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José Pedro Paiva Capitulo IT Definir uma elite de poder: os bispos em Portugal (1495-1777) © universo que me proponho abordar, {Quando digo influente, fago-o na perspectiva area qual thd muito chamou a atengao. Influente enquanto corpo restrito no interior do qual se jogam disputas que sao verdadciramente responsaveis por grande parte dos processos de transformasao religiosa, poli- tica, social e cultural Ora, 0s bispos eram uma elite poderosa ¢ influente a varios niveis QED como é natural, pela lideranca que imprimiram no governo das dioceses e "eae comportamentos dos figis, principalmente a partir do ‘om 0 reforgo da autoridade dos fase no interior do campo dos poderes da Igreja. Poderosa e influente Instituto de Historia e Teoria das Ideias, Centro de Historia da Sociedade e da Culte ra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, ** © presente texto foi pensado como uma sintese para ser apresentada num col6quio © reproduz as palavras entdo proferidas. Optou-se, por conseguinte, por no inchir qualquer ‘parato crtico. As pesquisas que sustentam as ideias aqui explanadas foram jf parcialmen= te publicadas em José Pedro Paiva, «Os mentoresy, in Carlos Moreira Azeved> (dit), His trig Religiosa de Portugal, Lisboa, Circulo de Leitores, 2000, vol. 1, pp. 201-237, € «Os roves prelados diocesanos nomeados no consulado Pombalino», Penélope, Revista de Histé- ria e Ciéncias Sociais, 25 (2001), pp. 41-63, estudos para os quais se remete o Icitor. ‘Alguns dados noves serto compilados ¢ devidamentejustficados em livo que actualmen= te preparo sobre o episcopado portugués na Epoca Moderna. ‘mas muito particularmente com o rei. Poderosa pela sabedoria pessoal de muitos, pelo Iugar central que as institurgoes Treadas & lereja tinham na fem Portu- gal, pela intensa jue muitos desenvolveram. Poderosa e influentet ‘que as rendas e os palriménios de algumas dioceses nao eram despreziveis. Os arcebispos de Evora tinham uma renda anual compardvel & de algumas das casas menos Ficas da grande nobreza portuguesa. Lugar apetecivel, como se imagina Como creio que & sugerido pelo titulo da comunicagao, o que aqui preten- do & enunciar uma série de critérios que permitam caracterizar, definir. se se preferir este universo dos bispos portugueses, enn» Fé-lo-ei a partir de um percurso que tera és, etapa. 1, —Mostrando 2, ~ Esbogand 3. — Sugerindo um} A pergunta de que parto € a seguinte ii eseo Nias TOES Jconcretamente apés 1502, com a preco- nizagao papal para arcebispo de Braga de D. Jonge da Costa, 0 famoso cardeal Alpedrinha, que esta ‘manobrada pelo proprio sem audigao Iore ue 0 papa prometeu que, da em dian te, no fossem preconizados bispos que nio tivessem sido recomendados pelo monarea, se bem que a confirmagio desta, tivesse posterior- i seja, 0 papa preconizava o los seus reinos. Mas ndo o conseguiu. Essa formula para que se proce- esse a uma averiguagao das qualidades do escolhido € se evitassem nomea- es imnspris,constiui-se um proceso (io QI Por determinagio geral da Santa Sé para todo o mundo eatehico que, no caso por- tugués, corria em Lisboa sob organizagao da Nunciatura (durante 0 periodo filipino alguns destes processos foram efectuades em Madrid ~ tal 0 caso, por ‘exemplo, de Sebastiio Matos de Noronha quando foi eleito para Elvas, em aceitagtio papal foi sempre outorgada, ‘em virtude do nao reconhecimento papal da sua Teyitimidade D. Jodo IV tenha nomeado viris bispos que nunca foram reconhecides pela Santa Sé e que, de facto, nunca exerceram fungdes. Sen es eles una desta do wba do TTD (GORGE 1 de escother efectuava consultas. De facto, or ouvia ou recebia pareceres de ministros da governagiio, de conselheiros de Estado, de eclesisticos do seu citculo proximo (coniessores, capeldes, outros bispos, inquisidor-geral), da aristocracia cortesa mais influente, da familia real, dos cabidos das Sés e até do préprio papa, num complexo processo de ausculta- gio de sensibilidades que teve 10s no longo arco cronol6gico aqui analisado. a Tee es. possivel esbocar aqui um levantamento exaustive do. modo como, em diferentes conjunturas politicas, este processo de selecgio dos pre- lados foi estabelecido, Nao deixarei, todavia, de fornecer alguns exemplos concretos. No reinado de D. Jodo Il, era bastante acentuada a influéneia que nesta matéria tinham a rainha D. Catarina e os condes de Vimioso e da Castanheira. Durante a integragao do reino de Portugal na monarquia hispanica, © apos a criagao do Consetho de Portugal, os seus membros eram convocados a dar parecer sobre 0 provimento das Sés que vagavam. No ciclo governative de 1D. Joao V foi influente a voz de frei Gaspar da Encarnacio, parente, amigo € conselheito do rei. Dai nio ser de estranhar que muitas das nomeagdes efec- tuadas nestes periodos espelhem estas influéncias. Deste modo, no reinado de 1D. Joao IIL, eclesisticos muito préximos da rainha D. Catarina, zastelhanos de nascimento, foram eleitos bispos para as novas dioceses resultantes da reorganizagaio da geografia diocesana desencadeada por D. Jodo Ill. Tal suce- dew com o esmoler e dedio da capela da rainha, Toribio Lopes, bispo de Miranda, a partir de 1545, € com o seu confessor, Julido de Alta, bispo de Portalegre, desde 1549 e, posteriormente, de Miranda. Também os principais conselheiros do restrito nimero de pessoas com quem D. Joao Ill governava, nomeadamente Francisco de Portugal (1.° conde de Vimioso — 1516) e Antonio de Ataide (1.° conde da Castanheire e vedor da Fazenda, desde 1530) exerceram influéncias que valeram mercés de familia- tes seus ao episcopado. Um dos filhos do 1.° conde da Castanheira, Jorge de ie, nascido em 1535, foi prelado de Viseu, a partir 1569. Martinho de imo do 1.° conde de Vimioso foi bispo do Funchal em 1533, € Joio de Portugal, filho do 1.° conde de Vimioso, antistite da Guarda, a partir de 1556."Pouco antes de morrer 0 conde de Vimioso, D. Francisco de Portu- gal, pai deste bispo da Guarda, quis garantir 0 futuro dos filhos e esereveu mesmo a D. Jodo II! um memorial, no ano de 1546, no qual sustenta que no havia em Portugal ninguém mais talhado para bispo do que o seu filho ben- Jamim Joao, pois desde 0s nove anos estudara na escola catedralicia de Evora ‘se preparara para estas altas fungdes. Este memorial interessantissimo reve- la tracos da biografia do filho, pela pena do pai, que procura enaltecer as qua- lidades que ele reunia para vir a ser escolhido. E, de facto, foi-o. Este caso constitui um paradigma de como, mo ja foi bem notado em alguns estucdos sta. a razio pela qual membros de algumas familias, ‘oronhas, «tivessem saido significative nimero de ser- vidores da lgreja e do Estado» neste periodo: Miguel de Castro foi eleito para Lisboa (1585), Agostinho de Castro para Braga (1588), Francisco de Castro para a Guarda (1617), Dinis de Melo e Castro para Leiria (1627), Miguel de Castro para Viseu (1633), Nuno de Noronha para Viseu (1587), Antonio Ma- tos Noronha para Elvas (1591) e Sebastio Matos Noronha para Elvas (1626) € para Braga (1635), A influéncia de frei Gaspar da Encamagdo, quando reinava D. Joao V, es- pelha-se na escolha de uma série de prelados ligados a corrente da jacobeia, ‘movimento no qual foi evidente a inspirago deste missionario do Varatojo © reformador dos erizios de Coimbra. Assim, oito dos prelados entéo nomea- dos, todos membros de ordens ou congregacées religiosas, tinham estado li- tgados aquela tendéncia, como sueedeu com Indcio de Santa Teresa, bispo de Goa (1721) ¢ do Algarve (1740), José Maria da Fonseca e Evora, bispo do Porto (1739), Miguel de Tavora, arcebispo de Evora (1739), ou Miguel da Anunciagdo, bispo de Coimbra (1739) Em conclusao, dir-se-é que como os fo Tundo existia neste ponto uma situago muito semelhante a dos outros teinos catélicos da Peninsula Ibérica. Os reis catélicos tinham o diteito de apresentagao dos bispos desde 1523, se bem que o processo sé tenha ficado ‘completo em 1536. Também usavam o mecanismo da consulta antes de pro- porem alguém a Roma, (QIGBORETGIAVER Mais tarde, quando Toreriade sR TET fazia, como € demonstrado eres tral le Maximitiano Barrio Gozalo. A use pay cuesa ea da Coroa ani eram muito distintas da dos Sc pequena € media dimensdo, quando comparadas com as dos reinos ibéti raetano iS dioceses ha familias que se perpetuam na posse das ‘ras por mais de um século (por exemplo, 0s Madruzzo em Trento ou os Gambara em Tortona). Isto, aliado s multifacetadas configurag6es politicas dos territérios da Peninsula Itélica, eriou mecanismos distintos dos verifica- dos na Peninsula Ibérica onde, como se mostrou, o poder da Coroa foi decisi- A segunda pergunta a que procurarei dar resposta ¢ a seguinte: s dados que revelo nao so definitivos, pois trata-se de investigagao ain- da em curso. Este valores resultam de uma recolha efectuada ccm base no Historia da Igreja de Portugal, significativamente completada e, nalguns casos, corrigida por dados recothidos no Archivio Segreto Vaticaro (proces- sos consistoriales, Acta camerarii e vicecancelari), Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (sobretudo Habilitagdes Santo Oficio e Habilita- oes de xenere da diocese de Lisboa) © no Arquivo da Universidade de Coimbra (Livros de matriculas e cartas de curso). \No periodo compreendido entre a subida ao trono de D. Manuel 1 (1495) ¢ 1 demissio e afastamento de Pombal da secretaria dos Negécios do Reino (1777) foram providas 513 mitras, das quais 299 se situavam no continente € arquipélagos atlanticos dos Agores © Madeira e 214 noutros territérios do padroado portugués. Isto correspondeu a0 provimento de 395 individuos dis- tintos, jd que alguns foram titulares de mais de uma mitra ‘oimbra ~ 1616, Bra- ga ~ 1618 ¢ Lisboa ~ 1626). Estas transferéncias de uma para outra diocese Aaconteceram quase exclusivamente com dioceses do continente e ilhas dos ‘Agores'¢ Madeira. Salientem-se alguns dos tragos mais evidentes do conjunto. Destes 395 bispos, 210, apenas 50 num universo de 18S fiveram mitras no ullramar, ou seja. 27%, 20 === fos 210, 0 equivarente le raga, Miho do ato de D. Sebastizo, ou Alvaro de S. Boaventura, bispo de Coimbra, quo era filho do 1.° marqués de Gouveia, ¢ 6.° conde de Portalegre) ‘ou individuos que tinham granjeado prestigio no interior da respectiva insti- tuigdo (por exemplo, Baltasar Limpo, bispo do Porto e Braga, foi provincial dos carmelitas, ou Agostinho de Castro, arcebispo de Braga, foi provincial dos eremitas de Santo Agostinho). 'que_nessas partes se exigiam. mas Acettasse certos Tugares, 0 que motivou em algumas dioceses longos periodos de sede vacante (as vezes quase duas décadas), Veja-se agora ‘Des. apesar dese notar umn, houve sempre o culdado, por parte d SMuaybes de domino e privilegio Ceonsttur uma exceprdo a esta regra o pro- vimento das dioceses da Etidpia e do Japio, sempre ocupadas por jesuit ‘A proporgdo entre bispos seculares e regulars nao foi constant, Com regutares, 1563 © 1750, 60% Tain Tefigiosos, VaTores que se sinfonizam com 0 que se verificow nos reinos vizinhos, como é sugerido por Joan Bada Elias. Mais tarde, na segunda metade de Setecentos, e pese o ambiente geral de anti- scongreganismo que por toda a Europa se comega a declarar, ndo se assistiu em Portugal, com 0 triunfo dG] SMGEMOHED) 2 um refluxc de bispos das congregagdes. De 1750 a 1777, 53% dos bispos continuaram ¢ ser recru- tados entre 0s religiosos, a excepgao dos jesuitas que nao tiveran nenhum imitrado neste periodo. Como ja escrevi, lido a partir daqui Este quadro alterou-se radicalmente, Dos 395 esco- Thidos, apenas 13 (3,3% do total) foram estrangeiros (seis «espanhis», quatro postos por Ignasi Fernandez Terricabras. Como sugeriu Domingo Gonzilez | op. 0S monareas preferiram gente de extracgdo média a alta nobreza, «1 tito de os poderem gontrolar melhor € de reduzirem a concentragto do poder em certas casas que Ip NT Str expres reerindo-se as nomeagdes ocorridas no reinado de Filipe Il, nota-se que este ««preferia crédito a0 sangue». Em Portugal, a influéneia dos grandes no pro- ccesso de decisio, a solidez do poder superior do rei e, deve reconhecer-se, a de cas vo istragto das dioceses, ‘Qual-a formagao academica dos mittados? Dos 395 bispos, possuo, de momento, informagao para 286 (cerca de 72% do universo). Desses, 168 cram teélogos, 115 canonistas (12 em ambos os direitos), 3 em leis. A esma- gadora maioria com formagio interna, na Universidade de Coimbra (os de mais distinta linhagem com frequéncia dos colégios de Sao Pedro e de Sao Pauijo) ou nas ordens religiosas. Excepcionais os casos de individuos oriundos de Evora, apenas 12 tedlogos, ou de Universidade estrangeiras: 11 com estu- dos em Salamanca, 4 em Paris e 3 em Universidades da Peninsula Ittica. Estes indicadores alteraram-se@>SSCOREMORETEERD. £10, AG feagio da nomeagao para bspos de ttulares de grausvnivesitinos ou de ‘mento do Coneflio de Trento apenas 42% dos bispos ostentavam graus uni- ou formagio em tologia obtida nas ordens reiiosas valor que sobe para 78%, entre 1563 ¢ 0 final da amostra. Recorde-se qu¢giGXOHNG de Trent se etpulra que os bispos deviam ser graiuados em Canons Oo ez Tersicabras, onde Filipe I! teria sido 0 detonador desta politica. No seu reinado s6 um nimero reduzidissimo de prelados nao possuia estudas. E tam- bém a distribuigao entre te6logos e canonistas foi semelhante a verificada em Portugal, com os telogos a dominarem. Os bispos de Castela ¢ Leio, segun- do Barrio Gozalo, eram teélogos em 53% dos casos © canonistas em 46% ‘Como bem refere Ignasi Terricabras, a Universidade converteu-se num im- portante centro de formagao e recrutamento das elites da coroa e da Igreja © stdineia criadora de uma cultura mais homogénea das elites laicas & ceclesiisticas. ‘A