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editora brasiliense rr WALTER BENJAMIN MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ENSAIOS SOBRE LITERATURA EHISTORIA DA CULTURA OBRAS ESCOLHIDAS VOLUME 1 Sarge Pe Rai fees eee editora brasiliense Copwright © by Subrkamp Vera. ‘al riginal Auch ret Bn rr Seeding SA ‘Ettore [Nenhuma part desta publica pode se gra, srrmcenata em sistemas eltonicn, fotocopiata, N gant on ae pee aoe ISBN. 85-11-12030-0 Primeiraedicio, 1985 10% rine, 196 ‘Revlsto: Marcia Copola « Evia da Recha Capa: Ettore Bottini os neni de Catala me Pubs (2) = (CAmara Brasileira do Livro, sr, Brasil) here tani tee pom: nis sb eratura © stoi de catars 7 Water Benjamin aa Sergio Pe Rowan! prelacio Jeane Marte Cashin Se Pou Bees 980 (Obras eels 1) ISBN 85-1-120500 1 Ate Flostia 2, Coltura- Hite 3. Fesofia sens Hist" Foci 5. Lteratura Hite eliea 1. Tio. Te sene. 4-074 ep. Toes para cailogo sand J. Benjamin Fiesta sent 193 COMP Ra. [ir ceuraa oe samara watonse 3 a a Benjamin, walter . Magia e tecnica, arte e politi | ca ensaios sobre literatura ¢ historia da cultura 82. 09/8468m/7. ed. (156362799) £sar A crise do romance. Sobre Alexanderplatz, de Diblin ‘Teorias do fascismo alemao. Sobre a coletiinea Guerra Guerreiros, editada por Ernst Jinger - 61 Melancolia de esquerda. A propésito do novo fivro de Poemas de Erich Kistner . A 2B Que €0 teatro épico? Um estudo sobre Brecht --...0... 78 Pequena hist6ria da fotografia . : 1 ‘A doutrina das semethangas . + 108 Enperiénciae pobreza ....... 0... 3 : 14 (© autor como produtor. Conferéncia pronuncia tituto para o Estudo do Fascism, em 27 de abril de 1934. 120 Franz Kafka. A propésito morte . 137 A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica... 165 (© narrador. Consideragdes sobre a obra de Nikolai Les- OG as 51 : sees 197 Sobre o conceito da Historia 22 APENDICE Livros infantis antigos ¢ esquecidos .. Histéria cultural do brinquedo .......+. Bringuedo brincadeira. Observages sobre wna obra ‘monumental (1928) . - 249 PREFACIO Walter Benjamin ou a historia aberta A qui esto, finatmente editadas em portugués, as fa- ‘mosas teses “Sobre o conceito de histéria"," iltimo escrito de Walter Benjamin, publicadas apés sua morte, em 1940. Nao pretendo, no dmbito desta breve introducao, fazer delas wma interpretacao exaustiva. Prefiro escolher um aspecto essencial ‘mas pouco estudado da filosofia de Benjamin, sua teoria da narragéo. Se nos lembrarmos queo termo “Geschichte”, como “histéria’”, designa tanto 0 processo de desenvolvimento da realidade no tempo comoo estudo desse processo ou um relato ‘qualquer, compreenderemos que as teses “Sobre o conceito de histéria"’ nao sao apenas uma especulapzo sobre o devir histé- rico “enquanto tal”, mas uma reflexio erttica sobre nosso dis- curso a respeito da histéria (das histérias). discurso esse inse- parével de uma certa pritica. Assim, a questao da escrita da histéria remete ds questoes mais amplas da pritica politica e da atividade da narracao. E esta iltima que eu gostaria de ‘analisar: 0 que é contar uma histéria, hist6rias, a Histéria? ‘Questao que Benjamin estuda nas teses e em diversos de seus ‘ensaios literérios, muito oportunamente publicados neste mes- ‘mo volume. Benjamin, que, conforme sabemos através do depoimento de seu amigo G. Scholem, escreveu as teses sob 0 impacto do (1) Neste volume, of. pp. 222-232. Cita a partir de agora como “tees” 5 (WALTER BENIAMIN acordo de agosto de 1939 entre Stalin e Hitler, critica duas ‘maneiras