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SALVATORE CANALS ab ASCETICA MEDITADA Titulo original: Ascética Meditada: Copyright by Edizioni Azes Tradugiio de EMERICO DA GAMA Capa de Ratl Sarrosira RESERVADOS TODOS OS DIREITOS EM LINGUA PORTUGUESA A EDITORIAL ASTER, LDA. * LARGO DONA ESTEFANIA, 8, 1.°-E, LISBOA, 1 JESUS, O AMIGO Meu amigo, ha neste punhado de terra que sfo as mossas pobres pessoas— que somos tu é@ eu—uma alma imorial que iende, por vezes sem o saber, para Deus, que sente, mesmo sem reparar nisso, uma nostalgia profunda de Deus e que deseja com todas as suas forcas, mesmo quando o nega, o seu Deus. E esta tendéncia para Deus, este desejo veemente, esta nostalgia profunda, quis o préprio Deus que pudéssemos concretizd-la ma pessoa de Cristo, que passou pela Terra como homem de carne ¢ osso, como ta e como eu. Deus quis que este nosso amor fosse amor por um Deus feito homem, a quem conhecemos e compreendemos, porque é dos nossos; amor de Cristo Jesus, que vive eterna- mente com o seu rosto amavel, com o seu cora- cio que ama, com as suas mios e os seus pés chagados e com o seu lado aberto: Jesus Christus heri et hodie, ipse et in saecula. («Je- sus Cristo ontem e hoje e para sempres). & ASCETICA MEDITADA Jesus, que é perfeito Deus e homem perfeito, que é o caminho, a verdade e a vida, que é a luz do mundo e o pio da vida, pode ser nosso amigo se tu e eu assim o quisermos. Escuta Santo Agostinho, que to recorda com a sua inteligéncia clara, com a experiéncia profunda do seu grande coracéo: Amicus Dei essern si voluero, («Serei amigo de Deus se assim o quiser»). Mas, para atingirmos esta amizade, é preciso que tu e ett nos aproximemos dele, o conhegamos e o ame- mos. A amizade de Jesus é uma amizade que Jeva longe: acharemos a felicidade e a tranqui- lidade, saberemos sempre, com critério seguro, como comportar-nos; encaminhar-nos-emos para a casa do Pai e seremos, cada um de nés, alter Christus («outro Cristo»). Foi por isso que Jesus Cristo se fez homem: Deus fit homo ut homo fieret Deus, («Deus fez-se homem para que o homem se fizesse Deus»). Mas, ha tantos homens que se esquecem de Cristo, ou n&o o conhecem nem querem conhecé-lo, ou nado rezam e nao pedem in nomine Iesu («em nome de Jesus)», nio pronunciam o wmico nome que os pode salvar, e olham para Jesus Cristo como uma personagem histérica ou uma gléria passada, e esquecem que Ele veio e vive ut vitam habeant et abundantius habeant («para que todos os homens tenham vida e a tenham em abundancia»), E, repara, todos estes SALVATORE CANALS 9 homens séo homens que quiseram reduzir a religido de Cristo a um conjunto de leis, a uma série de proibigGes e de pesadas responsabili- dades. Almas atacadas de uma singular miopia, que Ihes faz ver na’ religiféo apenas aquilo que custa esforcgo, aquilo’ que pesa, aquilo que abate; inteligéncias minusculas e unilaterais, que que- rem considerar o Cristianismo com mentalidade de maquina de calcular; coragdes desiludides e mesquinhos que néo querem saber das grandes riquezas do coracio de Cristo; falsos cristios, que pretendem roubar 4 vida crist{ o sorriso de Cristo. A estes, a todos estes homens, que- reria dizer-Ihes: Venite et videte («vinde e vede»). Gustate et videte quoniam suavis est Dominus. («Provai e vede como o Senhor ¢ suave»). A mensagem que os Anjos anunciaram aos pastores na noite de Natal foi uma mensagem de alegria: Ecce enim evangelizo vobis gaudium magnum, quod erit omni populo: quia natus est ‘vobis hodie Salvator, qui est Christus Dominus in civitate David. («Eis que vos anuncio uma grande alegria, uma alegria grande para todo o mundo; nasceu-vos hoje, na cidade de David, o Salvador, que é Cristo nosso Senhor»). O Mes- sias esperado pelas gentes, o Redentor. anun- ciado pelos Profetas, o Cristo, o Ungido de Deus, nasceu na cidade de David. «Ele é a nossa paz» — ipse est pax nostra—e a nossa alegria: é por 10 ASCETICA MEDITADA isso que invocamos a Virgem Maria, Mae de Cristo, como Causa nostrae Iaetitiae, («causa da nossa alegria»). Jesus Cristo é Deus, perfeito Deus. Vamos render-lhe, tu e eu, a nossa adorac&o com aque- las palavras que o Pai pée nos labios de Pedro: Tu es Christus, Filius Dei vivi, («tu és Cristo, o Filho de Deus vivo»). E rendamosthe também a nossa adoragiio repetindo a confissfo de Mar- ta, ou a do cego de nascenca, ou a do centurifo. Jesus Cristo é homem, perfeito homem. Sa- boreia este titulo, que era tao caro a Jesus Cristo: Filius Hominis, («filho do Homem»). Era assim que se chamava a si proprio. Escuta Pila- tos: Ecce homo («cis o homem»), e dirige 0 teu olhar para Cristo. Meu amigo, como o sentimos perto de nds! Cristo é o novo Addo, mas nés senti- mo-lo ainda mais perto. O dom da imunidade & dor fez que Addo n&o pudesse sofrer: mas Tu, Se- nhor, sofreste e morreste por nos. Jesus, tu és ver- dadeiramente perfeito homem: o homem per- feito. Quando nos esforcamos por imaginar o tipo perfeito do homem, o homem ideal, invo- luntariamente pensamos em ti. E ao mesmo tempo, Jesus bom, Tu és Eimmnanuel, Deus con- nosco. E tudo isto, meu amigo, para sempre: Quod semel assumpsit numquam dimisit, («Aqui- lo que uma vez tomou nunca o larga»). Procura ter fome e sede de conhecer a santfssima noe SALVATORE CANALS Vi Humanidade de Cristo, procura viver muito perto dele. Jesus Cristo ¢ homem, é um verda- deiro homem como nés, com alma e corpo, inteligéncia e vontade, como tu e eu. Recorda-o com frequéncia, e ser-ted mais facil aproxima- res-te dele, na oragio e na Eucaristia, e a tua vida de piedade encontrard nele o seu verda- deiro centro, e o teu cristianismo sera mais auténtico. Intimidade com Jesus Cristo, Para que pos- sas chegar a conhecer, amar, imitar e servir a Jesus Cristo, é preciso que te aproximes dele com confianca. Nihil volitum quin praecogni- tum. («Nao se pode amar aquilo que se nao conhece»), E as pessoas conhecem-se pelo convi- vio cordial, sincero, intimo e frequente. Mas onde procurar o Senhor? Como aproximar-se d'Ele e conhecé-lo? No Evangelho, meditando-o, contemplando-o, amando-o, seguindo-o. Pela lei- tura espiritual, estudando e aprofundando a ciéncia de Deus. Na Santissima Eucaristia, ado- rando-o, desejando-o, recebendo-o. Meu amigo, o Evangelho deve ser o teu livro de meditagdo, a alma da tua contemplacdo, a juz da tua alma, o amigo da tua solidio, o teu companheiro de viagem. Que os teus olhos se habituem a contemplar Jesus, perfeito homem, que chora a morte de Lazaro —lacrymaius est Testis («Jesus pds-se a chorar») —e chora sobre 12 ASCETICA MEDITADA a cidade de Jerusalém; que se habituem a. vé- -lo passar fome e sede; a contempla-lo, sen- tado junto do pogo de Jacob, fatigaius ex itinere, («cansado do caminho»), enquanto espera a Samaritana; a considerar a tristeza da sua alma no Horto das Oliveiras: Tristis est anima mea usque ad mortem («A minha alma esta iriste até & morte») —e a sua solidfo sobre o madeiro da Cruz; e as suas noites passadas em oracio, e a ira enérgica com que expulsa os vendilhées do templo, e a sua autoridade ao ensinar tam- quam potestatem habentem («Como quem tem autoridade»). Enche-te de confianca quando o vires——compadecido da muliidéo — multiplicar os pies e os peixes, e oferecer A vitiva de Naim o filho ressuscitado para uma nova vida, e resti- tuir Lazaro ressuscitado ao afecto de suas irmas ... Aproxima-te de Jesus Cristo, meu irmao; aproxima-te de Jesus Cristo no siléncio e na operosidade da sua vida escondida, nas penas e nas fadigas da sua vida publica, na sua Pai- xo e Morte, na sua Ressurreicao gloriosa. To- dos encontramos n’Ele —causa exemplar— o modelo, o tipo de santidade que convém a cada um de nés. Na intimidade da nossa confidéncia com Ele, escutaremos as suas palavras: Exem- plum dedi vabis ut quemadmodum ego feci vo- bis ita et vos faciatis: («dei-vos o exemplo, fazei como eu fiz»). SALVATORE CANALS a Antes. de terminares, pousa confiadamente o teu olhar na Santissima Virgem. Ela soube, como nenhuma outra, trazer no seu coragdo a vida de Cristo e meditd4la dentro de si: Maria conservabat omnia verba haec conferens in corde suo («Maria guardava todas estas palavras me- ditando-as no seu coracio»), Recorre a Ela, que é Mae de Cristo e tua Mae. Porque a Jesus sempre se vai através de Maria. A NOSSA VOCACAO CRISTA Falava eu um dia com um jovem, tal como fago contigo neste momento. Procurava con- vencé-Io da necessidade de viver cristimente a sua vida, de frequentar os sacramentos, de ser alma de oracio, de dar a todas as suas accdes e a toda a sua vida uma orientacao sobrenatu- ral. Jesus —dizialhe— precisa de almas que, com grande naturalidadie e com uma grande doacgfio de si mesmas, vivam no mundo uma vida integralmente cristé. Mas dos seus olhos transpirava a resisténcia da sua alma; e as suas palavras tratavam de justificar tudo o que a sua vontade se recusava a admitir. Passados alguns minutos, admitin com sinceridade o que até entéo provavelmente nunca tinha confessado nem mesmo a si proprio: «Nao posso viver como diz, porque sou muito ambicioso», Lem- bro-me de que lhe respondi: «Olha: tens diante de ti um homem muito mais ambicioso do que tu, um homem que quer ser santo. A minha SALVATORE CANALS a5 ambicao ¢ tao grande que ndo se contenta com nenhuma coisa da Terra: ambiciono Jesus Cristo, que é Deus, e o Parafso, que é a sua gloria e a sua felicidade, e a vida eterna». Permite-me que’ continue contigo aquela conversa, Niio te parece que neste ponto to- dos nos, cristios, deveriamos ser santamente ambiciosos? A vocagio do cristao & vocagio de santidade. Todos os cristdos, pelo simples facto de o serem, tém a obrigag&io— ocupem o posto que ocuparem, facam o que fizerem, vivam onde viverem—de ser santos. Todos ‘estamos igualmente obrigados a amar Deus sobre todas as coisas: Diliges Dominum Deum tuum ex tota mente tua, ex toto corde tuo, ex tota anima tua, ex omnibus viribus tuis («ama- ras o Senhor teu Deus com todo o teu coragio, com toda a tua mente, com toda a tua alma e com todas as tuas forgas»). Esta ideia, tio sim- ples e clara, primeiro mandamento e compén- dio de toda a Lei de Deus, perdeu forga e, hoje em dia, nado informa na pratica a vida de muitos discipulos de Cristo. Senhor, como se amesquinhou o ideal cris- tio na mente dos teus! Pensaram e pensam, Jesus, que o ideal de santidade é excessivamente elevado para eles, e que nem todos os coragées cristéos podem albergar essa aspiragéo. Que ela permaneca —senti que o diziam, em todos os 16 ASCETICA MEDITADA tons — para os sacerdotes e para as almas que foram. conduzidas 4 vida do claustro por uma vocacio especial. Nés, homens do mundo, deve- mos contentar-nos com uma vida cristé sem excessivas pretensdes e renunciar humildemente aos voos da alma, embora corramos o risco de experimentar de vez em quando uma nostalgia estéril e pessimista. A santidade—é 0 que con- cluiram muitos e muitas, vencidos pelos precon- ceitos e pelas ideias falsas—nao é para nds: seria presungao, jactancia, falta de equilibrio, desordem, fanatismo. E declararam-se vencidos antes de terem comecado a batalha. Quereria poder gritar ao ouvido de muitos cristaos: Agnosce, Christiane, dignitatem tuam («toma consciéncia, 6 cristéo, da tua dignidade»). Ouve-me, amigo: deixa que a tua inteligéncia se abra serenamente, livre de preconceitos. A vo- cacao cristé é vocagao de santidade. Os cristaos —tedos, sem distingao — sao, segundo a pala- vra de Sao Pedro, gens sancta, genus electum, regale sacerdotium, populus acquisitionis, («raga santa, estirpe de eleicao, sacerddcio real, povo de conquista»). Os primeiros crist&os, conscientes da sua dignidade, chamavam-se entre si com o nome de santos. Quando perderds este medo a santidade? Quando te convencerés de que o Senhor te quer santo? Qualquer que seja a tua con- SALVATORE CANALS Ww digo, a tua idade, as tuas forcas, e a tua posigao social, se és cristo, o Senhor quer-te santo. Estote perfecti sicut et Pater vester coe- lestis perfectus est («sede perfeitos como é per- feito o vosso Pai dos céus»). Jesus dirigiu estas palavras a todos, e a todos propés a mesma meta. Sao diversos os caminhos, porque «na casa do meu Pai ha muitas mansdes» fin domo Patris mei mansiones multae sunt), mas a meta, o fim, é idéntico e comum a todos: a santidade. Como nos alvores da cristandade, também hoje, depois de dois mil anos de Cristianismo, nds, cristéos, devemos formar um sé coracio e uma sé alma nesta aspiracdo & santidade e nesta conviccio profunda: Muiltitudo credentium erat cor unum et anima una. («A multidio dos fiéis tinha um sé coracéo e uma s6 alma»), B a mesma conviccio, firme e luminosa, que ani- mava as palavras de Sao Paulo, dirigidas a todos os fiéis: Haec est voluntas Dei: sanctifi- catio vestra («esta € a vontade de Deus, a vossa santificagio»). Quantos titulos para se reclamar e exigir de ti esta santidade! O Baptis- mo, que nos fez filhos de Deus e herdeiros da sua gloria; o Crisma, que nos confirmou como soldades de Cristo; a Santissima Eucaristia; em que se nos da o préprio Senhor; o:sacra- mento da Peniténcia e o do Matriménio, se o Is ASCETICA MEDITADA recebemos. Sfo chamadas, meu amigo, chama- das @ santidade. Escuta-as. Eliminados os preconceitos, inundada a mente de novas luzes, é facil agora formular um pro: poésito: fazermos do problema da santidade tim problema muito pessoal, muito concreto e muito nosso. Deus nosso Senhor —estamos intima e profundamente convencidos dissa— quer-nos santos: porque somos cristéos. Levantemos para Deus ‘0 olhar, o coragio, a vontade. Quae sur- stun sunt sapite, quae sursuim sunt quaerite: («Sa- boreai o que é elevado, procurai o que é elevado»); a dignidade crista abre-nos agora os horizontes rasgados e serenos. Respiramos profundamente os ares que sopram destas lonjuras abertas, e sao ares que renovam a nossa juventude, como sé renova—esta dito na Escritura—a juven- tude da dguia: Renovabitur ut aquilae juventus tua, («Renovar-se-A a tua juventude como a da aguia»). Agora compreendemos finalmente como sdo ocas as nossas ideias mesquinhas, e detestamo- -las. E deploramos o tempo perdido e os nossos vaos temores. Ja nio temos qualquer medo da santidade e reconhecemos finalmente que fre- quentes vezes os nossos coragées —como es- creve o Salmista— ibi trepidaverunt timore ubi non erat timor («amedrontaram-se quando nfo havia razio para temer»). Confiemo-nos 4 pro- SALVATORE CANALS 19 tecgio da Virgem Maria, que é Regina sanc- torum omnium, («Rainha de todos os santos»), e Sedes Supientiae, («Sede de Sabedoria»), para que a ideia da santidade seja nas vossas vidas cada dia mais clara, mais forte e mais con- creta. UM IDEAL PARA A VIDA Se me permites, vou continuar a reflectir contigo sobre o mesmo assunto. Acho que chegou o momento de darmos humildemente gracas a Deus: Laquewws contritus est et nos liberati sumus (« 0 laco desfez-se e nés fomos finalmente libertados»), segundo as palavras do Salmista. O Jaco dos preconceitos, das ideias falsas, foi desfeito e agora estamos con- vencidos de que a ideia da santidade deve abrir caminho na nossa mente e em todas as mentes cristas. Comec4mos o caminho: a pérola preciosa brilhou diante dos nossos olhos, as riquezas do tesouro escondido alegraram o nosso coraciio. E, no entanio, conheci almas, meu irmiao, mui- tas