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A EMENDA CONSTINUCIONAL Nº 45 E A JURISDIÇÃO PENAL DA JUSTIÇA

DO TRABALHO: UMA POLÊMICA QUE JÁ NÃO PODE SER IGNORADA.

João Humberto Cesário(*)

“A anomia, longe de representar, sociologicamente, a simples


rejeição nilista de toda e qualquer norma, denuncia a polarização de
novos projetos de positivação normativa, conquanto ainda existentes
ou somente implícitos. (...) A anomia representa o prenúncio da
mudança iminente na estrutura institucionalizada, quando esta entra
em décalage com a corrente histórica.”1

1 – BREVE ADVERTÊNCIA.

Logo no início do presente estudo, devo advertir que não me move a


pretensão de ser original ou exauriente. Embora a maior parte das ponderações
que adiante trarei sejam oriundas das minhas reflexões, outras tantas não
passam de argumentos que tenho lido e ouvido, dos quais me apropriarei na
perspectiva da re-elaboração dialética, de modo a organicamente contribuir para
a construção de novos e mais avançados modos de se enxergar o Direito.

Assim, como não poderia deixar de ser, cumpre-me agradecer aos amigos
de caminhada que me têm subsidiado com as suas argutas observações, vazadas
em muitos textos já publicados sobre o assunto. Agradeço-os principalmente
pelos reptos que me lançaram nas nossas listas internas de debates na Internet
(especialmente na da AMATRA XXIII), neles reconhecendo uma poderosa
instigação ao aperfeiçoamento deste arrazoado.2

Enfim, esclareço que tenho a plena consciência de que todas as vezes que
nos lançamos a um debate intelectual, corremos o risco de defender idéias que
não acolham o aplauso dos estudiosos da matéria tratada. Com efeito, nem de
longe nutro a tola pretensão de me arvorar em guardião supremo da razão.

Como itinerário do estudo proposto, vou primeiramente explicitar os


argumentos que me levam a concluir pela competência penal da Justiça do
Trabalho, para depois elencar e buscar superar os raciocínios contrários à tese.
Ao final, como não poderia deixar de ser, trarei algumas conclusões sobre o
assunto.
(*) João Humberto Cesário é Juiz Titular da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia -. Vice-presidente
da Associação dos Magistrados Trabalhistas da 23a Região – AMATRA XXIII. Professor de Teoria Geral
do Processo e de Direito Material e Processual do Trabalho na Escola Superior da Magistratura
Trabalhista da 23a Região – ESMATRA XXIII.
1 Roberto Lyra Filho, apud Wilson Ramos Filho, in Lições de Direito Alternativo do Trabalho, 1ª ed., São
Paulo: Editora Acadêmica, 1993, p. 41.
2 Em especial agradeço ao Procurador do Trabalho Marcelo José Ferlin D’Ambroso, pioneiro na
provocação jurisdicional da Justiça do Trabalho na esfera criminal, e aos juízes José Eduardo de
Resende Chaves Júnior, Nilton Rangel Barreto Paim, Rodrigo Dias da Fonseca, Ivan José Tessaro,
Ângelo Henrique Peres Cestari e Jorge Luiz Souto Maior.

1
2 - ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À COMPETÊNCIA CRIMINAL DA JUSTIÇA
DO TRABALHO.

2.1 – O Artigo 114, I, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho Para as


Ações Oriundas da Relação de Trabalho.

Estabelece o novel artigo 114, I, da CRFB que “compete à Justiça do


Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos
os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

Para uma exata compreensão do incomensurável alcance da disposição


contida na aludida formulação constitucional, faz-se necessária uma remissão à
sua antiga redação (do artigo 114 da CRFB), outrora a dizer que competia “à
Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre
trabalhadores e empregadores (...)”.

Pois bem. Mesmo me arriscando a propalar mera máxima acaciana, devo


rememorar que a E.C 45 ampliou substancialmente a competência jurisdicional da
Justiça do Trabalho. Mas não foi só...