aparentemente opostas de escrever a histéria que, nna realidade, tém sua origem em uma estrutura epistemol6- ‘ica comum: a historiografia “progressista”, mais especifica- ‘mente a concepedo de histbria em vigor na social-democracia ‘lemi de Weimar, a idéia de um progresso inevitivele cienti- Ficamente previstvel (Kautsky), concepeao que, conforme de- ‘monstra Benjamin, ‘uma avaliacao equivocada do {fascismo ea incapacidade de desenvolver uma luta eficaz con: ‘ra sua ascensdo: mas também a historiografia “burguesa’” contemporinea, ou seja, 0 historicismo, oriundo da grande tradigdo académica de Ranke a Dilthey, que pretenderia revi- ver o passado através de uma espécie de identificagao afetiva do historiador com seu objeto. Sem me deter na aniilise critica ‘de Benjamin, jé amplamente comentada,} eu gostaria de des- tacar, agui, duas conclusges. Em primeiro lugar, segundo Benjamin, a historiografia “burguesa” ea historiografia “pro ‘gressista” se apéiam na mesma concepgio de um tempo “ho~ ‘mogéneo ¢ vazio” (teses 13 ¢ 14), um tempo cronolégico ¢ linear. Trata-se, para o historiador “materialista” — ou seja, de acordo com Benjamin, para o historiador capaz de identi- ficar no passado os germes de uma outra hist6ria, eapaz de Tevar em consideragio os sofrimentos acumulados e de dar uma nove face ds esperancas frustradas —, de fundar um ou- troconceito de tempo, “tempo de agora” (“letztzeit"), carac- terizado por sua intensidade e sua brevidade, cujo modelo foi ‘explicitamente caleado na tradigao messinica e mistica ju- daica. ‘Em lugar de apontar para uma “imagem eterna do pas- sado", como 0 historicismo, ou, dentro de uma teoria do ‘progress, para a de futuros que cantam, o historiador de- ve constituir uma “experiéncia” (“Erfahrung”) com 0 pas sado (tese 16). Estranha definigao de um método materi lista! Permitani-me, entao, analisar brevemente esse conceito ‘central da filosofia benjaminiana. Com efeito, ele atravessa toda a sua obra: desde um texto de juventude intitulado “Er- Ck ntadamente Materialism Beira "Tenn ‘User den Beri der 6. ante ee Bla, Susan, 1S, Fankar/aln te sre aera “Cnn conacetente os saad” Habermas, Se SRE SMa, Sto uo, 0cory BarbraPretageS-P Roane MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA ° fuhrung’” mais tarde um ensaio sobre conceito de experién- cia em Kant ("Ueber das Programm der kommenden Philo- sophie") diversos textos dos anos 30 ("“Experiéncia e Pobre- 22", "O Narrador”, os trabalhos sobre Baudelaire)® e, fina- mente, as teses de 1940, Benjamin exige a cada vez a amp! {0 desse conceito, contra seu uso redutor. Assim, no texto de 1913, tipico do espirito da “Sugendbewegung”, contesta a ba- nnalizagdo dos entusiasmos juvenis em nome da experiéncia Pretensamente superior dos adultos; no texto sobre Kant, cri- tica “um conceito de conhecimento de orientagéo unilateral, ‘matemdtica e mecénica’” e gostaria de pensar um conheci- ‘mento que tornasse passive! “nao Deus, € claro, mas a expe- riéncia ea doutrina de Deus". Nos textos fundamentais dos ‘anos 30, que eu gostaria de citar mais longamente, Benjamin retoma a questao da “Experiéneia”, agora dentro de sma nova problemiitica: de um lado, demonstra o enfraquecimen- to da “Erfahrung’ no mundo capitalista moderno em detri- mento de um outro conceito, a "Erlebnis”, experiéncia vivide, ccaracteristica do individuo soitério; eshoga, ao mesrno tempo, uma reflexio sobre a necessidade de sua reconstrucdo para arantir uma meméria e uma palavra comuns, malgrado @ desagregapdo