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ERARDO YOEL (ORG) PENSAR U CINEMA IMAGEM, ETICA E FILOSOHA O espelho de duas faces Jean-Louis Comolli Oritmo concede aos homens tanto a suspensao ex- tatica numa dimensao mais original quanto a queda na fuga do tempo mensurével? GlokGIO AcAMBEN Em face da histéria? Em face do cinema. As representacdes vém abaixo. Os referentes vém abaixo, Estamos no momento exato da derrocada. Alguns filmes recentes ~ Dinamite (Dinamite (Nuraxi Fi- 4s), Daniele Segre, 1994], ou Les Mots et la mort: Prague au temps de Stdline [As palavras e a morte: Praga no tempo de Stélin, Bernard Cuau, 1996) - ins- crevem e assinalam, cada um a seu modo, 0 novo género de revolucdo coper- nicana, a reviravolta que hoje pée o cinema no centro de nossa histéria. “Ci- nema’: a forma particularmente densa e resistente do espetaculo generalizado. De resto, parece-me, pouco importa que o espetaculo cinematografico te- nha se tornado minoritério dentro do movimento geral que, de trinta anos Para cd, assiste ao triunfo irrestrito do espetaculo. £ uma forma particular de 1 LHomme sans contenu. Paris: Circé, 1996. + Tal como o caracteriza Guy Debord em A sociedade do espetaculo (1967], trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro; Contraponto, 2009. 165 ‘Ao de uma fita de celuloide numa cinema que se tornou minoritéria: a projes enquanto escrita do visivel e do sala escura. Desde 0 inicio, porém, o cinema, invisivel sobre a tela mental do espectador, ja se opunha raivosamente ao ci- nema-espeticulo, aciimulo sem-fim do visivel, com ou sem espectador. Hoje, rola nas vitrines do armazém geral do espetaculo 0”, Verifica-se, “a la televisdo’, um conflito a mesma batalha se deseni acumulado que se chama “televisai (bastante desigual) entre légicas, procedit tamente cinematogréficos, e outros que decorre feira ou da informagio espetacular (dos concursos de talento aos talk shows, mentos e sistemas de escrita estri- m mais dos espetaculos de reportagens e entrevistas sobre temas da atualidade). O cinema, a exemplo dos espelhos, nao é transparente Aquilo que mostra. Mostrar nada tem de passividade, de inércia, de neutralidade, e, nao obstante a nitidez do ser ou do momento representados, a propria a¢ao de mostrar permanece opaca; segue sendo aco, passagem, opera¢ao, isto é, turbuléncia, perturbacao, nao indiferenca. Essa opacidade do gesto criador nos incomoda, preferimos agir como se o mundo nos fosse dado de direito e de boa vontade, transhicido e ligeiro, isento de ambiguidades, desembaragado das servidées do trabalho da linguagem e do jogo da narracao, sem montagem nem des- montagem. Partilhando do segredo dos espelhos, 0 cinema esforga-se ao ma- ximo por nos fazer crer que reflete aquilo que é, quando ele faz bem melhor (ou bem pior) que isto: fabrica aquilo que vird a ser. Toda maquina supde-se magica para a crianca-espectador, e a ideia de que a maquina-cinema possa “mostrar 0 mundo tal como é” atua como um logro poderoso e talvez necessdrio, Que tenhamos necessidade de logros ¢ algo que interpreto como uma dupla demanda: a de sermos logrados, e a de saber que © somos. Os ilusionismos do espetaculo, as aparigées de feira, os ntimeros de magica sobre estrados do teatro ambulante, as scenic railways, os jogos de simulacao, os repert6rios de imagens virtuais, mas também o cinema - e, muito antes dele, os maquinismos do palco, as pequenas construgées que ornamen- tam parques ¢ jardins -, todas essas armadilhas do visivel e do crivel operam segundo o mesmo principio de duplicidade: para que possa agir sobre nés, © logro precisa ser desvendado, Cedo ou tarde, antes da sesso ou no seu trans- u . Jean-Louis Comolli correr, a consciéncia do logro vira se debater como seu efeito. Pode-se observar o primeiro modelo (quem sabe?) dessa légica do | logro reforcada pela propria deninciaem O homem com a camera (Chelovek s kino-apparatom, Dziga Vertoy, 1929]. Quase na metade do filme, a imagem congela e resvalamos da cinemato- srafia para a fotografia fotogramatica:o filme dé-se a ver “imagem por imagem’, como se diz. Movimentos congelados, imagens fora de foco, poses, é como se 0 mundo que o cinegrafista/ demiurgo se obstinava a pdr em marcha se detivesse. Numa espécie de regressao, retrocedemos da sintese & andlise do movimento, de Lumiere a Marey, ou a Muybridge. Esse desvio analitico nos lembra da existén- cia de uma verdade descontinua da faixa-imagem: com efeito, ela se compée de fotogramas separados que somente a projecao confunde numa ilusao de conti- nuidade. O efeito de verdade, no entanto, sé é possivel pelo redobramento da ilusdo. O movimento na tela congela para nds, espectadores. © mesmo, contudo, nao se dé com o filme. E preciso que a proje¢do, ela mesma, continue, que os fotogramas se sucedam ao ritmo de dezesseis ou dezoito por segundo na janela do projetor, para que na tela possamos ver um a um os fotogramas isolados, sustidos, No cerne da consciéncia do maquinirio intimo do cinema, estamos no auge do logro. A anilise, que desvenda a magia da sintese do movimento, € uma magia ainda mais poderosa, Ela da a conhecer que desfaz 0 logro a fim de reforg4-lo. Ela aumenta a poténcia da ilusao cinematografica no momento mesmo em que parece anulé-la2 Eis como o logro se faz realmente eficaz: no instante em que tomamos consciéncia dele, a consciéncia nao 0 atenua. Ao con- trario, relanga-o. Longe de extingui-lo e neutralizar seu sortilégio, a consciéncia © preserva mais uma vez sob o modo do gozo. Saber faz parte da armadilha, éa mola. O cinema, por sua vez, ¢ sem duivida com maior poténcia que os demais espetdculos baseados na ilusao (a famosa “impressio de realidade”), permite jogar a carta da crenca e a carta da ditvida a um sé tempo, cortar o baralho com. uma ou outra, relancé-las sem fim: queremos um reflexo que obedeca ao mundo, que nos tranquilize quanto a sua existéncia e disponibilidade relativa, e, por ou- tro lado, uma representagao que possa substituir-se ao mundo para encanté-lo ou conjurar-Ihe os perigos, o espetéculo do mundo tornando-se “o mundo’, um mundo suplementar, um mundo substitutivo. 