Ocorre que a par do notável fortalecimento do aparelho judicial trabalhista,


a E.C. 45 incrementou uma esplendorosa, porém silenciosa (e por isso pouco
notada) revolução nas balizas competenciais da Justiça do Trabalho,
transportando-as do campo subjetivo para o objetivo.

Assim, ao estabelecer no passado que à Especializada Laboral incumbia


tão-somente o julgamento das ações que envolvessem empregados e
empregadores, a CRFB estava a vedar, implicitamente, a competência penal deste
ramo do Poder Judiciário, já que as ações criminais, ainda que imantadas de
conteúdo trabalhista, não se desenvolveriam entre trabalhadores e patrões.

Todavia a questão ganha contornos substancialmente distintos com a E.C


45, na medida em que a Constituição rompe com os estreitos limites subjetivos
da matéria, para decididamente abraçar os dilatados contornos objetivos do
assunto, passando a dizer que compete à Justiça do Trabalho julgar não apenas
as causas entre empregados e empregadores, mas todas as ações decorrentes
da relação de trabalho3, sem qualquer distinção de natureza (trabalhista de
sentido estrito, civil ou penal).

Absolutamente defensável, pois, a jurisdição penal da Justiça do Trabalho


a partir de então.

2.2 – O Artigo 114, II, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho Para


3 Não é demasiado lembrar aqui, que todos aqueles que possuem alguma intimidade com a
ciência juslaboral, mínima que seja, sabem que a expressão “relação de trabalho” é um gênero, do
qual o termo “relação de emprego” é mera espécie.

2
as Ações que Envolvam o Exercício do Direito de Greve.4

Estabelece hodiernamente o artigo 114, II, da CRFB, que “compete à Justiça do


Trabalho processar e julgar as ações que envolvem o exercício do direito de greve”.

Sublinhe-se, assim, que a previsão de competência remete o operador


justrabalhista para as ações, sem distinção de natureza (mais uma vez), que envolvam
exercício do direito de greve.

Portanto, não sem antes ressaltar o preceito comezinho de hermenêutica


constitucional, a ditar que a Constituição deva ser interpretada sob o enfoque da
máxima efetividade, com os olhos tão-somente voltados aos limites da concordância
prática, será paradoxalmente necessária a remessa do leitor, num primeiro momento, à
legislação infraconstitucional, a fim de se estabelecer a grandiosa abrangência do
preceito à balha.

Cumprindo tal desiderato, é necessário se destacar que o artigo 15 da Lei 7.783-


89 (Lei de Greve), apregoa que “a responsabilidade pelos atos praticados, ilícitos ou
crimes cometidos, no curso da greve, será apurada, conforme o caso, segundo a
legislação trabalhista, civil ou penal”.

Ora, se a Constituição dirige a competência da Justiça do Trabalho, sem


distinções, para a cognição e julgamento das ações oriundas do direito de greve, e se o
direito de greve nos termos de sua lei própria será analisado pelos primas trabalhista,
civil e penal, não se pode concluir de modo diverso, senão para se entender que a
atribuição especializada será ampla.

Somente uma visão aferrada a dogmas do passado, incompatível com a atual


quadra competencial traçada pela EC 45, é que será capaz de restringir esta
possibilidade, pelo que me parece sensato proclamar que doravante estão reservadas à
competência do Judiciário Laboral todas as ações que envolvam o exercício do direito
de greve, independentemente do objeto trabalhista stricto, civil ou penal de que possam
estar impregnadas.

2.3 - O Artigo 114, III, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho Para


as Ações Sobre Representação Sindical.

Aqui, a bem da verdade, a questão é um tanto mais intrincada.