formagao dos bispos nao era alheia 4 area geografica para onde eran provides. Parece ter evi in pai al wag das SES, iD tetra mas_profundamente ie nos, como eram os casos de Vitoria, Dé ‘eas. No ambito do universo conhecido, verifica-se que yuanto ‘Os tedlogos, mais aptos /ara guiar os crentes e para evangelizar, eram mais facilmente recomendados para as terras de missio. Os canonistas teriam maior preparagdo para a elabo- ago de constituigdes, convocagao de sinodos, fiscalizagao de comportamen- tos através da realizagdo das visitas episcopais, pelo que reuniriam melhores condigdes para a implantagdio dos decretos tridentinos de reforma nas dioce- ‘es continentais. que se riundo de relagoes ilegitimas, guerreiro, devasso, que acumula beneficios, vai desaparecendo de cena, No século XVIut serdo rarissimas excepgdes. Tam- ‘bem aqui o legado de Trento foi significativo. Depois de Trento jamais foram nomeados individuos como o infante D. Afonso que, em 1516, tendo apenas 7 anos de idade, foi indicado para o bispado da Guarda. Os nomeados no tempo de Pombal, por exemplo, tinham uma idade média de 41 rntes de Trento, 12% dos f i para 4% no periodo poste rior. Também extraordinarios os casos de Ba acs snl coma inns clk: |< EERSTE 0 ssh essa nce qu daes dos bos, RATED SEUSS para evitar descon- tentamentos no seio do poderoso corpo clerical, descontentamentos esses que podiam ser prejudiciais & Coroa, quer no tocante ao equilibrio sociel interno, {quer no que se reportava as suas relagdes externas com a Igreja de Roma; 3 ~ Consumou-se definitivamente 0 processo de «naturalizagdio» dos bis- pos, cada vez mais raramente estrangeiros, demonstrando-se por esia via au tonomia face ao poder roma 4 = Intensificou-se ¢ banalizou-se recrutamento de prelados oriundos de familias da alta fidalguia ~ tendéncia que se comesara a esbater claramente a partir de 1755, com a subida de Sebastido José de Carvalho e Melo secreti- rio de Estado dos Negécios do Reino: 5 — Melhorow o nivel de formagao académica e cultural dos titulares das rmitras, por forma a responder aos novos desafios que se langavan & aco dos prelados depois de Trento; 6 — Foram lentamente desaparecendo do universo episcopal bis30s muito jovens ¢ inexperientes, para dar lugar a um corpo mais maduro, preparado € ‘com trajectorias anteriores que auguravam desempenhos mais competentes & frente das dioceses. O mérito ¢ a eficécia foram-se afirmando. E « elite dos bispos era-o nfo sé pela fungdo desempenhada, como pelas qualidades que os seus titulares possufam. Uma vez tragado 0 perfil sociolégico deste corpo, coloque-se uma tereeira questo. Qual era o cursus honorum, a carreira, daqueles que eram escolhidos pata bispos? Forma diferente de perguntar por onde € que se deviam investt estralggias que pudessem mais facilmente tomar elegivel alguém ecm preten- ‘des a uma mitra? (© acesso ao topo da hierarquia da Igreja ndo era directo na esmagadora maioria dos casos. O desempenho de fungdes na Inquisigao, em dreaos da administragao central e da justiga régia, na Universidade de Coimbra, 0 servi- 0 religioso do rei, da sua familia e da capela real, a ascensio no interior da hiierarquia das ordens religiosas, eram trampolins habitualmente decisivos. © cursus honorwm inquisitorial foi um dos processus mis usados para aceder ais mitras. Cerca de 30% dos nomeados depois de 1536, ou seja 102 individuos, tinham previamente exercitado cargos no Tribunal da %é, alguns tendo desempenhado longa carreira, desde promotores ou deputados de tribu- nal de distrito até chegarem ao Conselho Geral. Durante 0 consulado pomba- lino esse valor subiu para 33%. Confirma-se, assim, a proposta de Francisco Bethencourt de que, durante o Antigo Regime, a Inquisigdo foi também uma importante instituigao na formagio de «quadros» e com uma forte capacidade de penetracao na hierarquia da Ipreja. Note-se que esta circulasdo entre a In- quisigao ¢ 0 topo da hierarquia diocesana se efectuava, de igual modo, em sentido inverso. A presidéncia da Inquisigao, isto é, 0 lugar de inquisidor- -geral, s6 por uma tinica vez, com o cardeal arquiduque Alberto, nao teve ‘como titular alguém que ja era bispo de uma diocese. Esta situagdo contrasta com a verificada nos reinos vizinhos (nas dioceses ‘e Cavtela e Ledo apenas 17% dos bispos tinham feito carreira na Inquisi¢ao) ‘e com a Peninsula Itélica onde quase nao havia comunicagao entre estas duas instincias. servigo préximo do rei e da familia real (confessor, pregador, capelao, Imesite, sumither da cortina) e as fungdes desempenhadas na capela real (ca- peli, deo) foram igualmente lugares ocupados por aqueles que vieram a ser pprelados, num total de 66 individuos, ou seja, 17% do total dos nomeados. ‘Tal como para os postos da magistratura régia e da administragao central, a proximidade do rei revelou-se decisiva. Este aspecto foi particularmente nots- fio até ao final do reinado de D. Pedro Il. Entre o corpo de prelados contam- «se 12 sumitheres da cortina; 10 confessores de reis ou rainhas (dos quais 9 no periodo anterior a Trento); 10 esmoleres; 12 pregadores régios, 21 capelaes (des- de capelaes do rei ~ como Diogo Ortiz Vilhegas, capelao-mor de D. Manuel 1, a ceapelies da rainha — como Jaime de Lencastre, bispo de Ceuta, capelao da tainha D. Catarina, ou de membros da Casa Real ~ como Afonso Castelo Branco, capelio-mor do cardeal D. Henrique); 13 dees da capela real, 3 mes~ tres/perceptores de infantes (como por exemplo Nicolau Monteiro, que foi bispo do Porto, a partir de 1670). Estes percursos de progressao préprios dos que serviam 0 rei raramente se tentrecruzavam ou combinavam com outras éreas. Assim, quem servia o rei ou membros da Casa Real como pregador, capeldio ou confessor, muito dificil- ‘mente era encontrado na Inquisi¢ao ou no exercicio da justiga da Coroa, ou na Universidade. Simplificando, diriamos que de confessor ou capelfo se passava directamente para uma mitra. Caracteristica que se topard também entre aque- les que chegam a bispos depois de terem feito carreira na respectiva ordem religiosa. O que era natural, pois as carreiras que passavam pela Inquisigao e tribunais da Coroa eram as seguidas pelos bispos com formagao em direito ‘eanénico, enquanto aqueles que eram oriundos das ordens religiosas eram tedlogos. Panorama idéntico ao que se passou em Espanha, pelo menos no reinado de Fitipe 11, de acordo com Fernandez ‘Terricabras. (Os tribunais centrais da Coroa foram outro alfobre por onde 0s bispos feomeyaram as suas carteiras, Alguns serviram no Desembargo do Pago (2 deputados), na Casa da Suplicacdo (7 desembargadores), na Mesa da Cons- cigncia e Ordens (5 presidentes e 21 deputados), na Casa do Civel de Lisboa (2 governadores), na Relagao do Porto (5 desembargadores), num total de 41 [pessoas correspondents a 10% dos universos em andlise. Aproveite-se para referir como, ja no exercicio das suas fungdes episco- pais, alguns bispos desempenharam fungdes quer em Conselhos (31 conse- Iheiros do rei ou do Consetho de Estado), ou Juntas da administragao central da monarquia (9 entre a Junta dos Trés Estados, Junta da Bula Cruzada), quer mesmo de govemagao do reino, como sucedeu durante a regéncia e reinado do cardeal infante D. Henrique e, posteriormente, com vice-reis governado- res que eram bispos, no periodo filipino. Este panorama conduziu J. Romero ‘de Magalies, com todo 0 acerto, a propor a ideia de que se assistis entio a uma «clericalizago dos governos». Mais raramente, j4 depois de tinulares de rmitras e no final da sua vida, alguns ainda obtiveram lugares de destaque em Grgios da Justiga Central: trés foram nomeados presidentes do Desembargo do Pago, dois presidentes da Mesa da Consciéncia e um regedor de Casa da Suplicagto, Isto permite-me sublinhar, como ja escrevi, que havia uma pro- funda interpenetragao entre a elite da governagio da lereja nacional e a ‘overnacio da monarquia, do mesmo modo que era profunda a intervengio do rei na esfera de governagao da Iereja. ‘A Universidade de Coimbra constituiu outra importante rampa de langa- mento. Numa primeira fase, até cerca de 1710, pelo exercicio das fungBes de reitor. Posteriormente, de modo cada vez. mais significativo, de 1750em te, pelo exercicio da docéncia. Entre 1536 ¢ 1710, 21 dos 33 reitores da Uni- versidade deixaram esse cargo para serem promovides a bispos e, ulterior- mente, outros dois mereceram igual distingao. Até ao reinado de D. Joo V, 6 tittlares do reitorado da Universidade tiveram em 64% dos casos uma mitra a sua espera. Significativamente, o perfodo em que esta passagem de reitor para bispo foi menos evidente ocorreu durante os reinados de Filipe II © Filipe III, em que apenas 4 de um total de 9 reitores chegaram a bispos. Sera {que a aversio dos Austria & excessiva concentragao de poderes nas mesmas dos também se verificou aqui? Por outro lado, parece que 0 aproveitamento de professores universitarios para as prelaturas foi relativamente tardio, por comparagaio com o ocorrido nia Monarquia Hispanica onde, desde o reinado de Filipe I, isso ¢ visive. Uma quinta rampa de acesso as prelaturas era a daqueles que serviam no interior das ordens religiosas, quer em fungdes de lideranga, quer em cargos ligados ao ensino, caminho esmagadoramente seguido pelos religiosos que receberam mitras. Ter sido lente, visitador, pregador, abade, prior, reitor de colégio, provincial ou principal, por vezes apés longas carreiras no interior de Luma religito, foi a porta de acesso as prelaturas, sobretudo ultramarinas, para 135 individuos, Por fim, a carreira na propria administragao e na justiga diocesanas, ainda {que em niimero limitado, foi também usada, Tenho noticia de 7 provisores, 11 vigarios gerais e 8 desembargadores, em varias dioceses. Note-se, todavia, que em raros casos esta via, isoladamente, permitiu 0 acesso de clérigos as prelaturas, pelo que se deve acentuar como ni era exclusivamente através de ‘um cursus honorun interno que mais comummente se acedia ao comando das dioceses. Além disso, este cursus honorum s6 muito tardiamente apareceu. Em bom rigor foi absolutamente excepcional antes do século XVII. S6 por essa altura se vai lentamente impondo a quem ganhara tarimba na prética das instancias da burocracia diocesana. Por norma, eram individuos de origem relativamente modesta socialmente, cuja progressao assentava na solidez da formagao académica ¢ no exercicio quotidiano do governo das dioceses. Pas- Sava 4 recrutar-se no interior da Igreja secular, e pelos méritos do seu labor ‘anterior nesse campo, as elites que nesse servigo mais se distinguiam. 0 modo como estas trajectérias se usaram € até se combinaram soften Iransformacoes a0 longo dos quase 300 anos que se estdo a contemplar. Para © caso especifico do consulado pombalino é exequivel uma caracterizagio ais rigorosa, que tem no bispo de Lamego (1770), Nicolau Joaquim Torel dda Cunha Manuel, um exemplo paradigmatico de carreira dominante. Princi- Piava-se, desde a meninice, pela aprendizagem dos saberes que abririam as Portas no futuro ao desempenho de certos cargos. O percurso dos estudos passava maioritariamente pela frequéncia da Universidade de Coimbra, com destaque para a obtengdo de graus em Direito Canénico. Depois, naturaimen- ‘te, a recepeao de ordens sacras que habilitassem os seus titulares ao exercicio de fungdes na Igreja, Quase todos recebiam ordens menores no decurso da adolescéncia ¢ as maiores a partir dos 25 anos, imediatamente apés terem concluido os seus estudos universitérios. Ulteriormente, iniciavam-se carrei- tas no interior de quatro areas, carreiras essas que raramente se sobrepunham: Inquisi¢ao (33%), ordens religiosas (25%), administragao diocesana (19%) e Universidade (8%), de onde alguns, em limitado nimero, foram ainda recru- tados para 0 servigo em 6rga0s de governo de criacdo pombalina, como foi 0 aso da Real Mesa Censéria, ou da Junta da Providéncia Literdria. Ao contra- rio do que sucedera no passado, de modo incisivo durante a governagao fili- Pina, foi infimo 0 contingente de pretados que ocuparam lugares de proa na administragdo central do Estado © da Justiga, A secularizagao do governo ‘temporal do Estado encetada por Pombal e a nitida separagao de competéncia centre o poder temporal e o espiritual passou também por aqui ‘Termino este ponto sobre as carreiras reportando-me & promogo dos bis- pos entre dioceses. Se bem que a maioria dos pretados fossem apenas providos uma vez, os cerca de 25% que tiveram varias nomeagaes (2, 3 ou 4 no maximo), seguiam Jum caminho onde é distinguivel uma hierarquia quaternaria das dioceses. s bispados nao tinham, de facto, idéntica importancia e significado. Essa hierarquia deriva directamente dos rendimentos e do prestigio que propicia- ‘Yam aos seus titulares. ‘Na base da pirdimide, as dioceses do padroado ultramarino. Nelas os bis- os recebiam uma céngrua paga directamente pelo rei, de valor modesto, en- ‘ne.08 mil-¢ os quatro mil cruzados por ano (com excepgao de Goa e Baia com Droventos mais elevados). As dignidades de algumas catedrais portuguesas (dello e chantre) recebiam mais do que estes bispos. E, sendo dioceses novas, no tinam habitualmente uma grande riqueza patrimonial que pudesse ajudar a compor as rendas dos seus titulares. Destas dioceses ultramarinas 36 muito Femotamente se era transferido para o continente (nfo considero aqui Angra e Funchal), pelo que nao eram uma via inicial para se poder vir a ter uma dio a. ccese melhor no futuro. Por outro lado, a circulagdo entre dioceses ultrama nas também era rara. Conhecem-se apenas alguns casos de passagen de bis- pos de Cochim ou Malaca para Goa e, no Brasil, de algumas dioceses de criagio mais recente para a Baia e 0 Rio de Janeiro. Depois as dioceses «menores»: Funchal, Angra, Leiria, Elvas, Portalegre € Miranda e as criadas no tempo do marqués de Pombal, Braganga, Penafiel, Pinhel, Castelo Branco e Beja. Estas eram dioceses de principio d> carrei para alguns, pois para aqui nunca se era promovido a nao ser vindo do ultra- mar. ‘As dioceses intermédias do Porto, Algarve, Guarda, Lamego e Viseu eram, por regra, destino final para sectores intermédios da aristocracia ou principios de carreira para os estratos da mais fina fidalguia. Por fim, as dioceses maiores, isto €, os trés arcebispados de Braga, Lisboa Evora, conjunto onde se deve integrar Coimbra (pelas rendas e pelo facto de rnenhum bispo de Coimbra ter saido promovido para uma maior, & excepy0 do Afonso Furtado de Mendonga — para Braga ~ ¢ Joo Manuel ~ para Lis- boa), onde sé chegavam alguns eleitos, ¢ na maior parte dos casos apés terem ‘ocupado pelo menos uma diocese antecedentemente, Dos 22 arcebispos de Braga, apenas 9 chegaram directamente a esse posto (4 eram da familia real), ‘dos 18 de Lisboa somente 7, dos 18 de Evora unicamente 6 e, por fim, dos 14 de Coimbra tio-s6 4, Eis aquilo que se me ofereceu compilar para, sinteticamente, tentar definir a elite de poder constituida pelos bispos portugueses. Bibliografia ALMEIDA, Fortunato de, Historia da fgreja em Portugal, Barcelos, Livearia Civi- lizagio Eaitora, 1968. 