3. Jean-Louis Comolli, “LAvenir de 'homme’: Trafic, n. 15, vero 1995. Oespetho de duas faces 7 “Em face da historia’, o cinema, portanto, j4 opera na histéria, ja € historia em vias de se fazer traco visivel, arquivo, espetaculo. A sesso cinematografica estabelece uma cena que nunca esta fora da histéria, na medida em que a his- toria do século é em grande parte feita de representagoes cinematograficas e, por conseguinte, fabricada em correlagao com 0 espetaculo cinematografico e sob sua forma, ou pelo menos transmitida e difundida desse modo. Filho do século que assiste ao triunfo do espetacular, o cinema é, ao mesmo tempo, ob- jeto e agente, empreendedor e arquivista, ator e memoria desse triunfo. Longe de “refletir” determinado acontecimento, situa¢ao, a¢ao ou realidade dada, o filme os constréi (quando nao os suscita); ele os produz enquanto even- tos filmicos, realidades filmadas. As grandes encenagées bélicas ou politicas en- contram no século xx seu remate filmico; melhor: elas sofrem a influéncia e o fascinio das grandes encenacées cinematograficas, inspiram-se nelas, rivalizam com elas. O cinema atua aqui como meio e fim, como instrumento e modelo. Seria enorme ingenuidade pensar que, na época da generalizacao do espetaculo, © cinema se contentaria em “mostrar” ou “refletir” uma histéria que se fizesse 4 sua revelia: o cinema encena, fabrica, representa a histéria - no sentido de tornd-la presente para si, configuré-la, atribuir-lhe as formas que a tornarao de- finitivamente visivel. Pretendendo-se sempre “reflexos daquilo que foi”, arquivos, atualidades, documentos filmados nao passam de construgdes mascaradas de inocéncia. Neste século, o cinema se ocupa de tudo, mistura-se a tudo. Nao ha nada que ndo seja filmado, que nao se possa filmar ou que nao filme. Era uma vez o cinema militante Que nao é mais o que era. Militar, para um filme, era carregar no explicito: ser til a uma causa (qualquer uma), difundir uma palavra de ordem, servir a um partido, a uma coalizio de interesses, fazer a Propaganda (ou a contrapropa- ganda) de uma ideologia. Todas essas definigdes apontam para uma mesma vontade de “instrumentalizar” o cinema, como se dizia naqueles tempos.‘No 4 Quer se trate, no melhor dos casos, de Kuhle Wampe ou A quem pertence o mundo? [Kuhle Wampe oder: Wem gehért die Welt? ,Slatan Dudow, roteiro de Bertolt Brecht, 1932] ou de La 168 Jean-Louis Comolli final do século, no entanto, apés tropecos e fracassos, a Parte nao “instrumen- talizada” do cinema ainda resiste. No longo prazo, a forca de paciéncia e obs- tinagao, o cinema se aguentou melhor do que as ideologias que queriam pé-lo ao seu servico. Sonhemos um pouco. (Nao ¢ esse, alids, 0 método do cinema, transformar a histéria em sonho?) A onda de ambiguidade que todo gesto ci- nematogréfico irresistivelmente propaga teria terminado, talvez, por abalar as concepgées teleoldgicas, desarranjar as totalizagdes, minar as intransigéncias, desmentir os slogans ou fazé-los mentir. E os mecanismos de crenca acionados pelo cinema, mais ardilosos, teriam tido mais chances de agradar - logo, de perdurar ~ do que as adesdes sumarias exigidas pelos fanatismos. A crenga, isto 6, a ditvida como corruptora do dogma. A luz baga e bruxuleante das telas obscurecendo o brilho reconfortante das certezas militantes. O mundo filmado terd sido uma utopia mais forte que o mundo sonhado pelas utopias politicas. Em outros tempos, lembramos, podemos recolher seus tragos ~ os da ado- racdo de Stalin, por exemplo, mostrada em Les Mots et la mort -, em outros tempos 0 cinema militante mobilizava menos um principio de crenga do que uma peticao de principio — cren¢a que implicava duivida contra a submissao prestada com paixao. Pois a paixao fandtica tendia antes para a obediéncia € para o respeito, reinava a ordem, a disciplina e a razio eram sempre utili- zadas como argumento, numa espécie de obsessdo pedagégica. E 0 cinema militante tinha sido quase 0 tempo todo demasiado respeitoso, partidario da ordem, obediente aos lemas, “seguidor da linha” e, no final das contas, conformista. E licito, portanto, indagar se os filmes de propaganda alguma vez pretenderam outra coisa que nao persuadir espectadores jé ganhos de antemio, consagrados ao ideal, jé forjados, inabaléveis, os quais na realidade s6 restava aprimorar. A espécie de crenga exigida pelo cinema militante cir- culava em circuito fechado. Era estabelecida antes do filme e sem ele, e depois dele fortificada, corroborada, porém inalterada. Havia nisso, contudo, uma grande violéncia perpetrada contra o cinema por aqueles que nao admitiam. nada que pudesse alterar a “mensagem” de um filme, nenhum encontro com nenhum espectador, nenhuma epifania, nenhuma encarnagao. La Vie est @ nous {Jean Renoir et al., 1936], nao vejo muita diferenca entre “cinema © “propaganda filmada’, Ocespelho de duas faces ° Na escuridao da sala, animada unicamente pelo feixe de luz do projetor que atinge a tela, intuimos que a crenca do espectador nos efeitos de reali- dade produzidos pela representacao filmica nao chega a desfazer de todo a diivida que o acomete: vé-se a si mesmo no logro da cena que se abre a sua frente, e, a um s6 tempo, no seu lugar, aqui e agora, na penumbra, no centro de um dispositivo maquinico invisivel que, contudo, antes que o poder da ilusao cinematografica possa furta-lo a consciéncia, sempre se confessa como tal, quando mais nao seja pelo ritual de abertura da sesso: ocupam-se os assentos, apagam-se as luzes da sala, e assim por diante - é 0 inicio de O ho- mem com a camera, de Dziga Vertov’ O poder de ilusao esta intimamente ligado & mediacao da maquina. Se me vejo propenso a esquecer as condicdes concretas e praticas da sessao de cinema e passo a crer que o espetaculo do mundo se confunde, pelo tempo da sesso, com o préprio mundo, € porque sei bem que uma maquina o permite, permite-o a mim, e que por intermédio dela vejo o mundo que me é oferecido, fiel a si mesmo. Imagino 0 mundo ofe- recido sem resto & maquina, para que esta possa representé-lo para mim tal como 0 meu desejo supde que ele seja: “tal como em si mesmo” Esse desejo denegador é fundamental na operacio cinematogréfica; ele funda a dupli- cidade que rege o lugar do espectador. Sei muito bem que o cinema é ape- nas um espetéculo a base de maquinas, mas ainda assim creio que o mundo se Ihe entrega fielmente. Sei muito bem que tudo nao passa de ilusio, mas creio nela como na prépria coisa, Fantasma de onipoténcia do espectador: querer possuir a coisa, ¢ nao sua aparéncia (sémblant], ou melhor, querer fa- zer da aparéncia a propria coisa. Essa operagio psicolégica particularmente tortuosa parece, de inicio, provocar um curto-circuito na subjetividade do espectador: “A ilusdo nao passa de fantasia minha, capricho meu’, para, em seguida, exacerba-la ainda mais: “A iluso é meu desejo, minha necessidade’, Sob a mascara da “objetividade maquinica’, a dimensio inconsciente do su- jeito adianta-se ao espectador. Sujeito, isto é, dtivida, crise, divisao, supléncia. (Let There Be Light, 1946, 0 magnifico filme de John Houston, mostra como a guerra destréi as defesas psiquicas dos soldados em estado de “choque’, e, a0 mesmo tempo, como a instituigdo psiquiatrica, mediante técnicas de entre- 5 JL. Comolli, LAvenir de homme, op. cit. 170 Jean-Louis Comolll yista e de sugestao, as