Ocorre que o inciso III do artigo 114 da CRFB, lastreado numa visão mais
subjetiva do fenômeno competencial trabalhista, somente faz alusão às ações
sobre representação sindical entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e

4 Cumpre-me esclarecer aqui, que as reflexões que agora trago sobre o tema estão originalmente
traçadas em artigo da minha lavra, intitulado “COMPETÊNCIA PARA AS AÇÕES QUE ENVOLVAM O
EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE”, publicado em livro coordenado pelo meu dileto amigo
ALEXANDRE AUGUSTO CAMPANA PINHEIRO, denominado COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO
TRABALHO: Aspectos Materiais e Processuais, 1ª ed., São Paulo: LTr, 2005, pp. 83/95.

3
entre sindicatos e empregadores.

Ainda assim, diante da lógica abrangente e objetiva do sistema


constitucional emergido da E.C 45, não chega a ser difícil de se enxergar a
competência penal da Justiça do Trabalho no pertinente, desde que os nossos
olhos estejam voltados ao tipo lógico-sistemático de hermenêutica.

Tanto é verdade, que até mesmo a Justiça Federal já se pronunciou dentro


desta diretriz, fazendo-o, diga-se de passagem, a requerimento do Ministério
Público Federal:

“Vistos, etc...
Trata-se de notícia crime onde o Ministério Público Federal requereu
a remessa dos presentes autos à Justiça do Trabalho, entendendo ser
esse o juízo competente para processar e julgar as irregularidades, em
tese, na fundação do Sindicato dos Empregados do Comércio Varejista de
Gêneros Alimentícios, Tecidos e Vestuário de Brusque.
Como aduziu o Parquet Federal, a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 8°, inciso I, garantiu a
liberdade para a formação de associações sindicais, sendo vedada a
intervenção estatal em sua organização, litteram:
“Art. 8°. É livre a associação profissional ou sindical, observado o
seguinte:
I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de
sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder
Público a interferência e a intervenção na organização sindical; (...)”
Entretanto, o inciso II deste dispositivo legal veda a criação de mais
de uma organização sindical representativa de categoria profissional ou
econômica na mesma base territorial, conforme teria ocorrido, em tese, no
caso dos autos.
Todavia, tal irregularidade apontada pelo Parquet Federal não se
constitui crime cujo processamento caiba à Justiça Federal, mas sim à
Justiça do Trabalho, nos termos do art. 114, III, da CF/88 (Inciso incluído
pela Emenda Constitucional n° 45/2004).
Assim, acolho as razões do Ministério Público Federal, e determino a
remessa dos autos à Justiça do Trabalho de Brusque/SC, competente para
processar e julgar o feito.”5

Com efeito, embora a redação do preceptivo invocado (artigo 114, III, da


CRFB) possa gerar alguma discussão, diante do vetusto viés subjetivo que
aparentemente a inspira, não chega a ser impossível, também a partir dela, se
reconhecer a competência criminal da Justiça do Trabalho.
2.4 - O Artigo 114, IV, da CRFB: Competência da Justiça do Trabalho Para o
Conhecimento de habeas corpus.

5 Decisão proferida na data de 01 de fevereiro de 2005, nos autos do Processo nº 2004.72.05.004394-8.

4
De outra vertente, parece-me ainda que o inciso IV do artigo 114 da CRFB,
que estabelece a competência do Judiciário Laboral para conhecimento dos
“mandados de segurança, habeas corpus e a habeas data, quando o ato
questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição”, seja capaz de garantir a
jurisdição penal aqui discutida.

Muito embora não se afigure adequado discutir sobre a natureza jurídica do


habeas corpus neste breve ensaio, acredito que uma vez considerado tão-
somente o ponto de vista do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria6, será
forçoso concluir que o inciso IV do novo artigo 114 da CRFB trouxe competência
criminal à Justiça do Trabalho.