eo esfacelamento do social. O que nos interessa aqui, em primeiro lugar, & 0 laco que Benjamin estabelece ‘entre fracasso da “Erfahrung” eo fim da arte de contar, ou, dito de maneira inversa (mas nio explicitada em Benjamin), a idéia de que uma reconstrugdo da "Erfahrung” deveria ser ‘acompanhada de uma nova forma de narratividade. A uma experitncia e uma narratividade espontineas, oriundas de uma organizagio social comunitdria centrada no artesanato, (9) “Expetitcia", 193, adn W. Benjamin, A Oriana, Bringueda, Pace Sumas So F184, GW Maa Sobre @ Programs da Filsfia avi", in W. Beniamin, Gest Werke Ut, pe 187 ess, Suktkamp,Frenkfort/Mai, 1977 (5) "Esxpericia e Pobre, neste volume. 114 x. "O Nard”, neste ‘ue p 197 ss. tambon "Os Pensadore", ed. Abr Calta 1980, tad de Modasto Caron, p57 85, "Sobe suns Temas cm Baus”, mesmo wd (6) “Biasitgmatbomatsch mechankshorintetenErkenntnisbegif" ("Ue er das Programe "sop 18) (©) “Dari sol urcheus wich gents sin dacs die Erkanatn Gott, wot ser drchaus dase iar nd Late von fm allerest emis" em, 0 WALTER BENIAMIN ‘opor-se-iam, assim, formas “sintéticas” de experiéncia ¢ de jarratividade, como diz Benjamin referindo-se a Proust.” fru- tos de um trabalho de construcao empreendido justamente ‘por agueles que reconheceram a impossibilidade da exper via tradicional na sociedade moderna ¢ que se recusam a $e Contentar com a privaticidade da experiéncia vivida individual CErlebnis"). Este aspecto “construtivista”, essencial nas “te- 'ses" (“A historiografia marxista tem em sua base um principio construtive,’” Tese 17), deve ser destacado, para eviter que a teoria benjaminiana sobre a experiéncia seja reduzida sua. dimensio nostélgica e roméntica, dimensao essapresente, sem Givida, no grande ensaio sobre “O Narrador", mas niio exclu ‘Siva. Com efeito, se consideramos os diversos textos dessa épo- ta, e, mais particularmente, dois textos fregitentemente para~ Telos como “Experiéncia e Pobreza” e “O Narrador”, observa- mos que odiagnéstico de Benjamin sobre a perda da experién- tia ndo se altera, embora sua apreciagao varie. Idéntico diag- Indstico: a arte de contar torna-se cada vez mais rara porque tle parte, fundamentalmente, da transmissio de uma expe- riéncia no sentido pleno, cujas condigdes de realizardo jé nao tristem na sociedade capitalista moderna. Quais sao essas con- digdes? Benjamin distingue, entre elas, trés principais: ‘a) a experiéncia transmitida pelo relato deve ser commun a0 narrador e ao ouvinte. Pressupde, portanto, wma communi Gade de vida e de discurso que o ripido desenvolvi imento do ‘capitalismo, da técnica, sobretudo, destruiu. A distancia en- tre os grupos humanos, particularmente entre as geragies, transformou-se hoje em abismo porque as condicées de vida mmudam em um ritmo demasiado rapido para a capacidade Jumana de assimilagao, Enquanto no passado 0 ancidio que se ‘aproximava da morte era o depositério privilegiado de wma caperiéncia que transmitia aos mais jovens, hoje ele no passa ‘de um velho cujo discurso & iniitil. 'B) Exse caréter de comunidade entre vida e palavra aptia~ se ele proprio na organizagao pré-capitalista do trabalho, em ‘special na atividade artesanal. O artesanato permite, devido ‘a seus ritmos lentos e organicos, em oposicio & rapidez do processo de trabalho industrial, e devido a seu cariter totali- (8) “Sobre sigunstemasem Baudlale”, op. it. . 