reconstr6i — ¢, sobretudo, como uma fase e outra se su- cedem na presenca da maquina cinematogrifica, com ela, talvez para ela, que Ihes dé, em ambos os casos, faléncia ou renascimento do sujeito, um grande poder de emocio.) O desvio pela méquina tem como resultado, portanto, 0 acionamento de toda espécie de irrupgGes subjetivas. Se a maquina esté ali, io é para recusar 0 sujeito, e sim para lev-lo a vertigem, Friso este ponto: a fim de excitar, exaltar ¢ intensificar 0 que hé de mais subjetivo em todo espec- tador, é preciso uma maquina. A certeza de haver uma maquina envolvida na operacéo cinematografica libera, de algum modo, a consciéncia do sujeito/ es- pectador de qualquer responsabilidade na produgio (coproducio) das cenas presentes no filme, entretanto, em primeiro lugar, da crenga minima que elas exigem para exercer sua agio. A crenga ¢ atribuida a méquina. A maquina ga- rante ao mesmo tempo a exatiddo fundamental da representagio (a inscri¢io verdadeira) a solidez do crédito que se Ihe dé, como também protege 0 es- pectador de qualquer constrangimento em relagao ao eventual excesso de sua propria credulidade. E um passo a mais no enlace do sujeito com a maquina. ‘A cadeia de denegagées que mantém a relacéo de crenga que estabeleco com o filme termina em gozo, de certo modo inocente (€a maquina que o fabrica), causado pela incessante passagem da crenga & divida. E preciso, para o ci- nespectador, que a duivida se esgote na crenca, e que esta renasa na davida. Esgotamento que é 0 do gozo. Quanto mais tomo consc ncia do logro, mais desejo ser logrado. Tal foi a (cruel) desdita do cinema militante. O cinema dava muita coisa ao militante. Dividas demais, ambiguidades demais - 0 subjetivo em de- ava primeiro de levar adiante masia, 0 sujeito em demasia, quando se trati jetivas”. Arte popular, o ci- uma politica que respondesse “as necessidades obj nema nunca foi uma “arte de massas’, nem mesmo w de massas”, visto que sempre se dirigiu a cada espectad néo a um pablico. A operagao cinematogréfica isola, personaliza, individua- liza, subjetiva. Separa os espectadores uns dos outros para entreté-los um a um, em téte téte, Faz de cada espectador um sujeito envolvido na relacéo atela da sala por uma tela mental. Du- Ita. Duplicidade dificil m “meio de comunicagio or individualmente, € com um filme. Duplica, para cada um, plo sentido da palavra “tela” - 0 que exibe e 0 que ocul neira consciente € racional. O cinema, nesse de manipular, de utilizar de mai Oespelho de duas faces ” sentido, nao é apto para a propaganda, pois 0 que sucede ao outro (quer seja bom, quer seja ruim) sucede a mim também. Quando estou no cinema, nao estou “na presenca de’, nao estou “do outro lado’, nao estou (nem sempre estou) sequer do “lado bom”. A virtude pode me aborrecer, 0 vicio contentar- -me. Que espectador nao se sabe fragil, emotivo além da conta, presa facil de seus deménios? Até os monstros encontram no cinema uma ambivalén- cia bastante humana que, sem reduzi-los, muito pelo contrario, torna-os um tanto amaveis, se ndo desejaveis. Posso, isto é, s6 posso sentir-me simulta- neamente espantado e afetado, tocado pela maldi¢ao de m. - tao distante e tao proxima. E forcoso reconhecer nisto, na disjungao do “préximo” e do “distante”, uma das ladainhas mais repugnantes da Frente Nacional. O cinema - arte decididamente democratica - conjuga-os. Fritz Lang, nao somente em M., 0 vampiro de Diisseldorf [M, 1931], onde a coisa é manifesta, mas também em Fiiria (Fury, 1936] e Os carrascos também morrem [Hangmen Also Die!, 1943], faz desse enlace do familiar e do estranho, de si mesmo e do outro, a aposta de sua mise-en-scéne. Raramente como em Lang, alids, a expressio mise-en-scéne adquire tamanha fora: é 0 proprio espectador, em primeiro lugar, que é “posto em cena’. Como fazé-lo passar do bom para o mau lugar, eis toda a questao de Lang. Quando a propaganda, que nao tem necessidade de convencer, mas somente de ser seguida, obedecida, respeitada enquanto forca imposta a todos, des- denha de suscitar alguma crenga, a crianca amante da brincadeira, alma do espectador de cinema, fica antes do lado da desobediéncia. Que eu saiba, mi- Jitancia e indisciplina nunca formaram um bom par. O militante concebe a si mesmo (¢ pde-se em cena) como um quadro num quadro. E, para abusar da palavra, diria que o enquadramento militante ¢ a teoria do quadro cinemato- grafico se opdem sob todos os aspectos, Ea disjungéo conjuntiva de campo e contracampo, mutuamente excludentes embora ineficazes um sem 0 outro, que fundamenta a nogao de quadro cinematogréfico e, sobretudo, faz com que essa nogao atue como uma forga da escrita (écriture) — a violéncia de um 6 CE. “La Haine du spectateur. Cahiers du Cinéma, n. 286, mar. 1978. 17a Jean-Louls Comolll desejo contra outro. O cinema, como se sabe, opera limitando bas . istante a plas- ticidade do campo visual humano, P compelido a contengao pelo recorte imu- tavel do quadro. Contudo, € de fato a onipoténcia imaginéria do lho, exético por exceléncia, que se acha tolhida pelo quadro cinematogréfic violéncia insistente que 0 quadro exerce sobre a visio do espectador, transmu- tando-a em olhar. Nisso, talvez o cinema atue com mais violéncia ainda quea fotografia ¢ o quadro fotogréfico. Com efeito, érgio 0, pela 0s movimentos no interior do quadro, as entradas e saidas de campo, materializam um espago-tempo fora do campo de visao do espectador, induzindo assim a uma frustra¢ao, a uma sensagao de limite, de falta que esvazia incessantemente a plenitude da ima- gem, o que também nao deixa de ser a consciéncia de que o mundo se oferece a tomada e, ao mesmo tempo, a ela se furta. S40 os desenquadramentos (déca- drages) acentuados cuja fun¢ao em pintura e fotografia seria, mais ou menos, a mesma: o recorte de um rosto ou de um corpo afeta, por uma espécie de mutilagao, um conjunto que o espectador supée integro” Haveria na subtra- ao, de modo simultaneo, uma violéncia e um gozo, seja o enquadramento fixo ou movel. Mostrar estaria subordinado ao gesto de ocultar. A lei do qua- dro elabora desse modo o olhar, partindo da mecanica elementar da pulsio escépica. Escrita — vale dizer: violéncia ~ é 0 recorte do quadro, fixo ou mével, resultante do movimento dos corpos ou dos objetos que o percorrem, que nele entram ou dele saem. Ao mesmo tempo, porém, tal violéncia (tal escrita) éa de um jogo dupl a0 campo um fora de campo prenhe de possibilidades. B o mesmo gesto que corta e que liga o visivel ao invisivel. H4 nisso uma dialética, para nao dizer uma duplicidade, que me parece bem distante da ideia de que os corpos, as consciéncias e os desejos das massas devessem ser compatibilizados e enqua- drados. Passagem do campo ao fora de campo, do distante