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Hi i Grafia atualizada segundo 0 Acordo Orrogeifico da Lingua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009. FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAGAO Jos A Justiga do Trabalbo e sua bistéria: os direitos dos trabalhadores no Brasil ! organizadores: Angela de Castro Gomes; Fernando Teixeira da Silva. - Campinas, sP: Editora da Unicamp, 2015. 1, Justiga do Trabalho ~ Brasil. 2. Direito do trabalho ~ Brasil. 3. Movi- mento operario — Brasil. 4. Historia social. 5. Trabalho — Histéria. I Angela de Castro Gomes, 1948- I. Fernando Teixeira da Silva, 1963- pp 344.8101 322,20981 309 ISBN 978-B5-268-1030-3 33109 {indices para catdlogo sistemético: 1, Jastiga do Trabalho — Brasil 344.8101 2. Direito do trabalho ~ Brasil 344-8101 3. Movimento operitio ~ Brasil 322.2098 4. Histéria social 309 5. Trabalho ~ Hiseéria 3309 Copyright © by Angela de Castro Gomes Fernando Teixeira da Silva Copyright © 2013 by Edivora da Unicamp ( presente trabalho foi realizado com o apoio da Capes, cntidade do Govemno Brasileiro voltada para a formasio de recs. humanos, Dircitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. E proibida a reprodugio total ou parcial sem autorizagio, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foifeito 0 depésivo legal. 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Como é trivial afirmar, s6 ¢ pos- sivel o desenvolvimento de pesquisa académica séria ¢ bem fun- damentada quando se dispde de documentagio para atesté-la, ou seja, quando 0s registros produzidos por um individuo, grupo ou instituigao social, além de nao serem destruidos pela agao do tempo e do homem, sao por eles mantidos, arranjados e entio colocados ao acesso do piblico para consulta, visando fins de diversos tipos, inclusive ¢ com destaque a pesquisa cientifica. E nesse sentido especifico que este livro quer contribuir. Ele se constitui numa das primeiras experiéncias de associagdo de pesquisadores que, interessados no mundo do trabalho, voltam-se para o estudo da Justiga do Trabalho, tendo como fontes privi- Tegindes a documentagao produzida por essa instituigao, portanto, do ponto de vista dos que a integram e Ihe do concretude socio- politica. Isso ocorre, entre outros fatores, porque é muito recente sibilidade de ter acesso a tal documentagao, por razGes que mais bem esclarecidas no decorrer desta Apresentagao, De forma, a questao a reter desde o inicio deste livro é que seu | A.pe C. Gomes, F. T. pa Sirva objetivo maior é ser uma contribuigSo as pesquisas sobre a tema- tica da Justiga do Trabalho e uma demonstragao das potencialida- des do uso de documentos como os processos trabalhistas ¢ as entrevistas com magistrados do trabalho — além de uma diver- sidade de outras fontes mais conhecidas e utilizadas — para a compreensio de fendmenos politico: sociedade brasileira. econémicos e culturais da Trata-se, por conseguinte, de um livro cujos capitulos cobrem. momentos histricos diversos, questées do mundo do trabalho também diferenciadas, mas que estio unidos pela utilizagao de fontes produzidas pela acao desse ramo especial do Poder Judicié- rio brasileiro que é a Justiga do Trabalho. Justamente por quase inexistirem livros que se dediquem especialmente A Justiga do Trabalho e sua histéria, sobretudo trabalhando com sua propria documentacio, entendemos que, nesta Apresentacao, deverfamos comegar do comego. Dito de outra forma, consideramos que se- ria de alguma utilidade historiar o percurso da Justiga do Trabalho, mesmo desde antes de sua existéncia como tal. Nao o fazemos por mero preciosismo de tragar os seus “inicios”, ou por qualquer crenga no mito das origens, mas porque tal histéria da sentido a algumas de suas caracteristicas institucionais mais duradouras e permite ao leitor melhor acompanhar e compreender os capitulos que compéem este livro, Além disso, tal percurso evidencia o quanto e como se lutou pela criacao desse tipo de justiga no Bra- , além de nos ajudar a entender muitas das suas venturas e si desventuras. AF E dificil — e talvez até mesmo inutil — precisar quando se comegou a falar no Brasil em Tribunais Trabalhistas, mas, j4 em 1905, em seu Apontamentos de direito operdrio, Evaristo de Moraes se referiu 4 nec dade de “organizagao oficial de um tribunal composto de patrdes e operarios, destinado a resolver as questdes suscitadas a propésito do trabalho assalariado”', Em 1907, sinto- maticamente aps forte onda grevista em diversas cidades do pais, ApRESENTAGAO | o decreto que se propunha a regulamentar a organizagao dos sin- dicatos dispés que estes deveriam se constituir “com o espirito de harmonia entre patrdes e operarios”, ambos “ligados por conselhos permanentes de conciliagao e arbitragem, destinados a dirimir as divergéncias e contestages entre o capital e o trabalho”. Do mesmo modo, do interior do Departamento Estadual do Trabalho de Sao Paulo, criado em 1911, algumas vozes se fizeram ouvir durante a Primeira Republica acerca das vantagens de formar e institucionalizar érgaos de conciliagao e arbitragem, sob a media- 30 do Estado, a partir de experiéncias internacionais* Porém, propostas e iniciativas mais sistematicas nesse sentido tiveram inicio no ano de 1918, quando a Camara dos Deputados comegou a tomar as primeiras medidas referentes & elaboracao de uma legislagao social no Brasil: © clima era de intensa agitagio operdria, sobretudo nas maiores cidades, Rio de Janeiro e Sao Paulo, que assistiram a grandes greves em 1917 €, no caso do Rio, auma revolta anarquista particularmente violenta, nos meses finais de 1918. Para culminar, a gripe espanhola aterrorizava a todos, matando indiscriminadamente ricos e pobres, patrées e trabalha- dores, colocando na ordem do dia a questao da responsabilidade do Estado no ambito da saide publica. Também no plano internacional o