivel. Mas aqueles que acreditando apenas na autoridade dos livros vie cegamente atrits dos cegas siio como aquele que, acreditando nas falsas regras de um mestre de esgrima. presungosamente se aventura contra um adversdrio que ou o mata ou 6 desgraga. Os sinais da ciéneia sio uns certos ¢ infaliveis, outros ineertos. Certos quan do aquele que aspira 4 ciéncia de alguma coisa sabe ensinar a mesma. isto é, demonstrar sua verdade de mancira perspicua a alguém. Incertos quando apenas alguns eventos particulares correspondem a sua pretensdo, e em muitas ocasioes se revelam da mancira que ele diz que deviam acontecer. Os sinais de prudéncia Jo todos incertos, porque observar pela experineia e lembrar todas as circuns tancias que podem alterar 0 sucesso é impossivel. Mas em qualquer assunto em que o homem nao tenha uma infalivel cigncia pela qual se guiar. € sinal de loucu- ra, € geralmente desprezado com © nome de pedantismo, abandonar © proprio juizo natural para se deixar condvzir por sentengas gerais lidas em autores ¢ sujeitas a muitas excegdes. E mesmo aqueles homens que nox Conselhos do Esta do gostam de ostentar suas leituras de politica e de hist6ria raramente o fazem em scus negdcios privados, quando se trata de scus interesses particulares, possuindo a prudéncia suficiente para seus negécios privados, mas nos negdcios piiblieos Preocupam-se mais com a reputagao de sua propria sabedoria do que com o sucesso dos negécios alheios. CAPITULO VI Da origem interna dos movimentos voluntarios vulgarmente chamados paixGes; ¢ da linguagem que os exprime Ha nos animais dois tipos de movimento que lhes so peculiares. Um deles chama-se vital: comega com a geragao, ¢ continua sem interrupgao durante toda a vida. Deste tipo so a circulacdo do sangue, 0 pulso, a respiracdo, a digestio, a nutrigdo, a exeregdo, ete. Para estes movimentos nao é necessdria a ajuda da imaginagao. O outro tipo ¢ 0 dos movimentos animais. também chamados movi- mentos voluntarios, como andar, falar, mover qualquer dos membros, da maneira como anteriormente foi imaginada pela mente. A sensagiio & 0 movimento provo cado nos érgiios ¢ partes inferiores do corpo do homem pela agdo das coisas que vemos, ouvimas, ete., ¢ a imaginagdo é apenas o residuo do mesmo movimento, que permancce depois da sensagao, conforme ja se disse no primeiro e segundo capitulos. E dado que andar, falar ¢ os outros movimentos yoluntarios dependem sempre de um pensamento anterior de como, onde e o que, é evidente que a imagi nagio é a primeira origem interna de todos os movimentos voluntirios. E embora 08 homens sem instrugfio nfio concebam que haja movimento quando a coisa mo- ida ¢ invisivel, ou quando o espago onde cla é movida (devido a sua pequenez) é insensivel. ndo obstante esses movimentos existem, Porque um espago nunca é tho pequeno que aquilo que seja movido num espago maior, do qual o espace, pequeno faz parte, nao deva princiro ser movido neste ultimo. Estes pequenos: i s do movimento, no interior do corpo de homem, antes de se manifestarem no andar, na fala, na luta e outras agdes visiveis, chamam-se geralmente esforeo. Este esforgo, quando vai em diregio de algo que © causa, chama-se aperite ou desejo, sendo o segundo a nome mais geral, ¢ 0 primeira freqtientemente limi- tado a significar 9 desejo de alimento, nomeadamente a fome ¢ a sede, Quando a esforgo vai no sentido de evitar elguma coisa chama-se geralmente aversdo. As palavras aperite ¢ aversdo vém do latim, e ambas designam movirentos, um de aproximagio © © outro de afastamento. Também os gregos tinham palavras para exprimir o mesmo, hormé e aphormé. A propria natureza impde nos homens cer- tas verdades, com as quais depcis eles vio chocar quando procuram alguma coisa fora da natureza. Pois as Escolas nao encontram no simples apetite de mexer Ou Moves-se qualquer espécie de movimento real mas, como sio obrigados @ reconhecer alguma espécic de movimento, chamam-lhe movimento metaforico; © que no passa de uma definigdo absurda, porque sé as palavras podem scr cha- madas metaforicas, no os corpos ¢ os movimentos. Do que os homens desejam sz diz também que 0 amam, ¢ que odeiam aque- LEVIATA -T 3 las coisas pelas quais sontem aversio. De modo que o des¢jo ¢ 0 amor sia mesma coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a auséneia do objeto, € quando se fala em amor geralmente sc quer indicar a presenga do mesmo. Tai bém por aversao se significa a auséncia, ¢ quando se fala de édio pretende-se in cara presenga do objeto. Dos apetites ¢ aversées, alguns nascem com 0 homem, como o apetite pela comida, 0 apetite de excreeao e exoneragao (que podem também, e mais propria- mente, ser chamados aversdes, em relagdo a algo que se sente dentro do corpo) e alguns outros apetites, mas nao muitos. Os restantes sio apetites de coisas parti- culares ¢ derivam da experiéncia ¢ comprovaciio de seus efeitas sobre si mesmo ou sobre os outros homens. Porque das coisas que intciramente desconhecemos, ou em cuja existéncia nao acreditamos, nao podemos ter outro descja que nao o de provar ¢ tentar. Mas tcmos aversio, nao apenas por coisas que sabemos terem-nos causado dano, mas também por aquclas que nao sabemnos se podem ou nao causar-nos dano. Das coisas que ndo desejamos nem odiamos se diz que as desprezamos, Nao sendo © desprezo outra coisa senda uma imobilidade ou contumacia do eorngaio, ao resistir a agao de certas coisas. A qual deriva do fato deo coragao estar ja esti- mulado de maneira diferente por objetos mais potentes, ou da falta de experiéncia daquelas coisas. Dado que a constituigéo do corpo de um homem se encontra em constante modificacao, é impossivel que as mesmas coisas nele provoquem sempre os mes- Mos apetites ¢ aversdes, ¢ muito menos € possivel que todas os homens coincidam no desejo de um s6 e mesmo objeto. Mas seja qual for o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem, esse ob- jeto € aquele a que cada um chama bor; ao objeto de seu édio © aversiio chama mau, ¢ ao de seu desprezo chama vil ¢ indigno. Pois as palavras “bom”, “mau” ¢ “desprezivel” sao sempre usadas em relagao & pessoa que as usa. Nao ha nada que o seja simples ¢ absolutamente, nem ha qualquer regra comum do bem e do mal, que possa ser extraida da natureza dos préprios objetos, Ela s6 pode ser tira- da da pessoa de cada um (quando niio ha Estado) ou entio (num Estado) da pes- soa que representa cada um; ou também de um arbitro ou juiz que pessoas discor- dantes possam instituir por conseniimento, concordando que sua sentenga seja aceite como regra. A lingua latina tem duas palav’as cuja significagdo s¢ aproxima das de bom © mau, mas que nio sdo exatamenie as mesmas, ¢ so as palavras pulchrum e turpe. Significando a primeira aquils que por quaisquer sinais aparentes promete o bem, ¢ a segunda aquilo que prometeo mal. Mas em nossa lingua nfo temos homens suficientemente gerais para exprimir essas idéias, Para traduair pul- chrum, a respeito de algumas coisas usamos helo; de outras, lindo ou bonito, assim como galante, honrado, adequado, amigdvel. Para traduzir turpe usamos repugnante, disforme, feio, baixo, natiseante 2 termos semelhantes, conforme scja ido pelo objeto. Todas cstas palavras, em sua significagdo propria, indicam apenas 0 aspecto ou disposigao que promote o bom co mal. Assim, ha trés espé- a HOBBES cies de bem: o bem na promessa, que é pulchrunt; o bem no efeito. como fim dese- Jado, que se chama jucundum, delicioso: ¢ 0 bem como meio, que se chama urile, ou proveitoso. E outras tantas espécies de mal: pois © mal na promessa é 0 que se chama turpe; 0 mal no efeito e no fim & molesium, desagradivel, perturbador; @omal como meio, inutile, inaproveitdvel, prejudicial, Tal como na sensagdio aquilo que realmente esta dentro de nés é