almas que, tendo chegado a este ponio, por um motivo ou por outro (nao faltam razdes nem desculpas), nfo souberam ir mais longe. Uma experiéncia dolorosa, nao é verdade? Mas fecunda. Almas que tinham visto, mas fecharam SALVATORE CANALS ai os olhos ou adormeceram; almas que tinham comegado e nao continuaram, que teriam po- dido fazer muito e nao fizeram nada, Como vés, é necessério passar da ideia & conviccio, e da convicgio A decisa6. Devemos convencer-nos profundamente de qie a santidade é para nés, de que a santidade ¢ aquilo que o Senhor nos pede antes de qualquer outra coisa, Unum est necessarium («uma s6 coisa é necessdria»). Que nunca te falte uma fé firmissima nestas palavras divinas: a unica derrota concebivel numa vida cristi—na tua vida—é que nos atrasemes no caminho que conduz 4 santidade, que desistamos de apontar a meta. A vida e o mundo nao teriam qualquer sentido se nado fosse por Deus e pelas almas. Nio valeria a pena viver esta nossa vida se nao estivesse iluminada em todo o momento por uma procura viva e amorosa de Deus. Escuta: Quid prodest homini si mundum universum lucretur, animae vero suae detrimen- tum patitur? («De que serve ao homem ganhar o mundo inieiro, se vier a perder a sua alma?») Para qué pensar em tantas coisas, se depois esquecemos a tmica que conta? Que importa re- solver tantos problemas pessoais e dos outros, se depois deixamos por resolver o problema mais importante? Que sentido tém os nossos éxitos, os mossos triunfos —as nossas «subi- 22 ASCETICA MEDITADA das» — na vida, na sociedade, na profissio, se depois naufragamos na rota para a santidade, para a vida eterna? Que lucros e que negécios sdo os teus, se nio consegues alcancar o Paraiso e deitas a perder o negécio da tua santidade? Que pretendes com o teu estudo e com a tua ciéncia, se depois ignoras o significado da vida e desconheces a ciéncia de Deus? Em que con- sistem os teus prazeres se te privas para sem- pre do prazer de Deus? Se nao procuramos verdadeiramente, ardentemente, a santidade, nao possuimos nada; se procuramos a santidade, possuimos tudo: Quaerite primum regnum Dei et iustitiam eius et omnia adiicieniur vobis («Procurai primeiro o Reino de Deus € a Sua Justiga e tudo o mais vos serd dado por acrés- cimo»). Medita, meu amigo, nestas consideracdes e faz por tua conta muitas outras: consideracdes concretas e actuais para a tua vida de agora, para a tua condicéo presente e para os perigos que ameacam a tua alma; consideragées que re- forcem a conviccio profunda que deves ter em telacgio & santidade: é o tmico caminho de feli- cidade temporal e eterna. Dominus meus et Deus meus («Meu Senhor e meu Deus!»), Deveriamos pér toda a decisio e toda a firmeza destas’ palavras do Apédstclo Tomé no nosso empenho em. procurarmos a santidade acima de qualquer outra coisa. Firme- SALVATORE CANALS 23 mente decidido a scr santo, decidido a avancar a todo o custo: essa deve ser a tua disposicio. Que exemplo luminoso o de Teresa de Avila! Avancar sempre pelo caminho, repelindo o cansaco, a desconfianga, a fraqueza, a morte: «aunque me cansé, aunque no pueda, aunque reviente, aunque me muera. E nao te esquecas de que o que nos detém no nosso caminho nao sio as dificuldades e os obstaculos que real- mente se apresentam; o que nos detém é a nossa falta de decisio: Non guia impossibilia sunt non audemus, sed quia non audemus impossibilia sunt («N&o ousamos porque scjam impossiveis, mas sio impossiveis porque nfo ousamos»). A. falta de decisio ¢ o tmico verdadeiro obs- taculo: uma vez ultrapassado, nao -existem outros, ou, melhor, vencemo-los com grande fa- cilidade. Que 0 nosso «sim» a Deus seja um «sim» decidido e, com a sua graga, sempre mais audaz, total, indiscutido. Dizia Lacordaire que a eloquéncia é filha da paixdo: dai-me um homem com uma grande pai- x0 —acrescentava— e farei dele um orador. Dai-me um homem decidido—poderia dizer-te a ti—um homem que sinta a paixdo da san- tidade e dar-vos-ei um santo. Que ninguém nos venga no desejo de santidade. Aprendamos, com a graca de Deus, a ser homens de grandes dese- jos, a desejar a santidade com todas as forgas 24 ASCETICA MEDITADA da nossa conviccéo e com todas as fibras do nosso coracao: sicut cervus desiderat ad fontes aquarum («como um veado deseja as frescas fontes das Aguas»). Se tu, que lés estas linhas, és jovem, pensa na tua juventude, nesta juventude que é a hora da generosidade: que uso fazes dela? Sabes ser generoso? Sabes fazéla frutificar numa procura eficaz e fecunda da santidade? Sabes inflamar-te com estas ideias grandes... e convencer-te... @ decidir-te? Mas se ja saiste da juventude e entraste pela vida dentro, nao te preocupes, porque é a hora de Deus para ti: todas as horas sfo boas para Ele, a todas as horas Ele nos convida (na hora da terga, da sexta ou da noa) a convencermo-nos, a decidir- mo-nos e a desejarmos a santidade, como o préprio Jesus nos ensinou com a parabola dos operarios da vinha. Todas as idades sio boas e, repito-te, seja qual for a tua condicéio, a tua situagao actual e o teu ambiente, deves conven- cer-te, dicidir-te e desejar a santidade. Sabes perfeitamente que a santidade nao consiste em gragas extraordindrias de cragéo, nem em mor- tificagdes e peniténcias insustentaveis; menos ainda é a heranga exclusiva das solidées lon- ginquas do mundo. A santidade consiste no cumprimento amoroso e fiel dos deveres pes- soais, na aceitagio alegre e humilde da von- SALVATORE CANALS a5 tade de Deus, na unido com Ele no irabalho de cada dia, em saber fundir a religiao e a vida em harmoniosa e fecunda unidade, e em tantas outras coisas pequenas e habituais que tu co- uheces. : Haec via quae videtur («Este caminho que se vé»). O caminho é simples e claro. Convence- -te, decide-te, deseja! Concretiza o teu esforco e a tua luta, e persevera com amor e confianga. A San- tissima Virgem, Rainha de todos os Santos, dar- -te-A Iuzes e proteceio, serd para ti apoio e consolo na luta. VIDA INTERIOR Na sua mente excelsa, SA0 Tomas viu todos os bens da natureza desvanecerem-se em con- fronto com o mais pequeno bem sobrenatural e exprimiu em termos metafisicos esse conceito: Bonuni wnius gratiae maius est quam bonum naturae totius universi («QO bem de uma sé graga é maior do que o bem natural de todo o universo»), Um escritor contemporaneo, igual- mente maravilhado com a grandeza deste sen- timento, exprimiu o mesmo conceito de forma psicoldgica: Deus ocupa-se mais de um coracio em que pode reinar, do que do governo natural de todo o universo Hsico e do governo civil de todos os impérios do mundo. Hoje quero falar-te deste Reino de Deus onde o Senhor en- contra as suas delicias, deste Remo de Deus que estd dentro de nés, deste Reino de Deus tio admirdvel quiao desconhecido. O coracgéo dos homens é como um pres¢pio onde Jesus nasce de novo; e em todos os cora- SALVATORE CANALS a7 goes que tenham querido recebé-lo, 0 préprio Jesus cresce de varios modos, em idade, sabe- doria e graca. Jesus nao é igual em todos; mas, de acordo com as possibilidades do coragio em que nasce, da capacidade de quem o recebe, ma- nifesta-se diversamente na vida dos homens, ou como uma crianga, ou como um adolescente em pleno desenvolvimento, ou como um homem maduro, Reinar, nascer e crescer no coracgio e na vida, esse é o -desejo de Cristo, que assim quer fazer de cada cristéo —de ti, de mim— um alter Christus, (eum outro Cristo»). E a esta chamada da graga, a este convite de Jesus, deve- remos todos responder repetindo as palavras do Precursor: Oportet illum crescere, me autent minui («EB preciso que Ele cresca e eu. diminua»). Esta transformagio em Jesus Cristo, esta uniao com Deus, que é fruto da vida interior, abarca a vida inteira e faznos experimentar e saborear a realidade consoladora e reconfor- tante da parabola da vide e dos sarmentos. Ego sum vitis vos palmites; qui manet in me, et ego in eo, hie fert fructum multi; quia sine me nihil potestis facere («Eu sou a vide e vés os sarmentos; quem permanace em mim e eu nele, esse dard fruto abundante: porque sem mim nao podeis fazer nada»). Sarmento unido & vide. Alma de profunda vida interior. Nao tardards a perceber que os teus pensamentos comecgam a 28 ASCETICA MEDITADA transformar-se sob o influxo da sabedoria pré- pria da vida sobrenatural, que passas a pensar com as ideias de Deus e a encarar o mundo e a vida com os olhos de Deus. Com esta unido de pensamento com Jesus Cristo, nunca terds uma inteligéncia pag. Tornar-te-s alma de visdo sobrenatural e nao merecerds a censura de Cristo: Nonne et ethnici hoc faciunt? («Nao fazem o mesmo os pagios?»). A tua visio do tmoundo, profundamente sobrenatural, dara luz e calor 4 tua palavra. A linfa do espirito sobre- natural tornard fecunda a tua prépria vida afec- tiva. Compreenderds as palavras de Sao Paulo: hoc eniin sentite in vobis quod et in Christo Tesi (stende nos vossos coragées os mesmos sentimentos de Jesus Cristo»). Os sentimentos dé Jesus, cheios de pureza e de compreensio, de amor pelas almas e de compaixao por aqueles que se afastaram do seu caminho, so o patri- ménio de quem se transformou em Cristo. De- pois desta uniéo de pensamento e de sentimento com Jesus Cristo, depois desta renovagio da vida intelectual e afectiva, a linfa da vida inte- rior penetrard-em toda a tua actividade exte- ~ rior: as tuas obras, flores e frutos da tua vida interior, estaréo saturadas de Deus e revelariio a sobreabundincia do teu amor por Ele; sé agora serfo verdadeiramente opera plena coram Domino («obras ricas na presenga do Senhor»). | SALVATORE CANALS 2 A tua unido com Jesus, meu irmfo, é sobre- tudo interior. Os teus pensamentos, os teus de- sejos, os teus afectos sfo a parte mais delicada e mais intima da tua vida e sfo também a parte mais generosa e preciosa do teu holocausto. E é exactamente todo este mundo interior — este feixe de espigas palpitantes de vida— que o Se- nhor pede as almas. Se lhe dds apenas as tuas obras exteriores, mas Ihe negas ou discutes a parte mais intima da tua vida—os teus desejos, os teus afectos, os teus pensamentos — jamais serds alma de vida interior. Queres saber se és alma de vida interior? Formula no teu intimo esta pergunta: onde é que vivo habitualmente com os meus pensamentos, com os meus afectos, com os meus desejos? Se os teus pensamentos, os teus afecios, os teus desejos convergem para Jesus Cristo, isso é prova certa de que és alma de vida interior. Mas se te levam longe de Deus, isso é si- nal, igualmente certo, de que nao és alma de vida interior. Porque n&o deves esquecer que ubi thesauriis vester est, ibi et cor vestrum erit («onde estiver o teu tesouro, ai estard o teu cora- cio»). O wnico tesouro das almas de vida interior ¢ Jesus, aquele Jesus quem vidi quem amavi, in quem credii, quem dilexi («que vi, que amei, no qual acreditei, que adorei»). Como vés, o grande campo de batalha ao ASCETICA MEDITADA das almas que aspiram a uma verdadeira e profunda vida interior ¢ o coracio. E no ccoragio que se vencem e se perdem as batalhas de Deus. Por isso, a guarda do coragéo é uma norma fundamental da vida ascética. Quando as almas querem e néo pdem obstdculos As obras de Deus, Ele condu-las & verdadeira unifo: ins- taura dentro delas o seu reino, que ¢ regnum iustitiae, amoris et pacis («reino de justica, de amor e de paza). Se estas consideracées abriram os teus olhos para a realidade de um reino de Deus totalmente interior — regnuim Dei inira vos est («O reino de Deus esta dentro de Vés») —é entio neces- sario que os teus olhos se abram de frente para uma nova realidade: reguum coelorum vint patitur. Deves lembrar-te dé que o Rei- no dos Céus padece violéncia, de que o ca- minho para este reino interior é caminho de mortificagéo, de purificacio. E para que te sintas sarmento unido & vide, e para que dese- jes sé-lo cada vez mais, é preciso que escutes no- vamente a voz de Cristo: Ego sum vitis vera et Pater meus agricola est, («Eu sou a verda- deira vide, e meu Pai o agricultors), Omnem palmitem in me non ferentem fructum, tollet eum; et omnent qui fert fructum, purgabit eum, ut fructum plus afferat. («Todo o sar- mento que nao dd fruto em mim, Ele o testator trina rem SALVATORE CANALS 5t cortaraé; e todo o que der fruto, podé-lo-d, para que dé fruto mais abundante»). Para que dés. mais fruto, para que a tua unifio com o Senhor se fortaleca, é necessdria a poda, a purificagio. Nao tenhas medo do cutelo do podador: Pater mets agricola est. («O meu Pai é 0 agricultor»). Com a poda, o Senhor purificara a tua inteligéncia e a tua vontade, 0 teu coragdo ea tua meméria. Nao podes avancar um passo na vida de unio com Deus, sem necessdria- mente dares um primeiro passo na via da putri- ficacio. Para isso, é preciso que colabores com o Senhor, quando chegar o momento da poda: deixa-o agir! E quando vires cairem os ramos e as folhas, alegra-te, pensando nos préximos novos frutos que a poda promete. A abundancia de frutos depende da tua vida interior, do teu grau de unidéo com Deus. Qui manet in me, et ego in eo, hic fert frutum mul- ium. («Quem permanece em mim, e eu nele, esse da muito fruto»). Que a. tua actividade exterior, que a tua acgiio intensa, nao te afastem de Deus. Escuta de novo o Senhor: manete in me («per- manecei em mim»), Lembra-te de que a vida interior é a alma de todo o apostolado. Quanto maior for a tua unido com Deus, tanto mais abundante sera o fruto do teu apostolado. O fruto, bem entendido, nao o sucesso, que é uma coisa completamente diferente. E mais 32 ASCETICA MEDITADA eficaz um homem de vida interior, com uma palavra esponténea, do que wma pessaa pouco interior, com um discurso que esgote as pos- sibilidades do intelecto, Quero lembrar-te ainda que a sensibilidade do apéstolo Para os problemas e necessidades do seu apostolado nao depende do seu grau de imersio no trabalho externo, nem da sua habi- lidade, mas do seu Brau de unifo com Deus. Antes de concluirmos ‘esta breve conversa com o Senhor, escutemos de novo as palavras de Jesus: maneie in me, GUARDA DO CORACAO Desejo que escutes dos labios desse gran- de santo da Igreja, que € Santo Agostinho, a confissio da feliz experiéncia do seu gran- de coragio e da sua mente lucida: Fecisti nos, Domine, ad te, et inquietum est cor nos- trum, donec requiescat in Te. («Fizeste-nos, Se- nhor, para ti, e 0 nosso coracgfo esta inquieto enquanto nfo descansar em ti»). Este santo, cuja vida sem dtivida conheces, percorreu com sede de verdade e de amor muitos caminhos da terra. E da sua alma grande e nobre, depois de tantas experiéncias dolorosas, deixou escapar o grito que te referi acima e que é uma verdadeira con- fissaio. O seu coragéo inquieto e rico procurava felicidade e descanso, e, depois de muitas tenta- tivas imiiteis, encontrou tudo encontrando a Deus. Esta inquietacao, que todos trazemos dentro de nds, tem de ser pacificada, acalmada; este desejo ardente, que sentimos no intimo, tem de 3 Jt ASCETICA MEDITADA ser satisfeito, Enquanto essa inquietacao nao for pacificada, e esse desejo ardente satisfeito, o coracéo do homem anela, sofre e procura. A his- téria de cada homem é a histéria de um pere- grino, de um viandante que procura a felicidade. Todos os homens, alguns conscietemente, ou- tros —a maioria— inconscientemente, procu- ram a Deus. Por isso, meu