ao préximo, do lento ao rapido, da sombra a luz, do fora de foco ao nitido, tais parametros basicos da cena cinematogréfica, efetivos desde o primeiro filme e ritmando, na sua pulsagao obsedante, a rela¢ao entre 0 espectador ¢ 0 filme, dizem bem até que ponto o registro cinematogréfico implica uma estranha unidade de contrarios, uma dependéncia obscura, uma reversibilidade entre os gestos de ‘la nao teria como excluir nem incluir, sem articular 7 Pascal Bonitzer, Le Champ aveugle. Paris: Gallimard / Cahiers du Cinéma, 1982. Oespelho de duas faces ” mostrar e de ocultar e como que uma dialética fantasmatica da presencae da auséncia. Os termos das oposicoes so reunidos pela montagem, num manejo da alternancia que, a partir do grau zero da cinematografia que é a inscricao verdadeira, sé pode produzir ambivaléncia. Ambiguidade e ao mesmo tempo verdade: aqui, a tinica verdade que importa éa da inscri¢ao do tempo filmado, Oencontro de um corpo filmado e de uma maquina filmante constitui a cena cinematografica basica. O que nela se registra corre apenas uma vez, aqui ¢ agora. Nenhuma duragio registrada é igual a outra: 0 didlogo do corpo e da maquina se inscreve numa temporalidade tinica ¢ irrepetivel. Que se fagam varias “tomadas’, nenhuma sera semelhante a outra. A verdade em causa na “inscriggo verdadeira” é a do registro do tempo que passa, do desgaste dos corpos e da matéria, do “vir a ser passado” de todo presente. Da erotizacao das bordas do quadro ao jogo das distancias, em meio a variagdes de intensidade, passagens, auséncias, siléncios, movimentos re- versiveis, estados de transigao, fases de metamorfose — todas as mudancas de ritmo que vém perfurar a cena, bem como 0 sujeito/ espectador posto ai, transformam toda “mensagem” em objeto dificil de apanhar, perigoso, pouco controlavel. Apoiando-se nessa indocilidade do sentido — ligada a coluséo da maquina e do sujeito/ espectador -, os filmes de propaganda, por sua vez, responderam amitide com uma exaltago um tanto magica dos poderes do espetaculo, por um lance redobrado na ilusdo. £ 0 que faz Vitéria no deserto [Desert Victory, Roy Boulting e David MacDonald, 1943], € é realmente essa virtualizagao espetacular do mundo que a montagem desconstrutora de Nosso século (Mer dare, Artavazd Pelechian, 1983] pée em relevo e critica. A que esté ligada essa resisténcia do cinema? E a que atribuir, inversamente, a graga singular que por vezes transforma em cinema aquilo que nao era: 0 discurso militante, a andlise econdmica, a luta politica, a boa causa? Como interpretar aquilo que faz 0 espectador transpor a fronteira, para nao dizer © abismo, que separa o filme militante, ou, de modo mais prosaico, a repor tagem informativa (uma greve, uma mina, um dia, o presente, em territério sardo, homens, cifras, relatos) do cinema documentario (mesmos cenarios € mesmos atores)? Pouca coisa, na verdade. Tudo se transtorna. L . Jean-Louis Comolll Em Dinamite, sio os grilos. Enquanto a mina rejeita os homens que ela alimenta do oco de seu corpo, coldnias de grilos vém povoa-la. Mais do que os homens, os insetos vivem & yontade no labirinto de galerias subterraneas. O suave eco de uma estridu- lacdo incessante se mescla as falas da greve e da revolta. possivel ouvir os grilos, mas nao vé-los. Uma vez, duas vezes, trés vezes. Mario, um operdrio que trabalha na mina, procura direcionar o feixe de luz de sua lanterna para as paredes da galeria, a fim de nos mostrar, de nos fazer ver os grilos. Sao enormes, diz ele, habituaram-se a escuridao, a luz os ofusca. A luz nos ofusca. £ para nés que a lanterna de Mario, projetor infimo, aponta. Seu brilho vaci- Jante cruza com o nosso olhar. Mario procura os grilos. Nao os vemos, mas a pequena lanterna divaga, fura a penumbra, desenha um circulo luminoso na abébada da galeria, nos rostos, volta-se para nds e, por um instante, nos ofusca. Essa lanterna de minerador voltada para os grilos, porém incapaz de tornd-los visiveis, é 0 quase nada que muda tudo e nos faz deixar, com um gesto de adeus inequivoco, os caminhos balizados da reportagem de con- trainformagao ou do filme militante. Com a lanterna, com os grilos que ela nao vé, passamos para 0 outro lado, para a outra cena em que as “informa- oes” (que mina é essa, quem sao esses mineiros, o que querem, 0 que podem etc.) néo tém mais por tarefa nos informar, mas antes se fazerem elas mes- mas acontecimentos sensiveis, ou melhor, funges dramatirgicas, elementos ritmicos, aparigdes e desaparigées, estados transitérios de uma sucessio de transformag6es. A mina faz-se mulher; a greve, uma metéfora da vida; 0 lugar, o lugar do sonho (“aqui, todo mundo sonha’) e a utopia, a regra (You todos ou nenhum’). Magica, a lanterna do minerador nao se contenta em nos dar a ver 0 também ilumina o seu contracampo: 0 nosso ponta (0 espelho de duas faces). O jogo guar, ativar e reenquadrar nosso mundo infero da mina; ela proprio campo visual, para o qual aj de luz de uma lanterna é suficiente para a olhar, Ao nos ofuscar, ao alfinetar a objetiva como um olhar dirigido para a camera, a lanterna designa ao nosso proprio olhar o ponto de onde provém: poe-no em abismo, O lugar que me ¢ destinado, bem como a todo especta- na (a sala), resvala de stibito para dentro da cena: dor, no lado de fora da ce posso imaginar que ela me torne visivel e, sea lanterna de Mario me ofusca, Oeespetho de duas faces ” portanto, me transporte até a galeria da mina em face daquele que é filmado, e este em face de mim. Transporte cinematografico no mais alto grau: emo- Gao. A presenca real do espectador na sala faz-se presenga imagindria na cena. Melhor, ela entra na composigao da cena. O lugar do espectador se inscreve na mise-en-scéne. Em consequéncia, tudo 0 que constitui o fora de cena - os espectadores, a equipe de filmagem, a maquina - se transforma em um fora de campo. O fora de campo pressupde uma relagéo possivel com 0 espaco- -tempo da cena - com a ficgao que produz a cena, Quando aquele a quem filmo olha para fora de campo, € porque viu ou pressentiu que outro perso- nagem se aproximava, porque apreendeu um evento contiguo. Tais acidentes de percurso, de certo modo, jé fazem parte da cena que filmo, ou poderiam fazer. Caso se trate de um olhar para o espaco fora de cena, entao, j nao é 0 personagem (ficcio) quem se permite fazé-lo, e sim 0 ator (fabricagao). Nao estamos mais no jogo especular campo/ fora de campo, somos ameacados pela irrupcdo incontrolavel de um ser ou de um elemento que nao faz parte da cena interpretada e filmada, e que pode, em consequéncia, dar-lhe fim. Tal 60 espaco fora de cena: aquilo que possibilita a fabricago da cena (a equipe, a maquina) e seu funcionamento (o espectador) é também aquilo que pode destrui-la, o ponto focal de todos os perigos. E por isso que, no teatro, um vigoroso interdito separa a cena da plateia. E, quando essa sagrada barreira imaginaria ¢ franqueada, tudo rodopia num caos que nao é o das desforras nem o das revolugées.