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Muito embora zrandes © senhores no poueas vezes se sobreponham ou oponham a0 reconhecimento directo da auctoritas teal. Governos concelhios marcados por uma imensa ‘Variedade nas jurisdigdes © nos costumes. Em tempos de D. Jodo ll houve a intengio de rever a diversidade dos instrumentos legais sobre que se apoia- ‘vam as organizagées municipais. O que vem a ocorrer durante 0 reinado de D. Manuel, com a revisio e a promulgagao dos forais novos, que mio pouca ‘confusdo introduziram na fiscalidade que se the seguit, e que foi uma indis- ccutivel afirmagdo da superioridade politica do rei, mas que nada alterou nas formas de governagao local Desde 1391 que a escolha dos oficiais concelhios fora objecto de uma me- fda geral que implicava que se fizesse a relagio dos homens-bons fara tirar & sorte anualmente os nomes daqueles que deviam servir no governo da comu- niidadle, Foi a ordenagdio dos pelouras, que serd incorporada nas Ordenagdes do Reino, em T447. A verdadeira reforma nas relagées do rei com os conce- thos do Reino contém-se um tanto nas Ordenagdes — logo nas Afonsinas — e * Professor da Faculdade de Bconomia da Universidade de Coimbra, sobretuslo depois no Regimento dos oficiais das cidades, vilas e lugares des- tes reinos, de 1504. Era o rei procurando impor regras aos que deviam admi- nistrar o terit6rio. Regras gerais. Contudo, sera nas Ordenagdes Manuelinas (1512-1514 e 1521) que melhor se descrevem as fungées e limitagbes dos mandatos municipais, Sem que a tiragem a sorte tenha deixado de figurar como procedimento da escolha dos oficiais locais. Procurava-se encontrar formas de governo que fossem ~ sendo as mesmas ~ pelo menos aproximadas de um modelo que se pretendia geral (© que levara algum tempo a coneretizar. Ainda em 1524 a organizagao muni- cipal de Ponta Delgada estava entregue a seis homens-bons, afastada do para- digma geral de juizes, vereadores e procurador do concelho. ‘A ordenagio dos pelouros implicava uma consideragaio de igualdade poli- tica para todos os que deles constassem. Assim se afirmava a existéncia de uma elite governativa local. Com nivelamento politico de todos os que eram ‘ou podiam ser investidos nas mesmas fungées. Todavia, a vigéncia das Orde rages no impedia préticas diferenciadas. E 0 caso do Porto, em que em 1500, e depois ~ de 1518 a 1533 — pelo menos, 0 rei procede it nomeagaio dos vereadores, escolhendo os nomeados pela pauta elaborada localmente, Nos fins do século XV-principios do século XVI ainda se pode constatar uma certa abertura dando para a ascensio a lugares nos governos locais. ‘A expansio, com a mobilidade territorial que implicou, deixava vazios que tinham de ser ocupados. As expectativas eram consideraveis. Ainda mercado- res enriquecidos aparecem nas vereagées, ainda cristos-novos participam nos ‘rgiios municipais. As assembleias de vizinhos ainda se reiinem quando se trata de decidir alguma coisa que interessa a0 colectivo da populagdo. Pessoas importantes e humildes mesteirais dizem das suas razBes: encontram-se lado a lado comendadores, fidalgos, escudeiros © cidadios com simples oficiais meciinicos. O colectivo nfo exclui mais que 0s pobres. Esses no tém voz. Nem, pelo critério dos tempos, sdo sequer cidaddios. A cidadania exprime-se pela capacidade de participar nas decisdes colectivas. Em 1572 a vereagio de Lisboa passa a ser nomeada, o presidente € um fidalgo ¢ os vereadores serdo magistrados. Dava-se-Ihe assim uma estabili dee um acrescido dominio dos negécios concelhios indispenséveis & perma- néncia da corte na cidade. Com tudo 0 que isto implicava de abastecimentos © de fiscalizagdo da vida material da populagio, ¢ porque a realeza queria ter nos governs locais gente de confianga para a execuca0 das suas politicas Eo mesmo, embora de outra forma, vai ocorrer mais tarde no resto do Pais. ‘A realeza nao dispunha de meios para proceder a nomeagGes para toda a par- te, mas vai aprovar e interferir nas escolhas locais, o que exigia 0 reconheci- mento pela realeza de grupos sociais prestigiados em que confiar. Em contra- partida desse reconhecimento régio das oligarquias locais ocorre um reforeo dos poderes municipais 4 escala local. Vida econémica, questdes de abaste- cimento, recrutamento militar, defesa sanitéria e parte das imposigdes fiscais, ou vilo sendo atribuigdes que saem reforgadas, ou so de novo delezadas nos ‘municipios ou mesmo para eles transferidas. Onde a gente nobre da pover- rhanga, ciosa dos seus lugares e fungGes, das suas reconhecidas hontas se ins- tala Apesar de as Ordenagdes Filipinas (1603) no terem alterado o processo eleitoral, a verdade € que logo em 1605 comegou a proceder-se ~ provavel- mente apenas em algumas cidades e vilas — a um diferente modo de escolha. Talvez a instabilidade que se viveu nos Agores em 1582-1583 tenha alertado para a necessiria mudanga. Logo em 1611 terd o novo procedimento, de apu- ramento das pautas ¢ nomeagao central dos oficiais, sido aplicado =m terras de senhorio, O que parece é que anteriormente ao Regimento de 8 de Janeiro de 1670 ja cra geral que em cidades e vilas mais importantes as nomeagoes de Juizes, vereadores © procuradores do concelho fossem enviadas de Lisboa Pertencer a gente nobre da governanga das terras implicava constar dessas Pautas dos elegiveis para a vereagdo, ser inscrito no «rol da nobreza» ou «ar- ruamento da nobreza». Esta gente nobre da governanga das terras continua a nao se confundit com a fidalguia que Ihe fica acima, nem com os cidadaos que ocupam lugares mais baixos nas cdmaras, nomeadamente 0s lugares de procurador ou de te- soureiro do concelho. Mas é do grupo dos cidadaos que é originaria, embora dele consiza destacar-se, E tudo fard para que essa nobilitagio semantica cor- responda a uma realidade social conereta, Distingdo pelos lugares ccupados, pelos oficios desempenhados, pelas aliangas familiares, sobretudo pelo modo de vida «a lei da nobrezan. Embora ja no século XVII essa formagao social & bem captada por Rafael Bluteau: «Entre os mechanicos, & os nobres ha hum classe de gente que niio péde chamarse verdadeiramente nobre, por to haver nella a nobreza Politica, ou Civil, nem a hereditaria, nem podem chamarse rigurosamente mechanicos, por se differengar dos que o so.» Era uma reali- dade de facto, reconhecida nas vilas e cidades, em que se distinguian «pello trato da pessoa, andando com cavallo, & servindose com eriados». «Fazem hhuma cathegoria, ou ordem distinta a que chamamos Estado do meyo. € worio de huma quasi nobreza.» E assim era, que nunca a consideragdo pela gente nobre da governanga das terras se plasmou em nobreza hereditria, como tal considerada pela corte, Tratava-se de agrupamentos sociais que se entendiam apenas no quadro concelhio. A potestade local mostra-se em paiblico, «em corpon, como colectivo que governa, Juizes e vereadores apresentam-se com as varas nas miios. Simbolos 4que foram vermelhos ou dourados, conforme os usos das terras. Tém de com- Parecer em procissdes, aclamagdes, quebra dos escudos, festejos e ce-imdnias para que so convocados, pelo que auferem propinas em dinheiro ou em gé- nneros, quantitatives que, se nao tivessem importincia como rendimento, a0 menos prestigiavam quem os recebia. Este aparecer e parecer é fundamental para a definigao de uma posigdo social que se afirma e que se respeita, E indigpensivel exercer certos cargos. Nenhum interessado deixava de fazer saber que sempre tinha sido conhecido por homem nobre e como tal governa- faa tetra, como juiz e vereador, «que S80 05 oficios principais e honrados». Nao exercer esses lugares por privilégio especial ainda acrescentava honta. Significava estar acima dos demais, também honrados, mas que tinham de exereer os cargos para que eram escolhidos. ‘A relativa porosidade social vai-se fechando ao longo do século XVI. O grt po dos elegiveis restringe-se aos cidadaos das terras ou aos que se consideram ainda acima deles. Separam-se os cidadios do povo. Em 1573, em Coimbra, ja se distinguem fidalgos, cavaleiros e cidadaos dos homens do povo. Em 1575, no Porto, surgem distintos «nobres, cidadios ¢ mercadores» ou «fidal- 1208 € cidadios», de um lado, 0 povo de outro. Os cidadaos giram pelos off- cis do concelho e sio ditos «cidadaos e pessoas da governangan, Em Brass, ‘em 1580, referem-se os «cidadios que costumam andar no Regimenton. Tra- ta-se, decerto, de uma camada de cidaddos que se encontra instalaca no poder ‘municipal. Que consta dos pelouros de onde sto sorteados 0s oficiais conce- Ihios. Continuando, ou acrescentando, as honras. Por volta de 1570, na cidade do Porto, «as honras de que se os homens mais preziio consistem em serem vvereadores, levarem tochas no dia do Corpo de Deus, levarem as varas do pilio nas procissdes, serem eleitores e guardas-mores. E a necessiria exibi¢20 do exercicio politica e de pertenga ao grupo localmente dominante. A desig- nagio do novo grupo acompanha a distingio social que se torna visivel Nobre e nobreza surgem como substantivo colectivo quando até entdo eran apenas adjectivo qualificativo, Nao se sabe de quando datar essa inovagio, mas parece jé estar adoptada em finais do século XVI. Em 1600, em Loulé luma provisio régia determina que os almotacés «fossem os mais nobres da {governanga e onrrados», «pessoas nobres ¢ do governo da terra rycos ¢ abas- tados». Ricos e abastados, que nfo podiam ser mercadores, ou pelo menos serem mercadores de tenda. Supunha-se que a riqueza proviesse de rendimentos fundidrios ou de ingressos que ndo implicassem trabalho manual. O que so- freria variantes, consoante as terras. Mas em geral no se afastariam desse padrlio, Aos mercadores € aos oficiais mecinicos estavam reservadas essas Actividades produtivas. ‘A reforgar ainda a superiorizagdo alcangada junta-se a aplicagio das leis de 1569 ¢ de 1570 relativas as ordenangas militares. As cmaras compete jpreencher os lugares de capities que conferem privilégio de eavaleiros, posto {que 0 nao sejam. E as cémaras naturalmente nomeavam gente da sua confianga, {que eram os que andavam na governanga. E abundardo os capities-vereadores. Honra e proveito, pois que thes caberia a escolha dos recrutados para as tro- pas de linha. Sem esquecer porte das insignias — as bengalas — que muito prestigiavam quem as trazia, Estas eram por vezes mais estimadas do que as varas dos vereadores. Talvez porque 0 tempo de exercicio se no esgotava no ciclo anual de pertenga a governagdo. (Os nobres da governanga da terra aproximam-se da fidalguia, sem contudlo nea se fundirem ou sequer se confunditem. E no apenas nos gove-nos con- celhios, onde podem coabitar. Em 1614, em Tavira, 0 juiz do Hospital do Es- pirito Santo tinha de ser fidalgo; 0 mordomo e o escrivao saiam das pessoas nobres e da governanga da cidade. Por todo o reino a distingao £ visivel. Mesmo na corte, e aquando do langamento das décimas, em 1641, vm indi- cados 0s varios estratos, vendo-se nomeados «um fidalgo, um homem nobre, ‘outro de negécio, outro do povo» (oficial mecénico). © homem nobre ¢, afi- nal, 0 antigo homem do meio e cidadao, mas que ascendeu a uma espécie de melhor posiglo em relag2o aos seus pares. Que a linguagem e o preciosismo social do barroco diferenciam, ¢ enobrecem do mesmo passo. E esta camada de nobres que, a par com alguma fidalgui, se instala nos governos concelhios de relevo, que por completo vai dominar. Mutagdes de linguagem, que acrescem ao enobrecimento que se quer paral Compostes de «homens de capa e espaday, elevados a uma superior conside- ragio pelas honras alcangadas. Nobreza urbana que no exercicio de honrosos cargos locais encontra prestigio e reputagdo. Valores que se vao instalar com | significado comum para os grupos locais, em especial pelo que se designa, viver a lei da nobreza, o que implicava nao trabalhar com as mos, nao rat descendente de oficial mecéinico, ter criadagem e (por vezes) escravos. Dispor) de cavalo e ter armas também era de consideragao. / Esta gente nobre da governanga das terras, que assim comesiria a ser designada por volta de 1570, procura restingir © niimero dos que a ela per- tencem. Ha uma forte presso interna no sentido de se constituir una olig ‘quia coesa, assente em relagdes de parentesco préximo de endogamicas, Bem edo se revela que quase todos sfo parentes, mais ou menos chegados. O que convém a realeza, que assim passa a dispor nas terras principais — as que ver- dadeiraente