irm&o, o mundo divide-se em duas grandes partes: o das pessoas que amam a Deus com todo o coragdo, porque o eucontraram, e o das almas que o procuram com todo o coracéo, mas ainda nao o encon- traram. Aos primeiros, o Senhor ordena: Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo. («Amaras o Senhor teu Deus com todo o teu coracio») « aos segundos, promete: Quaerite et invenietis («Procurai e encontrarcis»), Pergunta-te, meu irmao, a qual das duas partes pertences, para saberes 0 que deves fazer. E nfo te esquecas de que, se vés ou-sentes a falta de alguma coisa, © que na realidade te falta é Deus Nosso Senhor, que ainda nio se encontra presente na tua vida ou que se nao encontra com a plenitude devida. Quero recordar-te uma verdade muito sim- ples, uma verdade que ¢ a base de todas as con- sideragGes feitas até agora. O coragio do ho- mem, todos os coragdes, inclusive os coracdes das almas consagradas a Deus, foram criados | SALVATORE CANALS 35 para a felicidade e nado para a mortificagao, para a posse e Nao para a renincia. E esta exigéncia de felicidade e de posse é jd uma realidade pre- ciosa aqui mesmo na Terra: uma realidade pre- ciosa e bela que, para se manifestar, nfo espera que entremos no Paraiso. Se o caracgio humano foi criado para a felicidade —felicidade que deve comegar aqui mesmo, na Terra—e a feli- cidade sémente se encontra em Deus, deves admitir que o caminho que a ela conduz nao pode ser sendo o da guarda do caragao. . A ciéncia da guarda do corac&o é feita de ordem e de luta, de defesa e de ataque, de re- mincia e de sofrimento; mas tudo esta orde- nado para a felicidade e a posse. Guardar o coragio quer dizer conservd-lo para Deus, viver de modo que o nosso corag&o seja o Seu reino, que nele existam todos os amores que se devem encontrar em consequéncia do nosso estado ec da nossa condi¢io, mas que todos estejam har- monicamente fundidos no amor de Deus e para ele ordenados. Guardar 0 corac&o significa tam- bém amar com pureza e paixfo aqueles a quem devemos amar, e excluir ao mesmo tempo os cittmes, as invejas e as inquictacdes, que sdo causas certas de desordem no amor. A guarda do coracgao significa sempre ordem no amor. A ciéncia da guarda do corag&o ensina o cristo 36 ASCETICA MEDITADA a penetrar na profundidade da alma para desco- brir os seus movimentos e tendéncias, Como sao poucas as pessoas que tém a cora- gem de olhar com olhos sinceros para essa fe- cunda e escondida fonte da vida humana que é 0 coragao! Quanta malicia e quanta grandeza vibram escondidas no coragdo humano! Se expe- rimentarmos enfrentar o nosso coragio, nao tardaremos a descobrir que Deus, a natureza e o.deménio sio os itrés eternos prota- gonistas do combate espiritual que diaria- mente se trava nele. E comprovaremos perfei- tamente como as batalhas de Deus se vencem e se perdem ‘no coracdo. Compreenderemos entaio, em toda a sua pro- fundidade, a censura dirigida por Cristo: aos fariseus: Populus iste labiis me honorat, cor autent eorum longe est a me («Este povo honra- -me com os ldbios, mas temo coragio longe de mim»). O Senhor, que ama os puros de cora- sao e que quer instaurar o seu reino nos cora- gées, nfo pode aceitar semelhante servico hipd- crita e puramente formal. Uma alma habituada & vigildncia do coracio cai na conta de que a maior parte das suas acces so exclusivamente naturais ou um misto de natureza e de graga: pode comprovar, com pena e dor, gue raramente realiza acgdes deri- vadas por completo da graca e perfeitamente SALVATORE CANALS 7 sobrenaturais. O cardcter sobrenatural de uma accao ¢ continuamente ameacado de todos os lados: no comego, no meio e no fim. E por isso que estas almas fazem da guarda do coragaéo uma vigilancia continua da sua pré- pria intimidade, uma presenga em todas as suas acc6es no momento exacto em que as realizam. Imaginando o coragéo como um campo de ba- talha, podemos dizer que esta ciéncia ensina a viver permanentemente como sentinelas nas li- nhas avancadas. E verdade que o caminho nao é facil, mas quando o coragio atinge a purificagfo com- pleta, Deus Nosso Senhor, com a sua presenca eo seu amor, ocupa a alma e todas as suas po- téncias: memoria, inteligéncia, vontade. E deste modo que a pureza do corac&o conduz 4 uniado com Deus, unio a que normalmente n4o con- duzem os outros caminhos. Uma vez alcancada a pureza do coragiio, a alma pode facilmente praticar todas as virtudes que as circunstancias da vida lhe exigirem; e relativamente 4s outras virtudes que nao tiver ocasifo de praticar, possuira igualmente a sua alma, o seu espirito e, por assim dizer, a sua esséncia; e é o que Deus Nosso Senhor deseja. Na escola do coragio podemos aprender, num instante, mais coisas do que nos poderiam ensi- nar, num século, os mestres da Terra. Sem a 38 ASCETICA MEDITADA guarda do coracéo, por mais que nos esforce- mos, nunca chegaremos 4 santidade; mas com ela, e sem outras accGes externas, muitas almas se santificaram. E, por outro lado, meu amigo, é este o caminho que conduz a felicidade, ao descanso sereno e completo do corac4io em Deus. O CAMINHO REAL Com justa preocupacéo, um auior espiritual interroga-se se é oportuno, nos nossos dias, in- sistir exclusivamente no aperfeicoamento hu- mano que o Cristianismo, vivido com profun- didade e dedicagao, traz necessariamente con- sigo. Fazendo eco deste grito de alarme, quero dizer-te que talvez a caracteristica mais im- portante do mundo de hoje seja a sua falta de sentido ieoldgico. Agora que te encon- tras em meditacfo a sés com Deus, sob o seu olhar, pensa novamente na tua experiéncia pes- soal, na tua vida de relacio com os outros, nas reaccées dos outros—e nas tuas—das suas ati- tudes—-e as tuas—-em face dos valores espi- rituais e das inevitdveis provacées da vida, e em face de tantos acontecimentos que interes- sam & Igreja e em que se jogam problemas que poem em sério perigo o bem das almas. Nao te parece que muitos cristaos—e porventura tu mesmo ~—nio contemplam a grandeza de Deus 40 ASCETICA MEDITADA e da sua Igreja? Nao te parece que em muitas inteligéncias cristés se vai extinguindo o sentido teolégico? Nao é verdade que, no modo de agir e de falar de tantos cristos, se chega a menospre- zar o «sentido da cruz», que esté sempre tao inti- mamente unido ao sentido teolégico? Tu e eu sabemos muito bem que, para se ver a Deus, é preciso morrer: Dewin nemo vidit un- quam («Nunca ninguém viu Deus»). Alguma coi- sa de parecido se passa na nossa vida interior. Para vermos Cristo e para 0 conhecermos na obs- curidade luminosa da fé, para vivermos com Ele numa intimidade sempre crescente, é preciso que aprendamos a morrer para nds mesmos. Temos necessidade de sentido teoldgico, temos necessi- dade do sentido da cruz: ubi crux ibi Christus («Onde esta a cruz ai esta Cristo»). O préprio Jesus —que nos disse, revelando-nos um se- gredo: Regnum Dei intra vos est («O reino de Deus esta dentro de vdés») acrescenta, mos- trando-nos um caminho: Regnum coelorum vim patitur («O reino dos céus é tomado a forga»). Se nos falta sentido teoldgico, se nfo temos o sentido da cruz, a nossa vida corre o risco de ser apenas humana: cessamos de viver como cristéos, para viver como pagaos, na melhor das hipdéteses como bons pagios. A cruz é a nossa tinica esperanca. Exalta a cruz, a cruz de Cristo: na tua inteligéncia, para SALVATORE CANALS 41 que compreenda o seu valor e necessidade, e para que nao seja paga nos seus jufzos e racio- cinios; na tua vontade, para que a ames e a aceites, mio com resignacio, Mas com amor; nas tuas obras, para que tenham um pouco da eficdcia redentora da Cruz. A santidade con- suma-se na cruz, porque a cruz é a morte do pecado, e o pecado é o unico inimigo da santi- dade. Escutemos a voz do Mestre: Si quis vult et post me venire, abneget semetipsum, tollat cru- cem quotidie sequatur me («Se alguém quiser vir apéds mim, renegue-se a si mesmo, tome to- dos os dias a sua cruz e siga-me»). Para um cris- tao, nao existe outro caminho: o seu caminho é o caminho real da santa Cruz. Esta cruz, a cruz de Cristo, a santa Cruz, deve ser procurada-— para caminharmos abra- cados a ela—«todos os dias»: quotidie. No dia em que nado sentirmos sobre os ombros 0 peso da cruz e nio soubermos, com a nossa inteligén- cia, reconhecer o seu valor, nesse dia deixare- mos de viver como discipulos de Cristo. Deves olhar a cruz com fé, e levala com amor. Sem te sentires nunca, nem por um instante, vitima. A cruz nado faz vitimas ... faz santos! Nao pro- voca Caras tristes, mas rostos alegres. Quem vive assim compreende que a vitira é uma sé: Jesus Cristo, que sofreu e morreu por todos, que sofreu e morreu no abandono. 42 ASCETICA MEDITADA Nos cristios—tu e eu—somos felizes car- regando-a Cruz, porque descobrimos a verda- deira, a tmica felicidade, que é pariicipacio da felicidade de Deus. Mas se queremos carregar «todos os dias» — quotidie——a cruz que nos faz discipulos do Senhbor, precisamos de a desco- brir. E seraé este o nosso primeiro propdésito: abrir bem os olhos da alma, os olhos da fé, para descobrirmos a cruz de Cristo na nossa vida. Em que consistira para ti a cruz de Cristo? Escuta, meu amigo: o que é que te custa mais esforco no teu dia a dia? B essa a cruz do Re- dentor para ti. Essas tentagdes poderosas que te assaliam, a tua satide periclitante, o teu tra- balho duro, extenuante, os defeitos do cardcter que te humilham, os defeitos das pessoas que vivem 4 tua volta e que te fazem sofrer ... Adquire visto sobrenatural! Essa é a cruz de Cristo para ti. Propde-te firmemente reconhe- cé-la e abracé-la, quando surgir no teu caminho de cada dia. Pede ao Senhor que te faca desco- brir o mistério da Cruz, e caminhards a passo de gigante pelas vias da santidade. E agora que conheces a cruz de Cristo, agora que couheces o seu valor e necessidade, como te serd facil carregé-lal Carrega-a com alegria, com amor. Carrega-a’ generosamente, e aprende a escondéla aos olhos dos que vivem A tua: volta, como se esconde um tesouro. Esconde-a SALVATORE CANALS as por tras de um sorriso generoso, e descobriras o sentido — dentro, na tua alma profunda— das palavras do Senhor: Jugum mezum suave est et onts meum leve («O meu jugo é suave, e 0 meu peso € leve»), Ele,'o bom Cireneu das almas, ajudar-te-4 a levé-la; E nao te limites a levar a tua cruz: leva generosamente também a cruz dos teus irmaos. Mas, sobretudo, ensina-lhes o valor da cruz. Pede ao Senhor por eles, para que saibam descobrir e amar a cruz em tudo o que os preocupa ou angustia, naquilo que os faz sofrer. A cruz, sé a santa cruz, dard fecundidade e eficdcia & tua vida de apdstolo. Cum exaltatus fuero a terra, onmia traham ad meipsum («Quan- do for levantado da terra, atrairei tudo a mim») quando souberes permanecer na cruz cont amor, como Jesus Cristo, entio.atrairas a ti— ao Senhor—todas as almas que se aproxima- rem; entéo serds verdadeiramente carredentor com Cristo. Ndo te esquecas de que Maria San- tissima, a Rainha dos martires, é também Rai- nha da paz. Aproxima-te dela com confianga. Para lhes fazeres companhia, ao pé da cruz. DA ESPERANCA CRISTA Dentre as virtudes que deixam um sulco mais profundo no espirito humano, que influem mais notériamente sobre a vida e a actuacdo dos homens, destaca-se a virtude crista, teologal, da esperanca. Na verdade, wm mesmo homem, con- forme viva sob o impulso da esperanca ou permanega inerte sob o peso do desespero, aparece-nos —e é, verdadeiramente —como um gigante ou um pigmeu. Na nossa convivéncia @ nos nossos encontros humanos, todos os dias presenciamos — nao sem surpresa e mdgoa— estas transformagdes surpreendentes: o nosso século padece, porventura mais do que nenhum outro, da falta desta virtude. Quantas filosofias, quantas atitudes, quantos estados de a4nimo dos homens do nosso tempo nio mergulham as suas raizes em almas sem esperanca, divididas entre a angistia e o temor, uma angtstia que nada pode dissipar, um temor que nada pode afastar! SALVATORE CANALS 45 A verdade é que o homem nao pode vi- ver sem esperanca,. A esperanga éa cha- mada do Criador, principio e fim da nossa vida, a que nenhuma criatura humana pode fugir; éa voz do Redentor qui vult omnes homines sal- vos fieri («que deseja ardentemente a salvacao de todos os homens»); ninguém pode recusar- -se a escut4la sem perder a paz da alma; € a profunda nostalgia de Deus, que Ele préprio introdwiu em nés—dom maravilhoso— de- pois de ter realizado, em relagio a cada homem, aquelas inefaveis «obras das suas mios» que, na linguagem dos tedlogos, se cha- mam criac&o, elevagio e redengiio. Através dos séculos cristios, poucos como Santo Agostinho souberam exprimir, com aquele tom persuasivo de conhecimento adquirido, com aqueles’ acen- tos comovidos de experiéncia sofrida, esta nos- talgia profunda do coragio humano. Escritor de intuigdes elevadas e de profundos estados de alma, soube definir num grito do seu espirito magnanimo toda a condicio do homem, vian- dante nesta terra: Fecisti nos, Domine, ad Te, et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te («Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coragdo estarA inquieto enquanto nao descansar em Ti»). Detenhamo-nos por um instante nesta frase, para procurarmos esclarecer melhor o nosso 46 ASCETICA MEDITADA trabalho e saber a raziio das nossas ansias. Nao & possivel eliminar, erradicar a nostalgia que cada um traz dentro de si: enraizada na nossa propria pessoa humana, que est4 destinada a ver Deus um dia e a gozar para sempre dele, esta nostalgia sera sempre o nosso companheiro de viagem, o amigo das horas alegres e tristes da nossa jornada terrena. Mas pode —e deve — ser aliviada, e para isso esta a virtude da esperan- ca. Na segunda parte da frase de Santo Agosti- nho, deixa-se realmente uma porta aberta: ... da- nec requiescat in te («...enquanto nao descansar em Ti»), Se esta porta estivesse fechada, a inquie- tagio e a nostalgia converter-se-iam em deses- pero e angiistia. Enquanto estivermos a caminho, enquan- to permanecermos como viandantes nesta ter- ra, traremos dentro de nds a nostalgia de Deus e uma inquietagéo obscura, gerada pela incerteza acerca da obtencdo do nosso fim tl- timo (com efeito, salvo uma revelagdo privada de Deus, ninguém pode estar certo da sua pré- pria salvacio eterna): nostalgia e inquietacio que podem—e devem, agora que estamos con- vencidos disso—ser mitigados pela esperanca crista. Nés, cristios deste mundo, apoiamo-nos ma esperanca, e quando a esperanca findar — tal como a fé, no fim da nossa vida terrena — entdo terenos a alegria da posse sem sombras SALVATORE CANALS 47 eo reino da caridade sem mais temores, No fim da nossa vida humana, meu irm4o, espera-nos ou a alegria da posse ou o desespero de nos vermos privados para sempre de Deus. A esperanga, virtude teologal, faz-nos tender continuamente para: Deus, pela confianga no socorro que Ele nos prometeu: Confidite, ego vici mundum («Tende confianga, ea venci o mundo»). O motivo formal — como diriam os ted- logos — desta virtude é€ o préprio Deus, sempre disposto a ajudar: Deus auxilians («Dens auxilia- dor»), a omnipoténcia auxiliadora. E, apesar dis- so acontece tantas vezes que n6s, cristéios — e esta é uma das muitas contradigdes da nossa vida — substituimos na nossa alma e no nosso coragaio