30(a radu ds “att Sciameste") MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA = zante, em oposigdo 00 carkter fragmentério do trabalho em cadeia, por exemplo, uma sedimentagao progressiva das di- versas experiéncias ¢ uma palavra unificadora. O rit ‘abet ecsmal os ncrecemsin tro mi plobal torr poonde ainda se tinha, justamente, tempo para contar. Final- ‘mente, de acordo com Benjamin, os movimentos precisos do artesto, que respeita a matéria que transforma, tém uma rela (0 profunda com a atividade narradora: jé que esta também & de certo modo, uma maneira de dar forma imensa maté- ria narrével, participando assim da ligagao secular entre a doe a voz, entre o gesto ea palavra. ©) Acomunidade da experiéncia funda a dimenso pri- tica da narrativa tradicional. Aquele que conta transmite um saber, uma sapiéncia, que seus ouvintes podem receber com roveito. Sapiéncia pritica, que muitas vezes toma a forma de uma moral, de uma adverténcia, de um conselho, coisas com due, hae, no sabemos o que fener, de tao ioladas que xt ‘mos, cada um em seu mundo particular e privado. i scion rat aria por ‘ie de olrem, como interpretamos maltas vers, mas em fazer uma sugestao sobre a continuacao de uma histéria que aren sere ores ido narrador e do ouvinte dentro de um fluxo narrativo comum € vivo, jd que a histéria continua, que esté aberta a novas pro estas ao fazer unto. Quando esse fluo se esgota porque a ‘meméria e @ tradigao comuns jé ni existem, o individuo iso- ee ee ce meen alemio: “ratlos”), reencontra entao 0 seu duplo no her6i sol trio do romance, forma diferente de narragiio que Benjamin, ‘apés @ "Teoria do romance”, de Lukécs, analisa como forma ‘eracteristeadasoiedae birguesa moderna lepauperamento da arte de contar parte, dleclinio de uma trade © de una meméra eens igen rrantiam a existéncia de uma experiéncia coletiva, ligada a um trabalho e um tempo partihados, em um mesmo universo de pritica e de linguagem. A degradacao da “Erfahrung’” des creve 0 mesmo processo de fragmentagao e de secularizacéo que Benjamin, na mesma época, analisa como a “perda da ‘aura’ em seu ¢élebre ensaio sobre “A obra de arte na época de () "ONaerador,p- 200, a (WALTER BENIAMIN Completamente ausente em “A obra de arte...", malgrado a Gmbicdo “materialisia” deste titimo escrito: mas ele é, ‘mesmo tempo, reconhecido como um fato ineludivel que seria Jase querer negar, salvaguardando ideais estéticos que jd ‘nao tm qualquer raz historia real. Mais: 0 reconhecimento Mdeido da perda leva a que se lancem as bases de uma out aie cdiice: Benjamin cita © Bauhaus, 0 Cubismo, alte Patura de Dablin, 08 filmes de Chaplin, enumeragao — discu- cujo ponto comum éa busca de wma nova “Sachlichkeit"), em oposigio ao sentimenta- liane burgués que desejaria preservar a aparéncia de uma in~ mente condenadas su coe tm rebrane 2 pat Peper na a on a Saeco s de Benjamin, "6a da abertura. O leitor atento descobriré ‘teoria antecipada da obra aberta. ‘Na arrativa tradicional essa abertura se apéia na plenitude do sentido — e, portanto, em sua profusio ilimitada; em Um- berto Eco e, parece-me, também na doutrina aa da alegoria, a profusao do sentido, ou, antes, dos sentidos, eer drs de seu ndo-acabamentoexsncial. O Que me 1,28 ta nan en Raabe i, se amin Ctamate Scheer 1, p 127. MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA » importa aqui é identificar esse movimento de abertura na pré- ‘Reia estrutura da narrativa tradicional. Movimento interno, representado na figura de Scheherazade, movimento infinito da meméria, notadamente popular. Memsria infinita cuja figura moderna e individual seré a imensa tentativa prous- tiana, tao