Em tal diapasão, é de se ver que em recente decisão, datada de 28.06.2005


(portanto já ao tempo da E.C. 45), a ementa do julgamento ocorrido no âmbito da
1ª Turma do STF ficou assentada na seguinte pilastra:

“(...) firme a jurisprudência do Tribunal em que, sendo o habeas


corpus uma ação de natureza penal, a competência para o seu julgamento
será sempre de juízo criminal, ainda que a questão material subjacente
seja de natureza civil (...)”.7 (sem destaque no original)

Sem dúvida alguma, o mencionado julgamento é paradigmático, na medida


em que traz no seu bojo contundentes indícios de que o STF poderá reconhecer a
jurisdição penal da Justiça do Trabalho, já que por certo manterá coerência futura
para com a sua firme jurisprudência, no sentido de que sendo o habeas corpus
uma ação de natureza penal, seu julgamento sempre se dará em órgãos revestidos de
competência criminal.

3 – SUPERANDO OS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À COMPETÊNCIA


CRIMINAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO

Muitos daqueles que relutam em reconhecer a hodierna competência


criminal da Justiça do Trabalho, arrimam seus pontos de vista em três
argumentos básicos, a saber: a) que não teria sido intenção do constituinte derivado,
por via da EC 45, atribuir esta competência à Justiça do Trabalho; b) que a função
jurisdicional da Justiça do Trabalho não é a de se imiscuir nas questões criminais,
devendo se restringir à pacificação das relações capital-trabalho; c) que o artigo 109,
VI, da CRFB outorga essa competência expressamente à Justiça Federal, na medida
em que este é o órgão ali indicado para o julgamento dos crimes contra a organização
do trabalho.
Ao meu ver, embora ponderáveis e dignos de respeito, tais argumentos,
data venia, não se sustentam. Será isso o que demonstrarei doravante.

6 Não posso deixar de lembrar que, ao fim e ao cabo, quem dirimirá a celeuma instaurada sobre a
competência criminal da Justiça do Trabalho será o STF.
7 HC 85096 / MG - MINAS GERAIS, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Julgamento em
28/06/2005, Órgão Julgador: Primeira Turma, Publicação: DJ 14-10-2005 PP-00011 EMENT VOL-
02205-2 PP-00307.

5
3.1 – O Texto da Lei versus o Conteúdo da Norma: O Juiz é Somente a Boca
da Lei?!

Não nego, de modo algum, que o constituinte derivado jamais esteve


preocupado em atribuir jurisdição criminal ao Judiciário Trabalhista.

Todavia, à guisa de provocação, relembro que durante o processo de


Reforma do Judiciário a questão da competência para julgamento das ações
envolvendo acidente do trabalho foi expressamente discutida e votada, tendo o
Poder Legislativo rechaçado a atribuição da Especializada Laboral para a
cognição da matéria.

Nada obstante, tal fato não se constituiu em empecilho para que o pleno do
STF, passado alguns meses de vigência da novel redação do artigo 114 da CRFB,
reconhecesse, à unanimidade, que a competência para tais ações iniludivelmente
pertence à Justiça do Trabalho.

Tal provocação não deve causar perplexidade ao operador jurídico


contemporâneo, já que de há muito foi rompida a vetusta máxima liberal francesa,
no sentido de que o juiz deveria se contentar em ser a boca da lei.

Aliás, todos aqueles que se embrenham pelo estudo da hermenêutica


sabem que a lei, enquanto texto, é muito menor do que a norma, enquanto ideal
de justiça. Vale dizer: é da interpretação do texto que se extraí o conteúdo da
norma!

Não se trata de pregar o desrespeito ao constituinte derivado, mas de


trabalhar pela ruptura de uma lógica arcaica, preocupada em amesquinhar o
Poder Judiciário, a ponto de reduzi-lo ao precário papel de despachante do
Legislativo.