nteressavam ~ de gente pronta ao servigo da sua autordade, res- peitadora e facilmente controivel. Por isso a legislago de incios do século XVII contempla que jufzes e vereadores devem ser filhos e netos de juizes © Yereadores. Reservava-se 0 exervicio de poderes que interessavam ao rei a camadas sociaisassinalvels, dotadas de sentido de honta e vivendo a lei da nobreza, que se satisizia com a aproximagdo a prvilégios dos estrates superio- res da aristocracia — nomeadamente penais. Na mentalidade politica do tempo, temtendia-se que «sempre 0s mais nobres devem prefeit porque do contaro se seguem muitos absurdos e perda de respeito de justiga como ha pouco tempo sucede a dois almotacés, a quem descompuzeram e espancaram por serem pessoas de menos esphera, © que nto sucederia se fOssem nobres, porque a vileza das pessoas que exercem officios, faz que se no tenha menos respe 20 que mandam, se thes desobedega com mais facilidaden. Mesmo nas igdes. AS vereagSes passam também a ser designadas por senados. Jey Ve Roy honra- quardas da saiide se entendia que era preciso monti-las com os m: dos, O'que pressupunha que seriam melhor obedecidos. A via de entrada para o grupo sem ser por parentela, a obtengao de reco- ‘nhecimento da ascensdo social, teria de iniciar-se por cooptagao dos instala- "das, € passava pela escolha para almotacé. Que pela lei deveriam ser os off éiais do ano anterior, completados pelos escolhidos pela vereagao em funges, A escolha para almotacé nao elevava s6 por si a nobreza municipal. Mas era um passo quase sempre indispensével para passar a fazer parte dessa camada dirigente. Ascensiio que podia gorar-se, que podia nao ter consequéncias, 0 ‘que a muitos aconteceu. Porque s6 0 reconhecimento geral de alguém ser merecedor de honras permite a instalagiio nos grupos sociais superiores das, localidades. Em que se enquistavam oligarquias sob olhar benevolente & ‘eimplice do monarca, que com elas contava para mediatizar 0 cumprimento ddas decisdes com aplicagdo geral, e que s6 pelos municipios tinha uma rede de comando que assegurava a obediéncia as suas determinagdes. Instalacdo que nas mais importantes cidades ¢ vilas do reino vai exercer luma forte pressio sobre os estratos superiores da sociedade. Fidalguia e gente nobre nao se confundirdo. Nao poucas vezes se aproximam e colaboram. Mas também entre os dois grupos se gerardo conflitos e se exprimirdo concorrén- cias. Assim ocorreu em Coimbra, nos anos de 1725 a 1739. Foi entio por ve- es dificil conseguir compor a vereagao, que os fidalgos abandonavam. Para conseguirem retoma-la 6 para si em exclusivo a partir de 1739. Arredando a gente nobre com quem tinham emparceirado em aparente boa convivéncia. Em Guimardes, em 1768 ha sinais de agudo conflito, pois que os instalados pretence impedir a abertura do grupo a quem consideram que se encontra ‘num nivel socialmente inferior — embora também de nobres da governanga ou que a ela aspiravam, Confrontos locais, talvez, mas que a restrigao numérica dos que tinham qualidade e condigao para ocupar os lugares de oficiais acabou [Por provocar um pouco por toda a parte, mesmo que a solugao politica tenha variado, Sempre se ouvem queixas quando os magistrados régios procuram uma renovayao dos elegiveis. Sempre os que ja esto instalados acham que os recém-entrados niio merecem igualé-los e que essa penetragio os desonta. ‘Ao longo do século XVul, € numa cronologia varidvel. parece haver uma forte reducao do nimero dos que tém qualidade e condigo para o exercicio do poderes municipais. Por efeito da propria concentragio endogémica, por feito da emigragao para o Brasil - 0 que é invocado em lei. Apesar disso n&o parece que seja comum serem os nobres da governanga a refrescarem os seus efectivos. Muitas vezes ocorre serem os corregedores que acrescentam nomes 48 ris para que o Desembargo do Pago tenha maior amplitude de escolha, 0 que causa fortes comogdes nos anteriormente instalados. Porque nos cidadtios promovidos apareciam mecénicas ainda frescas ou mesmo muito recentes, 0 ‘que ia contra a estabilizagao pretendida. O que tinha efeitos perversos, provo- ceando a inapeténcia pelas posigdes politicas de ha muito ocupadas. 6 no ambito municipal encontramos © grupo da gente nobre da gover rhanga e nao se deparam nele manifestagdes de expectativas de ascensio social Ao contrario da fidalguia, cujo estatuto é sempre 0 mesmo no todo do reino, que sempre procura uma afirmagdo de si, a gente nobre quando muito almeja- ri ombrear com a fidalguia na ocupagdo dos lugares da governanga, Lutari por esses lugares quando sente que ha tentativas de afastamento, mas ndo pre- tenderd assumir-se como um escalio mais da aristocracia a eseala do reino. Se individualmente ha os que procuram uma elevarao — nomeadamence através do acesso as ordens militares, da constituigao de vinculos e da obrengao de ‘graus académicos — 0s grupos constituidos, enquanto tais, nada fario para ascender para além do patamar em que se encontram. Nao se atestan tentati- vvas de confusio com os fidalgos. Conheciam-se as regras € as praticas sociais, € politicas que impediam a formagao de tais projectos. ‘A gente nobre acomodava-se com a superioridade conseguida sobre os simples cidadaos dos concethos, cidados que eram mantidos & margem dos ‘governos ~ salvo se interessasse agregi-los numa qualquer decisto, o que seri cada vez menos preciso. Bastava-Ihes a exibigdo que a pertenca a gente da governanga permitia e os beneficios honrosos e proveitosos que pelo exerci- Cio politico podiam alcangar. E os privilégios que com isso vinhara, nom damente a sua exclusio de penas infamantes. Neles se enquista, neles se reproduz e se mantém, Os limites de actuagao da gente nobre da governanga das terras estavam consignados nas leis e isso bastava para a conter. Na con- solidago de um modo de vida a lei da nobreza, no exercicio do poder polit local Maria Fernanda Baptista Bicalho’ Capitulo IV Elites coloniais: a nobreza da terra ¢ 0 governo das conquistas. Histéria e historiografia Este artigo pretende discutir e problematizar o significado do temo elites num contexto colonial da Epoca Moderna, e, portanto, marcado pelo mercan- tilismo. Por outras palavras, em uma coldnia — ou conguista — cujo sentido era comercial e a sociedade escravista. Contexto singular, que produziu persona~ tgens especificas em relagao ao contetido e a experiéncia das elites que vive~ ram e se constituiram no cenério europeu de Antigo Regime, como em Portu- gal. Neste, as elites eram formadas, sobretudo, por membros das casas nobres, “que tinham no sangue, na ascendéncia e na casa, sua melhor identficagao!. Certamente. também em Portugal pode-se decompor 0 termo ou o conceito de elites, ao tratarmos das elites mercantis?, ou das elites administrativas, cons- Aituidas por nobres, por eclesidsticos* e por letrados®. Pode-se, ainda, pensar * Universidade Pederal Fluminense. " Gf Nuno Gangalo Monteito, «As elites nobilidrquicas em Portugal na Epoca Moder °C Jonge Pedteita, «Elites mercantis, Ponto da situagao histoiogriticas, ¢ Leonor Freire Costa, «Elites mercantis do século xvi ¢ a Restauragao: novas proposts de anil * Cf, Mafalda Soares da Cunha, «Os governadores cofoniais do Atkintie> portugues {sbeulos Xviexvit)». "Ch tose Pedro Paiva, «Definir uma elite de poder: os bispos em Portugal, 1495- I, «Os desembargadores em Portugal, 1640-18200 1 uma elite camariria, concethia, em uma nobreza da terra, ou nobreza civil ‘¢ politica encarregada da governanga das localidades’. ‘No outro lado do Atlintico, na América portuguesa, produto de relagdes tnercantis e escravistas, as elites ganharo um outro sentido. Podemos concei- Aui-las a partir de um eritério econémico, de acordo com 0 qual as elites colo- seriam os segmentos que mais riquezas teriam acumulado. Certamente 0 ‘actimulo de riquezas € garantia de status e de poder na sociedade colonial? ‘Como escrevera Antonil, «o ser senhor de engenho ¢ titulo a que muitos aspi- tam, porque traz consigo 0 ser servido, obedecido e respeitado de muitos. EE se for, qual deve ser, homem de cabedal governo, bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho, quanto proporcionadamente se estimam os titulos entre 05 fidalgos do Reino.» No entanto, a constituigdo das elites no ultramar passava pelo servigo do. Fei, ndo to diferente do que ocorria também em Portugal. Nesse sentido, a Conquista e a defesa da terra, o servigo do rei, a ocupagao de cargos adminis- trativos e as mereés régias recebidas em retribuigdo aos servigos prestados podem aqui ser evocados como critérios dé formagao e de definigdo das elites coloniais, Porém, o que a situagao e a experiéncia coloniais tinham de espe fIG0 era o facto de suas elites serem escravistas.) Tratar desse tema na América portuguesa dos séculos XVI ao XVIII niio & tarefa ficil. SO muito recentemente as elites vém sendo objeto de estudos mais pormenorizados por parte dos historiadores brasileiros, Esse artigo se propde tecer uma leitura da historiografia sobre o Brasil colonial que incorpo- rou e desenvolveu a discussao sobre o lugar e o papel das elites coloniais Iniciarei pelas andlises sistémicas, estruturais, de cunho marxista, que se inspiraram no sentido da colonizaedo, proposto por Caio Prado Jinior, no ivro Formacdo do Brasil Contempordneo, cuja primeira edigio & de 1942, ¢ que se consttui, ainda hoje, em uma das obras referencias ou classieas no seio da historiografia brasileira. Segundo esse autor, a expansio portuguesa, assim como a colonizagio do Novo Mundo ter-se-iam dado fundamentalmen- te por motivagdes de cariter econémico, apresentando-se enquanto una de- corréncia do desenvolvimento comercial europeu. Dentro desse contexto a colonizagio do Brasil teria como, objetivo precipuo atender aos interesses mercantis da metrSpole portuguesa’, livro de Fernando Novais, Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), aprofunda esta interpretagio e 0 proprio conceito de ‘CF Joaquim Romero Magalhes, «Os nobres da governanga das terrasy. Cr. Jodo Fragoso, «Algumas historias dos homens de negdcios do Rio de Janeiro: sé- ‘ul xvi princpios do séeulo xix». ‘André Joao Antoni, Cultura e Opuléncia no Brasil por Suas Drogas e Minas, intro \dugio e comentario critico por Andrée Mansuy Diniz Silva Lisboa, CNCDP, 2001, p70 Caio Prado Jinior, «© sentido da Colonizagao», in Formagdo do Brasil Contempo ‘rinco, 132 edigio, Sto Paulo, Editora Brasiliense, 1977, ‘pacto colonial, ja formulado por Caio Prado. Este conceito fundamenta-se na pritica do exclusivo metropolitano, ou monopélio colonial, mecanismo essencial de explicago da relagio de dependéncia e de subordinagio da col nia & metrOpole, de favorecimento dos grupos de comerciantes reindis no processo de acumulaedo primitiva de capital que marcou a economia merca- tilista dos Estados europeus nos Tempos Modernos, Tal mecanismo, a0 con- ferir sentido a0 processo de colonizaga0, apresenta-se enquanto chave de entendimento do antigo sistema colonial que, em termos politicos, fandava-s nas relagdes entre «dois elementos: um centro de decisio (metrdpole) e outro (colénia) subordinadon" Segundo o autor, «a estruturagdo das atividades econdmicas coloniais, bem como a formagao social a que servem de base, definem-se nas linhas de forga do sistema colonial mercantilista, isto é, nas suas conexdes com 0 capi- talismo comercial. [..] ndo s6 a concentrago dos fatores produtivos no fabrico ‘das mercadorias-chave, nem apenas o volume e o ritmo em que eram produ- zidas, mas também 0 proprio modo de produgdo definem-se nos mecanismos do sistema colonial. [..] Ora, isto obrigava as economias coloniais a se orga- nizarem de molde a permitir 0 funcionamento do sistema de exploraga0 colo- rial, o que impunha a adogao de formas de trabalho compulsérias ou na sua forma limite, 0 escravismo.»'' Afeito & légica do sistema, o trifico negreiro abria um novo e importante setor do comércio colonial. Novais inova ao afirmar que «é a partir do trdfico negreiro que se pode entender a eseravidao africana colonial, ¢ nao 0 contration” ‘Também afeito a uma viséo estrutural ¢ marxista, embora estebelecendo tum recorte imperial e atldntico, uma das contribuigdes do livro O Trato dos Viventes. Formagéo do Brasil no Atlantico Sul, de Luiz Felipe de Alencastro consiste numa nova abordagem do pacto colonial, estabelecido en:te 0 colo- rato brasilico € a Coroa portuguesa. Sua analise desloca 0 eixo de interpreta- ‘¢ho do sistema colonial do bindmio colénia/metrSpole, Brasil/Portwzal, para 0 Altlantico-Sul, «espago econémico e social bipolar, englobando uma zona de produgao escravista situada no litoral da América do Sul e uma zona de re- produgao de escravos centrada em Angola». Seu intuito & demonstrar «como ‘essas duas partes unidas pelo oceano se completam num s6 sistemre de explo- ragao colonials" Uma das contribuigdes do livro de Alencastro baseia-se no argumento de {que a colonizagao nao surge acabada, tendo, ao contrério, decorride de mil plos aprendizados. O autor afirma que «a presenga de colonos num territério " Femando Novais. Portugal e Bras na Crise do Amigo Sistema Colonial. (1777- {m8 Sto Paulo, Hucitee, 1979, p. 62 "der, pp. 97-58 © dean biden. p10. © Liz Felipe de Aleneasto, O Trato das Viventes. Formagao do Brat! wo Aintice Sul, Sio Paulo, Companhia das Letras, 2000, 9.9. ke ‘mo assegura a exploragio econdmica do mesmo territorion. S6 a partir do momento em que «os colonos compreendem que o aprendizado da coloniza- ‘glo seve coincidir com o aprendizade do mercado [...] podem se coordenar ¢ _ Gompletar a dominagao colonial e a exploragao colonial»''. Sua tese consiste " Hiargumento de que o trafico atléntico de africanos «modifica de maneira coniraditéria o sistema colonial. Desde o século XVI interesses luso-brasileiros fu, melhor dizendo, brasilicos [..] cristalizam-se nas reas escravistas sul- samericanas € nos portos afticanos de trato. Em contraponto ao intercmbio direto das conquistas com a Metrépole, carreiras bilaterais vinculam direta- mente o Brasil & Africa Ocidental.» Tal argumento o leva aafirmar que, «re lizando a reprodugdo da produgdo colonial, 0 trifico negreiro se apresenta ‘como um instrumento da alavancagem do Império do Ocidente, Pouca a pou- £0 essa atividade transcend o quadro econémico para se incorporar ao arse- nal_politico metropolitano.» Portanto, «0 exercicio do poder imperial no Atlintico [...] equaciona-se no ambito do trifico negreiro». Responsével pela {ransmutagdo da escravidio em escravismo, o trifico negreiro, segundo Alen castro, nao se reduz ao comércio de negros: «De consequléneias decisivas, na formagdo historica brasileira, 0 trafico extrapola o registro das operagtes de compra, transporte e venda de africanos para moldar 0 conjunto da economia, dda demografia, da sociedade e da politica da América portuguesa.»'