clima era de preocupagao com a “questo operaria”, pois, em 1919, com o fim da Primeira Guerra Mundial, tanto a Conferéncia de Paz quanto 0 proprio Tratado de Versalhes, do qual o Brasil foi signatario, recomendaram o reconhecimento dos novos direitos sociais representativos da sociedade do pés-guerra. Para o bem de todos, deveriam cessar as resisténcias 4 decretacao de leis sobre as condigées de trabalho, bem como a abstengao do Estado na matéria, ja que o bem-estar dos trabalhadores seria também o da sociedade em geral. Alias, 0 representante brasileiro na Conferéncia de Paz foi o paraibano Epitacio Pessoa, que, devido aos falecimentos sucessivos do pre- sidente da Republica — Rodrigues Alves (de gripe espanhola) e de seu vice, Delfim Moreira —, foi indicado pela coalizao Sao Paulo-Minas Gerais como candidato 4 Presidéncia. A situagao in- ternacional, a agitacao operaria, a carestia e a inesperada sucessao 1s 16 | A.pr C. Gomes, F. T. pa Sitva presidencial fizeram com que o ano de 1919 e.os seguintes se tornassem um momento significativo do debate sobre a questao social no Brasil. Foi nesse contexto que Mauricio de Lacerda, deputado fe- deral pelo estado do Rio de Janeiro, comegou a apresentar uma série de projetos, visando regulamentar diversos aspectos das condigées de trabalho vigentes. Entre eles estava 0 projeto de 2 de julho de 1917, que propunha o estabelecimento de Comissbes de Conciliagao e de Conselhos de Arbitragem, que teriam 0 objetivo de dirimir conflitos e, por isso mesmo, previam a representacao de operdrios ¢ de patrdes. Todos esses varios projetos sobre os “problemas do trabalho” seriam reunidos pela Comissio de Cons- tituigdo © Justica da Cémara dos Deputados em um substitutivo, ode n, 284, que recomendava a votagao de um Codigo de Traba- lho. Evidentemente, ¢ impossivel acompanhar aqui os tramites de tal proposta, que continuaria a ser alvo de acirrados debates ¢ muitas resisténcias ao longo dos anos de 1918 ¢ 1919. Mas importa assinalar que, ao mesmo tempo em que isso ocorria, Mauricio de Lacerda encaminhava 0 projeto de criagio de um Departamento Nacional do Trabalho (DNT). O projeto do DNT foi aprovado pela Camara em 19 de dezembro de 1917 e pelo Senado em 1918. © objetivo do érgio, a ser criado como parte da adminis- tragdo do Ministério da Agricultura, Indastria e Comércio, seria realizar estudos, preparar ¢ por em execugao medidas referentes ao trabalho em geral, devendo transformar-se, no futuro, em um Ministério doTrabalho, Concebido como orgao maximo de estudos ¢ fiscalizagao de uma legislagao social, o DNT teria também com- peténcia para dirimir conflitos de trabalho’. O exemplo lembrado na ocasiao foi o do departamento ja existente em Sao Paulo, que experimentava inovagdes do género, Nesse mesmo estado, alias, o entao governador Washington Luiz estabeleceria, em 1922, os Tribunais Rurais, com a fungao de resolver conflitos entre fazen- deiros ¢ colonos, surgidos, em boa parte, segundo se alegava, pela presenga maciga de imigrantes. Entretanto, apesar da aprovacao legislativa, o DNT nunca chegou a ser implantado. " APRESENTAGKO | O decreto n, 16.027, de 30 de abril de 1923°, acabou por san- cionar o Conselho Nacional do Trabalho (CNT), com fungdes um pouco diferentes. Na verdade, a criagao do CNT significou 0 aban- dono do projeto do DNT, que foi criticado ¢ recusado pelo patro- nato, especialmente por sua competéncia de arbitro nos conflitos do capital e trabalho, até entao afetos 4 esfera policial. O CNT esvaziou a ideia do DNT, atenuando as fungdes deste, j4 que seria apenas um orgao consultivo, e nao administrativo. O fato de nao Ihe caber realizar 0 estudo e 0 planejamento de uma legislagao social, e de nao ter competéncia para dirimir conflitos de trabalho, facilitou, sem duvida, a aceitagao dos patrées. O CNT também se subordinava ao Ministério da Agricultura, Industria e Comercio, sendo presidido pelo ministro e composto por doze membros escolhidos pelo presidente da Repiblica, dos quais oito representantes do governo (dois altos funcionarios do Ministério da Agricultura e seis pessoas de reconhecida compe~ téncia), dois patrdes ¢ dois trabalhadores. Ou seja, da mesma forma que as Comissoes de Conciliagio e os Conselhos de Arbi- tragem propostos em 1917, 0 CNT de 1923 inclufa em sua com- posigao a representagao dos interesses de patrées e de trabalha~ ores. Um pouco depois, em 1928, 0 drgéo seria reorganizado pelo decreto n. 18.078, que The atribuiu competéncia para julgar processos relativos a questoes de trabalho. O Conselho entao mediou e julgou conflitos entre trabalhadores e patrées, fixando jurisprudéncia, por exemplo, no ambito da estabilidade no em- prego, da lei de férias ¢ das pensdes dos ferrovidrios’. Desde que foi criado, o CNT conviveu com o Conselho Su- perior do Comércio e da Indistria, também érgao de assessoria do Ministerio da Agricultura, Industria e Comércio, do qual par ticipavam parlamentares, altos funcionarios publicos ¢ empresarios do comércio e da industria do pais. Portanto, em fins da década de 1920, estava montada uma estrutura institucional para o trata- mento das questoes do trabalho, da indistria e do comércio, com vinculagao direta ao Poder Executivo. Nos dois casos, os Conselhos eram formalmente abertos a participagao das classes interessadas, o que logicamente beneficiava 0 patronato, que tinha maior dis- y | 18 | A.pe C. Gomes, F. T. pa Sitva ponibilidade de tempo e melhores condigSes de usar esses espagos para influir politicamente. O CNT, nesse sentido, seria um dos mais importantes locais de atuagao, uma vez que, ndo conseguin- do impedir a proposigao ¢ a votagao de leis que regulamentavam o mercado de trabalho pelo Congresso Nacional, os patrdes podiam influir nas condigdes de sua aplicagio, sobretudo ao intervir na elaboragao dos regulamentos, que eram atribuigao do CNT’. Nao