* Assim transportado, o espectador nao esta mais diante de um espetaculo - programas de televisio sobre temas de atualidade, reportagem ou filme de Propaganda. Ai, ele é apanhado, agregado, posto a representar — cinema. Faz- -se um dos atores. Ator, isto é, Personagem, uma vez desafiado pelos outros Personagens aj representados. Porque nao me esqueco de que, no cinema documentario, ator ¢ personagem fazem um s6, que cada um dos homens " comuns ou nao, que consente em representar num filme, que aceita et filmada ¢ eventualmente dirigido, quando nao produz a propria encenagio (“autoencenacio”), cada qual se considera, e mulheres, no fundo, comediante 8 Convido o leitor a ver ou rever 0 episédio de Pasolini, “Ch 2" interpre- tado por Toto (1967). cosa sono le nuvole?’, interp! 176 Jean-Louls Comolli do proprio papel, ator de si mesmo, e como tal se comporta. Todo mundo representa. As encenagoes sociais, familiares, intimas nos tolhem com seus simulacros ¢ galanteios. Além disso, todo mundo faz, fez e fard fotografias ou videos utilizando todo mundo como ator. Ai estd, sem duvida, uma prova incontestavel do triunfo do espetaculo neste fim de século. O espectador ~ ser problemético, maleavel, influenciével, emotivo - dé lugar ao produtor de fitas audiovisuais que talvez nunca mais seja espectador, nem sequer espectador do que ele mesmo tera rodado. que se filma, pois, ¢ sempre uma relagao real entre duas presencas: re- Jago entre aquele que é filmado e aquele que filma. E nesse entremeio que se coloca, como intermedidrio, o espectador. Na maioria dos filmes documenté- rios, esse lugar é deixado vago. E precisamente o lugar de uma auséncia que deseja se tornar presente, de uma escuta e de um olhar que tendem a se pro- jetar na relacao filmada; quando muito, esse lugar vazio, mas terrivelmente ativo, é marcado por algum olhar do personagem (nesse caso, porém, como ator de si mesmo) para o fora de cena (como um aparte teatral). Aqui, o lugar fracamente iluminado pela luz de uma lanterna de minerador nao esté mais vazio, uma projego do espectador obseda-o, como um eco da projecio do feixe luminoso, materializagio de uma mise-en-scéne, a do espectador. Em poucas palavras, o cinema nao poderia proceder de outro modo, senao ocu- pando, ainda e sempre, o lugar dos antigos sistemas de representagao (pintura, teatro), indo, no entanto, ainda mais longe do que eles, envolvendo 0 especta- dor em seus préprios mecanismos de representagio. A luz trémula e vacilante de uma lanterna de minerador projetada sobre rostos de operarios, entre eles, ilustre ausente, o meu, invisivel, mas nao insensivel. £ bem provavel que essa mise-en-scéne responda, antes de tudo, a uma neces- sidade prética. Certamente nao se ilumina o fundo de uma mina tal como um palco de esttidio, A necessidade imposta pela situacao filmada organiza um dispositivo técnico que pde em marcha, com efeito, uma légica do relato: uma condicdo restritiva da escrita determina uma disposi¢ao dos lugares (fil- mados/filmantes/ observantes) que produz sentido, Um sentido politico. Co- roados pela lanterna, sao antes de tudo rostos de mineradores em greve 0 que Ocspetho de duas faces ” vejo nesse filme, olhares destemidos, desafiadores, obstinados. Apologia da figura humana como forma maior do sofrimento revoltado. Estou diante deles, vejo-0s, vejo que me vem. Sua resolucao, sua doce exaltagao s4o um convite a do-me o tom, 0 tom justo, o de uma luta que “Quem é Mario?”, que entre em sintonia com eles: pelo visto jamais cessard, e que por isso se faz minha. per- gunta Mario. “Mario” responde o préprio, “é um numero, ele pode desaparecer, ninguém ird notar, a vida é isto, uma roda-viva...” Quem é Mario? Ninguém todo mundo. Vocé, eu. Uma roda que gira, o cinema também ¢ isso. Hé 0 manejo sem-fim do espetaculo, que se tornou uma espécie de simbolo familiar das vicissitudes da existéncia (“a roda-viva”). Ha esse outro manejo, que faz 0 cinespectador rodopiar sobre si mesmo para leva-lo a encontrar 0 outro como semelhante. Como esquecer que o trabalho do cinema consiste, antes de tudo, em tentar ressuscitar para cada espectador 0 aqui e agora do encontro filmado, em renovar na sala escura a epifania da inscri¢4o verdadeira, de modo a fazer o particular resvalar no universal, arrastando irremediavelmente o espectador no salto, fazendo disso mesmo o mobil de sua emo¢ao? E quando o destino dos personagens filmados vem ao encontro do meu, a medida que me projeto imaginariamente neles, é quando o horizonte indefinido de uma relagao im- provavel se contrai subitamente para se tornar aquilo que sucede aqui e agora, na sala de projecao e no transcorrer da sessio, entre auséncias totalmente ten- sionadas por esse louco desejo de presenga, que o cinema alcanca a sua mé- xima poténcia: devolver os homens uns aos outros. Devolvé-los face a face “O tutti o nessuno” (ou todos, ou nenhum), repete Luciano, o dinamitador sub- terraneo, querendo dizer que a rentincia 4 utopia, a utopia social, a utopia revolucionaria, est fora de questéo. O que importa é afirmé-la, ou mesmo reivindicd-la para além do fim ~ interminavel - dos sistemas de representa- cao politica e sindical. A exemplo de seus personagens, pela voz deles, o filme critica duramente 0 “sindicalismo participativo” europeu, sem, contudo, aban- donar a ideia, a nostalgia ou a esperanca de uma forma de representagio anar- cossindicalista dos trabalhadores. Um pouco mais adiante, Mario, o mineiro 178 ” Jean-Louis Comolli dalanterna, confirma: “Aqui, todo mundo sonha” Entrada a forca do sonho no relato militante. Sinal dos tempos. Ou todo mundo sonha, ou ni Bis uma nova versio do nao fim da historia, nossa hist6ria. A historia é um nunca acabar, el inguém. isto é, da continuagao de fa nunca deixa de ter uma como todas as historias que nunca acabam. O cinema militante, tal como 0 sonho, deixou de ser teleoldgico. Jé nao hé uma meta, um fim que ordene tudo e justifique ou amenize o sacrificio dos sujeitos. Lutar ja € sonhar. O fim da histéria nao é 0 fim das histérias, dizem- -nos 0s mineiros, tal como a greve sem-fim, a espiral da greve sem-fim, comego nem fim, a greve eterna, ela mesma nao é o fim da luta, continuacio, de ter continuagées, sem € oestado de efervescéncia desesperada em que nos encontramos para poder sonhar ainda. Os mineiros fazem brilhar na noite o clarao do mito. Eles habitam os Infer- nos, lar dos grilos, como um labirinto onde a vida e a morte estao intimamente ligadas, onde a esperanca de uma fraternidade, de