® Sezuindo a mesma chave interpretativa de Fernando Novas, embora em estudo que tem como objetivo analisar a constituigdo do Estado imperial brasi- Jeiro no século Xtx, lImar R. de Mattos prope uma anilise do relacionamento entre 05 agentes da colonizagéo, sobre a qual se bascou a intcligibilidade de {oda uma geragao de historiadores acerca dos distintos segmentos que compu wham a sociedade colonial. Segundo o autor, na face metropolitana da moeda colonial, «© monopdlio produzia 0 colonizador; este 0 reproduzia, ao ditar a politica colonial que visava a assegurar a transferéncia da renda para a Mett6- pole». Colonizadores eram todos aqueles elementos ligados i esfera administia- iva leigos e eclesidsticos. Eram também, e, sobretudo, os comerciantes, espe- Imente os negociantes de grosso tro ou homens de negocio. 'Na face colonial, marcada por sua configuraglo regional, surgia 0 colon «pois se a colonizagao 6, antes de tudo, a montage de uma estrutura de pro- dugdo, 0 colono aparece como o primeiro produto da produgio colonial, o agente gerador de uma opuléncia». O eolono é, assim, o proprietiio colonial, faquele que detinha © monopélio da méo-de-obra, de terras e dos meios de trabalho. Ambos colonizadores e colonos detinham, portanto, monopélios especificos. O compromisso entre eles, baseado numa relagdo assimétrica, fundava o pacio colonial. Esses dois agentes da colonizagdo distinguiam-se fa visio do autor, dos colonizados, Estes «sofrem a exclusio que a existéncia Idem, pp. 19 622. tem, ibidem. pp. 28.29, ‘do monopélio supde», identificando-se com a «vasta gama constituida tanto pelos escravos ~ ‘a Guiné’ ou nativos ~ quanto pelos agrezados, quer pelos homens que servem a outros por soldada’, quer pelos indios bravos>"*, Embora Mattos defina as elites coloniais — colonizadores colonos ~ em fungao de sua posigdo enquanto um desdobramento do monopolio, cixo estru- tural do sistema, alga-os & posigao de sujeitos e protagonistas do picto colo- nial: «A. relagio metrépole-colénia, no momento considerado, funda-se no ppacto colonial, ou seja, no compromisso reciproco das partes, embora em proporgdes desiguais. Deste modo, 0 colono esta obrigado ao cumprimento do monopélio que distingue 0 colonizador, ha muito o sabemos; o coloniza- dor, por seu tumo, esta obrigado a resguardar 0 monopdlio do proprietirio, fato nem sempre evidenciado pela historiografia.»'” Ao compreender 0s colo- ‘nos enquanto agentes ativos do process colonizador, confere maicr comple- idade as relagdes econdmicas e politicas estabelecidas entre 0s dois polos Cconstituintes do pacto colonial. Este deixa de ser estabelecido entre a metré- pole enquanto centro de decisdo, e a colénia enquanto elemento subordinado, passando a resultar de um compromisso recfproco, embora assimético, entre as partes de um todo consensual dindmico. Embora rompendo com a visio do monopélio entre metropole ¢ colénia'* tenquanto eixo que confere dinémica ao sistema, Alencastro tambeéim recupera © colonato brasilico como suieito, agente modificador das determinagdes legais e exclusivistas emanadas da metrépole. Se assim é em termos econd- 0 mesmo pode-se dizer em termos politicos. Analisando a reconquista de Angola em 1648 dos Holandeses, protagonizada em larga escale por |uso- -fluminenses provenientes do Rio de Janeiro, remete-se a constituicdo de um novo pacto politico entre a Corte € os guerreiros ultramarinos. A tentativa de conceituago desse novo pacto politico tem sido um dos ‘elementos marcantes, nos iltimos anos, de um conjunto significative de tra- balhos da historiografia brasileira. Alguns deles tém como objeto o imag Fio politico no qual se baseava o sentimento de pertenca dos colones ~ enten- didos enquanto stiditos © vassalos ultramarinos — & monarquia portuguesa. "© tImar R. de Mattos, «A moeda colonials, in O Tempo Saguarema, Sto Paulo, H tee, 1987, pp. 26-27. adem. p27, " @No steulo XVI, quando as estasticas passam a ser mais acuradas. se veri ‘dos navios entrados no porto de Luanda vinham da Metropole. Todo 0 resto 0 para Angola ~ muitas vezes earregando mercadorias brasileras (mandioea, tachiaga, ele.) € no europsias (tecidos asidticos)~ saia do Rio de Janeiro, da Bahia e do Recife. De Salvador zarpavam tambgm os barcos com 0 tabaco baiano, que dominava 0 frato da Costa da Mina. Eseusado dizer que uma pereentagerm maior ainda desses barcos vyoltava direto para olitoralbrasleto ..] Resultam dois fuxos de troca bilateais que no correspondem a continuidade mercantil e maritima do alegado *comércio tiangular” ~ ‘unindo os portos eurapeus & Africa e as eoldnias antthanas e nrte-americanasy, cf. Alen ast, op. cit, pp. 28-29. Basta naya perspectiva historiogrfica, que apresenta um deslocamento inter- ivo e conceitual em relagdo aos termos coldnia ¢ colonos", tem nos \dos de Evaldo Cabral de Mello seu ponto de inflexao e de renovacao. Em Ruhro Veio, Mello analisa as representagdes dos pernambucanos a0 fei, pedindo-Ihe honras, mereés e cargos em troca de sew empenho na recon- duista da capitania © na expulsio dos Holandeses, «a custa de nosso sangue, | vidas e fazendas»*”. O imaginario politico que deu corpo a esse discurso fun- dava-se, segundo o autor, numa concepgo contratual ou pacticia que no era estranha a teoria do direito ibérico no Antigo Regime". Em contrapartida a demonstragdes de empenho e vassalagem na manutengao € na defesa dos ter- "Em artigo que propde a substituigdo do termo ou concsito de colono pelo de vassalo para caracterizar a elites coloniis, Gabriel Almeida Frazdo afirma que «a discussdo acer~ ‘ct do terme vassalo, recorrente na documentagto sobre 0 periodo colonial, tomavse de Fundamental importéncia para a compreensto dos mecanismos que fundamentavam 0 sen- timento de pertencimento dos habitantes, ou siditesultramarinos, e do proprio imag politica que integrava esta complexa rede sobre a qual se estaheleca o immpério portupués». Sols as eierentes proposigdes tedricas da historiogratia acerea da utilizagao dos mesmos onecitos, 0 autor conelui: wconsideramos que elas tim como grande mérito 0 fto de te ean trazio [..] tona novamente o conceito de pacto-colonial evigorado, que no mais ‘se restringiria somente ais relagbes econémicas, mas abrangeria também vs aspectos po 9s auministrativos, [J Acreditamos que a utilizagao do conceito de vassalo pode conti- bir para essa nova concepgao do pacto colonial, que possa dialogar com a prépria nogio torporativa de sociedade presente em Portugal, ¢, consecutivamente, no império portu= faves. Nog esta que também incorporatia as prOprias relaivizagdes no tocante ao poder ‘cabsolutistan, principalmente com relagdo & constante pritica da negocingao [| Deste nud, © pacto agora pode ser compreendido enquanto algo préximo a um contato onde fpodems visualizar com maior clarcza os direitos e os deveres das partes que o integram. [E-Ltendemos 2 coneluir que a eoncepgio de colono enquanto agente passivo de proceso Ucisirio do periodo colonial, visio concebida por modelos dicotimicos que enfatizam subordinagio, deve ser revista através de andlises que, utilizando-se sei do termo — do do gonecito tradicional ~ colono, seja do termo vassala, concebam os habitantes do Brasil Some ‘sivlitos de Sun Majestade" detentores de voz ativa no procesio colonizadors. cf Gabriel Almeida Frazao, «Colonos ou Vassalos? Novas perspectivas para a anilise ct ‘Felago Lrasil-Portugal aos quadros do Império Atléntico Portuguds», artigo inédito, valde Cabral de Mello, Rubro Veio. O Imaginério da Resteuracdo Pernambucana, Rio de Jancito. Tophooks. 1997. pp. 105-152. 2" Em Rubro Veo, o autor afirma: ada restauragao [de Peambuco ¢ expulsio dos ho landeses} alcangada “a custa de nosso sangue, vidas € fazendss’, tirava-se 0 corolitio da ‘esténcia de um pacto entre a Coroa e a ‘nobreza da tera’, o qual teria estabelecido em favor desta um tratamento preferencial, um estatuto juridico privilegiado. um espago de Franquias. que a pusera a0 abrigo das inferencias renéis,legitimando sua hegemonia sobre ‘os demais strats sociais da eapitani, em especial, sobre 0 comércio portugués nela est. Ielecido», idem. p. 127. Em A Fronda dos Mazombos,retomande a questio, esereve que ‘essa nog2o contratuatista nada tinha de novidade térica nem de conteddo revolucionstio, [prendend-se as entao arcaieas concepgdes constitucionals do escolasticismo tardion, ef Fe. de Mello, 4 Fronda dos Mazombas. Nobres contra Mascates. Pernambuco, 1666- 1715, Sto Paulo. Companhia das Letras, 1995, p. 139. ritérios ultramarinos, os naturais de Pernambuco reivindicavam para si uma série de distingdes e um acesso privilegiado ao governo das conquistas. Ao retribuir os feitos de seus vassalos, a Coroa reafirmava o pacto politico que Lunia 0s stiditos ~ reindis e ultramarinos ~a si prépria. A partir desses valores, nogdes e priticas tipicas do Antigo Regime, os Pernambucanos ~ assim como ‘5 Paulistas, os Fluminenses, os Mineiros e os naturais das diversas capitanias do Brasil ~ dispunham suas vidas e fazendas em prol de uma causa que no cera apenas sua ou dos grupos que representavam; tornando-se, enquanto vas- salos do rei de Portugal, agentes da construgdo da soberania lusa nc Atlantic Sul, A trajet6ria que pretendo, inicialmente, tragar aqui é a do deslocamento tedrico ¢ conceitual entre o que a historiografia brasileira de cunho marxista classiticou de colono ou colonato, e 0 que uma outa vertente da historiogra- fia, que privilegia o imaginério e a negociagao politica dos stiitos ultramari- nos na construgio das relagées entre centro e periferia, vai pereeber como constituinte das elites coloniais. Mais uma vez, a meu ver, 0 autor que reintroduziu na historiografia bras: leira um novo padrio de classificagao e de discussdo das elites coloniais foi Evaldo Cabral de Mello, Tal facto ndo se deve apenas 4 sua perspectiva ted ca calcada na visio contratualista que fundava os vinculos entre vassalos ultramarinos e Coroa portuguesa, mas, e sobretudo, ao mérito de ter resgatado tum corpus documental desdenhado pelos historiadores marxistas: es tratados ‘eas obras de genealogia, Exemplo dessa démarche € 0 livro O Nome ¢ 0 San- _gue, que 0 préprio autor classificou como uma «parabola genealdgica, tanto no sentido zeomeétrico de percurso ou trajetoria quanto na acepeao literdria de conto moral ki em Rubro Veto, publicado anteriormente, no capitulo intitulado «A meta- ‘morfose da agucarocracian, Mello afirma ter sido «na segunda metade do século XVII que os descendentes dos restauradores passaram a reivindicar 0 estatuto de uma ‘nobreza da terra’, a ponto de, nos comegos di centiria Sequinte, os naturais de Pemambueo serem acusados de «se quererem quae todos inculear por nobres»”", A metamorfose da acucarocracia em nobreza ca terra & desetita pelo autor a partir de trés manifestagdes conexas. A primeira ‘consistiv: no uso generalizado da expressdo; a segunda, no aparecimento de um discurso e de uma prética geneal6gicos; e a terceira, no surgimento de «um dos © Cr. sobre a nogio de pacto, Maria Fernanda B. Bicalho, «Centro e Perit: pacto & ‘nezociagao politica na administragao do Brasil colonials, in Leiruras. Revista da Bibiote- cu Nacional. 6, Primavera de 20K, pp. 17-40, * Evaldo Cabral de Mello, O Nome e o Sangue. Uma Paribola Familiar vo Pernan- ‘buco Colonial, 2: ed, rev, Rio de Janeiro, Topbooks, 2000, p. 16 ** Melo, Rubro Velo... ap. eft, p. 153 o da coloni- ‘mais eros fopoi do imaginario nativista, 0 do cariter aristocrat ‘zagio Duartinan”™. Discute inicialmente a substituigao do termo principal — homens princi- ‘pais, os principais moradores, os principais de Pernambuco ~ pelo termo “nobreza ou nobreza da terra. Em suas palavras, 0 termo principal «denotava fiqueza, afluéncia, a posse de grandes cabedais». Era também aplicado «a0 individuo que detinha uma parcela do poder politico, seja por ocupar os car {208 piiblicos da capitania e de pertencer [..] 