Não por outra razão, ensina-nos o Ministro EROS ROBERTO GRAU, digno
integrante do Supremo Tribunal Federal:

“A norma encontra-se em estado de potência, involucrada no


texto. Mas ela se encontra assim nele involucrada apenas
parcialmente, porque os fatos também a determinam – insisto nisso: a
norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos
que se desprendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a
partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir
de elementos da realidade (mundo do ser). Interpreta-se também o
caso, necessariamente, além dos textos e da realidade – no momento
histórico no qual se opera a interpretação – em cujo contexto serão
eles aplicados.
A norma encontra-se em estado de potência, involucrada no
texto e o intérprete a desnuda. Neste sentido – isto é, no sentido do

6
desvencilhamento da norma de seu invólucro: no sentido de fazê-la
brotar do texto, do enunciado – é que afirmo que o intérprete produz a
norma.”8

No mesmo sentido, porém ainda mais enfáticas, são as palavras de


AMILTON BUENO DE CARVALHO, com remissões aos juristas DALMO DE ABREU
DALLARI e ANTÔNIO CARLOS WOLKMER:

“Se a função do Juiz é buscar a vontade do legislador, qual a


razão de ser do Judiciário? Simples seria deixar ao próprio legislador
a tarefa da aplicação, que o faria administrativamente. O intermediário
Judiciário seria mera formalidade, a não ser que sua existência
tivesse por fim a hipótese levantada por Dallari: esconder o legislador,
o verdadeiro interessado, cabendo ao Judiciário fazer “um papel sujo,
pois é quem garante a efetivação da injustiça”.
Ora, “a função jurisdicional transcende a modesta função de
servir aos caprichos e à vontade do legislador...” (Antônio Carlos
Wolkmer, Revista Ajuris, 34/95).
O Judiciário é Poder do Estado e a ele cabe o compromisso, tão
sério quanto o do Legislativo, de buscar o que é melhor para o povo.
A lei é apenas um referencial, o mais importante, mas apenas
referencial. A não ser que se dê a ela o condão de estancar o
mundo.”9

Dessarte, dentro de uma perspectiva mais ampla e arejada, não me parece


que a vontade de constituinte derivado seja óbice instransponível ao
reconhecimento da hodierna competência penal da Justiça do Trabalho.

3.2 – A Jurisdição Penal da Justiça do Trabalho Será Poderoso Instrumento


de Fomento ao Respeito de Obrigações Trabalhistas Básicas Pelos
Empregadores.

Atrevo-me ainda a discordar dos que asseveram que as questões penais-


laborais não influenciariam diretamente na relação capital-trabalho, haja vista que
não tenho dúvidas em afirmar que a impunidade penal nesta área, oriunda da
pouca atenção que a Justiça e o Ministério Público comuns têm devotado à
questão (obviamente que por razões de vocação, formação, tempo e prioridades;
jamais de desídia), constitui-se no maior estímulo ao descumprimento de
obrigações trabalhistas elementares por parte dos empregadores, abrindo
ensanchas até mesmo à existência da vergonhosa prática do trabalho escravo no
Brasil, em pleno século XXI.

Para exercício de comprovação do afirmado, basta-me relatar que nos


últimos dias recebi a notícia da morte de dois trabalhadores rurais, que faleceram
8 Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 3ª ed., São Paulo: Malheiros Editores,
2005, p.28.
9 Magistratura e Direito Alternativo, 5ª ed., Rio de Janeiro: Luam, 1997, pp. 30/31.

7
em virtude de terem manejado defensivos agrícolas sem contarem com a
proteção de EPIs, que não lhes foram ofertados por pura omissão de seus
empregadores, caso que configura, ao meu ver, hipótese típica de homicídio
culposo.
Quero crer que se tais empregadores padecessem do receio de suportarem
a partir daí uma condenação penal, muito provavelmente teriam cumprido com a
obrigação contratual básica de garantir aos seus empregados um meio-ambiente
de trabalho hígido, o que por certo teria preservado a vida de tais camponeses.