a grande e bela Esperanca — que é a de Deus e do nosso ultimo fim—por outras mais peque- nas, embora sugestivas, esperangas humanas. Nao é que os cristZos nfo devam ter esperangas humanas, antes pelo contrario: existem espe- rangas belas ec nobres que devem estar presen- tes no nosso coragéo mais que em nenhum outro. Mas também aqui—na «provincia» da esperanga —é preciso que na nossa alma e no nosso coracio reinem a ordem, a hierarquia e a harmonia da esperancga, e que nenhuma espe- ranca humana — por mais nobre e bela que seja —possa obscurecer a luz e diminuir a forca 48 ASCETICA MEDITADA da esperanga em Deus, nosso fim tltimo, pos- suido e gozado para sempre na vida eterna, E por isso que nfo raras vezes na nossa vida Deus, mediante o jogo da sua Providéncia, faz cair compassivamente algumas esperancas hu- manas que o nosso padrio de valores pessoal talvez tivesse exorbitado, a fim de impedir que possam ocupar no nosso coragio o lugar que s6 a grande esperanga de Deus deve ocupar. BE preciso entéo que saibamos secundar o jogo da Providéncia e que aprendamos a restabelecer a verdadeira ordem de valores na escala da esperanca. Deus ajudar-nos-4 eficazmente a acal: mar todas as esperangas humanas que, em obsé- quio & ordem estabelecida por Ele, néio tenhamos hesitado em colocar no seu justo lugar. Mas se, pelo contrario, ao abalarem-se por disposi- cao divina as esperangas humanas, ripostarmos persistindo em afastar de nés a grande esperanca de Deus, cavaremos com as nossas miios um fosso de rebeliao e desespero. Nao preciso de te dizer quantas crises deste género conheci: tu mesmo terds tido experiéncia de muitas. Crises de que nao raro s6 tomamos conhecimento pela aparéncia humana exterior, e a que damos o nome de complexo ou nervos, enquanto a verdadeira rea- lidade € outra, e o diagnéstico é de natureza mais espiritual, de contetdo mais profundo. SALVATORE CANALS 49 De uma coisa podes estar certo: enquanto nao possuirmos e vivermos a verdadeira virtude cristé da esperanca, a nossa vida estara despro- vida de firmeza, e permaneceremos na instabi- lidade. Passaremos com extrema facilidade da presuncéo, quando tudo correr bem e a nossa vida nfo experimentar sobressaltos nem desi- lusdes, para o desencorajamento, que desper- tara e se anichara no nosso 4nimo ao menor contratempo que aliere as nossas previsdes, ferindo a nossa susceptibilidade, invalidando oS nossos programas ou desiludindo as nossas expectativas. A virtude da esperanca profunda- mente vivida, coloca-se acima de tais flutua- gdes, convertendo-se em firmeza invencivel e abandono confiante, numa permanente fideli- dade ao dever. Lembras-te das palavras de Cristo as Aguas agitadas e ameacadoras do mar da Gali- leia? Tace obmutesce («Cala-te, acalma-te»), Pa- recem incarnar a voz da esperanga que, com a sua forga, impoe siléncio ao tumulio interior do desa- lento. Et venit tranguilitas magna («E sobre- veio uma infinita bonanga»). Esse é o fruto da esperanca: a calma, a serenidade, a paz. Como ensinam os tedlogos («a esperanga da uma certeza de tendéncia»); spes certitudinaliter tendit in suum finer, afirma Sio Tomas. Nao obstante os nossos insucessos, as nossas incoe- réncias, as nossas culpas, devemos sempre espe- 4 50 ASCETIGA MEDITADA rar em Deus, que prometeu ajuda aqueles. que o procuram com humildade e com perseveranca: Petite et accipietis, («Pedi e recebereis»),. O qué? Os bens temporais, condicionalmente, na medida em que forem iteis 4 nossa salvaciio eterna; as gracas mecessdrias, sem condigies; e nao apenas a graca, mas o Espirito Santo, altissinuun donum Dei («altissimo dom de Deus»). E aqui retornam esponténeamente ao nosso espirito as palavras de Jesus & Samari- tana: Si scires dowum Dei... («Se conhecesses o dom de Deus...»), se verdadeiramente conhe- céssemos e compreendéssemos na sua plenitude o dom de Deus, invocariamos com mais fre- quéncia o Espirito Santo, e procurariamos con- fiadamente nfo nos desviarmos do caminho recto e alcangar sem quedas nem demoras 0 nosso fim ultimo. A batalha da esperanga cristéi deve ser tra- vada todos os dias: Dominus regit me et nihil mihi deerit («O Senhor governa-me, e nada me faltard»), plenamente convencidos — porque isso faz parte da prdépria virtude teologal da es- peranca—de que esta nfo depende dos nossos méritos ou virtudes, mas da misericérdia e ommnipoiéncia de Deus. Com efeito, A luz da esperanca, Deus aparecenos non aestimator meriti, sed veniae largitor («nao pelo apreco dos nossos .merecimentos, mas pela largueza do oP SALVATORE CANALS 51 vosso perddo»)}, como repetimos todos os dias numa das oracgdes da Santa Missa. Fazendo finca-pé nas forcas que obtemos desia virtude teologal, devernos aprender a combater os mo- vimentos de desdénimo quotidiano que dificul- tam o nosso caminho quotidiano para a perfeigio evangélica; devemos aprender a resistir, tam- bém diariamente, as alfinetadas do pessimismo que, com o decorrer do tempo e a monotonia da vida, tendem a aumentar. Estes estados de Animo encerram qualquer coisa que evoca na nossa meméria, com a sua forga pacata e um pouco melancélica, duas figuras evangélicas: mulier inclinata («a mulher curvadas) e o homem da mao direita tolhida, duas figuras que, pelo seu abatimento, pela sua fraqueza e inactividade, esto particularmente aptas a exprimir os efeitos produzidos no espirito hu- mano por essas doengas morais chamadas pes- simismo e desalento, que nfo sio mais do que auséncia da virtude e da esperanga. Com nao menor ardor, devemos, porém, impedir que o pessimismo e o desalento pene- trem na nossa vida de apostolado, com o seu tr4gico peso de esterilidade. O apostolado cris- _tio exige esforca continuado, perseverante, te- nacidade e fé incomovivel nas gracas do Senhor @ na missfio por Ele confiada a cada homem. Para que nenhum dos elos desta cadeia se que- oo 52 ASCETICA MEDITADA bre, é precisa a forga que brota da esperanca cristé, através da qual o homem bem tempe- rado na luta do apostolado aprende a saber recomegar. Sirva-nos de exemplo a tenacidade do apéstolo Pedro, no episddio da pesca mila- grosa: nao se detém pelo facto de totam noctem laborantes nihil coepimus («toda a noite tra- balhando, nfio apanhdmos nada»); pelo contra- rio, declara-se disposio a regressar ao trabalho, in verbo tuo laxabo rete («segundo a tua palavra Jangarei a rede»). Mas, com a forcga da esperanca crista, nao devemos procurar robustecer apenas a nossa vida; é preciso que saibamos infundir nos ou- tros confianca e serenidade, dando vida a um verdadeiro e especifico apostolado de confianga, seguindo o exemplo dos andénimos amigos do cego de que fala So Lucas no seu Evangelho, que o encorajam com estas belas palavras a responder ao apelo do Senhor: Animaequior esio: surge, vocat te («Animo: levanta-te, Ele chama-te»), A esperanga crist& conduz as almas ao abandono: com efeito, quem espera verdadei- ramente no Senhor é sempre fiel 4 vontade ma- nifesta de Deus (fidelidade que entra no 4m- bito da virtude da obediéncia) e assim dispde eficazmente o seu dnimo para o abandono na vontade de beneplacito de Deus. Este perfeito abandono, a que conduz a virtude da esperanga, SALVATORE CANALS 53 difere profundamente, como sabes, do «quietis- mo», exactamente porque o abandono, quando é verdadeiro, se faz acompanhar da esperanca e da constante fidelidade aos deveres de cada dia, nas mais pequenas coisas, em todos os. ins- tantes. Na verdade, a esperanga nio poupa o cristéo; leva-o a comprometer-se com todas as suas forcas e possibilidades, coage-o a pros- seguir, a perseverar no seu caminho, mesmo que venham a ruir todos os apoios humanos; é precisamente nestas ocasides que se afirma em toda a sua grandeza a verdadeira esperanga em Deus, E o momento de contra spem in spem credidi («esperei contra toda a esperanca»), afirma vitoriosamente Sio Paulo; é sempre um momento de Deus, um momento que Ele re- serva as almas particularmente amadas. A esperanga nao deve ser nunca um cémodo subterfiigio da nossa preguica. E o que te recorda o Senhor em dois milagres que realizou: quando (initium signorum, «comeco dos milagres») trans- forma em Cand da Galileia a dgua em vinho e quando multiplica os paes e os peixes dian- te da multidio. Tanto num caso como noutro, o milagre da omnipoténcia do Senhor opera- -se depois de se terem esgotado todas as possibi- lidades humanas, depois de os homens terem feito tudo o que podiam fazer; a agua nao sera transformada em vinho sendo quando os fiéis 54 ASCETICA MEDITADA criados tiverem enchido os recipientes usque ad sumimum («até ao cimo») e, antes de multiplicar os pies e os peixes, o Senhor exige o sacrificio total de todos os meios de subsisténcia de que dispunham, isto ¢, dos peixes e dos pAes que pos- suiam; nao importava que fossem poucos ow muitos, o importante era que dessem tudo o que tinham. Para comecarmos a viver a virtude da esperanca, devemos pedir a ajuda da nossa Mie do céu, daquela que é a nossa esperanga: Mater mea, fiducia mea («Minha m&e, minha es- peranga»). HUMILDADE Tenho pensado repetidas vezes que a virtude da humildade paga caro o prego do nome que traz e da realidade que contém. Com efeito, nenhuma outra virtude é tio desprezada, tao ignorada e deformada, como esta virtude crista. A virtude da humildade ¢ uma virtude humi- Thada. E nao sei o que Ihe faz mais mal, se o esquécimento em que o mundo a deixa, as tro- gas e o escdrnio com que muitos a acolhem, ou a falsidade e a pouca elegdncia com que alguns a apresentam. Pareceme que se torna verdadeiramente necessdrio que nés cristfos aprendamos a conhe- cer melhor esta virtude, sentindo profunda- mente a sua importancia; que lutemos por conquisté-la e vivéla rectamente e, desse mo- do, possamos apresentd-la tal como é€ aos olhos de um mundo contagiado de vaidade ¢ de soberba. A este apostolado do bom exemplo, tio eficaz como esquecido, devemos tu e eu sentir- 56 ASCETICA MEDITADA -nos convidados por Jesus Cristo, quando diz: Discite a me quia mitis swum et luunilis corde, («Aprendei de mim que sou manso e humilde de coragiio»). Humildade de coracio: assim nos quer o Senbor, com aquela humildade que nasce no coracio e frutifica nas obras. Porque é falsa essa outra humildade que nasce e morre nos labios: é uma caricatura. Palavras, atitudes, modos, sao incapazes por si sds de criar uma virtude: sfo capazes, sim, de a deformar. A inte- ligéncia deve abrir-nos o caminho do coracdo e ajudar-nos a depositar nele, com afecto, a boa semente da verdadeira humildade, que, com o tempo. e a.graca de Deus, deitara raizes profun- das e dard frutos saborosos. A humildade tem inicio no momento Iumi- noso em que a inteligéncia descobre e admite, com a forga necessdria para que o coraciio possa ama-la, a verdade fundamental, simples e profunda de que, sem Deus, nao podemos fazer nada. Devemos aprender a partir, com as nossas m&os soberbas o pao branco da verdade evangélica, e a distribuilo diante dos nossos olhos ofuscados, que tém em ido alta considerago 0 nosso «eu» e os nossos talentos. Escuta-me! Todos os nossos esforcos por melhorar e por crescer no amor de Deus e na pratica das virtudes evangélicas, sio vaos se a graca de Deus nao nos ajudar: Nisi Dominus SALVATORE CANALS 57 aedificaverit domuun, in vanum laborant qui aedificant eam («Se o Senhor néo edifica a casa, em vio se afadigam os que a constroem»). A vigi- lancia mais atenia e constante é perfeitamente inttil sem a vigiléncia forte e amorosa da graga divina: Nisi Dominus custodierit civitatem, in vanum vigilat custos («Se a Senhor nao vigia a cidade, vai é a vigilancia da sentinela»). Eis por- que as nossas palavras e as nossas acgGes de nada servem quando pretendemos servir-nos delas para a nossa actividade em beneffcio das almas. Sem a agua pura da graca divina, o nosso apos- tolado e as nossas fadigas séo uma agitacio estéril: Neque qui. plantat est aliquid neque qui rigat, sed qui incrementum dat, Deus («O que conta nfo é aquele que planta, ou aquele que rega, mas Deus, que da o incremento»), Mas esta graca, que é necessdria para se progredir nas virtudes, para se resistir as ten- tagées € para que o nosso apostolado seja fe- cundo, é concedida pelo Senhor aqueles que sao humildes de coracio: Deus sitperbis resistit, humilibus autem dat gratiam («Deus resiste aos soberbos e da a sua graca aos humildes»). O Se- nhor, que com suma bondade e uma vigilaucia cheia de delicadeza, distribui copiosamente as suas gracas, néo se serve dos soberbos para rea- lizar os seus designios: teme que se condenem. Se se servisse deles, esses homens encontrariam 58 ASCETICA MEDITADA. nessa graca, de acordo com os seus habitos, um novo motivo de soberba, e, nessa vangloria, a causa de um novo castigo. Meu amigo, conforme ensinam os santos, a humildade consiste na verdade. Que grande motivo para a aceitarmos ce vivermos! Noverim me! («Que eu me conhega, Senhor!»), Este conhe- cimento intimo e sincero de nés mesmos con- duzir-nos-A pela mio & humildade. Deixame que to diga—tenho-o dito a mim mesmo muitas vezes, no meu intimo—nao és nada: a existén- cia, recebeste-a de Deus; nao tens nada que nao tenhas recebido d’Ele; os teus talentos, os teus dons, de natureza e de graca, sio exactamente isso: dons; nao o esquecas! A graca é gracga e fruto dos méritos do Salvador, A este nada que tu és, ainda acrescentaste o pecado: abusas- te tantas vezes. da graga de Deus, por ma- licia ou, pelo menos, por fraqueza! E'a essas duas realidades ainda somaste uma terceira, mais triste que as primeiras: sendo nada e pe- cado ... viveste de vaidade e de orgutho. Nada ... pecado ... orgulho. Que fundamento seguro para a nossa humildade, que serd certamente humil- dade verdadeira, humildade do coragiio! O soberbo e o incrédulo tém muito mais de comum do que pensamos. O incrédulo é um cego que atravessa o mundo e vé as coisas cria- das sem descobrir Deus. O soberbo descobre SALVATORE CANALS 59° e vé Deus na natureza, mas nao consegue des- cobriLo e vé-Lo em si mesmo. Se descobrires: Deus em ti mesmo, serds humilde e atribuiras: a Ele tudo o que de bom exisie em ti: quid habes quod non accepisti? («que possuis que nao te- nhas recebido?»). Nao fechards insensatamente os- olbos a nenhuma das virtudes ou qualidades. que existem na tua alma, porque sabes que vém de Deus e que um dia Ele te pedira contas delas.. Trabalhards para que déem fruto: nado enter- rards nenhum dos teus talentos. E, conservando: o wiérito das boas obras, saberds dar toda a gléria a Deus: Deo omnis gloria! («Para Deus. toda a gloria»). A vai complacéncia nfo encon- trara lugar na tua alma bumilde. Através do sulco aberto pela humildade, a paz entrara na tua alma. E wma promessa di- vina: Discite a me quia imitis sum et humilis corde et invenietis requiem animabus vestris {«Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coragiio, e encontrareis paz para as vossas almas»). Um coragdo sincero e prudentemente hu- milde nfo se perturba por nada. Meu amigo, podes estar certo de que, quase sempre, a causa das nos- sas perturbag6es e das nossas inquietagdes reside na preocupacdo excessiva pela estima propria ou no desejo inquieto da estima dos outros. A alma humilde abandona a estima prdépria e 0 desejo de estima dos outros nas mfos de Deus. 60 ASCETICA MEDITADA E sabe que