é, portanto, surpreendente, considerando a movimen- taco e as demandas dos trabalhadores, de um lado, e os debates ocorridos no Congresso, de outro, que o tema da questo social surgisse nas plataformas de candidatos i Presidéncia da Repablica. Rui Barbosa, em 1919, concorrendo com Epitacio Pessoa como um verdadeiro anticandidato, inaugurou essa pratica e sensibilizou muitos eleitores, inclusive ao se referir a0 personagem-simbolo das misérias do povo brasileiro, recém-criado por Monteiro Lo- bato, 0 Jeca Tatu. O programa oficial lido por Washington Luiz em dezembro de 1925, quando do langamento de sua candidatura, também mencionava a questo social, embora procurasse demons- trar que as causas ou os agentes das reivindicagdes ndo provinham da sociedade brasileira. Se a questao social existia, ndo era colo- cada como uma questio sociceconémica, sim como um problema de natureza moral e sanitaria, que dizia respeito ao bem-estar da familia do trabalhador. De toda forma, entre os anos de 1927 € 1929, a mobilizagao politica dos trabalhadores como legitimos participantes do processo eleitoral marcou algumas campanhas, sobretudo com a formagio do Bloco Operario, que reivindicava leis sociais e denunciava seu descumprimento € a falta de fiscali- zagio, com orienta¢ao do Partido Comunista do Brasil (PCB). Assim, quando Getilio Vargas, em janeiro de 1930, fez seu comicio na Esplanada do Castelo como candidato de oposigao da Alianga Liberal, ele nao inovou ao tocar na questao social. A no- vidade de sua fala ao mencionar o tema foi a forma como o fez, reconhecendo sua existéncia real ¢ acusando os governos ante- riores, bem como seu concorrente, Julio Prestes, de nao o quere- rem enfrentar. A questo social era uma “questo real e econémica”, que deveria ser tratada pelo Estado por meio da regulamentagao AMAA AA ALATA NAAT TTA APRESENTAGAO das relagdes capital-trabalho. Isso nao deveria ser visto como anor- malidade, mas, 20 contrario, como um sinal do nosso préprio progresso como nagao. Ou seja, a questao social deveria ser re- conhecida ¢ regulamentada, uma vez. que nao era a sua existéncia, mas 0 fato de ignora-la, que trazia problemas ao desenvolvimento econdmico ¢ social do pais. A Como se sabe, Gettilio Vargas perdeu as eleigdes. Contudo, sustentado por aliangas que reuniam setores oligarquicos descon- tentes e liderangas do chamado movimento tenentista, que ja vi- nham contestando o pacto politico que garantia um equilibrio cada vez mais instavel 4 Primeira Republica, desencadeou uma reagao armada, em outubro de 1930, que depés o presidente em exerci- cio e encerrou a experiéncia inaugurada pela Constituigao de 1891. No que nos interessa, a chamada Revolucio de 1930 é consensual- mente reconhecida como um marco na historia do Brasil, assina- lando mudangas politicas ¢, especialmente, transformacées eco- ndmicas ¢ sociais. Entre tais transformages, avulta em importan- ‘cia a criagao de dois ministérios, nao casualmente chamados, na época, de “os ministérios da revolugao”: o da Educagio e Satide & o do Trabalho, Industria e Comércio. Em ambos 0s casos, 0 que fica evidenciado é uma nova presenca do Estado em assuntos “de interesse social”, expressa na montagem de uma burocracia que se encarregaria de formular, implementar e fiscalizar politicas publicas destinadas a enfrentar os problemas afetos a essas areas, até entao estranhas a intervengio estatal. No que diz respeito 4 questao do trabalho, tais politicas abarcavam todo um conjunto de leis trabalhistas, previdencidrias © também voltadas para 0 “problema” da organizagao sindical, orientadas, de uma forma geral, mas cada vez mais claramente, por uma diretriz de teor corporativista, Ou seja, uma diretriz politica que valorava as “corporagdes de interesses” e os érgios técnicos, como instrumentos de colaborag3o com o Estado, em suas competéncias especificas. Justamente em vinculagao com os ig at ly .pe C. Gomes, F. T. pa Sitva ideais corporativistas, que eram os da harmonia social, sobretudo no campo das relagdes de trabalho, e, para completar 0 quadro, © projeto politico dos que tomaram o poder em 1930 acolhia a instituigio de uma Justiga do Trabalho, concebida como uma jus- tiga especial pelas matérias que lhe caberia julgar, diretamente vinculada ao Ministério do Trabalho, Industria e Comércio®. Des- tinada a tratar e conciliar os conflitos inerentes as relagSes entre empregadores e empregados, segundo a terminologia da época, a criag&o e o funcionamento dessa institui¢ao tardaram alguns anos. Embora tendo antecedentes nas praticas de érgios como 0 Con- selho Nacional do Trabalho, a Justica do Trabalho foi criada pela| Constituigao de 1934, mas sd comegou a funcionar no periodo do, Estado Novo, precisamente em 1% de maio de 1941, nao casual- mente um dia destinado a festejar o trabalho e os trabalhadores. | Por conseguinte, mesmo apés 1930, a criagao dessa institui- do nao foi algo simples, tendo enfrentado varios obstaculos. Uma maneira de percorrer esse tempo, que cobre toda a agitada déca- da de 1930, com suas acirradas lutas, envolvendo uma guerra civil © uma Assembleia Nacional Constituinte, ¢ recorrer ao relato de dois atores dessa histéria. Atores muito especiais, pela relevancia que viriam a ter no campo do direito do trabalho, que tornam mais vivida a experiéncia cotidiana dos que experimentaram as primeiras agdes dos orgios que estiveram, na pratica, nos alicerces \ da Justiga do Trabalho, A escolha desses dois guias, Evaristo de \ Moraes Filho e Arnaldo Sussekind — a despeito da extensio das citagdes que serio realizadas —, justifica-se pela riqueza de seus depoimentos, em especial quando contrastados com a falta de outras fontes historicas que nos deem acesso a esses momentos iniciais de funcionamento desses tipos de orgao trabalhistas’. Comegando com 0 professor Evaristo, como ele gosta de ser chamado, podemos