uma felicidade tao amorosa como laboriosa (“A mina é uma mulher, sim, uma mulher... ela d4, ela toma de volta...”), resiste no préprio perigo. Uma sonora maldigao é lancada do fando da mina contra tudo 0 que se passa fora, em pleno dia: as divisoes, as polémicas, as batalhas, os escndalos, as mentiras, as manipulagées, os co- mandos e liderangas... (“Antigamente, os conflitos eram geridos, a gente nao precisava lutar... hoje, o mundo est mudado, é preciso lutar duramente...”). A linguagem dos mineiros é contundente, sem fingimentos, sem ardis, mais transparente do que as imagens que pdem em cena com suas lanternas. Vio- léncia das palavras abrandada pela luz, como sabem as criangas que, sob a gruta dos lengdis, leem a luz de uma lanterna de bolso. Violéncia das palavras (e dos barulhos da mina) temperada ainda pela falsa aparéncia de rudeza dos rostos: sua dureza fingida, explicitamente representada, mal camufla a ternura, o desejo de amar desses proletarios que, no auge do desespero, nunca chegam realmente a odiar aqueles que os fazem morrer. Eis o jogo do cinema, sua am- biguidade essencial: raiva e exasperacdo, sim, mas que a graca cinematografica tinge de docura, de ternura, de uma paixio plena de confianga... Confianga - em nés Se os mineiros sabem perfeitamente que de nada adianta conversar com os de cima, com os patrées, os amos, os tecnocratas das finangas ¢ do poder, 0s acambarcadores, os destruidores; que nao ha nada a lhes dizer, nada a es- Ocespelho de duas faces ” perar (ouvir) deles, que sua retérica de sempre foi desmontada (“podar, cortar os ramos mortos...”), eles tampouco perdem tempo procurando a quem se dirigir: ao espectador. Via cinema - a que, alias, podem chamar com toda a naturalidadede “televis4o” -,° sera ou voltaré a ser virtualmente possivel esta- belecer um didlogo com aqueles que irao vé-los, “aqueles que séo como nés... somos todos parecidos..., os operarios das fabricas do Norte ou os operdrios desempregados. “Eles, sim, so capazes de nos compreender.” Os mineiros de Dinamite acreditam em nés, espectadores, como nés acreditamos neles, personagens. Pretendem, querem poder nos tocar com suas palavras e seus olhares, assim como nés aspiramos a emprestar-lhes uma vida e uma sobre- vida através da nossa escuta e do nosso olhar. Como nao retomar 0 motivo caro a Serge Daney, de um “humanismo” profundo do cinema capaz de sus- citar e confirmar essa parte humana que se supde comum aos personagens € espectadores de um filme? A despeito das palavras de ordem e das boas inten- Ges, era precisamente a “parte humana” do homem que o cinema militante se mostrava incapaz de resgatar. Ora, é ela, essa parte humana, “demasiado humana’, que resiste como a ultima utopia dos mineiros em greve. A utopia mudou de registro. Ela se tornou, no correr do século, a chance mesma de so- brevivéncia de uma dimensao humana no ser social. A forga da utopia como Ultima suavidade possivel a uma existéncia de sacrificios contrasta com a vio- léncia das promessas de destruigao proferidas por aquele que se revolta (“To- dos ou nenhum!”). O homem esmagado anuncia o fim do mundo, mas nao consegue deixar de desejar que a alegria de ser homem permanega. O gosto da luta contra o sentido da historia. Praga é a cidade mais familiar do mundo para mim, depois de Paris. E também a mais estranha. Os amigos que tenho ali sempre viveram alienados de seus $0- nhos, 4 margem da vida. Os tormentos que eles sofreram nao serio reparados. Pelo visto, é uma pagina virada. Praga volta a ficar colorida, embeleza-se. Praga esquece. £ 0 que dizem. Para mim, é muito lentamente que ela readquire vida propria. Acho que o passado envenena o presente. Nunca sei quando estou em Praga. Muitas vezes, tenho a impressio de viver num tempo que nao conheci...” 9 Ogque porventura restou da ambi¢do humanista do cinema na televisio. 180 Jean-Louls Comolll Uma voz de homem, firme e ligeiramente fatigada, nem declamatéria nem confidente, um pouco fria e distante, embora nos toque. Essa voz nos tem ao seu lado, em seu poder. Ela governa o filme Les Mots et la mort. Por si 6, ela transforma o que poderia ter sido uma viagem um tanto banal no espaco eno tempo (Praga, anos 1950) numa estranha visita domiciliar, Estamos na casa de Bernard Cuau, que nos fala daquilo que o habita. No entanto, vemos a Praga de ontem e a de hoje, o castelo, a praca, as prisées; seguimos os Tatra pretos rodando em siléncio pela cidade deserta como antigamente, como para todo o sempre; vemos passar os réus dos processos de Praga, um apés 0 outro, sob aluz branca e preta de um tribunal imutavel. Mas a viagem é mental, como a paisagem. Aqui como acola, e nao somente nos chamados filmes de “ficgao’, o cinema da tratos a imagina¢ao para nos fazer passar de fora para dentro, filmando corpos e cenarios para, na verdade, superar o obstaculo do visivel, acolher e conter 0 que nao se vé, nao sempre, e que pode se materializar ou encarnar-se, tornar-se tra¢o sensivel, ideia, sentimento, disposi¢do de alma, estado mental. Essa voz, pois, é a de um narrador. Ela lé, ela nos liga ao filme enquanto filme- -daquele-que-diz-um-texto. Em Dinamite, séo os atores (os personagens) que “tém a palavra”. O fantasma ativo denominado “autor” faz-se presente, sem nenhuma dtvida, mas de modo retraido, como convém aos fantasmas, int absentiae. Os personagens ~ cujas vozes so encarnadas em corpos filmados, extremamente reais — encarregam-se dos enunciados, das a¢ées, do sentido. Até a condugio do relato se acomoda aos seus itinerdrios, leva em considera- Gao suas emogées, submete-se a sua légica. Quem, em Les Mots et la mort, narra a histéria? O autor, ele mesmo, por intermédio da voz narradora. Noto, de passagem, a pressdo que se manifesta cada vez mais no cinema documentirio (mais que no cinema de ficgao, certa- Mente) para por o curso e 0 destino do filme, seu sistema de enunciagao e seus Biros de escrita, ao abrigo da autoridade desse “autor” que diz “eu”? que diz até mesmo “eu sou”, como se bastasse esforco ou naturalidade para merecer 0 10 Ver Images documentaires, n. 25, 2° trimestre 1996. Ocespelho de duas faces " crédito do espectador, quando esse “eu’, para retomar as palavras de Cuau so- bre Praga, é enunciado, a um s6 tempo, pelo Nao seria “eu”, ele mesmo, outro personagem mascarado, dissimulado, mais is? Um novo ardil, uma “mais familiar e o mais estranho”. escorregadio que os personagens declarados como tai ficgdo diversa? E 0 efeito de sinceridade que ele ostenta nao seria um logro suplementar? Até que ponto 0 “eu” do filme é 0 do sujeito que diz “eu”? Quem, afora Guitry ontem, Godard hoje, quem, entre aqueles que dizem “eu” no ci- nema, coloca a esse “eu” a questo de sua possivel nao realidade? A