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CAMINHOS..PAJEU PAJEU: UM RIO DO SERTAO, A Ties serra do TEIXEIRA, que se levanta noe contrafortes da BORBOREMA é a mie do Pa- JEG. Das suas abas e boqueirdes descem os riachos humildes que sio as nascentes do lendario rio ser- tanejo. Pernambuco tem ao norte o seu ponto extremo, na ponta de terra que penetra o Estado da Parahyba. Ali 6 0 municipio de Sao José do Egito. E naquele pedaco de sertao brabo a serra airosa é o divisor das Aguas, 0 limite natural entre os dois Estados. O povo batiza com a sua linguagem pitoresca al- guns sitios que ficam no declive da serrania: “BA- LANCO, “TOMBADOR”, “BALANCA”, assinalando assim, de viva voz, a linha diviséria que se estira pelo cspinhaco da serra. No inverno os riachos descem dos altos, rolando as Aguas que vio formar 14 em baixo, o famoso rio dos vaqueiros e dos cangaceiros, que nasce pagio, identificado com a geografia e com a gente simples daqueles mundos asperos. Porque o belo nome ca- riri que é a sua legenda sé apareceré muitos quilé- metros além das nascentes que ficaram para traz, la- crimejando nos altiplanos da cordilheira. —l— LUIZ CRISTOVAO DOS SANTOS PAJEU é vocabulo indigena. Quer dizer (PAJ- Y) —o rio do feiticeiro. Por certo, outrora, quando os indios cariris habitavam aquelas paragens — se- nhores absolutos da regiéo viveu 4s margens do rio algum piaga cujo prestigio dominava a regio adusta. Entdo os guerreiros — donos da terra e do rio — em homenagem ao velho pajé, assim batiza- ram o curso das aguas que vinham de longe, descen- do da serra que azulava a distancia e banhavam os dominios da nacao cariri. E lA ficou 0 rio a evocar os guerreiros que erra- vam pelas suas margens, guardando como sentinelas, até a chegada do branco fundador das fazendas, a beleza dos seus campos e 0 mistério das suas serras. Em 1923, montado em uma burra o sabio austria- co LUDOVIDO SCHWENNHAGEN percorreu o ser- tao pernambucano 4 procura de imaginarios vestigios da civilizagio fenicia por ventura existente nos ser- tdes nordestinos. Da sua estafante viagem 0 geégra- fo austriaco publicou no DIARIO DE PERNAMBUCO, curioso e pitoresco relato no qual revela a interpre- tacéio que colhera da tradi¢do popular para o nome do rio PAJEU, assim explicada. Muitos anos atraés, um frade atravessara os sertées desobrigando os primei- ros habitantes e indios iniciados na fé crista, por ali aldeados, quando no caminho entre SERRA TALHA- DA e FLORESTA DO NAVIO encontrara na miste- riosa serra de PICOS uma imensa furna de pedras, a qual podia abrigar facilmente centenas de pessoas. Dissera entao 0 religioso que outrora aquela furna ti- nha sido um templo. O povo ent&o batizou a furna de PIAGA-HO, ou seja, CASA DO SACERDOTE, DO PIAGA, pronunciando com g gutural o nome PIAGA- HO, de onde se originou o atual nome PAJEO que te- ria se estendido da furna ao rio que passava por perto. Verdade ou fantasia, fruto da imaginacao do europeu, suando em bicas, ao sol inclemente, desgar- rado pela caatinga, talvez sofrendo fome e séde na- quelas andancas pelos caminhos inhéspitos, o certo —i12— CAMINHOS Do PASEO é que hi qe idindo 0 batismo do velho rio, io rico de sugestées e o mais tradicional da hinterlandia pernambucana. Fiel aos barrancos onde campeiam as baratinas e vieejam as quixabeiras, unido a terra como um