nos aproximar das duas instituigdes que se debrugavam sobre os conflitos entre patroes e trabalhadores, ainda as Comissdes Mistas de Con- na primeira metade dos anos 193 ciliag3o e as Juntas de Conciliagao e Arbitragem. As Comissdes Mistas de Conciliagao nao eram drgios julgadores. Visando apenas A conciliagdo, como 0 nome indicava, tratavam de fazer a mediagao perarpaementerz rece TTP TH A WMateaecratanearecee ApRESENTAGAO dos conflitos coletivos do trabalho. Havendo acordo, este era la- vrado. Caso contrario, propunha-se a adogio de juizo arbitral e, em iltima hipétese, o caso era remetido ao ministro do Trabalho para tentar resolver a controvérsia. As Juntas eram orgios admi- nistrativos, sem carater jurisdicional, com autoridade para impor a solucao do conflito as partes litigantes, embora nao pudessem executar suas decisdes. Para tanto, os procuradores do Departa- mento Nacional do Trabalho, integrante do novo Ministério do Trabalho, Industria e Comércio, deveriam iniciar, perante a Jus- tiga Comum, a execucao das decisées das Juntas, que sd assim se efetivariam, Com tais prerrogativas, ainda muito limitadas, mesmo assu- mindo-se 0 olhar dos contemporaneos, e seguindo a narrativa do jovem Evaristo, podemos verificar tanto as precarias condig6es em que tais érgdos comegaram a atuar, o que evidenciava seu desprestigio, quanto a importancia de seu funcionamento, per- ceptivel a partir das reagdes que gerava, quer entre os patroes, quer entre os trabalhadores, ambos, inclusive, “desconfiando” do que entao se pretendia inaugurar. Em tempos em que nao existiam concursos e, em especial, para quem tinha pais atuantes na area do dircito (como Evaristo e Arnaldo), a historia das origens da Justiga do Trabalho se mistura com historias de familia, de amiza- de, enfim, com redes de relagdes sociais. mais do que oportuno, portanto, dar a palavra ao Dr. Evaristo de Moraes Filho". Ele nos conta que [em 25 de abril de 1934, meu pai] telefonou para a casa de minha mie, onde eu morava, e me disse: “Va correndo ao Ministério do Trabalho tomar posse! Vocé foi nomeado”. [...] O Ministério [do Trabalho, Indistria e Comércio] funcionava na esquina da Rua do Lavradio com o Campo de Santana, atual Praga da Republica. [...]. Tomei posse, meio timido, antes mesmo de ter, completado 20 anos. Nem sabia qual seria a minha fungao. Quem me orientou foi um funciondrio simpatico, que depois ficou meu amigo, Nilton da Silva Lima [...]: “Apresente-se a0 Departamento Nacional do Trabalho”. Fiquei em célicas! HReHMR NRHN AHNENAIHHRRHAANNNARNA ARRAN ANN ANTI AANNNTTT [2 a | A.vr C. Gomes, F. T. pa Sitva Eu era secretério das Comissdes Mistas de Conciliagio"', criadas pelo decreto n. 21.396, de 12 de maio de 1932, e cujos presidentes eram Gabriel Bernardes e Francisco Eulalio do Nascimento Silva Filho. Advogados, homens de meia-idade, no ganhavam nada: prestavam servicos publicos. Meu cargo se destacava porque as comissdes nao faziam parte do organograma do Ministério, nem cram presididas por funciondrios, La permaneci de 25 de abril de 1934 a margo de 1941. [...]. Ocupavamos o antigo Pavilhao Brita- nico, construido para as comemoragées do Centengrio da Inde- pendéncia, em 1922. [...]. Nosso iinico movel era uma escrivaninha, mais nada, Todo material era guardado ali: uma maquina de escre- ver e os papéis referentes aos processos. Depois nos mudamos para a Rua Santa Luzia, 200. Cabia-me tocar a rotina, Eu ia la todo dia. [...] Realmente, ¢ o secretario que organiza, convoca, elabora as atas, mantendo-se a par de todos os servigos, muito mais do que o presidente. [...]- Responsével pelas atas, tinha sob minhas ordens um auxiliar ¢ um continuo. As Comissées compunham-se de seis membros: trés representantes dos empregados, trés dos empregadores, ¢ 0 pre- sidente. Ficava a meu cargo tomar as notas. S6 se tratava de ma- téria coletiva; as questdes individuais competiam as Juntas [de Conciliagao ¢ Julgamento]. As vezes, d 2 de se conseguir um acordo. {...](As convengdes coletivas de tra- balho eram elaboradas pela Comissio Mista: a duragao da jornada, © perfodo de férias, as indenizagies. [...]. As Juntas debatiam ‘omissio_tratavamos de rriam 19 sessdes antes aviso prévio, dispensa etc., enquanto ns direitos coletivos, o que exigia mais tempo, evidentemente. Sd em dois estados criaram-se Comissées Mistas: Rio de Janeiro e Sao Paulo, Eu secretariava as duas existentes no Rio, mantendo, inclu- sive, contato com as liderangas sindicais. [...]. O pessoal mais radical nao dava bola, nem ia lé. {...]. Aquela foi uma época de muitas greves ¢ intensa agitagao. A &poca de intensa agitagao, quando trabalhadores “mais ApRESENTAGAO | 23 episodio da chamada Intentona Comunista — desabasse fortemen- te sobre o pais e, em particular, sobre o movimento operario e sindical. O “perigo” do comunismo existente e principalmente criado por um discurso governamental alarmista autorizou, inclu- sive com apoio do Poder Legislativo, perseguigdes, prisdes, esta- do de sitio ¢ uma Lei de Seguranga Nacional. Uma situagio que iria se agravar com o decorrer do ano de 1936 € que em 1937 ganharia os contornos de uma conspiragao entre civis e militares, que desembocou no golpe que instaurou o Estado Novo. Evaristo ainda se encontrava no Rio, trabalhando no DNT, mas em clima bem diverso daquele encontrado em 1934, contempor4neo aos trabalhos de uma Assembleia Nacional Constituinte. Pois é nesse momento que Arnaldo Sussekind entra na historia, quer dizer, entra no Ministério do Trabalho, igualmente pelas maos de seu pai”, Segundo ele: Eu passara do terceiro para o quarto ano, e estava em vias de completar 20 anos. Achei que era a ocas‘io de ganhar um dinhei- rinho, trabalhando, ¢ meu pai era de opiniao que eu devia fazer © que hoje se chamaria estagio, que nao existia na época. [...]