apenas movimento (como acima ja disse), provocado pela aedo dos objetos externos, mas om aparéncia: para a vista, a luz ¢ a cor; para'o ouvido, o som: para 0 olfato, 0 odor. ete. assim também, quando a apdio do mesmo objeto se prolonga. a partir dos olhos, dos ouvidos e outros érgios, até o coragio. o efeito ai realmente pro- duzido ado passa de movimento cesforco, que consiste em apetite ou aversio em elagdio ao objeto. Mas 2 aparineia ou sensagao desse movimento ¢ 0 que se chama deleite, ou entio perturbagdo do espirito. Este movimento a que se chama apetite, notadamente em sua manifestacao como delete ¢ prazer, parece constituir uma corroboragiio do movimento vital, & uma ajuda prestada a este. Portanto as coisas que provocam deleite eram, com toda a propricdade, chamadas jucunda (a Jitvende), porque ajudavam e fortale- ciam: ¢ eram chamadas molesta, afensivas, as que impediam e perturbavam a movimento vital. Portanto o prazer (ou deleite) é a aparéncia ou sen: sagao do bem, e desprazer ou desagrado & a aparéncia ow sensagao, do mal, Consegiientemente, toda apetite, desejo e amor é acompanhado por um deleite maior ou menor, ¢ todo édio ¢ aver- sto por um desprazer ¢ ofensa maior ou menor. ‘Alguns dos prazeres ou deleites derivam da sensagio de um objeto presente, © a eles pode chamar-se prazeres dos sentidos (a palavra sensial, tal como ¢ usada apenas por aqueles que condenam esses prazeres. so tem lugar depois de existirem leis). Desta espécie slo todas as oneragdes e exoneracdes do corpo, além de tudo quanto ¢ agradavel 4 vista, a0 Ouvidd, ao olfato, ao gosto cao tate. Ha outros que derivam da expectativa provocada pela previsio do fim ou canse- aiiéncias das coisas: quer essas coisas agradem ou desagradem aos sentidos, que so 0s prazeres do espérito daquele que tira essay conseqiiéncias, e geralmente Fecebem o nome de alegria, De mancira semethante, alguns dos desprazeres resi dem na sensagio, ¢ chama-se-lhes dor} outros residem na expectativa de conse- qiiéncias, e chama-se-thes éristeza. Estas paixdes simples chamadas apetire, desejo, amor, everséo, ddio, alegria © tristeza recebem nomes diversos conforme a maneira como si0 consideradas. Em primeiro lugar, quando uma sucede A outra, sio designadas de maneiras diversas conforme a opiniao que os homens tém da possibilidade de conseguirem © que desejam. Em segundo lugar, do objeto amado ou odiado. Fm tereeiro lugar, da consideragdo de muitas delas em eonjunto, E em quarto lugar, da alteragao da propria sucessia O apetite, ligado a crenga de conseguir, chama-se esperanca, © mesmo, scm essa crenga, chama-se desespero, A opinido, ligada a crenga de dano proveniente do objeto, chama-se medo, LEVIATA -1 a5 A coragem sibita chama-se cdlera. A esperanca constante chama-se confianga em si mesmo. O desespero constante chama-s¢ desconfianca em si mesmo. A cdlera perante um grande dano feito a outrem, quando pensamos que este foi feito por injiria, chama-se indlignacdo. O desejo do bem dos outros chama-se benevoténcia, boa vontade, caridade, Se for do bem do homem em geral, chama-se bondade natural. O desejo de riquezas chama-se cobiga, palavra que é sempre tsada em tom de censura, porque os homens que lutam por elas véem com desagrado quc¢ os ou- tros as consigam: embora o desejo em si mesmo deva ser censurado ou pe conforme a maneira como se procura conseguir essas riqueza: O desejo de cargos ou de preeminéncia chama-se ambigdo, nome usado tam bem no pior sentido, pela razao acima referida. O desejo de coisas que sb contribuem um pouco para nossos fins, ¢ o medo das coisas qué constituem apenas um pequeno impedimento, chama-se pusilanirnidade. O desprezo pelas pequenas ajudas e impedimentos chama-se magnanimi dade, A magnanimidade, em perigo de morte ou de ferimentos, chama-se coragem ou valentia. A magnanimidade no uso das riquezas chama-se liberalidade. A pusilanimidade