questdo nao digo sequer de seu extravio, quase sempre reivindicado, mas a de sua sim- ples consisténcia documental? Ao “eu” do filme, corresponde qual referente? Um, varios, nenhum? Essa complicagao deve ser posta em cena para que 0 espectador se veja enredado nela ativamente ¢ esse “eu” se faca um pouco 0 espelho de si, a sua coisa. Entretanto, quem poe em cena seu “eu” é um outro. A voz que diz “eu” despoja a cena cinematografica de boa parte de suas prerrogativas, (Cena: circulo encantado tragado pelo encontro corpo-méquina, onde o espectador nao tem lugar senao representado — isto é, necessario, es- truturante, mével e lidico.) Ela institui, essa voz, uma relagao direta com 0 espectador, ela fala ao seu ouvido, ela 0 ocupa, suscitando, por conseguinte, a cena e as proprias vozes que vém até ela, seja como uma diversio, seja como uma ilustragao. A irrup¢do do “eu” transtorna e “atravessa” a ronda em trés tempos da representagao cinematografica, carrossel no qual o espectador se translada de um lugar para outro, do seu para o do diretor e deste para os dos personagens, alternadamente. A voz que diz “eu” cumpre no cinema a mesma fungo do aparte no teatro, o qual, sem destruir a representagao, lhe interpoe parénteses; desloca-a para a ribalta ou para a plateia; recompée, com a cumpli- cidade do espectador, uma nova cena que concorre com a inicial, sendo a um 86 tempo sua transgressdo, seu complemento ¢ aquilo que a ameaga ¢ lhe excita © gozo: instancia simultaneamente de poder e de desejo, essa voz contrabalanga ou contraria a dramaturgia especifica da cena. Mudanga de registro do sistema de representagio. Gozo, em Les Mots et la mort, de abrir 0 “eu” aos fantasmas da politica ¢ da histéria, gozo de entregar esse suplemento de cena as encena- Ges da propaganda." A voz controla o encaixe das cenas; melhor: ela inscreve 11 HA muito, nos filmes de Godard, 0 “eu” da revocacio [levée} subjetiva e 0 “nés/vés” da 182 Jean-Louls Comolli as sequéncias de arquivo nao como “citacdes” ou “excertos”, e sim como cenas suplementares que vem enxertatse no corpo do filme. O primeiro efeito dessas construgdes em abismo é neutralizar as armadilhas e desfazer os poderes da cena cinematogréfica tal como regida pela inscricao verdadeira. Entrelacada a0 “eu” da voz e ao “eu” do espectador, a nova cena é mais virtual que a antiga - ela éfisica, material, corpérea antes de tudo, e mesmo no cinema, onde é certo que o corpo filmado se torna mais real que 0 corpo real. Sem divida, a voz sempre junta um corpo a outro, mas é por um liame que passa nao tanto pelo exterior quanto pelo interior dos corpos (a garganta, 0 ouvido), esses invélucros carnais que a maquina se apraz. em acariciar. A narragio é a ponte lancada por sobre a cena de um sujeito a outro sujeito, duma voz portadora de uma auséncia, a do corpo do narrador, a um ouvido portador de outra auséncia, a da voz do espec- tador. “Eu” é a um s6 tempo labirinto e fio de Ariadne. Seria preciso ver ai, nessa nova tendéncia do cinema documentirio ao en- saio filmado na primeira pessoa, uma resposta 4 generalizacao do espetaculo e mesmo ao modo de funcionamento dos meios de comunicagao, dos quais so praticamente banidos a assinatura, 0 autor, o ponto de vista subjetivo, a arbitrariedade de uma voz singular, a distingdo de uma escrita? A primeira pes- soa denota essencialmente a preeminéncia do sujeito no homem dos tempos atuais, ela se abriga sob a sua autoridade, expde-no. Exposto, o sujeito adquire forma e forca, afirma uma dimensao de liberdade e de crise, e assim resiste na medida do possivel 4 vontade de “despersonalizacao” prevalente na circulagao das informagées-mercadorias: “objetividade” dos especialistas, pratica do co- pidesque nos jornais, padronizagao das formas de informacio, da reportagem, dos especiais sobre temas de atualidade...” Acontece, porém, que na surdina se trava uma encarnicada batalha, de cujo desfecho depende, se ouso dizer, nada menos do que o destino social do sujeito. A virtualizagao das relagoes mer- tam miutua inquietude. Este confronto impossivel e ne- dois filmes recentes que Alexandre (Le Tambeau propaganda se relancam e despei cessério do autor-como-sujeito e do sujeito da histéria explode em se opdem e dialogam um com o outro, simultaneamente: Blegia a Alexandre, 1993), de Chris Marker, e Les Enfants jouent a la Russie [1993] de Jean-Luc Go- dard, Em ambos, sofrimento e vertigem da exposiga0 ~ corporal, além do mais, em Godard ~ do sujeito a historia, 12 Veras intervengdes de Pierre Bourdieu (Arrét sur images, Le Monde Diplomatique etc.) Oespetho de duas faces 7 cantis, das cenas representativas, dos proprios corpos, a acelera¢ao das trocas imateriais, o turnover da mercadoria,” toda a légica do capitalismo mercantil neoliberal que se quer onipotente parece compelida, em sua vontade de poder, a prescindir do peso desse como peculiar a0 sujeito, da obsessao subjetiva que ainda se nutre a custa daqueles que, uma vez curados da propria existéncia, po- deriam ser melhores consumidores de informagao e de mercadorias. A precaria, quase ridicula originalidade do sujeito que se obstina em suas escolhas, recusas, caprichos, sentimentos e temores (pensemos em Tati, Godard, Dostoiévski ou Tchekhov), atua como o grao de areia que emperra 0 funcionamento da mé- quina de consumo. Pesadas demais, a historia intima e a experiéncia vivida; pe- sado demais, 0 corpo real, por demais embara¢oso; resistentes demais, os signi- ficantes; incémodas demais, as escritas. Como o mundo seria mais permeivel, mais transparente a mercadoria, se fosse possivel eliminar os “bloqueios’, as “barreiras”, como dizem os agentes de publicidade, e todas as vicissitudes tragi- cémicas do sujeito que fazem baixar a febre consumista... Nao esquego que 0 cinema, contemporaneo do século, como é sabido, s6 recentemente viu 0 autor- -diretor expor-se a frente do filme através de sua assinatura, pela publicidade de seu nome, de sua voz, de sua propria presenga, nao mais como autor-perso- nagem simplesmente (Max Linder, Buster Keaton etc.), mas realmente como sujeito, como aquele que diz “eu”, Tal insisténcia é recente, quem sabe, conse- cutiva ao desastre europeu da Segunda Guerra Mundial, isto é, aos campos de exterminio, 4 destruicao dos judeus da Europa, 4 desumanizagao sistematica, até mesmo na nominagao e na filiagao, perpetrada pelos nazistas. “Eu” talvez seja uma maneira de responder ao ataque frontal desferido contra a possibili- dade de uma identidade humana do homem. A voz. de Les Mots et la mort nos fala de um mundo interior. Nesse mundo, as palavras lutam contra a morte ao mesmo tempo que a revelam, enquanto as imagens do passado (arquivos, material filmado durante os processos, fitas 33, Acerca dos t6picos em questo, vejam-se os escritos recentes de Baudrillard e Virilio. 