- Em vista disso, meu pai conseguiu, através de um advogado cea- rense, Sebastido Moreira de Azevedo, entrar em contato com o ministro do Trabalho, Waldemar Falcao. Foi esse ministro que me encaminhou ao Dr. Francisco Barbosa de Resende, advogado, pre- sidente do Conselho Nacional do Trabalho, e também amigo do meu pai. Assim, em 21 de janeiro de 1938 fui nomeado auxiliar de escrita do Conselho Nacional do Trabalho (CNT)"’. [...]. Era o CNT que autorizava, ou nao, a despedida de funcionarios estaveis das empresas de servigos publicos — empregados da Light, fer- roviarios, maritimos etc. Com mais de 10 anos, mediante inqué- rito administrativo, o trabalhador podia ser suspenso, mas sb o Conselho podia autorizar sua demissio. Depois dessa decisio, cabia recurso de avocatoria a0 ministro do Trabalho, Isso porque, radicais” atuavam via greves e rejeitando comparecer 4s comissées de conciliagao, certamente corresponde aos anos de 1934 € 1935, nesse ultimo caso, antes que a repressdo governamental — moti vada pela formagio da Alianga Nacional Libertadora, seguida do antes da Justica do Trabalho, bastava um simples despacho do ministro do Trabalho para colocar abaixo uma decisio do CNT, constitufdo por representantes do governo, de empregados e de empregadores. [ 24 | A.pe C. Gomes, F. T. pa SiLva Na Assembleia Constituinte, foi o deputado Abelardo Marinho que apresentou a proposta de criagao da Justiga do Trabalho. Simulta- neamente, 0 entao deputado Waldemar Falcio — futuro ministro do Trabalho — apresentou outra proposigao no mesmo sentido. Prado Kelly incumbiu-se de fundi-las, ¢ a aprovagio se dew. De maneira que foi a Constituigao de 1934 que instituiu ou determi- nou a criagao da Justia do Trabalho, fixando sua competéncia etc. [Entio] Vargas e 0 seu novo ministro do Trabalho, o politico per- nambucano Agamenon Magalies, articularam-se e nomearam uma comissdo, presidida por Oliveira Vianna, para elaborar o projeto de lei que tornaria efetiva a Justiga do Trabalho. Enviado ao Con- gresso Nacional, o projeto foi distribuido 4 Comissio de Consti- tuicao e Justica, presidida pelo entio professor de direito comer- cial da Universidade de Sao Paulo, Valdemar Ferreira, que se avo- cou 0 encargo de relaté-lo. Notavel foi o debate publico que se travou, entao, entre o relator e o autor do projeto. Valdemar nao admitia certas normas inter- vencionistas da Justiga do Trabalho, basicamente, o seu poder de editar normas ao resolver um dissidio coletivo. Para ele, isso sig- nificava uma deturpacio do Poder Judiciario, posto que, do ponto de vista material, a decisio normativa se equipararia a uma lei, caracterizando delegagéo de poder que a Constituigao vedava. Oliveira Vianna retrucava, dizendo nao ser possivel examinar 0 projeto A luz de conceitos do direito tradicional; era precisamen- te porque os tribunais da justica comum nao satisfaziam — ao decidir conflitos coletivos do trabalho — que se pensara em criar uma justiga para o trabalho. [...]. [Mas] seria por decreto-lei que Getilio Vargas iria instituir a Jus- tiga do Trabalho, segundo © projeto do novo ministro do Trabalho, Waldemar Falco, que sucedera a Agamenon, nomeado interventor em Pernambuco. Ele criou uma comissio, obviamente sob a pre sidéncia de Oliveira Vianna, para elaborar os textos que se trans- formariam no decreto-lei n. 1.237, de 1939, criando a Justiga do Trabalho, ¢ no decreto-lei n. 1.346, reorganizando o Conselho Nacional do Trabalho'*. Ou seja, Arnaldo Sussekind, em 1938, vai “estagiar” no Con- selho Nacional do Trabalho, existente desde 1923, como vimos, ApRESENTAGRO | 25 mas que, em 1930, passa a ser orgio integrante e estratégico do Ministério do Trabalho, pois acima de suas decisdes sé estava a deliberagio do préprio ministro. Essa posigao, inclusive, seria confirmada a partir de 1° de maio de 1941, pois o CNT passaria a funcionar como érgio maximo da Justica do Trabalho. Tal situa- ao foi mantida até a conjuntura de reconstitucionalizagao do pats, em 1946, quando, pelo decreto n. 9.797, o CNT se transformou no Tribunal Superior do Trabalho (TST), ¢ a Justiga do Trabalho dei- xou de ser uma Justiga administrativa, subordinada ao Ministério do Trabalho, para se transformar numa Justiga especial, parte do Poder Judiciario do Brasil. Como se vé, os anos 1930-1940 sao de importantes experién- cias prAticas e debates tedricos sobre o que deveria ser a Justiga do Trabalho no Brasil. Criada pela Constituigao de 1934, teve fortes opositores no campo juridico, especialmente pelo carater coletivo dos direitos que devia proteger, ao que se aliavam seu carater conciliador e seu poder normativo, interpretado por alguns como uma delegagao de poderes que a Constituigao impedia, isto é, como uma violacao de principios basicos do direito constitucio- nal e do direito civil. A despeito de tudo isso ¢ com certeza devido ao Estado Novo, que outorgou uma nova Constituig¢ao em 1937 € implantou o autoritarismo ¢ 0 corporativismo como orientagdes para uma politica de “paz social” ¢ desenvolvimento econémico, a Justiga do Trabalho comegou a funcionar, nacionalmente, em 1941, Tal Constituigao, alias, vale lembrar, também criou o cargo ‘de procurador-geral do trabalho, bem como as Procuradorias Re- gionais do Trabalho, que deviam funcionar junto aos Conselhos Regionais, posteriormente Tribunais Regionais do Trabalho, Os procuradores — na tradigao francesa os “magistrados de pé” tinham como tarefa assegurar 0 cumprimento da legislagao do trabalho, representando “os fracos ¢ hipossuficientes” e atuando, com os magistrados, para o fortalecimento da justica social'® A Justiga do Trabalho manteria durante varias décadas, basi- camente, a mesma estrutura, cujas caracteristicas essenciais podem ser assim enumeradas: representagao paritaria, oralidade, gratu dade, conciliagio e poder normativo (poder de criar normas ¢ 26 | A.pe C. Gomes, F. T. pa Stiva condig6es de trabalho em