Com efeito, não sem antes solicitar vênias aos que pensam de modo
diferente, creio que por via de condenações penais a Justiça do Trabalho poderá
fazer muito pelo cumprimento da legislação trabalhista, interferindo
positivamente na relação capital-trabalho.

E não se venha argumentar que para o cumprimento das regras de


segurança e medicina do trabalho bastaria a imposição de pesadas punições
cíveis, pois como é palmar em nosso pobre país, não são poucos os
“empregadores” quase tão miseráveis quanto o próprio trabalhador, não havendo
para eles, portanto, qualquer efeito pedagógico numa condenação pecuniária
inexeqüível.

Assim, embora adepto das teses que propugnam pela existência de um


direito penal mínimo, decididamente não fecho meus olhos para a perturbadora
constatação de que a ciência criminal pode contribuir em muito para a civilização
da selvagem relação capital-trabalho, até mesmo poupando vidas de operários.

Demais disso parece-me, sem que nisso vá qualquer desdouro aos


Magistrados Comuns, que o Juiz do Trabalho, louvado na sua incomensurável
experiência dos meandros insondáveis do mundo laboral, esteja mais apto a
julgar, por exemplo, os ilícitos criminais supostamente cometidos durante o
exercício do direito de greve, de modo a impedir que a aplicação fria do direito
penal venha a inibir o exercício de um direito fundamental coletivo dos
trabalhadores previsto na Magna Carta.

Aliás, no mundo civilizado europeu, principalmente na Itália, Espanha e


França, ganha cada vez mais prestígio o estudo do “direito penal do trabalho”,
encarado enquanto ramo autônomo da ciência jurídica, sobretudo preocupado
com a repressão de condutas anti-sindidicais.

Todas essas ponderações justificam, com efeito, o reconhecimento da


competência criminal da Justiça do Trabalho.

3.3 – Os Ilícitos Penais-trabalhistas Não se Esgotam Nos Crimes Contra a


Organização do Trabalho - O Artigo 109, VI, da CRFB Deve Ser Interpretado à Luz
da Súmula 115 do TRF.

Enfim, hei de redargüir o argumento de que o artigo 109, VI, da CRFB

8
embaraçaria a competência penal da Justiça do Trabalho, na medida em que, pela
sua literalidade, os crimes contra a organização do trabalho são de atribuição
cognitiva da Justiça Federal.

Por uma questão que tangencia a trivialidade, talvez seja esse o mais frágil
argumento daqueles que pelejam contra a jurisdição penal do Judiciário Laboral.
Ocorre que nem todos os ilícitos penais-trabalhistas estão tipificados no
titulo IV do Código Penal, que arrola os crimes contra a organização do trabalho
somente a partir dos artigos 197 e seguintes.

À guisa de exemplo, aduzo que o principal dos crimes trabalhistas da


atualidade, “Redução a Condição Análoga à de Escravo”, está tipificado no artigo
149 do CP, que por sua vez está situado no título II do codex criminal, que trata
dos “Crimes Contra a Pessoa”, mais especificamente no seu capitulo VI, que
abarca os “Crimes Contra a Liberdade Individual”.

Logo, o artigo 109, VI, da CRFB nem de longe outorga competência à


Justiça Federal para julgamento do crime de “Redução a Condição Análoga à de
Escravo”, sequer quando encarado o caso pelo prisma da grave violação dos
direitos humanos, já que para tanto seria necessário que, nos termos do § 5º do
mesmo artigo 109 do Diploma Maior, “o Procurador-Geral da República, com a
finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados
internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte”, suscitasse,
“perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou
processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal”,
não sendo desmesurado lembrar que a Justiça Especializada do Trabalho é tão
federal quanto a sua congênere comum.