filho amoroso, préso as va- zantes © aos baixos, enamorado dos “pés-de-serra” € dos vales férteis, agarrado & caatinga cinzenta, escu- tando os cochichos dos povoados humildes, lambendo 0s muros das cidadezinhas matutas, entrando sem pe- i ca © com intimidade de parente velho pelas vilas quictas que branquejam ao sol, 0 PAJEG — servical ¢ amigo — vai tomando o nome dos lugares Por onde passa, como se quisesse contentar a todos, oferecendo generosamente a ‘gua barrenta das cheias ou matando a séde de quem o procura, — homem, aves, animais, — com a Agua azulada dos pocos ¢ das cacimbas, na fase dolorosa das estiagens. As suas nascentes mais distantes ficam nos “BA- LANGOS”, na serra do TEIXEIRA, no lugar a que 0 povo da o nome pitoresco de “TOMBADOR”, bem no declive da serra onde as aguas se dividem; de um lado PERNAMBUCO, do outro, a PARAfBA. A principio é 0 rio da’ PIEDADE, nome da vilazinha que 0 rio atravessa no inicio da sua longa caminhada de cingiinta léguas. Depois se estira para os cam- pos de CRAMUCUQUI, — vocdbulo evocative dos ca- iris, na toponimia sertaneja — chegando, em segui- da a vila de ITAPETIM (antiga UMBURANAS), de cujo nome o rio também se apodera, no gosto de per- manecer fiel ao chio duro, erigado_de mandacarus. Depois corre para o JOA, vai para SAO PEDRO, to- mando essas designacées, sempre grudado aos aciden- tes da sua geografia ribeirinha, carregando sertio a fora a lembranca das coisas que viu — drvores, ruas, animais, — sé deixando ésse agarradio de garanhio muito adeante, quando chegar As portas do munici- pio de TABIRA ¢ na vila de TUPARETAMA receber, enfim, o seu nome definitivo. Na propriedade “GROS- SOS", 9 quilémctros abaixo de SAO JOSE DO EGI- — 13 — Lum CrisTovko Dos SANTOS s nescentes ja estdo reunidas aos primeiros aflu- No leito apertado entre rochas ¢ barrancos juntam-se o rio SAO JOSE, 0 riacho dos “PORCOS”, jeviacho do HUMAITA”, nome que lembra a grande batalha do PARAGUAY, trazido, talvez, por algum filho_do se que 14 esteve durante a “GUERRA GRANDE”, ou foi dado ao riacho humilde por algum capitio ou coronel da “GUARDA NACIONAL”, de olhar duro e civismo explodindo nas veias quando envergava a farda da “BRIOSA”, para as ‘ir missa na vila, votar nas eleigdes “a bico-de-pena”, ou os- tentar nos dias santos e feriados a vaidade da espada pendente ao lado, na indumentiria vistosa que acen- dia no olhar at6nito da matutada a nota mais alta do orgulho civico do PAJEU. Depois de “GROSSOS” passando sob a ponte de cimento armado construida na rodovia do Estado o rio avanca para o munici- pio de TABIRA, onde, ao chegar a Tuparetama — 0 antigo BOM JESUS, teatro por muitos anos das lutas sangrentas entre duas familias da regiaio — ad- quire finalmente o seu nome de guerra: é o len- dario rio PAJEU. A seguir ostentando o nome fa- moso, corre para a antiquissima vila da INGAZEIRA, alcanga AFOGADOS, depois CARNA{BA, FLORES, SERRA TALHADA, de onde obliquando para o sul se dirige 4 FLORESTA, a antiga FAZENDA GRAN- DE dos primeiros currais de gado do sertao, em cujo territério vai desaguar no RIO SAO FRANCISCO, nas proximidades da vila de ITACURUBA, e quase as portas do ribombo da cachoeira de PAULO AFON- _ SO. Ali termina o PAJEG. Acabou-se o aventura rio mais sugestivo ¢ tradicional do sertio nani- Atravessou a mais rica Becca. — z . le-serra, de inda mais