decorréncia dos dissidios coletivos), Em linhas gerais, séo esses os aspectos mais salientes, conhecidos e sempre reiterados acerca da Justiga do Trabalho no Brasil, mas, neste livro, receberao o merecido aprofundamento em sdlidas bases historicas e documentais. Ft Nas iltimas trés décadas, no Brasil minais tém sido crescentemente valorizados por historiadores ¢ , processos civeis ¢ cri- cientistas sociais. Por meio do estudo de fontes judiciais, os pes- quisadores ampliaram de forma significativa seus objetos de in- vestiga¢ao. No terreno propriamente da analise do exercicio do poder, entendido em sentido amplo, eles estao interessados em. investigar a historia da criminalidade, as instituigdes juridicas, as agdes normativas da Justica e os mecanismos de disciplinarizagao da sociedade. J4 no campo da histéria social, as fontes judiciais constituem um vasto repertorio para os estudos, principalmente, da histéria do cotidiano e da luta por direitos encetada por homens e mulheres andnimos, escravos, indigenas e os assim chamados “trabalhadores livres”, além das diversas concepgdes em jogo acer- ca das leis, dos direitos ¢ da justica. Certamente, a importancia cada vez mais renovada das fontes judiciais é o resultado, entre outros fatores, de uma mudanga radical na percepgio sobre o lugar da legislagao e de sua aplicagao na historiografia no Brasil ¢ no mundo. Os “de baixo” deixam de ser simples objetos de estru- turas politicas pensadas enquanto aparelhos de dominagao de clas- se e passam a ser interpretados como atores ativos que interpelam as instituigdes normativas, tornando-se sujeitos do proprio orde- namento juridico da sociedade, tanto por meio de suas reivindi- cagdes como de seus embates na arena da Justiga’®. No caso da documentagao referente 4 Justica do Trabalho, contudo, ocorreu e ainda ocorre uma situacio especifica e sempre muito preocupante para todos os interessados na preservacao da memoria e no direito a historia. Ano apés ano, a pratica tem sido a climinagao sistematica de milhares de processos trabalhistas, APRESENTAGAO | 29 sejam eles dissidios individuais, sejam coletivos, sob 0 manto protetor da lei n. 7.627, de 10 de novembro de 1987, que autoriza a climinagio pura e simples dos autos findos ¢ arquivados ha mais de cinco anos. Essa lei, ainda em vigéncia, é nada menos que uma repeticao doartigo 1.215 da lei n. 6.246, de 7 de outubro de 1975) que, nas palavras do jurista Aliomar Baleeiro, “permitia a qualquer escrivao tocar fogo [...] nos autos judiciais depois de cinco anos de arquivamento””. Na época, juristas, arquivistas ¢ historiadores se mobilizaram e conseguiram, em plena ditadura civil-militar, suspender tao funesta norma legal, que o mesmo Baleeiro chamou de “asnatico art. 1.215”, da lavra do entdo ministro da Justiga Alfredo Buzaid. Apesar dessa conquista, anos mais tarde, a lei de 1987, apenas a titulo de exemplo, colocou na fogueira 205.955 processos do TRT da 2* Regido, com sede em Sio Paulo; em 2002, foram 371.311 e, em, 2005, o total de 539.343'8. Os nameros sao cloquentes o bastante para que precisemos adensar outros exem- »plos igualmente chocantes. De qualquer modo, sio os processos do Judiciério como um todo que estéo em constante risco de destruicdo em massa, com amparo legal. Recentemente, um grupo de historiadores e juris- tas, do qual fazem parte alguns dos colaboradores deste livro, engajou-se na defesa da preservagdo dos processos seriamente ameacados pela proposta do artigo 967 do projeto de lei 166) referente ao novo Cédigo de Processo Civil brasileiro, que tra- mitou no Senado em 2010. A malfadada proposta era uma reedicao do artigo 1.215, de 1975, que, sem qualquer exagero retorico, autorizava a destruigao de quase toda a memoria do Judicidrio istas brasileiro. O grupo preparou uma emenda ao artigo, com a propor agées efetivas de preservagao das fontes judiciais, O empenho pela aprovagio da emenda, apresentada pelo senador Eduardo Suplicy por iniciativa do mesmo grupo, implicou varias mobilizagdes, como abaixo-assinados e artigos na imprensa, além de gestdes junto a politicos, jornalistas e entidades da sociedade civil, como a Associagao Nacional dos Professores Universitarios de Histéria (Anpuh)'®. Em dezembro de 2010, embora a emenda nao fosse colocada em votagao, tal atuagio, com 0 apoio do entio 28 | A.pe C. Gomes, F. T. pa Siiva ministro da Justiga, Luiz Fux, resultou na retirada do infeliz ar- tigo 967 do projeto de lei. ‘Temporariamente aliviados, mas em permanente vigilia, fo- mos ainda mais recentemente surpreendidos com a recomendagao n. 37 do Conselho Nacional de Justiga (CNJ)”, assinada pelo entao ministro Cezar Peluso, “recomendando” a todos os Tribunais do pais a observancia das normas do Programa Nacional de Gestio Documental e Memoria do Poder Judiciério (Proname). Na me- dida em que a Justica do Trabalho é quem detém know how no assunto, a Tabela de Temporalidade de Documentos Unificada da Justica do Trabalho “serviu de subsidio a elaboragao da recomen- dacio”, A tabela propde eliminar os autos findos apés cinco anos que tratem, por exemplo, do trabalho com prote¢ao especial (de- ficientes fisicos, menores e mulheres), da duragao da jornada de trabalho, do direito sindical, da remuneragao e das verbas indeni- zatorias, das demissdes por justa causa, das indenizagGes por as- sédio sexual e da terceirizagao. Embora tal investida contra a memoria ea historia do Poder Judicidrio e do pafs como um todo seja apresentada singelamente como “recomendagao”, 0 documen- to dé ao Comité do Proname, coordenado pelo secretario-geral do Conselho Nacional de Justia, a atribuicio de “acompanhar a aplicagao da presente recomendagao” (grifo nosso)". Além disso, propde formas desastrosas de eliminagéo documental, baseando-se em critérios ja adotados pela Justiga do Trabalho, que esta bem a frente em matéria de destruigao