decisiva para Benjamin. Cada hist6ria éo ensejo de uma nova histéria, que desencadeia uma outra, que traz uma ‘quarta, etc.; essa dindmica ilimitada da meméria é a da cons- tituicdo do relato; com cada texto chamando e suscitando ou- tros textos.” Mas também um segundo movimento, que, se esté inscrito na narracéo, aponta para mais além do texto, para.a atividade da leitura e da interpretado. Aqui Benjamin ita Herédoto," “pai da histbria” e pai de insimeras hist6rias, referéncia importante para nosso objetivo, jé que na figura de Herédoto enquanto protétipo do narrador tradicional, vemos também como a escritura da histbria esté enraizada na arte (eno prazer) de contar, como Paul Veyne, bem mais tarde, destacaria.* Ora, a forca do relato em Herbdoto é que ele sabe contar sem dar explicagbes definitivas, que ele deixa que ‘historia admita diversas interpretagdes diferentes, que, POr- tanto, ela permanece aberta, disponivel para usa continua- (edo de vida que dada leitura futura renova: “Herédoto nao explica nada." Seu relato & dés mais secos. Por isso essa hist6ria do antigo Egito ainda é eapaz, depois de ‘milénios, de suscitar espanto ereflexdo. Ela se assemelha a es- sss sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fe- ‘chadas hermeticamente nas cémaras das pirdmides e que con- servam até hoje suas forcas germinativas’ Notemos, aqui, que justamente aquilo que foi criticado muitas vezes em », a saber a auséncia de um esque- 12) Cl. Todoror, “Les hommensits, in Polio de ls Prove, Sell Pars 197. (13)'“ONarradr”,p.197 (1) Paul Vey, Comment on deri Risnre, Sei Pai, 17. AS) Trata-s a histia de Psammenites (er6dto, Enquée, TI, 14). Bes- Jamin contows a dvereos amigos © anotou us dress InterpetagSe, No com ‘letamente verdadero que "Herédoo no expllen mada" Relerese& propria exp fa de Peammenites sobre sue aitude. E verdade que Herédoto nko lores ne ‘hums explicasto por conte propia ‘0) “ONarruder"p. 204 “ WALTER BENJAMIN, ‘ma global de interpretagao ede explicaga0, como teremos, ‘or exemplo, em Tucidides,é. para Benjamin, ndo uma Je e fadados ao esquecimento. Testemunha-o esta defesa do cro- ‘nista contra o historiador cldssico: rons que narra os acontecimentos, em dtingur entre soon cquanos ovsem conta averdade de que nada Sees a neantecen pode ser considerado perdide Pare 8 tstoia™ Tese 3) Jamin, que, aqui, seque Lukécs,« questo, do sentido 26 pode emvolocar, paradoxalmente, a partir do momento em aie esse ‘sentido deixa de ser dado implicitamente ¢ imediatamente ‘pelo contexto social. Aquiles nao se questiona sobre o sentido Tia vida porque sua existéncia segue certas regras determin Gas, aceitas e reconhecidas por todos os seus companheiros ‘por ele proprio em primeiro lugar (em compensagao, ele se ‘Colocardé outras questBes, que, haje, no : por cxemplo a da morte gloriosa). O romance coloca em cena um therdi desorientado ("‘ratlos”), ¢ toda a acao se constitui como 1. O leitor do romance ‘sca asiduamente na letwra 9 id mao encontra na sociedade moderna: um sentido explt- ee re Checida. Por tso ele espera com impaciéncia pela MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA 15 do sentido traz a necessidade de concluir, de p6r um fim histéria. Enquanto a narrativa antiga se caracterizava por ua abertura, 0 romance eléssico, em sua necessidade de re- olver u questao do significado da existéncia, visa a conelusao. Essa oposieao, desenvolvida em “O Narrador”, é, entretanto, ‘recolocada em causa no romance contemporiineo, como 0 pré- prio