Mas os exemplos não morrem por aí. Dizem os artigos 1º e 2º da Lei 9.029-
95:

Art. 1º Fica proibida a adoção de qualquer prática


discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de
emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor,
estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as
hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII do art. 7º
da Constituição Federal.
Art. 2º Constituem crime as seguintes práticas discriminatórias:
I - a exigência de teste, exame, perícia, laudo, atestado,
declaração ou qualquer outro procedimento relativo à esterilização ou
a estado de gravidez;
II - a adoção de quaisquer medidas, de iniciativa do
empregador, que configurem;
a) indução ou instigamento à esterilização genética;
b) promoção do controle de natalidade, assim não considerado
o oferecimento de serviços e de aconselhamento ou planejamento
familiar, realizados através de instituições públicas ou privadas,

9
submetidas às normas do Sistema Único de Saúde (SUS).
Pena: detenção de um a dois anos e multa.
Parágrafo único. São sujeitos ativos dos crimes a que se refere
este artigo:
I - a pessoa física empregadora;
II - o representante legal do empregador, como definido na
legislação trabalhista.
III – O dirigente, direto ou por delegação, de órgãos públicos e
entidades das administrações públicas direta, indireta e fundacional
de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios.

Ora, às escâncaras tais crimes possuem inquebrantável natureza


trabalhista, não estando, contudo, elencados no título do Código Penal que trata
dos “Crimes Contra a Organização do Trabalho”, até porque tipificados em
legislação extravagante, sendo manifestamente equivocada, pois, a defesa da
competência da Justiça Federal para deles conhecer.

Questão muito parecida é a prevista no inciso X, do artigo 7º, da


Constituição, que prevê a “proteção do salário na forma da lei, constituindo crime
a sua retenção dolosa”.

Aqui, a bem da verdade, é existente plausível discussão em relação aos


limites de eficácia da regra, não sendo poucos, entrementes, aqueles que
defendem a sua plenitude. Transcrevo, no pertinente, as palavras de MAURÍCIO
GODINHO DELGADO:

“(...) De fato, a Carta de 88 estipula que a retenção dolosa de


salário constitui crime (art. 7º, X, CF/88). A norma insculpida na
Constituição obviamente não pode merecer interpretação extensiva –
como qualquer norma fixadora de ilícito ou punição. Desse modo,
deve-se compreender no sentido da norma constitucional a idéia de
retenção do salário stricto sensu. Nessa linha, excluem-se dessa
noção de salário retido (para fins penais) as parcelas salariais
acessórias e ainda as verbas salariais controvertidas (a controvérsia
sobre o débito exclui o próprio dolo em tais casos).
Feitas tais ressalvas, não há por que se considerar ineficaz tal
preceito constitucional. É que o tipo penal da apropriação indébita
(art. 168, Código Pena) ajusta-se plenamente à hipótese (limitado,
evidentemente, às situações de dolo), conferindo absoluta e cabal
tipificação ao ilícito, nos casos de retenção dolosa do salário base
incontroverso, por exemplo.” 10 (sem destaque no original)

Com efeito, admitido o enquadramento da retenção dolosa de salários no


tipo da apropriação indébita, previsto no artigo 168 do CP, topologicamente

10 Curso de Direito do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 2003, p.763.

10
inserido no título II do codex respectivo, a tratar dos crimes contra o patrimônio,
consoante apregoa o abalizado magistério do Professor GODINHO DELGADO, o
argumento do artigo 109, VI, da CRFB se torna, mais uma vez, manifestamente
estéril para neutralizar a competência penal da Justiça do Trabalho.

Em suma, os exemplos são infindáveis, razão pela qual não prosseguirei na


enumeração, haja vista me conformar com o truísmo da impossibilidade de
exaurimento das possibilidades, que por certo se multiplicarão na prática forense.

Por outra vertente, ad argumentandum, ainda que na dogmática criminal


todos os ilícitos penais-trabalhistas fossem considerados como crimes contra a
organização do trabalho, creio que nem mesmo assim a jurisdição criminal da
Justiça do Trabalho estaria definitivamente afastada, já que no caso seria de se
aplicar o critério da súmula 115 do TFR a dizer que "compete à Justiça Federal
processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho quando tenham
por objeto a organização geral do trabalho, ou os direitos dos trabalhadores
considerados coletivamente" (sem destaque no original).