de autos findos. Nao é aqui 0 espaco para entrarmos na discussio sobre os varios problemas que envolvem a terminologia adotada pela re- comendagao, como “valor histérico dos documentos”, “amostra representativa do universo documental” para efeitos de guarda e “desentranhamento das pegas dos processos judiciais”. Basta, por agora, assinalar que todas essas modalidades de eliminagae, pre- sentes na recomendagao ¢ fundamentadas em praticas correntes da Justiga do Trabalho, nao sio recomendiveis por qualquer his- toriador que tenha, no minimo, respeito pelo proprio officio, Em breves palavras, tais critérios ou sao subjetivos (como definir o que é ou nao histérico?), ou amputam irreversivelmente os docu- Apresentagao | a9 mentos (no caso de preservagao apenas de determinadas pegas processuais, como sentengas e acordaos), ou, em conformidade com o método da amostragem “cientificamente orientada”, colo- cam em risco 0 “documento excepcional”, aquele que nao é re- presentativo de algo e constitui uma via rara de acesso a fendme- nos e significados de extrema relevancia para esse ou aquele as- pecto da experiéncia historica”. Em que pesem todas essas iniciativas que atentam contra parte significativa do nosso patriménio histérico ¢ que ferem o direito constitucional 4 meméria, a informagao € a pesquisa, algo nesse cendrio esté mudando. Como vimos, ja surtiu efeitos bas- tante positives a participagao de historiadores, arquivistas, juristas, jornalistas, politicos ¢ diversas entidades da sociedade civil na luta pela preservacio dos documentos do Judicidrio. Tudo isso é o re- sultado de muitas outras agdes conjugadas, que aqui serao apenas brevemente enumeradas: convénios entre universidades e tri- bunais, como o realizado entre a Universidade Federal de Per- nambuco e o TRT da 6* Regiao, por iniciativa dos professores do elaboracao de Departamento de Histéria daquela universidade” bancos de dados”; encontros e semindrios nacionais, que tém produzido varias publicagdes de cunho juridico, arquivistico e historiografico, além de resolugées relevantes e orientadoras na luta pela defesa da meméria da Justiga do Trabalho’’; criagao de memoriais e centros de documentagio em diversos TRTs pais afora, muitos dos quais vém implementando politicas exitosas de compactagao de arquivos, catalogacao e reprodugao documental por meio dos métodos da microfilmagem ¢ da digitalizagio™; ¢ a formacio do influente ¢ respeitado Forum Nacional Permanente em Defesa da Memoria da Justica do Trabalho, presidido de 2007 a 2010 pela desembargadora Magda Barros Biavaschi, que integra 0 corpo de colaboradores deste livro; 0 objetivo do Férum, entre outros, é implementar projetos e agées voltados a preservagao das fontes junto ao CNT e outros orgios do Judicidrio. E motivo de jabilo também que o acervo documental do TRT da 6 Regido, com sede no Recife, tenha sido nominado, em 2012, patriménio da Humanidade pela Organizacao das Nagées Unidas ree 3o | A.ve C. Gomes, F. T. pa S1Lva para a Educagao, a Ciéncia ¢ a Cultura (Unesco). Outrossim, a Anpuh esta a frente dos esforgos destinados a tratar do tema da preservagao como parte de uma legislacao especial, a ser discuti- dae elaborada no Ambito do Conselho Nacional de Arquivos (Co- narq), com a participagao mais efetiva de historiadores, entre outros profissionais. Com efeito, cabe registrar que recentemen- te a Anpuh conquistou assento na Camara Setorial sobre Arquivos do Judicidrio (Csaj) do Conarq, contando com a participacao de um dos organizadores deste livro, Fernando Teixeira da Silva. Toda essa produgio coletiva vem sensibilizando ¢ incorporando cada vez mais autoridades responsdveis pela gestao documental do Ju- diciario. Emerge, assim, uma nova perspectiva que visa criar politicas reais de preservagao, com a participagio efetiva do proprio Judi- ciério, 0 que vai ao encontro da legislagao federal que regula 0 tema, na medida em que a chamada “lei nacional de arquivos” (lei n, 8.159, de 1991) determina ser “dever do Poder Publico a gestao documental ea protecao especial a documentos de arquivos, como instrumento de apoio a administragao, a cultura, ao desenvolvi- mento cientifico e como elementos de prova e informagio””. Deste modo, o sempre evocado, € muitas vezes real, problema da falta de espaco e de recursos para justificar verdadeiras politicas de eliminacao de fontes vem cedendo terreno para a percep¢io de que a documentagao nao deve ser vista tao somente como atividade-meio dos drgios judiciarios, com valor meramente ad- ministrativo, mas também como atividade-fim, destinada 4 pes- quisa e ao direito coletivo 4 memoria, necessitando para isso de rubrica especial no orgamento do Judiciério a fim de atingir uma preservacio verdadeiramente rigorosa dos autos. Por fim, mas nao menos importante, queremos assinalar que, ao lado de todo esse movimento, também cresceram as pesquisas que investem no tragado do perfil sociologico dos operadores do direito, realizando surveys que, pela primeira vez, langam um olhar sobre quem sao esses importantes atores histéricos, do ponto de vista de suas origens familiares, formagao, casamento, idade, cor © outras varidveis. A “Justica” ganha assim outro tipo de concre- APRESENTAGAO tude. Os avangos da metodologia de historia oral no Brasil e sua jd afirmada credibilidade possibilitaram que esses agentes concor- dassem em conceder entrevistas, tragando suas historias de vida © refletindo sobre suas experiéncias profissionais. Sio grandes avangos que envolvem varios operadores do direito, mas, bem mais recentemente, que passaram também a incluir aqueles en- yolvidos com a Justiga do Trabalho, quer mais diretamente (os magistrados), quer indiretamente (os procuradores do Ministerio Piiblico do Trabalhoy’*. rt esta perspectiva, a utilizagao sistematica de fontes da Jus- tiga do Trabalho brasileira — sejam textuais