Benjamin vai demonstrar em seus ensaios literdrios. Sele cionarei aqui dois exemplos privilegiados desse nao-acaba- ‘mento essencial, os de Proust e Kafka. ‘A influéncia de Proust sobre seu tradutor Benjamin é de tal ordem que este se vé obrigado, durante algum tempo, a renunciar @ sua leitura para nao cair em “uma dependéncia de drogado que impediria... sua prépria produgdo”."" Proust Trealiza, com feito, a proeza de reintroduzir 0 infinito nas li- mitacées da existéncia individual burguesa. Esse infinito, que ‘© comprimento da obra e da frase proustianas configura, in- terna-se na vida desse parisiense elegante pelos caminhos con- vergentes da meméria e da semethanca. A experiéncia vivida de Proust ("Erlebnis"), particular e privada, jé néo tem nada @ ver com a grande experiéncia coletiva (“Erfahrung”) que fundava a narrativa antiga. Mas 6 caréter desesperadamente Uinico da “Erlebnis” transforma-se dialeticamente em uma busca universal: 0 aprofundamento abissal na lembranga des- ‘poja-o de seu carter contingente e limitado que, em ui pri- ‘meiro momento, tornara-o possivel. “Pois um acontecimento vivido & finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ‘a0 passo que 0 acontecimento lembrado é sem limites, porque apenas uma chave para tudo 0 que veio antes e depois.”"” A grandeza das lembrangas proustianas nao vem de seu con- tetido, pois a bem da verdade a vida burguesa nunca é assim tao interessante. O golpe de génio de Proust esté em ndo ter escrito “memérias”, mas, justamente, uma “busca”, uma busca das analogias ¢ das semelhancas entre 0 passado e 0 presente, Proust ndo reencontra o passado em si — que talvez ‘fosse bastante insosso —, mas a presenca do passado no pre~ ‘sente e 0 presente que jd ésté 16, prefigurado no passado, ou ‘seja, uma semelhanca profunda, mais forte do que 0 tempo (17 Gita por Peter Scand, Sats and Gegersei, Sobrkamp, Franklut/ aie, 1976,p. 60. (GA Imagem de Prous”, nest lume p. 37. 6 WALTER BENUAMIN, rae: se esvai sern que possamos seguré-lo. A tarefa seem eel con ie le tecimentos, mas. "subtral-los ds contingéncias do tempo em 1a metéfora”.” ah. a “Sobre ceito de histéria” a luz aie» cms dein destas poucas observagies, poderemos observar senag mt ee Casco toe ide ae aemapeonoisecare ie ia ae eee pe See = pecan ‘assume uma forma nova, que poileria ter dep rerio Se ot ee ane eae ‘como sendo a realizagdo possivel dessa promessa anterior, que poderia ter-se perdido para sempre, poelibeaa node a= perder ce el oe eer teeta conceito de semelhanca na filosofia de Benjamin oh. von Acknlichen”, “Doutrina do Semethante”). , ‘Se Proust personifica a forca salvadora da meine Ee errata gece: ee Kel fare i es tee ete camara aires en ee eee na auséncia de meméria e na deficiéneia do sentido. E dai que ‘vem, segundo Benjamin, sua extraordinéria ‘modernidade, ao ” 1. Em uma carta a Gershom Scho- lem, em que critica a interpretagéo que Max Brod faz de Kaf- aoe a ai. poe ots oe “foes tances toad pat Ae ‘Com isso a verdade é designada como um patriménio da tr ix (edo; éa verdade em sua consisténcia hagédica. . Esa comstncn da verdade que se pede. Kafe a sore en eeiea A dia, efervandovse a verdade, ou aquild que Somme fer oat co Se (19) Mare Proust le Rechorche du Tomps Per, ef. iad, vo HL, 8. MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 0 dade. A verdadeira genialidade de Kafka foi ter experimen- ‘ado algo inteiramente novo: ele sacrifcou a verdade para ape- arsed sua transmissibilidade, ao seu elemento hagadico. (Os escritos