ai estio seguras. Tira forcas da hhumildade para dizer ao Senhor: se tu nao as queres, eu também no sei que fazer com elas. Neste generoso abandono, encontra a paz pro- metida aos humildes. Que a humildade de Maria te sirva de consolo e modelo. MANSIDAG Tu, que conheces a vida do Senhor, sabes perfeitamente que Jesus Cristo quis unir nu- ma mesma pagina do Evangelho a mansi- dio e a humildade. Ele to recorda agora com a sua voz amiga e com palavras claras: Discite a me quia mitis sum et humilis corde et invenietis requiem animabus vestris («Apren- dei de mim, que sou manso e humilde de coragao e encontrareis paz para as vossas almas»). Como vés, a mansidio e a humildade sdo duas virtudes que devem permanecer unidas no nosso coragaio, duas irmfs que vivem a mesma vida, dois metais preciosos que se fundem completando-se, um com a sua solidez, outro com o seu raro esplendor. Dois aspectos muito positivos e muito viris da nossa vida interior; com a humildade ganhamos o coragao de Deus; com a mansidao, atraimos os nossos irmaos e conquistamos os seus coracées. Agora que meditamos na presenca de Deus, 62 ASCETICA MEDITADA -quero dizer-te que esta virtude é para todos, também para ti. Todos precisam muito dela, ja que a vida é uma continua relagdo com os -outros, uma convivéncia, uma série de relacdes, 2 ocasiao de encontros de todo o género. A tua familia, os teus irmaos, os amigos; as tuas rcla- -G6es profissionais e sociais; os teus superiores, os teus iguais, os que est&o sujeitos a ti: é aqui que o Senhor te espera. Em todas estas relacdes -e encontros deve resplandcer a tua mansidio ‘eristé. Se souberes ungir o teu cardcter com a forga.e vigor desta virtude, o teu cora- -c4o_ assemelhar-se-4 ao coracio de Cristo: mitis sum et humilis corde («sou manso e humilde de -coracdo»), © sacerdote deve ser humilde para ter pa- -ciéncia e caridade cristis no trate com as almas -¢ assim ser eficaz; a mae cristé garantira a educagao, forte e duradoira, dos seus filhos se -souber exercitar-se na mansidao; na intimidade ‘da familia reinard a paz se as relagées mutuas :se desenvolverem num clima de mansiddo; -© se as relagées profissionais e sociais decor- ‘ressem sob o signo desta virtude, seriam bem -diversas, e muitos, que procuram initilmente a “paz por outros caminhos, nfo tardariam a en- -contra-la, Todos somos facilmente inclinados a pensar «que se chega mais longe na pratica do bem com SALVATORE CANALS 63 gritos e ordens peremptorias, que a educacao se garante com ameacgas e modos bruscos, que o respeito se obtém elevando a voz e usando mo- dos autoritarios. Mas entéo que lugar ocupara nas nossas vidas a mansidao crista? Porque motivo Jesus a recomendou no Evangelho? Quantas vezes a prépria vida se encarregou de te dar uma resposia a estas interrogacées, ensi- nando-te que a eficacia se esconde quase sempre por detrds da mansidio de Cristo, que o bem ¢ 0 fruto daqueles que procuram e sabem encontrar palavras claras e amdaveis, utilizdlas numa con- versa serena ¢ persuasiva, e ungi-las com o balsa- mo das boas maneiras. Quantas vezes a experién- cia te fez compreender que as correcc6es e as censuras, feitas sem mansidao cristé, fecham o coragio da pessoa que as deve receber, porque niio podemos esquecer nunca que, quando deixa- mos de ser pai, irmiéio, amigo para o nosso proxi- mo, tudo o que sai dos nossos labios traz fatal- mente consigo. mesmo o germe da esterilidade. Procura sempre—por. meio da mansidio erista, que é@ amabilidade e afabilidade — ter nas mos os coracées das pessoas que a Provi- déncia divina p6és no.caminho da tua vida e Trecomendou aos teus cuidados. Se perdes o coracgio dos homens, dificilmente poderds ilu- minar-lhes as inteligéncias e conseguir que as suas ‘voritades sigam o caminho que lhes indi- bt ASCETICA MEDITADA cas. Meu amigo, tu, se sentes nos teus bracos e no teu coracdo a responsabilidade de outras almas, 0 peso de outras vidas, néio deves perder nunca de vista que a confianga néo é coisa que se imponha, mas algo que se inspira. E sem a confianga das pessoas que te circundam, que colaboram contigo e que te servem, como sera amarga a tua vida e infecunda a tua missio! A mie cristé compreendera muito bem estas palavras pensando na educagéo dos seus filhos, o sacerdote meditando no bem das almas que dirige ou daqueles que lhe prestam a sua cola- boracéo, e o préprio director de um escritério ou de uma fabrica se deterd a pensar na tran- quilidade dos seus empregados e dos seus su- balternos. O teu mau génio, as tuas reaccdes bruscas, os teus modos pouco amaveis, as tuas atitudes desprovidas de afabilidade, a tua rigidez (tao pouco crist&!) sfo a causa de que te encontres s6, na soliddo do egoista, do homem. amargo, do eterno descontente, do ressentido, e sio também a causa de que 4 tua volta, em vez de amor, haja indiferenca, frieza, ressentimento e desconfianca. E preciso que, com um tempera- mento afavel e compreensivo, com a mansidio de Cristo misturada na tua vida, sejas feliz e fagas felizes todos os que te circundam, todos os que se encontram no caminho da tua vida. A tua SALVATORE CANALS 65 passagem, deves deixar o bonus odor Christi («o bom odor de Cristo») :o teu sorriso habitual, a tua calma, o teu bom-humor e a tua ale- gria, a tua caridade e a tua compreensdo. Deves assemelhar-te a Jesus, que pertransiit benefa- ciendo («que passou fazendo o bem»). Aqueles que desconhecem a mansid&o de Cristo deixam atras de si uma nuvem de desconientamento, um rasto de animosidade e de dolorosas amat- guras, uma sequéncia de feridas nao cicatriza- das; um coro de lamentos e uma quantidade de coragées fechados, por um tempo mais ou menos longo, @ acciio da graca e a confianga na bondade dos homens. Pergunta-te a ti mesmo, num sincero € lumi- noso exame de consciéncia, o que tens deixado atras de ti até este momento: os que te considera- yam como pai, irm&o, amigo, aqueles que te tra- faram como superior, chefe ou companheiro, to- dos esses, o que é que receberam de ti? O que € que permaneceu nas suas almas depois de te haverem encontrado? Tu que concebes toda a tua vida em fun- cio do apostolado, néo podes deixar de pen- sar no que Jesus promete numa das bem- -aventurancas: Beati mites quoniam ipsi pos- sidebunt terram («Bem-aventurados os mansos, porque possuirdo a terra»). Ser manso é possuir a terra, e essa é a primeira condicio para dar- 3 66 ASCETICA MEDITADA mos gloria a Deus e levarmos a paz aos homens. Se tu e eu, que queremos que a nossa vida se consuma na pratica do bem, nao sabemos pos- suir a terra, atraindo os coracdes, como podere- mos levd-la a Deus? Antes de tentarmos fazer santos todos aqueles a quem amamos, é preciso que os tornemos felizes e alegres: nada prepara melhor a alma para a graca do que a alegria. Sabes perfcitamente— quero apenas recor- dar-to— que, quando tens entre as mos 0s coragdes daqueles que queres tornar melhores e os sabes atrair com a mansidiio de Cristo, ja percorreste metade do teu caminho apostdlico. Quando te tém afecto e confiam em ti, quando se mostram contentes, o terreno esté preparado para a sementeira. Os seus coragdes abrem-se, como terra boa, para receberem o branco trigo da tua palavra de apéstolo, de educador. Se sou- beres falar sem ferir, sem ofender, mesmo que devas corrigir ow repreender, os coragies nao se fecharéo. De outro modo, as tuas palavras esbarrardo contra um muro macico, a tua semente nao caira em terra fértil, mas iuxta viam (ena berma da estrada») da indiferenca ou da falta de confianca, ou super petram (ena pedra») de um espfrito mal disposto, ou inter spinias («entre espinhos») de um coracao ferido, ressentido, cheio de rancor. Nunca percamos de vista que o Senhor pro- SALVATORE CANALS 67 meteu a sua eficdcia 4s caras alegres, aos modos afaveis e cordiais, 4 palavra clara e persuasiva que dirige e forma sem magoar: beati mites quoniam ipsi possidebunt terram. N&o devemos esquecer nunca que somos homens que tratam com outros homens; mesmo quando queremos fazer bem as almas. Nao somos anjos. E por isso a nossa fisionomia, o nosso sorriso, os nos- sos modos s&éo elementos que condicionam a eficacia do nosso apostolado. Nao podemos ter- minar sem pedir a Maria, Mater amabilis («Mae amavel») que nos fite com os seus olhos miseri- cordiosos: illos tuos misericordes oculos ad nos converte («os Vossos olhas misericordiosos a nés volvei»). Sob o olhar de uma mie tio amavel, compreenderemos muito bem o valor, a necessi- dade e a eficdcia da mansidiio crista, AS HUMILHACOES Se a paciéncia é o caminho que conduz a paz e o estudo o caminho que conduz a ciéncia, a humilhagio é © unico caminho que conduz a humildade. E no que meditaremos agora tu e eu, depois de termos ficado a sés com Deus Nosso Senhor. Se queremos uma verdadeira e auténtica vida espiritual, é natural que sintamos um desejo muito actual e muito firme de humil- dade. E esta preocupacao pela humildade é que nos leva a perguntar-nos como havemos de obter o maior fruto possivel na nossa vida espi- ritual das humilhacGes que o Senhor nos faz sen- tir no mais profundo da nossa alma e daquelas outras que dispde no nosso caminho de tra- batho. Ha momentos — momentos delicados —na vida espiritual, em que a alma se sente profun- damente humilhada. Luzes muito concretas e muito claras de Deus Nosso Senhor poem a des- coberto e fazem sobressair tudo o que de mais SALVATORE CANALS oy humilhante possam ter as nossas misérias e as nossas deficiéncias, as nossas inclinagdes e as nossas imperfeicdes, os nossos defeitos. Os olhos da nossa alma abrem-se para o que somos sem querer, para o que sentimos sem querer e para o que nos atrai, embora o detestemos. Muitos defeitos, porventura anteriormente desconheci- dos, afloram com contornos claros e precisos ante o olhar aténito da alma. E o campo da consciéncia vé-se assaltado violentamente pe- los insucessos e deficiéncias que a nossa vida conheceu, Em ocasides de maior recolhimento, em dias de retiro, é facil que o Senhor introduza as almas neste caminho, para as fazer crescer na humildade e aprofundar no conhecimento de si mesmas. Nesses momentos, nessas circunst4n- cias, lembra-te desta frase que agora te re produzo: Digitus Dei est hic! («0 dedo de Deus esta aqui»). Nao te esquecas de que é o amor de Deus por ti que te proporciona estas lu- zes de conhecimento préprio, este sentimento da que foste ou do que és, esta humilhacio cuja forca estimulara a tua alma a enveredar pelo caminho da humildade. Nao te esquecas de que o Senhor reserva este tratamento’ as almas que mais ama: ego quos amo et arguo («eu repreendo aqueles que amo»). Por isso, meu amigo, a nossa reaccdo sobrenatural em face das humilha- 70 ASCETICA MEDITADA des deve ser a de um acto de profunda accdo de gragas: gratias tibi quia humiliasti me («agrade- go-te porque me humilhaste»). Esta humilhagio interior ou aquele insucesso exterior deixarado a tua alma impregnada de humildade e darfo a tua vida “uma santidade maior e, muito provavel- mente, uma nova eficdcia 4s tuas actividades. Nao penses que és pior, agora que vés o que: antes ndo vias, agora que sentes profundamente oO gue antes nao sentias, agora que tiveste oca- sido de conhecer uma deficiéncia do teu caracter, da tua formacgio e das tuas atitudes. Nao és pior; és melhor, ou, pelo menos, estés em éptimas condicées de melhorar. Se os soubesie aproveitar, esses momentos fizeram-te percor- rer metade do caminho, porque sabes onde se enconira o mal que deves eliminar, porque conheces o defeito que deves combater e sabes também que precaugGes deves tomar para evi- tar surpresas. Qual hé-de ser a nossa disposicia interior e @ nossa reaccao sobrenatural ante essas humi- thagées internas e esses insucessos externos que ameacam a paz e a tranquilidade da nossa vida interior? A nossa primeira reacgio ém face seja do que for, deve ser uma reacgfo de humildade. Devemos aceitar a humilhacio ou o insucesso com verdadeira humildade, com essa humildade SALVATORE CANALS 71 a que se chama de coracio, porque nele tem as suas raizes e dele extrai toda a sua forga. E nao so aceitar as humilhacdes, mas ama-las, amar a nossa prdpria miséria e desse modo conseguir dar gracas a Deus por nos conhecermos como na realidade somos.’ Depois, havemos de evitar tudo o que seja ou saiba a rebelifio interior. Que falta de humildade de coragaio nio demonstra- riamos se nos rébelassemos contra esse estado de humilhacZio em que a bondade e a providén- cia querem colocar-nos para que a nossa alma amadureca e sé una mais com Ele! Nao deves apenas repelir a revolta, mas tam- bém evitar com cuidado qualquer justificacdo diante de ti mesmo e dos outros, As faceis e abundantes justificacées que, se nao fores ver- dadeiramente humilde, enconirards para ali- mentares a tua soberba, que surge em defesa do 6ptimo conceito que fazes de ti mesmo, cortarao A nascenca tados os frutos de humil- dade e de eficdcia que Deus reservava & tua alma. Nao te justifiques! Nao te justifiques diante da tua alma s6 e humilhada! Afoga na humildade o argumento soberbo que aparente- mente fecharia uma ferida mal cicatrizada. Desbarata corajosamente o contra-ataque do orgulho disposto a recuperar as posicgdes que o teu amor préprio perdeu. Vira as costas e a cara aos afagos insidiosos da soberba. Repara 72 ASCETICA MEDITADA que é a hora de Deus. Ama nesciri et pro nihilo reputari («Ama ser ignorado e tido por nada»). E nunca deves desanimar ante as humilha- c6es. Este é o ultimo escolho que a iua psico- logia tem que vencer para que nao reste nenhum complexo no teu cardcter, nem limitagao al- guma na tua capacidade de trabalho e de servico a Deus. O balsamo do optimismo e da confianca fard com que a ferida —cauterizada pela humil- dade — cicatrize perfeitamente e se transforme num troféu de gléria. A desconfianca e o desalento fariam um mal terrivel & tua Inta ascética e A tua vida de apédstolo. Depois de termos reagido com humildade de coracio e de termos evitado, também com humildade, os escolhos que acima te indiquei, levantar-nos-emos com uma gran- de confianga. Que bom ponto de partida para a nossa confianca é a humilhacio recebida com alegria! Devemos sentir com Sado Paulo a forca e o estimulo da virtude da esperanca que, como o vento do mar, incha as velas da nave da nossa vinda interior: cum infirmior tune potens sum («quando sou mais fraco, entio é que sou mais forte»). Agora que sou mais consciente das mi- uhas fraquezas, poderei apoiar-me eficazmente na fortaleza de Deus. Esta esperanca reavivara o amor adormecido e fardé que encontremos palavras apropriadas para o exprimirmos ao SALVATORE CANALS 73 Senhor; e nao conheco palavras mais apro- priadas para este momento espiritual do que as palavras de Pedro a Cristo, palavras de amor contrito e confiante, no seu primeiro encontro com o Senhor apés a iriplice negacao: Domine iu omnia nosti, tu scis quia amo tel («Senhor, tu sabes tudo, tu sabes que ev te amo!»). Tu sabes, Senhor, que te amo, apesar de tudo, acima de tudo. E 0 peso que te oprimia de- saparece, ¢ da humilhac&o apenas restam humil- dade, experiéncia, confianca e amor. A humildade e a confianca conduzem pela mo a nossa alma 4 alegria e @ decisiio. Quantos sio os recursos da humildade! As nossas for- gas aumentam, a nossa decisio torna-se mais