oun spusdn 9 notdd Ob 0 ‘ov4oa ON CAMINHOS Do PasEd las ¢ das obras da Contra-Séca, das profundas modi- ficagdes que a Civilizacio vai imprimindo, como um ‘Olo compressor, na terra sertaneja. Modificacdes nao 86 na paisagem fisica como também na propria alma do povo, 0 caminho de ferro rasgando a caatinga e as rodovias do Govérno substituindo os antigos ca- minhos dos almocreves e dos tangerinos, criando no- vos habitos, alterando os costumes, num silencioso trabalho de destruigio vagarosa da velha tradicio sertaneja. E essa regiéo — ‘a famosa ribeira do PA- JEU — onde estio encravados seis municipios do Es- tado, € ao nosso modesto ver, um campo espléndido as pesquisas e inyestigacdes dos estudiosos da forma- gio étnico-social da gente sertaneja, isso gracas ao PAJEO que nao foi apenas o roteiro da penetracéo © do desbravamento pois foi acima de tudo o elemen- to fixador por exceléncia do homem, na fase da co- lonizacio e ainda hoje, adaptando-o as suas margens © aos seus campos, na luta pela sobrevivéncia que é ao mesmo tempo a dramatica aventura da agricul- tura rotineira e da pecudria tao cheia de defeitos, criminosamente desprotegidas pelos poderes centrais da Republica. A paisagem geografica do PAJEU se apresenta com as mesmas caracteristicas de solo, flora e fauna. A ribeira é vez por outra acoitada pelas “sécas” im- piedosas, e, lutando contra a adversidade do clima, tendo contra si a inctiria vergonhosa do poder, 0 ho mem do sertio se agiganta e se torna maior do que o meio ingrato, contando com o seu mais decidido aliado na luta ingente que é 0 rio, até hoje esquecido e sem nenhum acude, e que lhe da os meios necessi- rios 4 vida: a Agua, as vazantes, 0 baixio, a cacimba. Nao sé a agua preciosa que esfria nos potes de barro, nas cabacas, nas borrachas de couro feitas pa- ra as longas viagens e para as bém a caca, o mel silvestre, « peixe escondido nos pogos | vindo alguns espécimens Lum CRisTovA0 Dos SANTOS ira, 0 dou- rubim, o piau, a curimata, 0 mandi, a tre rado. ; mo rio © 0 homem se entendem. Dai amor que 0 velho rio desfruta naqueles mundos. O homem se sente préso a ribeira, num apégo ao chao onde se sente tio profundamente radicado como os juazeiros e a aiinas, afeicio essa que explode constantementi questoes de terra, nas lutas que as vézes comecam nos cartorios ¢ vao para © campo raso, por uma cacimba, por um trecho de vazante, por um palmo de baixio, ao calor da fé e da confianga nas escrituras de dominio, nos velhos papéis de posse, guardados com félhas de fumo para conservar, escrituras que rezam os limites e as con- frontagdes, enquanto as geragdes se sucedem. E caso falhem nas pendéncias a autoridade do doutor juiz ea forca do Cédigo, uma lei maior apa- rece, surge uma autoridade mais respeitavel para dar a sentenga: a béca do bacamarte, do papo-ama- relo, do cruzeta, também o punhal afiado. Quem observa o PAJEU sente na nomenclatura dos seus afluentes a alma simploria daquela gente, através do seu linguajar bizarro, onde nome de san- tos se misturam com os de animais, de abelhas e ar- vores, tudo na mais franca camaradagem. Ha, por exemplo o riacho da ONCA, o rio do ANGICO,.o rio do EXU, o riacho de SAO JOAQUIM, o rio do TAM- BORIL, 0 riacho de SAO JOSE, 0 riacho do BODE, o rio de SANTO ANTONIO, o riacho da VACA-MOR- TA, o rio do BOM-JESUS, o riacho dos PORCOS, 