de Kafka sao por sua propria natureza pars ‘bolas. Mas sua miséria e sua beleza 6 0 fato de terem precisado tornar-se mais do que pardbolas. Eles nao se colocam singela- ‘mente aos pls da doutrina, como a Hagada em relacdo d Hala cha. Depois de terem se deitado, erguem uma poderosa pata ‘contra ela.””” (Trad. manuserita de M. Carone com algumas ‘modificagées.) Nao é por acaso que Benjamin utiliza aqui categorias teoldgicas, justamente para criticar a interpretagio trivial- ‘mente teologizante de Max Brod. Na religido judaica a Ha- lacha é 0 texto sagrado da lei divina, palavra origindria e fun- damental, lembrada e reatualizada nos comentérios da Ha- sada. Ora, mesmo no discurso teoldgico que remete @ verdade primeira e essencial, oriunda do verbo divino, nesse paradig- ‘ma do discurso verdadeiro ocidental fundado em um sentido ‘49 mesmo tempo originério e iltimo, surge uma diivida: sob 0 ‘amontoado de comentérios, notas e glosas detaparece a pala- vra priméria. Nao que ela se tenha apagado, mas poder-se-ia dizer que ndo somos mais capazes de distingui-la das outras iniimeras palavras legadas pela tradiedo—como no contexto di- verso de “A obra de artena época de sua reprodutibilidade téc- ‘mica”'jé ndo sabemos distinguir 0 manuscrito originério /origi- nal da(s) c6pia(s). Ou ainda, como diz Benjamin, a “consistén- ia" da verdade foi submergida por sua transmissao: arrastada ‘or seu préprio movimeno, a tradig@o torna-se auténoma em relacio ao sentido inicial no qual, originalmente, tinka suas rraizes. Esse movimento é, profundamente, o da metéfora, que parte do sentido “literal” mas acaba abandonando-o e até, de transposicdo em transposicao, prescindindo dele. Assim, na bela imagem de Benjamin, as “pardbolas” (“Gleichnis") de Kafka, que no inicio esto deitadas docilmente, como peque- ‘nas feras mansas, aos pés da doutrina, acabam nao apenas tor~ nando-se independentes como derrubando.a Halacha com tun violento coice. Em lugar de se atrelarem a uma verdade pri- (20) W. Benjamin, rife, Subrkamp, raskfort/Malo, 1965, yl th. 763. 18 WALTER BENJAMIN meira, cada vez mais distante e fugaz, Kafka se concentra em tum comentério perpétuo, criando uma figura de discurso ris fico cujo niieleo de iluminagao esté ausente. Discurso infini- jamente aberto sobre outros comentérios, sobre outros textos (que jd no remetem a um texto sagrado. Poderiamos arriscar humor, ouseja, com uma dose de jov (que nao temos nenhuma mensagem definitiva para transmi fin, que néo existe mais uma totalidade de sentidos, mas $0- monte trechos de historias e de sonhos. Fragmentos esparsos (que falam do firn da identidade do sujeito e da univocidade da palavra, indubitavelmente uma ameaca de destruigao, mas vambém —-e ao mesmo tempo — esperanca e possibilidade de ‘novas significacées. A imagem do pai em seu leito de morte, crocada por Benjamin no inicio de seu ensaio “Experiéncia Pobreza” que lega aos filhos uma experiéncia certa ¢ imuté- vel, corresponde 0 ‘moribundo de “A muralha da China”, um conto de Kafka de que Benjamin gostava espe Gialmente.”” Se lembramos que 0 signo do imperador, 0 sol Gesenhado sobre 0 peito do mensageiro, é, desde Platio, 0 Simbolo do Absoluto, temos de reconhecer como ¢ irreversivel b deslocamento que nos distancia dessa imagem de verdade e “ie palavra, deslocamento que o romance de Kafka, em uma ‘espécie de vertigem controlada, conta-nos suavemente: “0 imperador — assim dizem — enviow a ti, sido solitirio ¢ eaesel sombra infima ante o sol imperial, refugiada na