firme e mais prudente. A alegria leva A nossa alma as palavras animosas de Siio Paulo: libenter gloriabor in infirmitatibus meis («de bom grado me gloriarei nas minhas fraquezas»). E a decisio concretiza-se nestas palavras do Doutor das gen- tes: omnia possum («posso tudo»). O coléquio com a Virgem Maria, que é toda humildade, é t&éo espontineo que prefiro nio reduzilo a escrito; prefiro que a tua alma e a minha o facam a sés com Ela. O ITINERARIO DO ORGULHO Existe um caminho que nao é, certamente, o da salvacdo nem o da felicidade, e pelo qual, nao obstante, enveredamos com toda a facili- dade e com muita frequéncia. E a este propd- sito deixa que te confidencié alguns pensamentos e reflexGes, para qué juntos aprendamos a reco- nhecé-lo desde o priméiro instante é@ a evitd-lo sempre. i , © itinerério do orgulho iem um ponto de partida bastante triste, porqué comega com a negagaéo de Deus nas nossas almas é nas nossas vidas. A este respeito alguém observou aguda- mente que o ateu e o orgulhoso tém pontos em comum, Com efeito, o ateu recusa-se a admitir a existéncia de Deus pelas provas da criaciio e das criaturas; néo vé Deus Nosso Senhor nas coisas criadas. O orgulhoso recusa-se a reconhe- cer Deus na sua alma e na sua vida: nfo sur- preende Deus Nosso Senhor nos dons da natu- SALVATORE CANALS re yeza e da praca que enriquecem a sua pessoa & frutificam na sua vida. Na realidade, 0 orgulho nfo é mais do que uma estima desordenada das qualidades e dos. talentos pessoais. Nido é mais do que a ideia desmedida e desordénada que formamos de nés mesmos. Cultivamos voluntariamente e com uma espécie de circunspecciio interior esse alto conceito de nés mesmos, e nio admitimos qual- quer sombra, por pequena que seja, qualquer referéncia: a outras pessoas, nem suportamos. qualquér censura ou correcgao. Atribuimos a nés mesmos—esquecendo-nos por completo de Deus Nosso Senhor —tudo aquilo que so- mos e valemos. E, desse modo, excluimos Deus. e os outros da nossa vida: sé eu, diz obstinada- mente o orgulhoso, contemplando-se com com- placéncia e encastelando-se em si mesmo com presuncao. Nas almas que seguem o caminho do orgu- Tho, nao encontram nenhuma ressonancia aque- las palavras de Sio Paulo: Quid habes, quod non accepisti? («que tens de préprio que nao tenhas recebido?»). Nem despertam eco aquelas ouiras palavras que completam o raciocinio do Apéstolo: Quid gloriaris quasi non agceperis? («Por que te vanglorias, como se nao tivesses recebido 0 que possuis?»). Se existe algum cagni- nho que torne as almas complicadas, é 0 ca 76 ASCETICA MEDITADA minho do orgulho. O itinerério do orgulho é um labirinto em que as almas se desorientam e se perdem. O orgulho destréi a simplicidade das almas, e esse Ser e aparecer sem pregas — sine plicis — que é uma caracteristica encantadora das pessoas humildes. Mas quantas pregas se formam na alma con- taminada pelo orgulho! E um vicio capital que induz—cada vez com mais forga —a dar voltas continuamente sobre nés mesmos, a retornar infinitas vezes e a deleitarnos com o pen- samento dos talentos préprios, das virtudes préprias, dos éxitos préprios e daquela deter- minada ocasiao ou circunstancia em que triun- famos. E este € o mundo, oco e mesquinho, da va complacéncia. Do mundo interior passa- ‘se ao mundo exterior: o itinerdrio do orgulho continua a sua marcha implacdvel. Tudo o que essas pessoas construiram dentro de si, desejam agora edificdlo & sua volta. Gloria mea alteri non dabo («nao darei a outro a minha gloria») disse o Senhor. E a alma orgulhosa riposta a este imperativo divino, apropriando-se dessa gloria. Este itinerdrio infeliz jamais passard pelo Senhor. Nada, nem ninguém, podera fazer dizer as almas que enveredaram por este caminho: Gratia Dei sum id quod sum («S6 pela graca divina sou o que sou»). O seu olhar e o seu pen- SALVATORE CANALS 7 samento jamais se levantariio das. qualidades e dos triunfos pessoais para se fixarem em Deus Nosso Senhor e agradecerem-lhe a sua bondade. O olhar e o pensamento destas almas detém-se sempre na planicie. O itinerario do orgulho comega com a exclusio de Deus e o ensimes- mamento, © horizonte do orgulhoso é terrivelmente limitado: esgota-se em si mesmo. O orgulhoso nao consegue olbar para além da sua pessoa, das suas qualidades, das suas virtudes, do seu talento. E um horizonte sem Deus. E neste pano- rama téo mesquinho nunca aparecem os outros: nao ha lugar para eles. Dado o alto conceito que tem de si mesma, a alma que segue este itine- rério nunca pede conselho a ninguém e de nin- guém aceita conselhos. Basta-se a si prdpria. Vive agarrada ao juizo préprio e 4 vontade pro- pria, até 4 casmurrice, e voluntariamente ignora, até ao desprezo, qualquer opiniao ou conviccdo alheia. Por isso, o desprezo pelo préximo é€ uma atitude frequente, e mesmo habitual, entre as pessoas que seguem este caminho, Convertem-se jntimamnte em fariseus e consideram os ou- tras como publicanos, reproduzindo continua- mente nas suas vidas a cena e as atitudes da pardbola. evangélica: Gratias ago tibi, quia non sum sicut cetert homines («Agradego-te por nao 7 ASCETICA MEDITADA ser como os outros homens»). Os outros existem apenas como termo de comparacio, para se exaltarem no seu orgulho enquanto os des- prezam. AS pessoas que se enconiram neste caminho nao suportam que exista ninguém superior a elas. E uma possibilidade que nao se pode veri- ficar, nem sequer no mundo das hipdteses. Os outros sé podem servir para elas se exaltarem: :devem estar num nivel inferior. Os defeitos dos outros devem servir para pér em evidéncia a sua sabedoria e habilidade,.e a escassa inteli- géncia dos outros, para fazer resplandecer o seu grande valor. E aqui se encontra a raiz da inveja, dos citimes e das ansiedades que acom- panham a vida de todos os que seguem o itine- ratio do orgulho. Mas este caminho infeliz nfo acaba aqui. Da inveja, passa-se 4 inimizade. E quantas siio as inimizades que tém origem —estranha ori: gem —na inveja! Pessoas que se véem despre- zadas, odiadas e combatidas apenas por serem melhores ou mais inteligentes do que os seus perseguidores, Sio réus culpados do grande delito de serem bons ou inteligentes, ou de terem trabalhado muito. E este delito é com- batido e castigado — no itinerario do orgulho — com a frieza, a inimizade, o siléncio e a calinia. Nao perder o lugar, ndo entregar as armas: SALVATORE CANALS 79 quem caminha nesta direcgéo chega até ao fin- gimento e 4 hipocrisia, Simular aquilo que nao se é, exagerar aquilo que se possui. Tudo é It cito, tudo é bom, neste maldito caminho, desde que o interessado seja o primeiro diante de si e na estima dos outros. Para nos mantermos sempre afastados deste perigo, e para sairmos dele se nos encontramos nesse caminho, recorramos 4 Virgem— Mestra da humildade—para que nos faca compreen- der como initiun omnis peccati est superbia («a soberba é 0 principio de todos os pecados»). CELIBATO E CASTIDADE Meu amigo, a castidade, a castidade perfeita, da qual te falarei agora, é o reverso da medalha do amor. Um exemplo simples, tirado do amor humano, ajudar-tea a compreender e a apro- fundar no sentido que esta virtude deve ter para nds. Quando no mundo se ama de verdade uma pessoa, € se ama a ponto de a querer para com- panheira de toda a vida, esse amor é¢ e deve ser necessariamente exclusivo: é um amor que ocupa plenamente o coracgéo e a vida da pessoa e que, logicamente, exclui outros amores incom- pativeis com ele. Ora, néds devemos amar a Deus com o mesmo coragée com que amamos no mundo as pessoas do mundo. E foi o mesmo coracéo que se da aos amores nobres e limpidos da terra, que nds demos a Jesus, nés que segui- mos as suas pisadas, renunciando com alegria a outros afectos, que, pelo facto de serem hu- manos, nfo deixam de ser grandes. Tinham os SALVATORE CANALS 81 olhos abertos e tém o coracio cheio todos aque- Jes que se comprometeram com um amor ter- reno; tinhamos os olhos abertos e temos o cora- cao cheio, nés que estamos comprometidos com um amor do céu. Este amor de Deus, que se concretiza no celibato ¢ na castidade perfeita, é também exclusivo e proibe qualquer outro amor que seja incompativel com ele. Nihil carius Christo (enada nem ninguém é mais amdvel do que Jesus Cristo») proclamou Sao Paulo e repetem-no todos aqueles que, para seguivem mais de perto a Jesus Cristo, renun- ciaram a todos os bens da terra, mesmo aos Iici- tos; como repetiram e repetem com Sdo Paulo, na apreciagéo das coisas humanas: ommia arbi- tror ut stercora ut Chrisium lucrifacium («todas as coisas da terra sfo nada, quando se trata de ganhar Cristo»). Meu irmdo, encaremos o celiba- to e o amor pela castidade perfeita como uma exi- géncia, para ti e para mim, do amor de Jesus Cristo. A nossa alma, o nosso coragdo e 9 nosso corpo séo d’Ele, foram-lhe dados com os olhos bem abertos. E nado nos esquecamos de que néo nos falta nem nos pode faltar absolutamente nada: Deus meus et omnia («meu Deus e meu tudo»). Nido te posso dizer —porque dir-teia uma coisa inexacta— que a castidade, a pureza, é a primeira das virtudes; tu sabes perfeitamente 4 82 ASCETICA MEDITADA —desejo apenas recordar-to— que a primeira virtude, comecando pela base, é a fé: a fé do fundamento de todo o nosso edificio espiritual; sabes também que a primeira das virtudes, con- templando o edificio espiritual de cima, é a cari- dade: sé através dela—rainha das virtudes— nes unimos directamente a Deus. Mas também nao seria exacto se nado te acrescentasse agora que a castidade, a pureza de vida, forma o am- biente,'o clima propicio para que aquelas duas virtudes, e, com elas, as outras, se possam de- senvolver. Nao é dificil compreender a impor- tancia e a necessidade da castidade na vida espi- ritual. Sem essa virtude, que cria o ambiente, o clima, nunca seremos homens de vida inte- rior; sem ela, nao poderemos possuir uma ver- dadeira vida sobrenatural. O homem sensual é a antitese do homem espiritual; o homem car- nal néo pode entender as coisas do espirito, as coisas de Deus: é um prisioneiro da terra e dos sentidos, e jamais poderd elevar-se e saborear os bens do céu e as alegrias espirituais, profun- das e serenas, da alma. A castidade também é muito. necessdria para o apostolado. O celibato e a castidade perfeita dio a alma, ao coracio e a vida externa ‘de’ quem os- professa, aquela_ liber- dade de: que o apéstolo. tanto- necessita para poder. consagrar-se ao bem. das outras almas. SALVATORE CANALS 83 Esta virtude, que torna os homens espirituais e fortes, livres e 4geis, habitua-o ao mesmo tempo a ver 4 sua volta almas e nao corpos, almas que esperam luz das suas palavras e da sua oracdo, e caridade do seu tempo e do seu afecto. Deve- mos amar muito o celibato e a castidade per- feita, porque sao provas concretas e tangiveis do nosso amor de Deus e séo, ao mesmo tempo, fontes que nos fazem crescer continuamente nesse amor. Tudo isto nos faz pensar como a nossa vida interior aumentard e 0 nosso apos- tolado se tornara eficaz mediante estes sacrifi- cios cheios de amor. Quero lembrar-te agora uma verdade muito simples, uma verdade que conhecemos, que temos ouvido e ensinado muitas vezes: a casti- dade é perfeitamente possivel; a castidade é possivel sempre e a qualquer momento; em todas as idades e circtmstAncias, tam- bém quando surgem as tentacdes.e as. difi- culdades. A castidade é possivel, nao por causa das nossas limitadas forgas, mas porque no-la conserva a bondade de Deus, mediante a sua graga. Quero que saboreies estas palavras lumi- nosas do Livro da Sabedoria: Et ut scivi quo- nian aliter now possem esse continens; nisi Deus det... adii Dominum.et deprecatus. sum illum ... («E como soube que nfo podia. ser con a ASCETICA MEDITADA tinente sem a ajuda de Deus ... acudi ao Senhor e pedi-lhe ...»). Todas as almas que lutam e rezam para vi- verem sicut angeli Dei («como os anjos de Deus»), experimentaram a verdade e a realidade conso- ladora daquelas palavras ouvidas por SAo Paulo: sufficit tibi gratia mea («basta-te a minha gra- ca»), E continuando neste caminho simples chao de te recordar verdades que tu.e eu conhecemos e amamos, detenho-me por alguns instantes num conceito que inteligéncias pouco esclareci- das pela luz da fé e coragdes frios nos dio oca- sido de delinear e de meditar. E nao posso es- conder-te, meu amigo, que desta vez me encho de pena sé de pensar que possa haver entre os nossos irmaos, entre nds que dodmos ao Senhor a nossa juventude e a nossa vida, alguém que considere a castidade perfeita como uma muti- Jagio,um sacrificio que deixa a pessoa incom- pleta. Profundamente entristecido, conheci algu- mas almas — quero dizer-to em confianga — que trazem sobre os ombros o peso de uma casti- dade que consideram menos bela e menos fe- cunda que o casamento. Sabes que estas almas nao sentem com a nossa Mie a Igreja, enquanuto no extravio tém por companhia a tristeza de uma vida estéril. A castidade perfeita ¢, natu- SALVATORE CANALS 8s ralmente, uma rentincia: sabemo-Io e nfo o que- remos ignorar; a castidade perfeita é uma re- nimcia ao prazer carnal, é uma remimcia ao amor conjugal e é uma rentincia & paternidade, Mas é uma rentincia cheia de luz e de amor. E uma rentincia de amor, porque — repito-te — o amor é por natureza exclusivo, e quem ama nao se priva de nada, quando se priva de tudo o que nao é€ o seu amor. E quando este amor é Deus, quando este amor é Cristo, a exclusivi- dade nao s6 nao custa, mas encanta. O vazio desta rentincia é preenchido de um modo mara- vilhoso e sobreabundante pelo préprio Deus; o amor de Deus torna-nos felizes e satisfeitos; néo nos falia nada. A castidade é amor, amor exclusivo de Deus, um amor que nao nos pesa, um amor de Deus que nos torna ligeiros e dgeis e que, ao mesmo tempo, nos cumula de uma felicidade profunda e serena. E ja que a castidade é amor, devemos repetir, com as nossas vidas sempre jovens e cheias do entusiasmo dos enamorados, aquelas palavras com que um autor espiritual concluia uma série de belas paginas escritas sobre esta virtude: defendemos o nosso direito ao amor. Com a nossa conviccio profunda e clara sobre o significado ¢ a beleza desta virtude; com a nossa deciséo firme e actual, que nos fara repetir e afirmar que fariamos mil vezes 86 ASCETICA MEDITADA o que fizemos por estarmos convencidos de que é o melhor que poderfamos ter feito; com os nossos olhos € os nossos coracdes postos em Jesus Cristo, a quem confidmos as nossas vidas, poderemos dizer de verdade que defendemos o nosso direito ao amor. E dir-te-ei mais, servin- do-me da feliz expressiio de um monge poeta: somos, no mundo, os aristocratas do amor. E nao preciso de te dizer, porque jd to disse, que a castidade nao pode ser uma virtude su- portada; a castidade deve ser, nas nossas vidas, uma virtude afirmada com alegria, amada com paixfo e preservada com delicadeza e vigor. Encarando a pureza como fruto e fonte de amor, consolidé-la-emos nas nossas vidas, amé- -laemos e guarda-laemos em toda a sua mara- vilhosa extensio e grandeza: Deus Nosso Senhor pede-nos uma pureza de corpo, de coragiio, de alma e de intencgSes. Meu irm&o, a pureza é uma virtude fragil, ou melhor, trazemos o grande tesouro desta virtude in vasis fictilibus (sem vasos frageis») e por isso é necessdria uma vigilancia prudente, inteligente e delicada. Mas temos armas invenciveis para a guarda e defesa desta virtude; as armas da nossa humil- dade, da nossa oracio e da nossa vigilancia. A bumildade é a disposig&o necessdria para que o Senhor nos conceda esta virtude: Deus... humilibus dat gratiam («Deus da a sua graga aos SALVATORE CANALS . 