ou orais — é uma pratica académica também muito recente © fecunda no campo da histOria social do trabalho, que vem acompanhando essa mobili- zagio em prol da meméria do Judiciério e da preservacio de suas fontes, Talvez muitos outros fatores, de ordem teérica e metodo- logica, tenham concorrido para a demiora dessa descoberta, so- mando-se as questdes objetivas de acesso a documentagao da Jus- tiga do Trabalho. Um deles foi certamente a suposi¢ao, afirmada e muito acre- ditada, de que as leis trabalhistas e a Justiga do Trabalho teriam sido o simples decalque da Carta del Lavoro da Italia fascista. En- tretanto, no caso especifico da Justia do Trabalho, se o lugar para 6 qual ela foi concebida no edificio corporativista brasileiro guar- da semelhangas com o papel da Magistratura del Lavoro italiana no arranjo do corporativismo, por outro lado, a montagem aqui de suas pegas e 0 seu funcionamento foram, em diversos aspectos nada marginais, muito diferentes. Isso se deve a um repertorio internacional rhais amplo de experiéncias congéneres, conhecidas ¢ apropriadas pelos legisladores ¢ juristas brasileiros. Além disso, muitas das caracteristicas da Justiga do Trabalho adotadas no Bra- sil ja estavam cravadas em instituigdes similares implantadas no pals desde os anos 1920, as quais geraram praticas, doutrinas ¢ 32 | A.pe C. Gomes, F. T. pa Sriva jurisprudéncia que influenciaram na montagem do sistema judi- ciario do trabalho durante o Estado Novo”. Ademais, disseminou-se também a ideia de que no Brasil as leis e 0 aparato juridico “sao para inglés ver”, instituigdes indcuas para lidar com os constrangimentos cotidianos dos trabalhadores. Nessa perspectiva, os esforgos legislativos e a construgao dessas instituigdes politicas seriam muito mais o fruto de uma inequi- voca intengao governamental de “manipular” os trabalhadores, tentando fazé-los acreditar nos “bons propésitos” do regime do pos-30, do que um real experimento politico, certamente orien- tado pelas diretrizes ideolégicas de um momento histdrico, em que 0 corporativismo e seus ideais de harmonia social eram bus- cados e valorados como estratégia ¢ arquitetura politicas entio concebidas como modernas. ~~~ Além disso, tem recebido ainda grande aceitagao a interpre- tago segundo a qual 0 aparato juridico e institucional da inter- vengio estatal nas relagdes de: trabalho teria subordinado inte- gralmente os trabalhadores as chamadas estruturas de dominagéo de classe, chegando a impedir sua organizagio ¢ ago auténomas. Todavia, alguns estudos, com significativa fundamentagéo empi- rica, evidenciam que os trabalhadores, desde os anos 1930 e 1940, se apropriaram das leis e do aparato juridico por entender que. ambos constituem uma arena dinamica e complexa de conflitos e negociagio”. HA que destacar também 0 fato de o direito do trabalho ter sido considerado ramo bastardo ou galho de poucos frutos no campo dos estudos jurfdicos, uma concepgio que é identificada pelos préprios magistrados do trabalho, os quais apontam a exis- téncia de uma tradicao de desprestigio do direito do trabalho, visto como um “direito menor” em fungao de suas caracteristicas fundamentais: a sua clientela e 0 valor de suas causas, 0 qual in- teressava “aos menos capazes” no campo do direito. Essa tradigio ou cultura de desprestigio, como é nomeada, estaria presente na sociedade em geral, mas seu nucleo duro seria o Judiciario, espe- cialmente a Justiga Estadual e Federal*!. Cabe assinalar que um primeiro grande marco simbélico de reversio dessa tradigao é a Apresentacio | Constituigdo de 1988, em fungio da valorizago que seu texto confere aos direitos sociais e do trabalho; do fortalecimento/re- © fundagao do Ministério Publico e do Ministério Publico do Tra- balho (com a ago civil publica); e também do reconhecimento da matriz juridica que fundamenta a Justiga do Trabalho — uma justiga dos direitos coletivos —, além de considerar como sujeitos dotados de direitos figuras, entre outras, como o consumidor (Cédigo do Consumidor) e os idosos. Nesse sentido, os direitos do trabalho, mantendo-se como direitos sociais que minimizam as desigualdades em uma socieda- de capitalista, como foram postulados nas décadas de 1930-1940, assumem uma fungao politica precfpua, da qual tinham sido des- tituidos sob o Estado Novo e sob o regime militar, a despeito das estratégias de inclusio social por eles empreendidas. Assumindo essa face abertamente politica, tais direitos se tornam um espago privilegiado para a afirmagao de valores democraticos. Nao causa espanto, dessa forma, que a Justica do Trabalho venha se afirman- do no campo do Judicidrio, tornando-se um espago de inovacées, de eficiéncia ¢ de legitimidade, apesar dos problemas que enfren- tou e logicamente continua enfrentando. Apesar disso tudo, ou talvez até mesmo por causa disso tudo, a histéria da Justiga do Trabalho foi muito mais mencionada do que pesquisada pelos historiadores, destacando-se apenas algumas incursées realizadas por profissionais e académicos da area do direito, ocupados, sobretudo e compreensivelmente, com os as- pectos legais, organizativos e doutrinarios que presidiram a tra- jetoria da instituicdo. Entretanto, algo nesse cenario esta visivel- mente se alterando. Com o crescente interesse da histéria social pela Justica do Trabalho nos ultimos anos, as diversas investigagdes intensivas de numerosas fontes orais e processos envolvendo con- flitos individuais e coletivos tém considerado a diversidade de situagdes e expectativas que motivaram trabalhadores, empresarios ¢ sindicatos a recorrer & Justiga do Trabalho como espago de con- flitos e negociagdes**. Um espago que pode igualmente se expan- dir, na medida em que funcionérios do Ministério do Trabalho tém nele imenso impacto”, para néo mencionar a criagao de um Mi- 33

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