40s da ‘governanga desta terra’, Seja devido ao fato de dispor de uma clientela ou de um séqtito de homens es e de escravos (o termo adjetivo ‘principal’ também era empregado para nomear os chefes indigenas), seja por tratar-se de religiosos ou de patentes ‘militares, seja finalmente por ocupar uma posig2o proeminenten” Ikentifica o termo nobre sobretudo durante o periodo holandés, utilizado no sentido de dar um esbogo de coesio e de solidariedade aos «nobres de Pernambuco». Afirma que esta terminologia viera «sobrepor-se & biparti que distinguia os moradores nascidos na capitania, os ‘naturais da terra’, dos ‘origindrios de Portugal e ilhas, os ‘naturais do Reino'», servindo para distin- {guir mazombos € reindis. Com o fim da dominagao holandesa, nobreza da lrra tornow-se 0 novo coletivo adotado pelos descendentes dos antigos prin- ‘ipais, uma vez que a aguearocracia pernambucana passoU a apostar na pro- mogdo estamental como forma de legitimar sua dominagao politica, social e econémiea da capitania, Nesse sentido, a autodesignagtio de «‘nobreza da terra’ abrangia a dupla origem social da agucarocracia: a de ‘nobreza do Rei- no’ transplantada para Pernambuco; e a de nobreza gerada em Pernambuco durante o século e meio da sua colonizagao, mediante a selegio social dos filhos e netos de individuos que, embora destituidos da condigao de ‘nobres do Reino’, haviam participado das lutas contra os holandeses, ascendido a posigao de senhores de engenho ou exercido cargos civis e militares, os cha- mados ‘cargos honrados da Repiblica’.»”” Em relacao & segunda questo, Mello afirma que «a metamorfose da agi carocracia em ‘nobreza da terra’ nfo era apenas uma questo de palavras: exigia também um discurso e uma pritica genealégicos que legitimassem 0 status pretendido». © seu surgimento se deu na segunda metade do século XVII, entre a restauragdo de Pernambuco em 1654 € a guetra dos mascates, em 1710, Data deste periodo a nogao — ou a invengao — do cardter aristocratico da colonizagio duartina, a versio de uma arribada de fidalgos do Reino, quer ‘com Duarte Coelho, quer nos anos iniciais da conquista da capitania. A crOni- ‘ea anterior, como os Didlogas da Grandeza do Brasil (1618), apontavam para 1 modéstia que caracterizava os primeiros contingentes de povoadores. Nao ‘idem. pp. Y61-162. 2 Adem, ibidems, pp. 16S e 167. obstante, desde Duarte Gomes Cameiro, cronista do Estado do Bresil (1673) ‘até Rocha Pita (terceiro decénio do século XVIII), a nogdo das origens aristo- critieas do povoamento de Pemambuco recebeu «foros de verdate hist ‘Ao discutir essa parébola genealdgica coletiva, Mello cita 0 regimento do Senado da Camara de Olinda, de 1730, segundo 0 qual ela constitur-se-ia de pessoas «limpas de sangue ¢ de geragdo verdadeira, nobres, infangoes, fidal- ‘208 da Casa Real e descendentes dos conquistadores e povoadores da terra, ‘que ocuparam cargos civis e militares, e 0s perpetuaram em suas familias E conclui: a nogio de «'nobreza da terra’ compreendia, portanto, dias catego- rias principais de individuos: os colonos de ascendencia nobre no Reino © os moradores descendentes dos primeiros troncos, socialmente depuados pelo exercicio dos ‘cargos honrados da repiblica’, isto é, de fungdes locais admi nistrativas e militares». ‘Quanto & questo do nativismo pernambucano, Mello afirma que a nobre- za atribuida segunda categoria de colonos decorria da antiguidace na capi- tania, o que correspondia & sua fixagdo durante 0 petiodo anterior & invastio hholandesa (1630-1654). E conclui: «O sentimento nativista tendeu previsi- velmente a reforgar o critério de antiguidade em detrimento do da nobreza feinol, de modo que, ao longo do século XVII, valorizar-se- mais ¢ fato de se descender de um colono duartino, de um herdi das guerras holandesas, de um vereador de Olinda ou de um provedor da Santa Casa de Misericérdia do que de um morgado minhoto ou de um fidalgo da Casa Real.» Muitas vezes, «a invocagao dos servigos prestados na conquista da capitania, na sun restaura- fo ou na sua governagao, acrescentava-se agora o titulo adicional que con- sistin no fato de ser a ‘nobreza da terra’ 0 produto racial do cruzamento de troncos reindis com mulheres indigenas»”. Porém, como acrescenta 0 autor, «desde que, por tris deles, opere, a0 ‘menos inicialmente, a fortuna familiar, a posse de *grossos cabedas’, mesmo quando encarados na modéstia relativa que jé era entao, ¢ provavelmente foi sempre, a da grande maioria de senhores de engenho». Isso porrpie, «numa sociedacle monocultora, escravocrata e latifundidria como a da mata do Nor deste, a propriedade agucareira é que correspondia, em éltima anélise, a fun- ‘go dle filtrare de decantar, ao longo do tempo, as pretensdes nobilidrquicas as posigdes sociaisy! Quem melhor traduziu esta afirmagio, resgatando a importincia e a cen- tralidade da escravidao na constituigo das elites coloniais, foi Stuart Sch- ‘wart, 20 defender a especificidade da América portuguesa enquanto sociedade escravista colonial. Segundo Schwartz, «0 Brasil-col6nia foi uma sociedade 2 dem, ibidem. pp. 169 © 176-179. © Idem, ibidem, p. 181. Idem, ibidem, p. 187. Adem, tbidem, pp. 81-182, escravis{a no meramente devido ao dbvio fato de sua forga de trabalho ser predominantemente cativa, mas, ¢ principalmente, devido as distingdes juridi- cas entre escravos e livres, aos principios hierérquicos baseados na escravidao € na raga, as atitudes senhoriais dos proprietirios e deferéncia dos social- ‘mente inferiores. Através da difusdo destes ideais, o eseravismo criou os fatos fundamentais da vida brasileira». Por intermédio da descrigao da economia da tgrande lavoura na Bahia, do eardter das relagdes sociais da produgdo agucarei- ra, € da propriedade e industria dos engenhos, 0 autor se propoe a demonstrar ‘que «um tipo peculiar de sociedade desenvolveu-sen”. [No que diz respeito especificamente a constituigao das elites coloniais no Recéncavo baiano, Schwartz afirma que «a primeira gerac20 de senhores de engenho da Bahia tinha origens sociais muito menos ilustres do que as propa- ladas pelas geragdes subsegilentes. Se bem que houvesse homens de familias nobres ou com altos cargos piblicos como Mem de Sé, proprietario do enge tnho Sergipe, ow Antdnio Cardoso de Barros, filho do tesoureiro régio da Bahia e fidalgo da casa de El-Rey, muitos dos primeiros senhores de engenho vvinham de origens menos eminentes. Talvez um tergo dos engenhos do Re- cneavo na década de 1580 fosse propriedade de comerciantes que haviam facilmente trocado 0 comércio pela atividade agucareira; alguns continuaram @ exercer as duas ocupagdes simultaneamenten. Afirma ainda ter sido comum a existéncia de cristaos-novos entre os primeitos senhores de engenho bai nos. De 4 enzenlios cujos proprietérios puderam ter suas origens identifica- das no periodo 1587-1592, 12 eram cristios-novos. Os autos de 1618 da Inguisigo mencionam 34 engenhos, dos quais 20 possuiam cristtos-novas como proprietirios. Nesse sentido conclui que «as origens de classe dos senhhores de engenho baianos, a despeito de suas pretensdes aristocriticas pos- teriores, apresentaram-se eivadas de elementos da burguesia comercial e de cristios-noves, dois grupos cujo status na sociedade portuguesa era decidi- damente inferior» Na primeira metade do século XVH, entre 1620 e 1660 surgiu uma nova leva de aspirantes a senhores de engenho. Devido a erise temporiria do agti- car na década de 1620, causada por baixas em seu preco e pela luta contra os Holandeses, algumas propriedades foram destruidas, outras faliram ou foram ‘endidas a pregos relativamente baixos. Seus compradores eram jovens pro- ‘enientes dos vérios contingentes militares enviados ao Brasil durante a guer- ta contra os Holandeses, ou de familias que fugiram de Pernambuco com seus eseravos e capitais. Surgiram, neste periodo, linhagens como as dos Brando Coelho, Ferrio ¢ Argolo e Pires de Carvalho. Entre 1680 e 1725, 56 senhores de engenhos baianos (70%) eram nascidos no Brasil, 22 eram filhos de imi- ® Stuart Schwartz, Segredos Internos. Engenhos Eseravos na Sociedacle Colonia Sto Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 209. "dem, pp, 224-221 tgrantes, crescendo, assim, a preponderdncia dos naturais da terra, embora seus lagos com a Europa permanecessem fortes. Os imigrantes que adquiriam propriedades agucareiras haviam exercido anteriormente ocupagdes mercantis (ou profissdes qualificadas, como a de advogado ou juuiz da Coroa, De acordo com Schwartz, «era comum os senhores de engenho imigrantes continuarem a praticar sua profissdo anterior concomitantemente & posse do engenho, o que parece ter ocorrido em escala bem menor com os proprietirios nascidos no Brasiby. Conquanto na primeira metade do século XVII a classe de senhores de engenho da Bahia se encontrasse bem estabelecida, coesa, unida por casa- mentos entre seus membros, havia sempre lugar para elementos exégenos, recrutados principalmente entre magistrados régios, outros funcionérios governamentais ou comerciantes de Salvador, Sobre este «amélgamay — composto por casamentos, aliangas e negécios entre senhores de engenho e comerciantes, podemos citar Rae Flory e Davi Grant Smith. E voltamos, portanto, a questo da defini¢io do termo elites coloniais. Segundo 0s autores, a dicotomia comerciante versus proprietétios de terras e plantadores de agiicar, entdo corrente na historiogratfia, propde wma divisio excessivamente rigida, que no corresponde a0 complexo € quase sempre ambiguo relacionamento entre estes segmentos no conjunto do estrato superior da sociedade baiana. Embora a composigio social do Recéncavo da Bahia tenha sofrido pouquissimas mudangas no tempo de uma centiria, & apesar dos reajustes na economia colonial, o conceito de elite que perpassa todo esse periodo deve ser revisto, no sentido de incluir certos tipos mercantis rho mesmo patamar das familias agratias. Os autores avaliam que a ascens30 ddos homens de negécio na primeira metade do século XVitreflete nao tanto a consolidagio de uma classe mercantil, € sim a integrago bem sucedida de imigrantes no seio de uma elite estabelecida, processo que jé pode ser perce- bido ao longo do século XvIr". ‘Afirmam que a comunidade de mercadores baianos, tanto no século XVI, quanto na centiria seguinte, se constituiu, com poue: tes provenientes do Reino e, em menor niimero, das ilhas atlanticas. Uma vez radicados em Salvador, embora em sua grande maioria mantivessem seus negocios mercantis, aqueles comerciantes tragavam para si, ow para seus fi- thos, uma ampla estratégia de enobrecimento que aliava 0 invesiimento na fexcegdes, de imigran- ™ idem, them. p. 226. * Sobce a alianga entre magistrados régios e as familias de senhores de engenh bai hos. ef Stuart Schwartz, Buracracia e Soviedade no Brasil Colonial. A Suprena Corte da alia ¢ Seus Juizes, 1609-1751, Sto Paulo, Perspectiva, 1979. * Rae Flory. e David Smith, «Bahian Merchants and Planters in dhe Seventeenth and carly Eighteenth century», in Hispante America Review, vol. S8.n° 4, 1978, pp. 71-594. * idem. p. 572. faquisigao de terras e na consolidagdo de lagos matrimoniais vantajosos com -_filhas de grandes proprietarios estabelecidos. Mas ndo s6, _ Um caso exemplar citado tanto por Flory e Smith, quanto por Schwartz, ode Joa0 Lopes Fitiza, portugués que deixou Viana do Castelo rumo a Salva- ~ dor, para juntar-se ao iemao, o préspero comerciante Nicolau Lopes Fiiza. Ao ‘chewar a Bahia, na década de 1690, Jodo encontrou sua carreira facilitada pe- las ligagdes do irmao com a aristocracia do Recéncavo, pois este se casara com uma filha dos Moniz Barreto, Jodo seguiuclhe os passos, casando-se com ‘a cunhada, tomando-se, com o easamento, proprietirio do Engenho de Baixo, ‘em Paramerim. Tempos depois comprou mais um engenho, na pardquia de Rio Fundo. Quando de sua morte, em 1741, Jodo Lopes Fiza possuia patente militar, era membro da Ordem de Cristo e das Ordens Terceiras dos francis- ‘cans € carmelitas e havia sido vereador na Camara de Salvador. Seus filhos distanciatam-se da carreira mercantil, herdando as propriedades agricolas do pai, tormando-se senhores de engenho, entrando para a Companhia de Jesus, ‘ou casando-se com filhas de proprietérios de terras e engenhos", Era comum, portanto, que a grande maioria dos comerciantes residentes fem Salvador (cerca de 90%) se casassem com mulheres naturais da Bahia, 0 que thes ajudava a consolidar a propriedade e o capital, conferia-Ihes um eer- to grau de respeitabilidade e os introduzia numa rede familiar preexistente e 4 consolidada, Tal estratégia de enobrecimento nao era muito diferente do que ocorria em outras conquistas ibero-americanas””. Nesse sentido, os Comerciantes transformavam seu sucesso econémico em accitagao social ¢ influéncia politica, através de miltiplos requisitos que os faziam adentrar 0 coragao da elite baiana: residéneia permanente, fortuna, um bom casamento, a posse de propriedades territoriais e, néo menos importante, o ingresso em Prestigiosas irmandades, como a Santa Casa de Misericdrdia e a Ordem Ter- ceira de Sio Francisco, a obtengao de patente militar, sobretudo nas Ordenan- #88, € 0 acesso ao Senado da Cémara © acesso dos mercadores a cargos camarérios aumentou significativamen- fe no periodo de 1700-1739 em relagao a 1660-1609, o que pode ser explica- do tanto por uma mudanga sofrida a economia colonial, quanto por eertas inovagdes institucionais, Quanto a estas, os autores relacionam 0 maior con- trolo do governador sobre o processo eleitoral do Senado e a indicagdo mais corrente de homens de negécios para ocuparem tais cargos. Eles eram capazes de prover fundos e servigos substanciais aos projetos governamentais ~ isto é. ‘metropolitanos ~ na capitania. A mesma conclusto chega Evaldo Cabral de * Idem, ibidem, p. $76: Schwartz, op. et, p. 227 Os autores eitam, come exemplos, os tabalhos de David Brading, Miners and Mer- chants in Bourbon México, 1763-1810, Cambridge, 1971; de Susan M. Socolow. «l-co- ‘nomic Activities oF the Portobelo Merchants: the Viceregal Period, HAHIR. $5, Feverciva de 1975. Mello, ao afitmar a existéncia de uma alianga entre governadores de Pemmam- buco e mascates de Recife", De acordo com Flory e Smith, a participagtio mercantil no Senado da Cimara nos permite uma outra compreenséo acerca da composigdo e forma- ao da elite baiana. Famitias tradicionais como os Araljo-Aragio, Moniz Bar- reto, Argolo, Gées-AraGjo e Dias de Avila, cuja presenga, poder e investimen- tos agririos datam do século XVI, nunca foram suplantadas por comerciantes adventicios, embora