37 humildes»), Néo ha diivida de que é intima a unido entre a humildade e a castidade. Li uma vez com gosto que um escritor espiritual dava a humildade o nome de castidade do espirito. E nunca esquecamos que, pata defender- mos e crescermos nesia virtude, é absoluta- mente mecessério que escutemos e sigamos com grande delicadeza o conselho de Jesus Cristo: Vigilate et orate («vigiai e orai»). Uma vigilancia que te levara a fugir com energia e prontidio as ocasides e aos perigos. Uma vigi- lancia que se manifestard também no momento do exame de consciéncia e & hora da franqueza, sincera e filial, na direccfo espiritual. Uma vigi- lancia que te ensinara a mortificar os sentidos e a imaginacado. A oracio, a amizade com Jesus Cristo na Santissima Eucaristia, 0 Sacramento da peniténcia, a devocio A Virgem Imaculada, sfo os meios eficazes e necessdrios que prote- gem a virtude da castidade. VERDADEIRAS E FALSAS VIRTUDES Quando as almas dio os primeiros passos no caminho da vida espiritual, é frequente aconte- cer-lhes 0 que se passa com a crianga que, tendo semeado ao anoitecer num Angulo do jardim da casa, uma semente de trigo ou um carogo de péssego, corre no dia seguinte de manha cedao, com a esperanca de encontrar uma espiga dou- rada ou de poder saborear os frutos maduros do pessegueiro. E logo que observa que a fecundidade da terra nfo péde satisfazer nem as suas esperan- cas mem a urgéncia do seu capricho infantil, Janga-se, desiludida e magoada, nos bracos da mie, para lhe revelar, com os olhos cheios de lagrimas, a tragédia da sua alma provocada pela crueldade da terra que Ihe nega o fruto dos seus suores. A mae sorri com ternura. Assim como a crianga procura a espiga ou pretende o péssego, depois de uma noite de espera que lhe pareceu um século, assim muitos pretendem das suas SALVATORE CANALS 89 almas o fruto de uma verdadeira e sdlida vir- tude, mal langaram nos seus coragdes a semente dos bons propésitos e se limitaram a alimen- tala com desejos de santidade e de fidelidade. Estas almas reparam bem depressa, em face de qualquer dificuldade ou obstdculo, que a sua virtude nfo ¢ tao forte nem téo sdlida como pensavam que fosse, e entéo enchem-se de tris- teza e de desAnimo. Deus Nosso Senhor que ama estas almas como uma mae ama o seu pe- quenino, sorri 4 vista da infantilidade da sua vida interior. E absolutamente necessd4rio que, desde os primeiros passos na vida interior, nos habi- tuemos a cultivar as verdadeiras virtudes e aprendamos a evitar as falsas. E verdade que comegaste, e comecaste bem: é verdade que o nune coepi («comecga agora») ressoou generosa- mente na‘tua vida, mas também é verdade —e as vezes esqueces-te disso—- que as virtudes, bons habitos operativos, precisam de tempo e fadiga, de luta e esforco, para serem verdadeiras. Os bons propésitos, os desejos ardentes nfo sdo suficien- tes para conferirem solidez As tuas virtudes e pa- ra as tornarem verdadeiras. Nem esses ardores ou esses propdésitos modificam, por si sds, a tua hatureza e o tet cardcter. Para que as tuas virtu- des sejam sdlidas e para que a tua natureza eo teu cardcier se transformem, sao precisos 90 ASCETICA MEDITADA um esforco e uma luta perseverantes durante todo aquele tempus laboris et certaminis («tem- po de trabalho e de huta») que é a tua vida. Os ardores e os sentimentos fortes de devo- gio sensivel, que andam sempre unidos, por providencial bondade divina, aos primeiros pas- sos no caminho da vida interior, levam as almas que so ainda criancas na vida espiritual, a pen- sar que esta tudo feito, que os defeitos e as tendéncias desordenadas desapareceram e que, de ora em diante, tudo sera facil; a vida vir- tuosa nado lhes custard nenhum esforgo. A Providéncia de Deus, através das préprias experiéncias da vida, nao tardara a abrir os olhos a estas almas, descobrindo-lhes o verda- deiro sentido da vida espiritual e com isso a maturidade das virtudes. A prépria vida ensi- nar-lhes-4 — repito-te — que todos aqueles defei- tos e tendéncias nao estavam morios, mas adormecidos,'e gue é necessdério um esforco perseverante e-uma luta cheia de confianca para os fazer morrer deveras. Quando Deus Nosso Senhor faz passar estas almas que desejam seguilo de perto, da devocio sensivel para a de- vocao drida, e desta para a verdadeira devocgao espiritual, entio elas compreendem os designios de Deus e os seus divinos estratagemas para Ihes fazer conquistar as verdadeiras virtudes e uma sdélida formacao. SALVATORE, CANALS oF Toda esta delicada accio divina reclama tempo: o tempo é o grande aliado de Deus na obra da santificagio das almas, que é sempre obra de toda uma vida. O tempo, meu amigo, é um cavalheiro: nao o esquegas! Lembro-me com que alegria escutei, dos labios de um santo religioso, este provérbio tio simples quéo lumi- noso: Iuvenes videntur sancti sed non sunt: senes non videntur sed sunt («Os novos parecem santos mas nao s&o: os velhos nfo parecem, mas sao»), Os ardores da juventude que comega a seguir de perto o Senhor, sao flores, sio promessas; 0 trabalho sereno, profundo, intenso, das almas curtidas no servico de Deus, é fruto maduro e sazonado, é cficacissima realidade, Querer uma santidade sem esforco, pro- curar adquirir uma virtude sem provas nem lutas, sem batalhas nem derrotas, é um sonho de juventude, que nao resiste 4 experiéncia con- sumada de uma verdadeira vida espiritual. Vir- tudes que se afirmam no meio das dificuldades, virtudes que, com esforco e com tempo acabam por reinar, virtudes que, depois de Jutas e vite- rias, adquirem a prontidaio, a facilidade e a const4ncia préprias das verdadeiras virtudes. Todas estas caracteristicas, unidas a um gosto espiritual no exercicio dos actos virtuosos, séo a prova, o selo que faz reconhecer como verda- deira uma virtude. i i ee 92 ASCETICA MEDITADA E é precisamente para que iu, meu irmdo, alcances esta meta que Deus Nosso Senhor pie 4 prova a tua oragéo com a aridez, o teu apos- tolado com uma aparente esterilidade, a tua hhumildade com as humilhacées, a tua fé e a tua confianca com as dificuldades, a tua paciéncia com as tribulagdes, a tua caridade com os defei- tos e as misérias dos outros e também com a contradigéo dos bons. De todas estas dificulda- des, do teu esforco confiante e prolongado no tempo e da tua paciéncia serena, nascem e se fortalecem as verdadeiras virtudes, Permite-me que te insista: In patientia vesira possidebitis animas vestras («Pela vossa paciéncia, possuireis as vossas almas»). Deus nosso Senhor nao quer que as tuas virtudes sejam flores de estufa: seriam virtudes falsas. Todas as reflexdes que fizemos juntos indicam-nos o caminho que conduz As verda- deiras virtudes e ensinam-nos também como as virtudes, quando sao verdadeiras, possuem uma intrinseca solidez, que nao depende dos estimu- Jos ou apoios externos. As virtudes verdadeiras ambientam-se no mundo, sem se confundirem com ele, e afirmam-se no mundo e no meio das dificuldades, como os raios do sol que incidem sobre a lama e a secam sem se sujarem. As vir- tudes verdadeiras dio unidade A vida das pes- soas que se exercitam nelas. As virtudes falsas SALVATORE CANALS oF conduzem a essa temivel ruptura entre as pra- ticas de piedade e a vida de cada dia; as virtudes falsas formam compartimentos estanques na conduta didria, e nio podem irrigar, por falta de fecundidade, a vida inteira de uma pessoa. Existem pessoas que so aparentemente boas nalgumas circunsténcias ou nalguns momentos do dia ou da semana, por habito, por comodi- dade, por fraqueza. As falsas virtudes so barro dourado que, visto de longe, parece ouro, mas, quando se toca, nos faz compreender imediatamente, pela sua falta de peso, que o ouro é falso, sendo sufi- ciente uma ligeira fenda para descobrirmos o que se oculta por tras do ligeirissimo véu de ouro. As verdadeiras virtudes sAo ouro, ouro puro, sem escdérias, mesmo quando & sua volta esse ouro puro se encontra maculado por algu- mas particulas de lama. Ouro salpicado de lama. O Senhor toma-o entre as suas m&os e limpa as manchas, para que o metal precioso brilhe em todo o seu esplendor, Que a Virgem Maria, Rainha das virtudes, nos ensine a desejar e a praticar as virtudes verdadeiras! A SERENIDADE Quando eu era pequeno, fazia, como ¢ hd- bito entre as criancas, pequenas construcées de barro com pedras e pedacos de madeira, e se alguém descuidadamente Ihes punha o pé em cima, destruindo-as... que tragédia! Pensando agora naquelas brincadeiras de mitido, divirto- -Ime, €, se revivo com a recordacao aquelas tra- gédias infantis, nao posso deixar de sorrir. Brincadeiras de criangas ¢ tragédias infantis é © que sao, se se souber encard-las serenamente, tantas e tantas preocupacdes de pessoas muito avancadas em anos e juizo maduro. A virtude da serenidade é uma virtude rara, que nos ajuda a ver as coisas 4 sua verdadeira luz e a aprecialas no seu justo valor: o valor real e objectivo que tém, que nos é revelado pelo equilibrio e pelo bom senso; e também no valor sobrenatural que devem alcangar, e a que nos conduz o espirito de fé, Falta-nos esta sere- nidade quando deformamos a realidade, quando SALVATORE CANALS 95 fazemos de um grao de areia uma montanha; quando nos afligem com o seu peso coisas que nao nos deveriam perturbar; sempre que nao tomamos em linha de conta, nos nossos juizos, a Providéncia divina.e a luz das verdades eter- nas. Meu amigo, subsistiriam na nossa vida tan- tas preocupagbes, inquictagdes e sobressaltos, ‘se vivéssemos esta virtude crist& da serenidade? Nenhuma, ou quase nenhuma. Olha como o simples decorrer do tempo nos dé, quase sempre, a serenidade do passado; mas sé a virtude nos pode garantir a serenidade do presente e do futuro. © tempo, em passando, restabelece cada coisa no seu lugar; aquele acontecimento que tanto te preocupou e aquele outro que tanto te perturbou, agora, que tudo pertence ao passado, é apenas uma sombra, um claro-escuro no qua- dro da nossa vida. E desta serenidade do pre- sente e do futuro que te quero falar. Temos necessidade da serenidade da mente, para nao sermos escravos dos nossos. nervos ou vitimas da nossa imaginacio; temos necessidade da serenidade do coracéo, para nfo sermos consu- midos pela ansiedade ou pela angutstia; preci- samos também de serenidade na accAo, para evitarmos obnubilacdes, superficialidade e int- til desperdicio de forcas. A cabeca serena da- -nos firmeza e pulso para uma actividade de 96 ASCETICA MEDITADA comando; cabeca serena é aquela que encontra a palavra justa e oportuna que ilumina e con- sola, que sabe ver com profundidade e pers- pectiva, sem descuidar os pormenores e os aspectos particulares que devem ressaltar numa visio de conjunto. Acha que te devo repetir que a virtude da serenidade € uma virtude rara, porque a vida de muitas pessoas ¢ dominada pelos nervas; porque naa poucas existéncias se con- somem em imaginagdes e fantasias; e porque existem caracteres que de tudo fazem uma tra- gédia ou um melodrama. A pessoa meticulosa — «picuinhas» —s6 vé os pormenores e asfixia-se com a sua insistén- cla: o teérico apenas vé os problemas gerais ¢ isola-se da vida; s6 a pessoa serena sabe ver 0 conjunto e as particularidades, e extrair deles uma sintese eficaz e concreta. O homem rigido nao é sereno, porque a sua rigidez fato ultra- passar os limites do que é justo e razodvel, do que é proporcionado 4s circunstancias da pes- soa, do tempo e do Jugar. A falta de serenidade do homem rigido perturba e oprime os outros. Nao € sereno o homem fraco, porque se detém antes de chegar A meta, e com a. sua fraqueza prejudica-se a si préprio e aos outros. O fraco no aborrece nem oprime, mas também nao SALVATORE CANALS 97 governa, € a sua acco nunca sera eficaz: é uma vitima da corrente. _ Objectividade e concretizagao; andlise e sin- tese; suavidade. e energia; travdo ¢ impulso; visio de conjunto e riqueza de pormienores: tudo isto e muito mais é abrangido, em sintese harmdnica, pela virtude crista da serenidade. Nem tu nem eu podemoas ser serenos sem luta: as paixGes séo uma realidade em todas “as pes- soas; a imaginacio pode perturbar todas as cabecas; os nervos existem em todos os orga- nismos; as impressGes fazem vibrar todas as sensibilidades; a ignorAncia, o erro e o exagero sio patriménio de todas as inteligéncias ©, Pol tanto, © temor e a trepidagao encontram cabida em todos ‘os coracées. O dominio de nés mesmos, o equilibrio nos juizos, a reflexfio ponderada e serena, 0 ‘cultivo da inteligéncia, o controle dos: nervos e ‘da imas ginagio, exigem luta e firmeza, e perseveran¢ga no esforco. Este é o preco da serénidade. A se- renidade deve ser uma’ virtude congénita no cristio, porque nenhum cristio pode ignorar que 0 principio da serenidade e da harmonia reside no dom da fé. : “Sobre este terreno que’ acabamos de com teniplar, terreno Javrado ¢ convenientemente preparado pelo conjunto das ‘virtudes bumanas que conduzem ao equilibrio, a objectividade, 20 7 98 ASCETICA MEDITADA realismo e ao bom senso, deve levantar-se, como o sol sobre um campo rico de promessas, a vir- tude da fé, verdadeiro sol da alma, que nos dard uma visdo da vida e das suas alternativas cheia de serenidade, de horizontes amplos, e rica de pormenores. Nesta serena visio, o coracio se aquietara, a alma encontrara paz e a inteligéncia compreenderd, & luz de Deus, 0 porqué de mui- tas coisas, e assim aumentard a serena tranqui- lidade da vida. Nem as coisas que se nio com- preenderem poderfo perturbar o coracdo, por- que a prdépria fé ensinard que a causa do que ndo se compreende é sempre a bondade de Deus eo seu afecto pelos homens. Serenidade crista: tu vives escondida sob o véu obscuro da fé; serenidade cristé: tu pene- tras na alma com a visdo sobrenatural, como o orvalho penetra nas flores 4s primeiras huzes da manha; serenidade crist&, tu te escondes nestas palavras de Jesus: Nom turbetur cor ves- trum neque formidet —noliie solliciti esse ...