Vale dizer, portanto, que somente quando o crime ofende coletivamente os


direitos dos trabalhadores é que a competência da Justiça Federal se justifica.
Caso contrário, a atribuição cognitiva que outrora pertencia à Justiça Estadual (e
não à Federal), passa com o advento da E.C. 45 à Justiça do Trabalho.

Em tal diapasão, o escólio de JOSÉ EDUARDO DE RESENDE CHAVES


JÚNIOR:

É importante sublinhar, ainda, que o disposto no art. 109, VI, da


Constituição da República, que dispõe expressamente a competência da
Justiça Federal para os crimes contra a organização do trabalho, não inibe
as conclusões ora expedidas, senão vejamos.
É que a despeito da literalidade de tal dispositivo, a jurisprudência,
consolidada na Súmula n. 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos,
consagrou que a competência da Justiça Federal, para essas hipóteses,
somente se configura quando se trate de lesão penal de transcendência
coletiva e com repercussão geral na organização do trabalho, concebida
como sistema.
Em face disso, o que se sustenta aqui é que apenas os crimes
contra a organização do trabalho, de aspecto individualizado, é que se
deslocariam da competência da Justiça Estadual, para a Justiça do
Trabalho.
Em face, contudo, da própria “adequação legítima” já acenada, é
fundamental que o constituinte desloque ou revogue o mencionado inciso
VI do art. 109 da Constituição, a fim de que o fenômeno trabalho tenha um
tratamento penal holístico, inclusive do ponto de vista coletivo.11

11 Nova Competência da Justiça do Trabalho, 1a ed., São Paulo: LTr, 2005, p. 233.

11
Com efeito, excetuadas as condutas criminais de transcendência coletiva e com
repercussão geral na organização do trabalho que estejam tipificadas nos artigos 197 e
seguintes do CP, todos os demais ilícitos de cunho penal-trabalhista deverão ser
doravante processados e julgados perante a Justiça do Trabalho.

4 – ÚLTIMAS PALAVRAS

Como já adverti alhures, em momento algum do presente articulado


pretendi ser original ou exauriente. De outro tanto, como também asseverado,
tenho a exata noção de que todas as vezes que nos lançamos a um debate
intelectual, corremos o risco de defender idéias que não acolham o aplauso dos
estudiosos da matéria tratada.
Ainda assim, contudo, me jogo com gosto à defesa da bandeira
desfraldada. Sei que essa posição não é fácil de ser defendida, mas o fato é que
as tarefas fáceis não fascinam o ser humano. Ademais, essa luta não me parece
vã, já que começam a despontar os seus frutos, oriundos de precedentes
jurisprudenciais emanados da primeira instância dos TRTs da 12ª e da 2ª Região.

Um dia foi difícil defender a competência da Justiça do Trabalho para as


ações que envolviam a discussão de dano moral, mas hoje ela é uma realidade.

Por igual, foi árduo esgrimar a competência do Judiciário Trabalhista para


as ações de indenização por danos morais, materiais e estéticos oriundos de
acidente do trabalho, mas hoje ela é uma realidade.

Também não foi tranqüilo o debate acerca da pertinência das ações civis
públicas no processo do trabalho, mas hodiernamente elas estão cada vez mais
presentes no nosso cotidiano.

A vida profissional é mesmo assim. Cheia de desafios estimulantes. Alguns


superamos, outros não. Mas o fundamental é que nós, operadores do direito,
assumamos com entusiasmo o nosso papel de notáveis agentes políticos,
comprometidos com a construção de um verdadeiro Estado Democrático Direito, onde
prevaleçam os fundamentos republicanos da cidadania, da dignidade da pessoa
humana, dos valores sociais do trabalho e da função social da propriedade.

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