0 riacho da ABOBORA, 0 rio do ESP{RITO SANTO, o de SAO PEDRO, 0 SAO DOMINGOS, 0 SAO GON- GALO, e 0 rio das UMBURANAS, do JOA, da URTE GA, 0 riacho do GAVIAO, do UMBUZEIRO, do TL GRE. _Nomes que lembram a simplicidade daquela_gen- *PEDRA BRANCA, da PEDRA VERDE, do INDO, do ENTRE-SERRA, do SACO, do . Por causa de uma grande pedra CAMINHOs Do PAJEU no meio do leito do riacho humilde 1 vem a saudade do mar, a lembranga das caravelas na longa viagem em busca da a a terra do sertao, adq da com a escritura de aforamento passada na Casa da Torre: RIACHO DO NAVIO. Outros batizam riachinhos humildes com nomes de encher a boca: RIACHAO, riacho do BROCOTO, rio do PANTALEAO, riacho do ESTRONDO. Um talvez evoque o estampido do bacamarte, na luta de vida e morte: RIACHO DA VARZEA DO TIRO. Nomes que guardam o sabor da linguagein bizarra: riacho da GONGORRA, riacho da PINGA, riacho do MIJO. Fios digua que o PAJEU engole para chegar a0 SKO FRANCISCO num rompante de rio de verdade, quando as cheias lhe estrayassam 0 leito e éle corre, barrento e raivoso, para depois, quando chegar 0 ve- rio ficar represado, quieto © manso nos pogos, & som- bra das ingazeiras e das baratinas. Duas fases de vida tem 0 PAJEC. Quando ha inverno — de marco a junho — o rio corre e se da ao capricho de ficar furioso, alarga o leito, inunda as vazantes, sobe pe- los barrancos ameaca as vilas, e as_cidades ribeiri- nhas, E negando passagem aos viajantes, lt vai, a figua coroada de espuma, fertilizando os baixios, en- chendo os pocos, correndo para “alegrar a vista e lavar os peitos” como diz 0 povo. Passada porém a fase das chuvas — sempre incerta — vem 0 terror das estiagens. & a séca, a mae dos retirantes, dos paus-de-arara, da desgraca e da miséria que invadem os sertes. Entéo, para ser fiel ao seu destino de tio servical e amigo, ajudando o homem e Ihe ofe- recendo os meios essenciais 4 vida, mesmo atribula- dla ¢ rude rio vence a natureza ingrata, supera 4 contingéncia do meio ambiente hostil e ingrato, se peiganta no meio da paisagem combusta e guarda sob dois palmos da areia grossa do alveo a Agua preciosa com que o homem vem matar a séde, nas eacimbas: razejas. Por que o destino désse rio Lutz CRIsTovAo pos SANTOS sertancjo é scrvir. Desceu da cordilheira e procu- rou a planicie, a caatinga cinzenta, o chao duro a paisagem estorrieada. Traco de uniaio formidével, a se estirar por mais de trezentos quilémetros, carre- gou para o Siio Francisco as aguas dos altiplanos do BORBOREMA, que irao se confundir com as ondas, levando para a imensidio do mar o pinicado das violas dos cantadores ¢ a saudade do aboio dos va- queiros. Rio humilde, rio de sertao, rio jodo-nin- guém, cujo leito jamais foi barrado pelos acudes fe- derais que fertilizariam os baixios, refreseando 2s vazantes, conservando a gua e sustando 0 éxodo, o PAJEU é no entretanto, uma legenda viva de herois- mo andnimo e silencioso a espera de que melhor compreendam, a bravura da sua gente simploria e a capacidade da sua ribeira promissora, para que revele na pujanca da sua forca teliirica, como real- mente o é: uma grande reserva material e moral, da Patria, perdidas nas paragens adustas do belo ¢ fais- cante Brasil sertanejo, do chapéu de couro e das quixabeiras. “pquin9 mp nataq y spd 80 98-Dan] ‘NOCD ON

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