— quid prodest homini si mundum universum lu cretur, animae vero suae detrimentum patia- tur? («N&o se perturbe o vosso coracdo nem se inquiete — nao vos preocupeis ..._— que importa ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?»); serenidade crist&: penetras a alma a oragao; como as chuvas-inundam a terra na Primavera; serenidade cristé: afundas as tuas SALVATORE CANALS 99 raizes na alma que aprende a abragar e a ven- cer a dor com espirito de fé; serenidade crista: estabeleces-te na alma quando ela se alimenta do Corpo e do Sangue de Cristo; serenidade crista: enches a alma que se abre sincera ¢ confiadamente ao director espiritual; sereni- dade cristé: és o presente mais delicado que Jesus faz as almas simples e desprovidas de complicagées. O nosso Pai Deus quer-nos serenos no meio das provagGes e dificuldades da vida: oratione instan- tes, tribulatione patientes, spe gaudentes («cons- tantes na oragdo, pacientes na tribulacao, alegres na esperangap). Meu amigo: sive viviruts sive moritur, Domi- ni sumus («quer vivamos, quer Morramos, somos de Deus»). O Senhor quer-nos serenos no nosso trabalho de cada dia, sobretudo quando se torna duro e pesado. . Deus Nosso Senhor quer-nos serenos quando, pelo nosso estado e condigfo devemos dar aos outros ajuda e conselho. Jesus Cristo quer-nos serenos quando nos en- contramos & mesa de trabalho, em face dos pro- blemas e decisées da nossa profissao. E serenos também na-nossa vida de perfei- gio e nos nossos esforgos sinceros por sermos melhores: in patientia vestra possidebitis ani- 100 ASCETICA . MEDITADA mas vestras («pela paciéncias possuireis as vossas almas»). Falta-te serenidade quando te zangas contigo ‘mesmo e perdes a paz, ao compro- vares que os teus progressos nas vias do Senhor sao lentos. Nao te esquegas de que ¢ a luz da serenidade que te faz compreender o valor des- tas: palavras: nemo repente fit sanctus («nin- guém se faz santo de repente»). E no te esque- cas depois que jamais encontrarés o Senhor no tumulto e na precipitacio interior: Dominus in tranquilitate. venit («o Senhor vem na tranqui- lidade»). Se a tua oracdo for serena nas ‘suas reflexées, nos seus afectos e nos seus propdsitos, os seus efeitos serio mais profundos, e mais duradoiros os seus frutos. E deves encher de serenidade o teu apostolado: porque é um grande dom de Deus o sabermos infundir seguranca e sereni- dade nas almas, no seu caminho para Deus. Rainha da serenidade —dizemo-lo com alegria 6a nossa Mae do Céu. A «CRITICA» AS pessoas, as coisas e os acontecimentos que se Gferecem A nossa consideragao reclamam de nés um juizo. A parte mais nobre de tudo o que o Senhor nos deu com profusio e genero- sidade assume uma atitude determinada em face de nds mesmos e do que ‘nos circunda. A tua inteligéncia e a tua sensibilidade — como as minhas— medem e avaliam qualquer pessoa, coisa ou facto com que se encontram em ‘con- tacto. Esta capacidade de apreciacio e de juizo aumenta em proporcao com a profundidade da pessoa e a seriedade com que enfrenta os acon- tecimentos e vive a sua prépria vida. A uma maior riqueza interior, a uma.consideragio mais profiinda das coisas e a um empeuho vital mais sério corresponde, necessariamente, uma maior capacidade de apreciagio e de juizo. Os insen- satos e os frivolos, os que se perdem em por- menores ou vivem fora da realidade, os que nao fazem nada ou fazem excessivas coisas, todos 102 ASCETICA MEDITADA esses perderam ou vém perdendo, para sua grande desgraca, o sentido do valor e do juizo. Deus Nosso Senhor quer que sejas uma alma de critério, que saibas focar as pes- soas, as situagdes, as circunsténcias e os acontecimentos com espirito sobrenatural e sen- tido pratico da vida. E preciso que esta capaci- dade de apreciacdo e de juizo, cheia de sentido sobrenaiural, aumente e se purifique cada dia. Com semelhante capacidade de juizo cristdo, sereno e objectivo, defendemo-nos de nds mes- mos e dos nossos ininigos — antes de mais dos da nossa alma—e aperfeicoamos as mossas accdes e o nosso trabalho, ajudando os nossos amigos na sua vida e actividades. Mas esta capacidade de apreciacgio e de juizo, que é tao necessdria 4 tua vida e sem a qual dificilmente poderias imprimir @ tua conduta seriedade e vigor cristéio, tem os seus limites. Mantéla e exercité-la dentro desses limites é aproximar-se de Deus. Quantas criticas sem medida crista que te separam de Deus e dos outros, que te tornam inimigo de todos e que fazem que todos te evitem! Conheces bem o tipo do demolidor desapiedado e cruel. Apresento-te uma galeria de espiritos criti- cos e€ pergunto-te: em qual dessas categorias poderemos ser incluidos tu e ew? A critica do fracassado — que, pelo seu fracasso, se revelou SALVATORE CANALS 103 inimigo de Deus —é universal, porque quereria- arrastar todos no seu préprio fracasso; a critica. do irénico é -mordaz, ligeira, superficial, dis- posta sempre a sacrificar em atencio a piada as coisas mais sérias e mais sagradas; a critica do invejoso, nascida entre ansias e despeitos, é ridicula e¢ vaidosa; a critica do idiota é tola; a critica do orgulhoso e do prepotente é desa- piedada, e, normalmente, condimentada com ou- iros ingredientes piores; a critica do ambicioso é desleal, porque tende a pér o acento na sua pessoa, em detrimento dos outros; a critica do sectério é aprioristica, parcial e injusta, é a cri- tica de quem se serve conscientemente e com fria paixfio da mentira; a critica do ressentido é amarga e pungente, destila fel por todos os lados; a critica do homem honesto é constru- tiva; a critica do amigo é amavel e oportuna; a critica do cristZo é santificante. Para que a tua critica seja sempre a critica do homem honesto, do amigo, do cristio, isto é, para que seja construtiva, amdavel, oportuna ¢ santificante, deve cuidar de salvar sempre a pessoa € as suas intencdes. Deve ser objectiva, nunca subjectiva. Deve inclinar-se sempre, com respeito, diante do santudrio da pessoa e do seu mundo interior, Que é que tu sabes das inten- cées, dos motivos e de todas. as circunstancias subjectivas, de que apenas Deus Nosso Senhor, loF ASCETICA MEDITADA que lé nos coragées, ¢ perfeito conhecedor? Aqui. te vém ao encontro as palavras de Gristo:, Nolite iudicare et non iudicabimini («Nao julgueis para nZo serdes julgados»). ‘Semelhante critica, profundamente humana, porque conhece os nossos limites, ¢. profunda- mente crista, respeita o que pertence ao Senhor, concilia e conserva a amizade, até dos adversd- rios, manifesta-se em termos de pleno respeito e€ compreensao pela pessoa. O homem honesto, e por maioria de razao o crist&o, nao julga nem critica o que nao conhece. Exprimir wm juizo, formular uma critica, pressupie o perfeito conhecimento, em todos os seus aspectos, do que é objecto de consideracio, A seriedade, a rectidio e a justica ficariam comprometidas se nao se.procedesse deste modo. Neste ponto, tu e eu nos lembramos certa- mente de tantos juizos e de tantas criticas improvisados, sem qualquer conhecimento de causa: o juizo do superficial, que falado que nfo conhece; a critica de quem adere ao que ouvin dizer dos outros, sem ter a macada de o verificar; a conduta do inconsciente que. julga até aquilo de que nunca ouviu falar. E repara- mos também.com que facilidade transformamos em juizo —tomando-a por juizo critico —uma simples impressiio. A critica do ignorante ¢ sem- pre injusta e funesta. A critica, a critica crista, ” SALVATORE CANALS 05 respeita_sempre os requisitos do tempo, lugar e modo, sem os quais se transformaria‘ facilmente em detracciio e difamacio. Nao serd mau, a este propésito, que tu, que te-consideras como ‘ho- mem maduro, capaz de. juizo e de’ critério seguro, te perguntes. se. existe na tua vida este. minimo de prudéncia cristé, que te. pée a co- berto das insidias da tua lingua e das‘ tuas mdgoas. Falar sem pensar e escrever sem reflec- tir pode ser perigoso para a tua alma, mesmo que te encontres na posse da verdade. Devo acrescentar agora, meu amigo, que a critica assume as cores do animus de quem a formula, das disposicgies interiores donde pro- cede:-Existe um animus bom e um animus mau: devemos télo presente, porque é um critéria seguro para julgarmos moralmente do uso que fazemos da-nossa capacidade de apreciacio e de critica. O fracassado, o invejoso, o irénico, o orgulhoso e o prepotente, o fandtico, o ressen- tido e o ambicioso, tam um animus mau, nao recto, que se manifesta imediatamente na sua critica. O homem honesto, ‘0: amigo, o cristao tém dentro de si um animus bom, que transpa- rece igualmente nos seus juizos. Este anims bom é a caridade, o desejo do bem dos outros, que assegura 4 critica todas aquelas qualidades que adornam a boa critica. Para’que a critica’ seja justa e construtiva, eficaz e santificante, é 106 ASCETICA MEDITADA preciso amar os outros, amar o préximo, Neste caso, 0 exercicio da critica é sempre um acto de virtude naquele que a exerce e uma ajuda para quem a recebe: Frater qui adiuyatur a fra- tre quasi civitas firma («O irm&o ajudado pelo seu irmfo é como uma cidade amuralhada»). Saber-se defender da critica injusta e malé- vola é normalmente uma virtude e quase sem- pre um dever; saber aceitar uma critica boa, além de ser uma virtude crista, é uma prova de sabedoria. E sinal certo de grandeza espiritual saber deixar que nos digam as coisas e receber as adverténcias com alegria e agradecimento. Aquele que aprende a escutar e a perguntar irda muito longe no uso dos talentos que recebeu de Deus. Mas é infeliz aquele que nao tolera que lhe digam as coisas; que de mil maneiras— as maneiras do amor-préprio ferido— procura fe- rir e vingar-se daquele que teve a atencgio e a caridade de lhe dirigir uma critica honesta e boa. Tu e eu nfo devemos esquecer nunca que todas as coisas que fazemos mal devem ser bem feitas e que todas as coisas que fazemos bem podem ser mais bem feiias; e para isso, devemos poder contar, néo sé com a nossa boa vontade, mas com a critica. Mas também nfo devemos viver excessiva- mente preocupados com a critica, com «o que dirio». Uma preocupaciio excessiva e pusila- SALVATORE CANALS 107 nime poderia cortar-te as asas e levar-te 4 ini- bigdo. A critica ligeira e invejosa, a critica mexe- riqueira e superficial deve ser ignorada, A este proposito, devo dizer-te que quem nao faz nada nao é alvo de qualquer critica, porque a genie —nfo sei a motivo—raramente critica a omis- so. Quem faz coisas e as faz em abundancia é sempre criticado, e por todos: criticam-no os que nao fazem nada, porque a sua vida e o seu trabalho parecem-Ihes uma acusacHo; criticam- “no os que agem em sentido contrario, porque o consideram como um inimigo; criticam-no também, quando nio sao bons, os que fazem as Mesmas coisas ou outras parecidas, porque séo ciumentos. Muitas vezes deparards na tua vida com este paradoxo: deves fazer-te perdoar no que fizeste de bom e no que realizasie com o teu suor por todos aqueles que nao fizeram nada de bom ou nunca trabalharam, Noutras ocasides, ver-te-ds injustamente atacado por aqueles que nao con- cebem que se possa fazer nada de bom sem a sua ajuda. Sorri com elegancia e continua a tra- balhar. Nao te esquecas de dar gragas a Deus por todas as coisas; e sobretudo pela critica honesta e boa, amiga e crista. Deves dar gracas a Deus e€ a quem te adverte. TENTACOES Como é diferente 0 nosso caminho —o ca- minho que deve ser percorrido pelos teus dis- cipulos, Senhor—do que imagindmos na ihex- periéncia dos nossos verdes anos e nos sonhos dourados da nossa irrequieta fantasia! Imagi- navamos’com“frequéncia um-caminho tranquilo, feito de uma inalteravel calma interior e de pacificos triunfos.externos... e também— por que nio? —de algumas clamorosas e vistosas ‘batalhas, com feridas cobertas de louros, e de- pois ... a desejada admiragao de muitos. Pensd- vamos, Senhor, de modo ingénuo e pouco sobre- natural, que a simples decisio de te seguirmos e de caminharmos generosamente contigo, re- nunciando a muitas consolacgdes humanas, no- bres ¢ Iicitas, mudaria a nossa natureza e a pre- servaria—como se féssemos anjos!—-do peso ‘das tribulac6és e da perturbacio das tentagdes. Mas os teus juizos, Senhor, ni s&o os nos- sos juizos, nem o teu caminho é igual aos nossos SALVATORE CANALS 109 caminhos. A’ nossa’ histéria, tecido -admiravel onde se cutrelagam-—aparentemente de modo caprichoso —com os acontecimentos que sdo veiculo da tua vontade, os atributos divinos da tua bondade, da tua sabedoria, da tua omnipo- téncia, da tua ciéncia divina e da tua misericdr- dia, ensinow-nos a compreender com gosto que militia est vita hominis super terram («a vida do homem sobre a terra é milicia)» e que todos os teus discipulos devem experimentar a pax in bello («a paz na guerra») do teu servigo. Daremos gra- cas a Deus porque, suave e fortemente, nos des- cobriu o valor sobrenatural e o fim providencial das tentagées e das tribulacdes:. Por meio delas, Deus Nosso Senhor deu & nossa alma a experién- cia do homem maduro, a dureza e 0 realismo do soldado veterano curtido na batalha, e o espi- rito de oragio do monge mais contemplativo. Tentacdes ... té-las-ds! Na tua vida de servigo a Deus e & Igreja experimenté:las-ds’ necessaria- mente, porque a tua vocacao, a tua chamada, a tua deciséo. generosa de seguir o Senhor nado jmuniza a tua alma contra os afectos do pecado original, nem extirpa para sempre o fogo. das tuas concupiscéncias, que é onde se geram as tentacdes: unisquisque vero tentatur a concupis- centia sua («verdadeiramente cada um é tentado pela sua concupiscéncia»). mo Consolar-te-4s pensando que os‘ Santos — ho- 110 ASCETICA MEDITADA mens e mulheres de Deus! —sustentaram as mesmas batalhas em que tu e eu devemos empe- nharnos para demonstrar 0 nosso amor ao Senhor. Escuta 0 grito de Sio Paulo: Quis me liberabit a corpore mortis huius? («Quem me libertara deste corpo de morte?») Pensa nas ten- tagdes de Sio Jerénimo, ao longo da sua vida austera e penitente no deserto; lé a vida de Santa Catarina de Sena, e tomards conhecimento das provagbes e dificuldades dessa grande alma; nao te esquecas do martirio de Santo Afonso ‘de Ligdrio, octogendrio, nem as fortes tentacées contra a esperanga na vida de Sao Francisco de Sales, no periodo dos seus estudos, nem a fé téo duramente provada naquela témpera de apdstolo que era o Abbé Chautard... nem as tentagdes de todo o género de tantos e tantos. Reflictamos com espfrito sobrenatural: des- de que nao as procures imprudentemente, vas tentagées sfo 0 instrumento de que Deus se serve para por & prova e puwrificar a tua alma tamquam aurum in fornace («como ‘ouro no cadinho»). As tentagdes fortificam e.im- primem um selo de autenticidade As tuas vir- tudes. Que autenticidade se pode atribuir a uma virtude que nfo se afirmou vitoriosamente sobre as tentagdes que ihe sao contrdrias?. Virtus in infirmitate perficitur.(«A virtude aper- feicoa-se na tentacéio»), As tentagdes revelam ¢ SALVATORE CANALS it robustecem a tua fé, fazem crescer e tornar-se mais sobrenatural a tua esperanca e permitem que o teu amor —o amor de Deus, que te faz re- sistir valorosamente e nfo consentir— se mani- feste de modo efectivo e afectivo. Além disso, toda’a experiéncia da tua luta contra as. tentagGes servir-te-a para dirigir, aju- dar e consolar muitas almas tentadas e¢ atribu- ladas. Permitir-te-a adquirir a ciéncia da com- preensdo e fazé-la frutificar no trato com as almas. A necessidade de recorrer a Deus, que se faz sentir tio fortemente em tais momentos, fara que a tua vida de oracio deite raizes pro- fundas na tua alma. Como crescerds em humil- dade e no conhecimento préprio 4 vista das tuas tendéncias e das tuas inclinacdes! Os teus mé- ritos aumentarao e... — por que niio? —sen- tir-te-As consolado ante a perspectiva de uma maravilhosa esperanca do céu: qui seminat in lacrimis in exultatione et metet («quem semeia com lagrimas, colhera com alegria»). Todas estas consideragdes aumentarféo a tua confian¢ca e a tua visio sobrenatural. No entanto, desejo acrescentar uma coisa: o maior perigo para ‘as almas tentadas e atribuldas é o desalento, 0 facto de poderem pensar ou admitir que a ten- taco é superior 4s suas forcas, que nao ha nada a fazer, que.o Senhor as abandonou; que ja consentiram. Deves viver, meu amigo, vigi-

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