quanto 20 mesmo chama-se mesquinkez ¢ tacanhez ou parcimdnia, conforme dela se goste ou nao. © amor pelas pessoas, sob o aspecto da convivencia so amabilidade. O amor peias pessoas, apenas sob o aspecto dos prazeres dos sentidos, cha- ma-se concupiscéncia natural. © amor pelas pessoas, adquirido por reminiscéncin obsessiva. isto ¢ por imaginagao do prazer passado, chama-se luatiria. © amor por uma s6 pessoa. junto ao desejo de ser amado com exclusividade, chama.se a paixdo do amor. O mesrio, junto com 6 reecio de que 0 amor nao seja réciproco, chama-se céime. O desgjo de causar dano a outrem, a fim de levé-lo a lamentar qualquer de seus atos, chama-se dnsia de vinganga. O desejo de saber 0 porqué ¢ ¢ como chama-se curiosidade, e niio existe em qualquer criatura viva a nao ser no homem. Assim, nao € 56 por sua raziio que 0 homem se distingue dos outros animais, mas também por esta singular paixao. Nos outros animais 0 apetite pelo alimento ¢ outros prazeres dos sentidos predo- minam de modo tal que impedem toda preocupagio com o conhecimento das causas, 0 qual é um desejo do espirito que, devido a persisténcia do deleite na continua ¢ infatigavel produgo do conhecimento, supera a fugaz veeméncia de qualquer prazer carnal. OQ medo dos poderes invisiveis, inventados pelo espirito ou imaginados a partir de relatos publicamente permitidos. chama-se religido: quando esses nao chama-se 36 HOBBES sio permitidos, chama-se superstigdo. Quando o poder imaginado ¢ realmente como o imaginamos, chama-se verdadetra religigo, © medo sem se saber por que ou de que chamaise terror panieo. nome que the ver das fabutas que faziam de Pan seu autor. Na verdade, existe sempre em quem primeiro sente esse medo uma certa compreencio da causa. embora os res- tantes fujam devido ao exemplo. cada um. supondo gue seu companheiro sabe por qué. Portanto esta paixdo x6 ocorre numa turha ou multidao de pessoas. A alegria ao saber de uma novidade chama-se admiracdo; é propria do homem, porque desperta o apetite de conhecer a causa, A alegria proveniente da imaginagao do proprio poder ¢ capacidade & aquela exultagdo do espirito a que se chama géoriffcacdo. A qual. quando baseada ns experiéneia de suas proprias agdes anteriores, & o mesmo que a confianga. Max quando sc baseia na lisonja dos outros, ou é apenas suposta pelo proprio, para deleitar-se com suas conseqtiéncias. chama-se vangidria. Nome muito. apro: prado, porque uma confianca bem fundada leva a eficiéncia. ao passo que a supasigdo do poder ndo leva ao mesmo resultado. ¢ € portanto justamente chama da va, A tristeza devida & conviegio da falta de poder chama-se desalento. A vangloria, que consiste na invengao ou suposigao de capacidades que sabe ndo se possuir, é extremamente freqiiente nos Jovens, ¢ é alimentada pelas narrativas verdadeiras ou ficticias de feitos herdicos. Muitas vezes @ corrigida pela idade e peta ocupacio. O entusiasmo stibito & a paixio que provoca aqueles trejeitos a que se chama Tiso. Este ¢ provocado ou por um ato repentino de nds mMesmos que nos diverte, ou pela visdo de alguma coisa deformada em outra pessoa, devido a ‘comparagiio com a qual subitamente nos aplaudimos a nos mesmos. Isto acontece mais com Aqucles que tém consciéncia de menor capacidade em si mesmos, ¢ sao obrigados a reparar nas imperfeigdes dos outros para poderem continuar sendo a favor de si PrOprios. Portanto um excesso de riso perante os defeitos dos outros sinal de Pusilanimidade. Porque o que ¢ proprio dos grandes espiritos ¢ ajudar os outros a evitar esearnio, e comparar-se apenas com os mais capazes Pelo contrario, 0 desalento suibito & a paixao que provoca 0 choro, 6 qual é Provocado por aqueles acidentes que bruscamente vém tirar uma esperanca vee mente, ou por um fracasso do proprio poder. E os que Ihe esto mais sujcitos so OS que contam sobretudo com ajudas externas, como as mulheres-e as