admitissem esses homens em seus cls, desde pelo menos eados do século XVII. O grande problema dos mercadores era a constataga0 de sua limpeza de sangue eo fato de serem cristios-novos, e ndo propriamen- te o de serem reindis ou exercerem a atividade mercantil"’ Os autores coneluem que, embora se tomassem proprietirios de terras e desenvolvessem atividades agrérias, muitos homens de negécio na Bahia conti- ‘muavam exercendo atividades mercantis, © que Ihes conferia uma identidade Socal intermedia — formavam um tipo social hbrido — que pode ser waza Por proprietirio de terras-mercador ou mereador-proprietitio de teas" Ainda no que diz respeito Bahia, o artigo de John Norman Kennedy, «Bahian Elites, 1750-1822», recoloca 0 problema da conceituagdio das elives coloniais. © autor considera como elite baiana do fim do periodo eslonial os mais opulentos proprietirios rurais, comerciantes, aqueles que octavain os mais altos postos da burocracia fiscal e administrativa, e os que figuiavam nas fileiras mais elevadas das forgas militares regularese locais, O que ura a todos “ , in Penélope. Revista da Histéria 4a formagdo dos Estados modernos, Greene defende que o modelo de Estado ‘eentralizado, do qual emanaria uma politica imperial baseada na coerga0, tmostra-se improprio ¢ a-historico. Propée, ao contrario, um modelo consen- sual que enfatize a importincia da negociagdo e o significative papel dos po- eres e das elites locais na construgao da autoridade central” Tniroduz seu argumento criticando 0s conceitos de coldnia e de colonos ceunhados a partir da nogdo de sujeigG0, subordinagi0, dependéncia, domina- 80, inferioridade, incapacidade, alteridade. Contrapde-se & perspectiva segun- {do a qual colénias teriam constituido terrtérios e colonos teriam representa populagdes sobre as quais os Estados nacionais teriam exercido um controlo hhegemdnico, Os historiadores que defendem esta tese aplicam ~ retwospecti- vvamente, a scu ver ~ um modelo de organizagao imperial coercitivo e centra- Tizado, muito mais afeito ao imperialismo contemporineo dos séculos XIX e XX. do que & dindmica politica sobre a qual se baseou a estrutura;ao dos impérios na Epoca Moderna. Dialogando com a historiografia sobre o império espanol, citands os tra- bathos de J. H. Elliot, Greene desenvolve o argumento de que, até reformas bourbénicas em meados do século XVIl, as elites da América hispanica foram hibeis em reter un amplo controlo sobre questbes ligadas ao governo local Por intermédio dos seus drgfios municipais, do prinefpio da consulta as perife- rias ao longo do processo legislativo do monarca, e do movimento de ereoli- “acho da burocracia real, as elites coloniais conquistaram, segundo Elliot, um tgrau substancial de autogoverna, mesmo que sob 0 comando ea divegio do rei. Certamente a Coroa sempre detivera uma larga autoridade para tomar toda a sorte de medidas referentes ao império. Nao obstante, ao implementar tais medidas, os funcionaios régios nas conquistas adaptaram-nas is variadas circunstincias definidas pelas elites ¢ pelos interesses locais. Em suma, 0 poder de barganha entre metrépole e colonos produziu um ajuste e una com- binagao de autoridade dividida e negociada que parece ter sido uma das earac- teristicas dos impétios nos Tempos Modernos™. Capacidade similar de negaciagio — e de incorporagdo — dos vassalos co- loniais tem sido tema recorrente das novos estudos sobre 0 Brasil. A. J. R Russell-Wood, em artigo recentemente publicado, reavalia a visto sedimen- tada da historiografia brasileira de décadas anteriores. A seu ver, «a ogo de tum governo metropolitano centralizado, a formulagio de politicas impermed- ‘eis érealidade colonial e implementadas ao pe da letra por agentes da Coroa, dde uma Coroa insensivel e de atitudes metropolitanas rigidas voltadas para o © Jack Greene, Negociated Authorities. Essays in Colonial Political andi Constite tional History, Chalttesville ¢ Londres, The University Press of Virginia, 1994 John HH. Elliot, «The Role of the State in British and Spanish Colonial American, incalito. 27 de Absil de 1990, apud Greene, op. cit, pp. 18-19, Ee Brasil, demanda revisdo»®”. Insiste, ao contrario, no potencial para nego ‘¢ilo das elites locais, afirmando que «a historia do Brasil colonial fornece ‘numerosos exemplos de como os colonos foram capazes de exercer suficiente pressdo sobre as autoridades metropolitanas no sentido de evitar ou modificar totalmente as politicas propostas, de atrasar a implementagao de agdes pres- critas, ou de negociar um acordo menos ofensivo aos interesses coloniais». Em suma, 0 que aqui se pretendeu discutir — ou defender — € que para se resgatar as elites coloniais enquanto objeto de estudo, torna-se preciso proce- der a uma reavaliagao do sentido da colontzagao no contexto historico da Epoca Moderna. E reafirmar que, no ambito da América portuguesa, as dife- tengas ou singularidades das elites regionais s6 podem emergir ao ser resga- tada a complexidade das relagdes entre poder central e poder local. Embora yoltado para a anélise das relagdes entre centro e periferias na Europa do Antigo Regime, creio ser possivel citar aqui a discussio igualmente historiogri- fica tecida por Xavier Gil Pujol. De acordo com ele, «Estado e sociedade, capi- tal e territrios, centro e localidades so esquemas bindrios tteis apenas por referéncia a um marco de relagoes, imprescindivel para o conhecimento da vida politica de uma colectividade; contudo, nenhum destes termos, destes bindmios, so conceitos fechados, acabados e suficientes. Pelo contrario, cada um influ ‘no outro conforme sejam os agentes politicos, os interesses, as pautas de con- duta, as circunstincias. Utilizé-los como instrumento analitico rigido pode provocar reducionismos lamentaveis.»°” Pretendeu-se, por fim, discutir, neste balango historiografico acerca do conceito e da composigao das elites coloniais, a dificuldade de recortar © con- ‘trapor segmentos que se definem unicamente pelo fato de terem se constituido ‘engquanto elites agrarias, elites comerciais ou elites adiministrativas. Espero ter cconseguido defender o argumento de que, por intermédio de uma intrincada, teia de relagdes econdmicas, politico-administrativas, clientelares ¢ parentais juando os mais remotos rinedes da colénia entre si, a outras partes do impé- io € ao centro do poder e dos negécios na Corte, se constituiu — a partir do movimento da conquista, da ascensio a postos administrativos, da obtengie de terras e mercés — uma elite que pode ser entendida, dependendo do recorte historiografico, como colonial, ou, mais apropriadamente, a meu ver, impe> rial. © Russell-Wood, «Centro e periferia no mundo luso-braileito, 1500-1808», in Revista Brasileira de Historia, vo, 18,2 36, Sto Paulo, ANPUH / Humanitas, 1998, p. 202, Idem, p. 206, “ Xavier Gil Pujol, «Centralismo ¢ localism? Sobre as relagdes politics e cultuais, entre expital e teritrios nas monarquias europeias dos séculos XVI e XVI, in Penélope Fazer e Desfacor a Historia, n° 61991, p. 127. No entanto, o que a colénia, no caso do Brasil, ou 0 império atlirtico por- tugués possuiam de especifico ~ e que dotava igualmente suas elites de uma singularidade em relagao as elites européias do Antigo Regime ~ era 0 facto de terem-se gerado numa sociedade escravista, que se gerou por sua vez na dindmica do tréfico negreiro. Resgato aqui, para concluit, as afirmagdes de Stuart Schwartz, de que o «escravismo criou os fatos fundamentais da vida brasileiran”, e de Luiz Felipe de Alencastro: «De conseqiéncias dee sivas, na formagio hist6rica brasileira, 0 trfico extrapola o registro das opetagdes de compra, transporte e venda de africanos para moldar o conjunto da e20nomia, da demografia, da sociedade ¢ da politica da América portuguesa.” op. cit, p. 208. Aleneastro, op. cit, p29. Leonor Freire Costa’ Capitulo V Elite mercantil na Restauragao: para uma releitura Francisco de Sousa Coutinho, embaixador de D. Joao IV em Haia entre 1643 e 1650, comparou o Tribunal da Inquisi¢ao a uma inexpugnavel fortale- za no Rossio, transformada em reduto de resisténeia ao novo rei. Nessas pala- ‘ras denunciava a presenga de um contrapoder inscrito na esfera das relagdes do rei com a lgreja. O encarceramento em 1647 de um grande negociante de Lisboa, Duarte da Silva (acusado de atentar contra o secretismo des investi- ‘gages do tribunal sobre o seu cunhado), justificava a ironia do embaixador. ‘Com efeito, o sarcasmo de eminentes individualidades, patente noutras meté- foras vulgares na época, assinala 0 pendor de uma corrente de opinido que alribuia a0 Santo Oficio designios auténomos e em colisdo com os de D. Jog0 IV. Tensdes perigasas numa canjintura delicada, pondo em causa a esabilidade interna do reino, jé ameagado em termos extemos pela guerra com « Espanha pela hostilidade dos Estados Gerais nos prolongamentos do império. Na 6ptica de alguns dos privados do rei, como seria o padre Antonio Vieira, os gastos com a defesa pediam uma postura conciliadora com os interesses des- ses detentores de capital, quer enquanto potenciais credores do rei, quer enquanto bases de sustentagao do império. Na historiografia do perioda da Restauragdo, a pristo de Duarte da Silva e a visto de destacadas figuras da cultura portuguesa, como a do padre Anténio Vieira, tém servido para ilustrar as relagdes ambiguas do poder polit co com a Inquisigde ¢ com grupo mercantil, financiador da guerra e das embaixadas. * Instituto Superior de Economia e Gest. Entende-se que a Inquisigdo obedeceu a uma légica especifica que the permi- tia antagonizar o rei e a Companhia de Jesus, cujos elementos de proa nto ‘escondiam as suas simpatias por individuos conotadamente cristios-novos. Por outro lado, a elite mercantil, identificada com judeus conversos (comer iantes de grosso trato, sempre vitimas das arbitrariedades do Santo Oficio), & atribuido um indiscutivel significado econémico, mas nao Ihe é reconhecida a ceapacidade de influenciar decisdes politica. ‘A presente reinterpretag3o do papel deste grupo na Restauragdio contraria, alguns dos argumentos da historiografia sobre o tema. E tributiria da andlise de redes ¢ imprime um conteiido politica ao conceito de elite mercantil. Ser- Vese das etapas criticas da historia da Companhia Geral do Comércio do to-novo, de nome Gongalo Vaz Coutinho, contratador de escravos no tempo da Unido Dindstica (Alencastro, 2000, pp. 81-82). os juizos do embaixador Sobre os sefarditas em Amesterddo em pouco se anticuiaram com tas antece- denies familiares, Antes 0 andamento dos acontecimentos.politico-diplomd- ticos e suas repercussées na guerra no Brasil orientaram a visio do diplomata sobre os apoios a obter desse grupo desentaizado por rizSes religosas. De uma posigao inicialmente simpatizante, 0 embaixador acabaria por reconhecer que © grupo, niio tendo interesses coincidentes com Portugal, hos:ilizaria a sn actaetodiplométicn Na verdad, arevola de Psinambueoe Pariba-ut prolongamento brasileiro do movimento separatista do 1.° de Dezembro, ha- via arrastado oO Tmpério americano para uma guerra contra os. Paises Baixos © ‘Brasil ¢ da sua posterior cristalizagao na Junta do Comereto para a recotha de Testemunhos expressivos utdveis relagbes de forga entre negociantes See 3), 0 poder politico e a Inquisigio. er olticees i igo. Coligem “SE provas de que cerias acpbes persecutOrias Serviram os interesses de uma clique integrando elementos com influéncia no poder central. E. desta forma {que Se procura projectar uma diferente uz sobre a triangulagaio «comercian- -inquisidores», sublinhando a participagdo de uma elite mercantil na ica colonial e tornando perceptiveis as méltiplas possibitidades de ins- trumentalizagao das clivagens sociais da época. Por fim, um estudo de caso; no tanto para prolongar uma observagao externa da elite mereantil, mas para caracterizar elementos bisicos da sua diferenciag20, como sejam nivels de fortuna, gestdo de negécios, formas de sociabilidade, recordando a pluralida- de de leituras proporcionadas pelos processos de Inquisigao para um questio- nario sobre este tema. Nao é indiferente o facto de o estudo incidir num cris- tio-nove, dos maiores da prara de Lisboa, que s6 tardiamente assumiv lugares de gestio na Companhia Geral, mantendo-se como tesoureiro da Junta ‘no tempo de D. Afonso VI. E tomado como um bom caso para aferir as pos siveis conexdes entre conjunturas politicas ¢ a composicdo da elite mereat hipotese central das paginas que se seguem (Brenner, 1993). Na historiografia da Restauragao_ Os crist&os-novos Os desabafos de Sousa Coutinho sobre a repressio inquisitorial, se nao eram totalmente isentos, também nao seriam sinal de uma posigao ideologi- camente definida pela tolerdncia para com a populagio dita crist@-nova ou para com a comunidade judaica portuguesa de Amesterdao. Com um avé cris Telirava Bs pragas Holandesas centralidade nos fluxos do agticar. ‘Assiin, @ metéfora de Sousa Coutinho sobre a acgdo inquisitorial incidente em Duarte da Silva, se no acusa a sua especial sensibilidade a causa dos inquiridos, sugere a sua inquietagao pela previsivel inviabilidade “inanceira dda embaixada. As despesas da representagao, sempre sujeitas a constrangi- ‘mentos vérios pela peniiria do erério régio, eram suportadas por uma linha de crédito concedida pelos poderosos negociantes judeus, da familia Nunes da Costa, em particular por Jerénimo Nunes da Costa, 0 membro residente em Amesterdao, filho de Duarte, radicado em Hamburgo. Por sta vez, 0 pat ‘mento desses eréditos pedia um contrato celebrado em Portugal enite 0 rei © ‘outros comerciantes, 9 chamado contrato de provimento das embaixadas. {A prisio de um dos elementos de uma rede internacional de trifico de bens € de letras de cdmbio, como