vrais remota distancia, justamente a tio imperador enviow, do Tavras. E-diante da turba reunida para assistir @ sua morte — ‘Navlum derrubado todas as paredes impeditivas, enaescadaria (20) ers, p-T64. ae ai cele, “Franz Kath, Baim Bau der Chinesichen Maver” Gen Sen Hip 6b oe Enann ge, nflizente, no const dete vlan [MAGIA B TECNICA, ARTE E POLITICA » Io tir ca ete oe ga Pe ee Fearn ee ee ome ees fncansivel. Estendendo ora um brago, ora outro, abre passa- eee eo ae ae on Se eee "Mas @ multidao € enorme: suas moradas nao tém fim. ‘Fosse livre 0 terreno, como voaria, breve ouvirias na porta 0 pais meal, de seu punho. Mas, ao contrério, esforca-se ener erie eee eee ile spiecrasee Smale nae Rca ieee eae dos rin 0 undo plc ceendat: «noumeni ee eee ee fe aS ee een eles ee enero lemma mpegs ‘muito menos com @ mensagem bn cere eran eeme manera) anoite cai."® (Trad. de Lucia Nagib.) se = Jeanne Marie Gagnebin iy wile cde acreeetene en on oem “hn a ee a ran es ne as ee O surrealismo O iltimo instantineo da inteligéncia européia (© crttico pore instatar as ‘corrontis eopirtaly uit fespécie de usina geradora quando elas atingem um declive su- sntemente ingreme. No caso do surrealismo, esse declive ‘eorresponde a diferenga de nivel entre a Franga e a Alemanha. ‘© movimento que brotou na Franca, em 1919, entre alguns intelectuais (citemos de imediato os mais importantes: André Breton, Louis Aragon, Philippe Soupault, Robert Desnos, Paul Eluard), pode ter sido um estreito riacho, alimentado, elo timido tédio da Europa de apés-guerra e pelos iiltimos regatos da decadéncia francesa. Mas os eruditos que ainda hoje sto incapazes de determinar “‘as origens auténticas” do ‘movimento e limitam-se a dizer que a respeitével opinido pti- blica esta sendo mais uma vez mistificada por uma clique de literaios, parecem-se um pouco com uma junta de téenicos ‘que, depois de muito observarem uma fonte, chegam con- viegtio de que © cérrego nio poderé jamais impulsionar tur- binas. © observador alemio nao esta situado na fonte. E sua ‘oporlunidade. Ele esta situado no vale. E capaz de avaliar as ‘energias do movimento. Para ele, que como alemiao est fami- liarizado com a crise de inteligéncia, ov melhor, do conceito humanista de liberdade, que sabe ter essa crise despertado uma vontade frenética de ultrapassar o estigio das eternas ddiscussies ¢ chegar a todo prego a uma decisfo, e que experi- ‘mentou na prépria carne sua perigosa vulnerabilidade a fron- di anarquista e & disciplina revolucionaria, nao haveria ne- 2 Wate RENAMIS nhuma desculpa se considerasse esse movimento como “arts- aaa epoetico”. E possiel que tena sido assim no 6 so Bap entanto, desde o info Breton declarou sua von- {ade de romper com uma prética que entrega ao piblico os ta tc adon iterdros de urna certa forma de existéncia, sem ‘revelar essa forma. Numa formulag4o mais concisa ¢ ms ie eat Stumiaio da Hteratura fo explodido de dentro, 24 me- (ids cinque um grupo homogéneo de homens levou a “vida sits cate os limites extremos do possivel Podemos tomé- fos 20 pé da letra, quando afirmam que a Saison en enfer, {de Rimbaud, nao term mais segredos para eles. Pois esse livro é de falo o texto original do movimento, pelo menos no que diz: respeito ao periodo recente, j4 que ‘hf precursores mais se TeaPsgue sero mencionados a Seguir. Para exprimiro ue et fem jogo, nfo hé comentirio mais cortante e mais definits cto por Rimbaud a margem do seu proprio exemplar da Saison,

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