eriangas, Assim, alguns choram porque perderam os amigos, outros por causa da falta de amabilidade destes tltimos, ¢ outros pela brusca paralisagdo de seus pensamentos de vinganga. provocada pela recenciliagio, Mas cm todos os casos tanto a riso come o choro so movimentos repentinos, ¢ 0 habito a ambos faz desaparecer. Pois ninguém ri de piadas velhas, nem chora por causa de uma velha calamidade, A Inisteza devida & descoberta de alguma falta de capacidade & a vergonha, a paixdo que se revela através do rebor. Consiste ela na Compreensio de uma coisa desonrosa. Nos jovens ¢ sinal de amor a boa Teputagao, e é louvavel. Nos velhos é sinal do mesmo, mas, como ja chega tarde demais, nao é louvavel. LEVIATA -. a7 © desprezo pela boa reputachio chama-se imprudéncia: A tristeza perante a desgraga alheia chama-se piedade, ¢ surge do imaginar que a mesma deseraca poderia acontecer a nés mesmos. Por isso € também cha- mada compaixdo, ou entéo, na expressaa atualmente em yoga. sentimento de companheirismo. Assim, por calamidades provacadas por uma grande maldade, os melhores homens so os que sentem menos picdade. ¢ pela mesma calamidade ‘05 que sentem menos piedade so 05 que se consideram menos sujeitos 4 mesma, O desprezo ou pouca preocupscio com a desgraca alheia é 0 que os homens chamam erueldade, que deriva da seguranga da propria fortuna. Pois considera inconcebivel que slguém possa tirar prazer dos grandes prejufzos alheios. sem que tenha um interesse pessoal no caso. A tristeza causada pelo sucesso de um competidor em riqueza, honra ou ou- tros bens s¢ se lhe juntar © esforgo para aumentar nossas préprias capacidades,.a fim de igualé-lo ou supera-lo, chama-se emulacdo. Quando ligada ao esforgo para suplantar ou levantar obstaculos ac competidor chama-se inveja. Quando surgem alternadamente no espirito humano apetites ¢ aversdes, esperangas ¢ medos, relativamente 2 uma mesma coisa: quando passam suce vamente pelo pensamento as diversas conseqiiéncias boas ou mas de uma agdo, ou de cvitar uma ago: de modo tal que as vezes se sente um apetite em relagao a cla, ¢ as vezes uma aversao, as vezes a esperanga de ser capaz de pratica-la, ¢ As vezes 0 desespero ou medo. de empreendé-la: todo 0 conjunto de desejas, aver- sdes, esperangas e medos, que sé vio desenrolando até que a agao seja praticada, ou considerada impossivel. leva o nome de deliberacdo. Portanto é impossivel haver deliberagdo quanto As coisas passadas, pois ¢ manifestamente impossivel que estas sejam mudadas; nem de coisas que se sabe serem impossiveis. porque os homens sabem, ow supdem, que tal deliberagao seria va. Mas & possivel deliberar sobre coisas impossiveis, quando as supomos possiveis, sem saber que sera cm vio. Eo nome deliberacdo vem de ela consistir em pér fim a liberdade que antes tinhamos de praticar ou evitar a agdo, confor memente a nosso apetite ou aversio, Esta sucessio alternada de apetites, aversdes, esperangas e medos nao é maior no homem do que nas outras criaturas vivas. conseqiientemente os animais também deliberam. Dir-se ent que toda deliberaedo chega av fim quando aquilo sobre que se deliberava foi feito ou considerado impossivel. pois até esse momento conserva-se a liberdade de fazé-lo ou evita-lo. conformemente aos préprios apetites ou aversdes. Na deliberagdo, o iltimo apetite ou aversio imediatamente anterior 4 agdo ou a omissdo desta é o que se chama ventade, o ato (nado a faculdade) de querer. Os animais, dado que sao capazes de deliberagdes, devem necessariamente ter também voniade. A defini¢do da vontade vulgarmente dada pelas Escolas. como apetite racional, nfo & accitavel. Porque se assim fosse nao poderia haver atos voluntarios contra a razdo. Pois un ato voluntario é aquele que deriva da vonra- de, ¢ nenhum outro. Mas se. em ver de dizermos que ¢ um apetite racional. disser-

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