era Duarte da Silva, poderia ter consequéncias no ‘andamento da embaixada. Ainda que 0 comerciante niio estivesse mplicado nos contratos de provimento, a rede de relagdes dos seus negécios era por de mais abrangente para a sua prisdo eausar instabilidade nas pragas europeias. Agravava o nervosismo dos meios financeiros 0 facto de aque'e tipo de contratos ter estado até entao controlado por cristaos-novos, como eram Bal- tasar Rodrigues de Matos ou Femnao Rodrigues Penso. Donde, a pristio de um cristo-novo em Lisboa perturbou os eircuitos portugueses da praca de Ames- terdio, pois era de prever um feixe de prisdes ou de fugas subsequentes que escalpelizariam os agentes econdmicos do reino ou que levariam 2 imediata resolugdo das dividas activas dos réus por parte do Fisco da Inquisigao, per- turbando os tempos e 0s prazos acordados entre partes contratantes. Contudo, rapidamente foi restabelecida a tranquilidade, tanto porque as perseguigdes nao tiveram a esperada continuidade (em breve seria montado um recanismo {que dispensaria a acgao inquisitorial para aceder aos bens de membros da eli- te mercantil), como. porque um cristdo-velho, Gaspar Pacheco, de crédito equipardvel ao de Duarte da Silva, pegou no contrato das embaisadas, por nele o ter passado de livre vontade Baltasar Rodrigues de Matos. (Costa, 2002, p. 526). A historia € fértil em pistas para questionar os cristios-novos, ‘no mundo mercantil ou a sua insergao numa sociedade onde o capital simbs- liga, mais do que 0 capital econémico, fixava as hierarquias. Dito de outra maneira, se a limpeza de sangue, de preferéncia certificada por certas mercés 1gias, era uma componente necesséria do status nobiliérquico, entao, uma das principais clivagens sociais passava pela distingAo entre catélicos ¢ os escendentes de cristios-novos ou judeus, gente impura. Na presumivel intengao de recuperar os que teimavam em seguir a lei de Moisés, a Inquisi- ‘lo executou operagées persecutérias de dimensio varidvel, sendo os tiltimos anos da unio dinstica de particular agudizagzo das tensbes (Torres, 1978). Os primeiros anos do Portugal Restaurado nfo travaram essa infinddvel ‘guerra socialy. Duarte da Silva foi apenas mais um caso, no conjunto dos ‘ristRos-noves que, de cada lado do Atléntico, foram alvejados pelo Santo Officio desde 1645, Os residentes na Baia sofreram com 0 governador Anténio Telles da Silva, lum membro da nobreza conjurada, participante no golpe do 1.* de Dezembro. Da confianga do monarea, familiar do Santo Oficio, partiu como Governador tem 1643, depois de no Conselho de Estado se ter pensado instigar localmente luma revolta em Pernambuco contra os Holandeses, sempre pactuantes com a populacao judaica do Recife, Naquela reuniao conspiratoria tera estado pre- sente outra personagem de relevo e também ela familiar do Santo Oficio: © conde de Penaguido, camareiro-mor de D. Jodo IV e testemunha na habili- tagao de Antonio Telles. Ambos se manifestariam a favor dessa forma de tea- ver uma parcela riquissima da colénia brasileira. Importava reintegrar Per- ‘nambuco, ao mesmo tempo que continuava a ser necessétio limpar a Baia dos homens judaizantes. Pouco depois de Anténio Telles chegar & Baja estalaria a revolta em Pernambuco. O cunho antijudaico de que se revestiu a sublevagio € um dos t6picos incontroversos da excelente historiografia brasileira sobre 0 tema (Mello, 1987 e 1998). Um e outro projecto, isto é, reaver Pernambuco © pproceder a uma limpeza das pragas coloniais, esmagando os elementos cris- {ios-novos e/ou suspeitos de colaborar com a poténcia inimiga que ocupara o Nordeste, nao tinham, aparentemente, nada de contraditério para estes dois membros da elite politica. As perseguigdes na Baia, com paroxismo em 1646 € com extensdes nas pragas da metrépole, dizimando homens activos no comércio e presentes nos registos aduaneiros, repetem episédios jé conhecidos, quer dos historiadores, {quet dos contemporaneos. Mas estes, em pleno perfodo da Restauragao, colo- cam de sobreaviso qualquer investigagao que busque uma posigo uniforme do poder politico face & pseudoquestio judaica na sociedade portuguesa. En- quanto Francisco de Sousa Coutinho, um embaixador de D. Jodo IV, escarne- cia da Inquisiga0, um governador-geral do Brasil, familiar do Santo Oficio, perseguia os objectivos da organizagao que the dera a honra da familiatura, declarando «guerra» aos cristio-novos. Estabelecia relagdes de confianga, para o trafico individual de caixas de agicar, com comerciantes/armadores ristdos-velhos, futuros dirigentes da Companhia Geral. Reconhegam-se nes- tas perseguigdes algumas vantagens pessoais do governador. Deve-se & intui- «edo de Anita Novinsky a suspeita de que a Inquisigao serviu também de ins- trumento a uma concorréncia entre circulos de negécio, tema para retomar adiante (Novinsky, 1972, p. 134). Qualquer das posigdes coevas, de colaboragdo ou de condenagic do Santo Oficio, remete para o imagindtio em que o «cristio-novo» era sindnimo de «udeu» e «judew» significava rico mercador. Pelo menos no reino, porque, na Europa, «judeu» era vocdbulo que logo evocava o portugués, negociante de bom crédito, como Duarte lis recordou. Fama na Europa e indicio ‘Geque na origem da mesma estava a dispoa dos dos cristios-novos portugueses, Sear a aa ena Be ener a ene mepas ao ‘Com muitos elementos com ocupago no comércio, Nao cabe refazer aqui a ‘arqueologia destas associagdes. Basta, a0 inv lerar 0s estudos solidos sobre o Portugal de Antigo Regime que atribuem 4 intensificagao das investi- das na fase final da Unido Dindstica a causa desta didspora e consequente ‘erosio do grupo mercantil no reino (Mauro, 1965), ou a sua diluiga0 nos ele- ‘mentos estrangeitos, como esté demonstrado para o Algarve (Magalhes, 1990). Ha nestas abordagens a conviegao de que a elite mercantil s2 confun- dia com os descendentes de judeus conversos, 0 que nio desmonta a imagem do mercador que as fontes veiculam. Retenham-se, porém, os testemunhos de que o estrato superior dos comerciantes de grosso trato ndo seria honogéneo, nem teria interesses coloniais coincidentes. Se os principais do negécio no Oriente, durante o periodo filipino, eram de extracgao cristé-nova (Boyajian, 1993), 0 trifico brasileiro contava com negociantes cristios-velhos, de enver-) gadura equipardvel aqueles. E se no é correcto supor que 0 Brasil dos anos da guerra com a WIC, desde 1630 até & Restauragio, foi obra de cristios- -velhos, convém, de qualquer forma, sublinhar que este periodo sindiu os membros do comércio: de um lado os que optaram pelo Oriente, cantrolado | pelos de maior cabedal e maioritariamente cristdos-novos, do outto os que desejaram manter 0 circuito do agticar, grupo mais heterogéneo ¢ onde se inseriam com significado elementos cristaos-velhos. Estes viriam a adquirir Visibilidade no apoio financeiro ao rei/duque (Costa, 20022). ‘A comprovada presenga de uma parcela de elementos insuspeitadamente catdlicos entre os maiores financeiros do reinado de D. Jo8o IV, e que teriam lugar nos drgtos dirigentes da Companhia Geral do Comércio do Brasil, € mérito da investigagiio de David Grant Smith e uma lufada na historiografia Portuguesa sobre 0 grupo mercantil (Smith, 1974 ¢ 1975). Até la, a caréncia de um estudo suportado por métodos prosopogrificos havia colocado as abordagens num beco sem saida, Enclausuradas num compromisso ideol6gi- 0, as anzlises buscavam 0 lugar da burguesia em 1640, presumindo haver uma posigo especifica dos cristaos-novos, vendo nesta designagio a base de ‘uma coesio de corpo ou os fundamentos de uma acgio de classe. Donde, ou se tomava a floresta pela arvore ¢ se via 0 cristdo-novo Pero Beaga da Silvei- At Fa; copdenado em 1641 por traigdo, como o exemplo da oposigo da burguesia, porque empenhada no trifico colonial ibero-americano, ou se subestimava este ‘easo € se avangavam outros exemplos, como o de Diogo Rodrigues de Lisboa ou ‘ode Duarte da Silva, para ilustrar a adesto do grupo (Godinho, 1978), Chega-se, dtinda, a0 paradoxo de, na mesma obra, 0 leitor ficar indeciso quanto as conelu- ses a retirar,talvez porque o autor, nfo problematizando as fracturas internas do ‘urupo, se deparou com evidentes posigdes contraditérias (Franga, 1997) Destas anilises, facilmente se resvala para um julgamento da personagem de D. Jodo IV em fungi da sua presumivel resistencia & Inquisigao, esse baluarte das forgas contrarias aos interesses progressistas da classe mercantil Compreensivel, também, a atribuigo de um cunho vanguardista ao pensa~ mento do padre Anténio Vieira, quando considerou a experiencia mercantilis- ta dos estados heréticos um exemplo a seguir em Portugal (Torgal, 1981), Inquisigao e conjunturas financeiras da Coroa Aquela personagem emblemética da cultura da Restauragdo, 0 padre Anténio Vieira, seria, no entanto, uma das vozes audiveis entre as varias frac- ‘g®es da sociedade seiscentista que, por razes de conjuntura, formaram um partido anti-inquisitorial (Révah, 1975), colocando o rei numa situagio neces- sariamente inconsistent. Primeito, porque se a D. Jodo IV era fundamental dobter de Roma o reconhecimento da soberania portuguesa, imprudente seria enveredar por uma politica ostensivamente adversa a poderosos érgios da Iereja. Segundo, porque passando a gesto do Fisco da Inquisigao para a al ada do Conselho da Fazenda, o rei acabaria por retirar direitos & instituigiio eclesidstica e abrir mais um campo de conflito com a Santa Sé Mas, em boa verdade, deixando actuar 0 Santo Oficio, representar-se-ia respeito pelo clima anti-semita ouvido em cortes nos primeiros anos do reinado (Hespanha, 1993), ao mesmo tempo que os bens contiscados aos encarcerados ficavam disponiveis para a Junta dos Trés Estados, procedimento que, por sinal, ho ocorreu com a prisio de Duarte da Silva por incéria dos oficiais. Um decre- to do Conselho da Fazenda de 9 de Julho de 1648 esclarece que «por ordem do uz do fisco se entregardo ao thesoureiro do reino oito mil eruzados procedidos do Jnventario de Duarte da Silva preso nos carseres do Santo Officio desta cidade: E porque a entrega se fez por erro ao Thesoureito mor devendo fazer se a0 da Junta Ordena 0 Conselho da fazenda que este dinheiro se descarregue € entregue ao Thesoureiro Mor da junta dos tres estados a quem toca este rece- himento» (ANTT, Ministerio do Reino, Liv. 163, fol. 239, decteto). Inscreven- do esta decisio no campo das diferentes medidas fiseais ¢ financeiras de um Estado em guerra, a prisdo de Duarte da Silva nio surpreende e perde sentido analisi-la como uma actuagao da Inquisigao a revelia dos interesses do rei (con- trariamente a0 que afirma Boxer, 1949). Ocorreu num ano de urgentes e avulta- das despesas, em que a armada do conde de Vila Pouca de Aguiar, dz defesa & Baia, obrigara a contrair um crédito extraordinério aos homens do comércio (Guimaraes, 1941, p. 62; Franga, 1997, p. 370) A transferéncia do Fisco da Inquisiga0 para o Consetho da Fazenda tera constituido uma radicalizagao das vias anteriormente ensaiadas de resoluao de problemas financeiros da Coroa através da perseguigdio aos cristdos-novos, tese da historiografia de pendor marxista e inteligentemente ilustraca na obra de José Anténio Saraiva (Saraiva, 1963). Ignore-se 0 comprometimento ideo- lozico que leva a reconhecer na Coroa, em simbiose com a lereja, a represen- tagio de valores nobiliarquicos antagénicos aos de uma burguesia em ascen- stio. Mas considerem-se os indicadores das conjunturas econdmicas que transpiram nessa «guerra socialy. Esse 0 mérito de uma obra que pode ficar injustamente esquecida depois de trabalhos de grande fOlego sobre o funcio- namento da Inquisigao (Bethencourt, 1997). Com efeito, a documentagdo compulsada confirma a utilizagao dos bens confiscados. Os anos finais da década de 20 do século xvi, de crise generali- 2ada no reino € no império, motivaram varias consultas ao Conselho da Fa- zenda para serem apontadas as fontes de réditos urgentes. Os pareceres so ‘monétonos. Falam da aflitiva falta de receitas livres para despesas extraordi- nirias, Num orgamento de 1627 lembra-se 0 Consetho de Portugal, em Madrid, de que os bens dos confiscados comportavam possibilidades inexplo- radas nesse ano (AHU, Consetho Ultramarino, cod. 37, 11.31 v.*, cit, in Cos- ta, 2002, p. 67). Ora, pouco depois, procedeu-se a uma vistoria ne Fisco da Inquisi¢a0, detectando-se miiltiplas irregularidades (Saraiva, 1969. pp. 259- -261). A proximidade temporal entre um e outro acontecimento acmite uma relagio de causa e efeito. E serd, ainda, provavelmente, pelo facto de aquele ‘ofganismo ter estado sujeito a uma gestio descontrolada, que Filipe IV teria de negociar pouco depois mais um «Perdao Geraby processo de arrecadagdio destes tributos extraordinarios, exclusivamente icidentes na populagao crista-nova, era lento ¢ falivel. J em 1602, quando se contratara um negécio parecido, também houve dificuldade em empenhar 0 grupo no cumprimento das obrigagdes financeiras acordadas para congelar a acgdo inquisitorial. De qualquer modo, se ficavam por reunir os fundos de que Madrid carecia, com estes Perddes Gerais realizavam-se listas exaustivas dos tributaveis. Réis complementares de uma laboriosa recolha de informa- G40, no descuidada pelos éreaos centrais do Santo Oficio, produzindo cadas- ttos ¢ estigmatizando os arrolados com a marca de cristd-novice (Magalhaes, 1981 e 1993, pp. 370-371). Documentagao arquivada e ao dispor dos futuros banqueiros de D. Joao IV, como adiante se verd ‘A precéria arrecadagao dos montantes justificaria que as perseguisdes no parassem na década de 30. Em 1632 seria a vez de um dos maiores da comu- hiidade de Lisboa, Pedro de Baega da Silveira, com um proceso es:larecedor

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