14 Refiro-me, nesta passagem, ao texto de Pierre Legendre, “L’Attaque nazie contre le principe Jean-Louis Comolll de propaganda, atualidades dos anos 1950) so mais vividas - mesmo aquel consagradas & dor e @ morte ~ do que as imagens filmadas hoje, cartbes, os tais precariamente animados de uma cidade abandonada até mesmo pela ton ‘Tal mundo interior é obviamente o do narrador. Sucede que ele se : cinespectador. Pelo efeito da voz que nos fala, torna o do spectad ‘ que fala para nés; pela propria alquimia cinematografica, que nao se limita a transmutar sais de prata em tragos de vida, mas faz da f€ no espetaculo uma hipétese preferivel a todas as outras. Les Mots et la mort é, sem dtivida, um canto fiinebre, o oratério de um mundo extinto, de um compromisso politico “mais forte do que a vida, mais forte do que a morte”. Reversio do motivo, é, a um sé tempo, um hino A utopia enquanto necessidade do impossivel, ponto extremo de uma crenga compartilhada. Vamos nos deter por um instante na dramaturgia dessa voz. A voz do nar- rador disp6e, enquanto senhor do tempo, do filme - ontem, hoje, presente do passado, passado do presente -, enquanto o préprio narrador se dispoe na primeira pessoa, expde-se. “Eu”, diz a voz. Senhor e sujeito. Quando, no trigésimo segundo de projecdo, ondula debilmente na tela a corrente de agua lamacenta do rio Vitava, citagao desbotada da onda gloriosa das barragens OZ vertovianas,* essa voz me atravessa como a voz antigamente chamada off: sem corpo representado no filme. Nao estamos num filme de Godard, menos ainda em Les Enfants jouent a la Russie, onde o corpo e a voz do autor dispu- tam a cena, numa espécie de reparticao das instancias de representacao digna °6 E, no entanto, diferentemente de tantas outras vozes off, do bunraku japoné: essa voz permanece um tra¢o vivo, uma encarnagao do corpo ausente que ela representa para a escuta, e que nos ¢ apresentado por ela como corpo daquele a quem se escuta. De fato, Les Mots et la mort comega com a voz dizendo as palavras referidas e também anunciando, em certo sentido, a morte do “ew que as diz; a voz off, de algum modo, voz daquele que desapareceu, que se sabe 15 O tempo, a agua, 0 que escorre, o que corre. O motivo da onda imével, libertagio da vaga represada, mas sob uma forma policial, é uma das imagens preferidas de Dziga Vertov. A onda da barragem é regulada pela economia revolucioniria. Aqui, ela se apresenta como ‘uma espécie de ligeira ondulagdo & superficie das aguas. 16 Ver J-L. Comolli *Jouer a la Russie’. Trafic, n. 18, primavera 1996. Oespelho de duas faces * onheci...”. Acontece que Bernard Cuau desaparecido; “um tempo que nao | lo meu conhecimento. Quando tinha morrido alguns meses antes, como era d vi seu filme, seu ultimo filme, de inicio pensei que a voz do locutor era a sua voz, a voz do autor.” Essa voz tinha me agradado € causado medo. Comparei- -a com as outras vozes que se ouvem no filme, “filme da voz’, de registros vocais mais do que sonoros. As vozes da época eram luminosas (que se ha de fazer?) e continuam a sé-lo; as de hoje sio mais indistintas, do narrador, as dos leitores, menos vivazes, menos vibrantes do que as vozes esfuziantes dos locutores da Tchecoslovaquia gottwaldiana, até mesmo no lamento pela morte de Stélin. Fala-se em “espectro” a propésito da voz."* Uma anilise espectrogra- fica comparada das vozes comunistas e pés-comunistas, tal como registradas pelo cinema, que nao raro também as selecionava, produzia e plasmava, € tal como Les Mots et la mort as colige e contrapée, faria sentir até que ponto as primeiras produzem um som cheio - com palavras falsas e vazias -, € as segundas soam ocas ~ com palavras entretanto verdadeiras, densas, pesadas. ‘Uma dramaturgia da plenitude (do sentido, dos enunciados, dos seres, das classes, das condi¢ées) ainda era a forma privilegiada pelo cinema de propa- ganda nos anos 1950 (veja-se a densidade espetacular de Vitéria no deserto). Preencher, celebrar, assegurar, satisfazer completamente, as palavras de ordem dessa cinematografia convergiam extraordinariamente com a vulgata da lenda comunista. Hoje, seria mais importante escavar do que assentar fundagées. Essa repartigio das vozes, porém, assinala desde ja que, em Les Mots et la mort, os fantasmas do passado tém um porte mais distinto do que o nosso. Os 37 Em seguida, li os créditos finais e vi que a voz era a de Jean-Claude Fall, Bernard Cuau morreu em agosto de 1995, durante a montagem do filme, que foi concluido pelo produtor Gérald Collas. O texto, sem diivida, foi escrito por Cuau e praticamente aplicado as ima- gens por ele e pelo ator escolhido para locutor, o tom da locugio previamente determinado. Posso acrescentar que experimentei um sentimento de perda de ilusio? O estranho sor- tilégio provocado por esse texto, o que cle da a entender ao espectador acerca da posi¢io Paradoxal de seu autor - inclusive pela linguagem, pelas palavras, inclusive pelo tom da Vo2, or seu timbre -, ivi ‘ x , =, tema ver, sem davida, com esse intervalo entre vida e morte, entre a forga jo sonho e a miséria consecutiva a sua perda. 8 “Es ” 16 “Fepeciro”€ também a palavra que Marx utilizou a propésito do comunisme, tal come sublinha Jacques Derrida em Spectres de Marx. Paris: Galilée, 1993, 186 Jean-Louls Comolll spectros somos nés, eles é que passaram para o nosso lado, Quanto aos mor- tos, seguem gloriosos. As operdrias em pranto que exprimem luto por Stdlin continuam a ser figuras exemplares, ainda que, ou justamente porque, sejam exemplarmente logradas: parece-me que, no cinema, os tolos, os sinceros, os ingenuos ou, como aqui, os extraviados da crenga, sdo personagens melhores do que os finérios. Ao consentir de bom grado no logro cinematogréfico, o es- pectador, ele mesmo, estaria predisposto a uma cumplicidade indulgente para com os personagens logrados, Quanto as vitimas do regime stalinista, trazem a justo titulo a auréola de martires: “Os tormentos que eles sofreram nao serao reparados...” Filmados pelos cinegrafistas da televisao estatal, os réus dos Processos de Praga, nao obstante terem acusado a si mesmos, nos seus “arrazoados”, dos crimes imagi- nados pelos procuradores do Partido, os réus (Zévi8 Kalandra, Milada Hora- kord) saem-se magnificamente na barra do tribunal. Sabem que esto sendo filmados por uma ou duas cameras. Terao eles imaginado que jogavam as derradeiras cartas, as derradeiras forcas, as derradeiras palavras num palco que, em consequéncia, j4 nao era tanto o de um tribunal politico, e sim o do cinema? Que, para além dos procuradores do partido, haveria espectadores que iam vé-los, ouvi-los e julgé-los diferentemente noutros tempos? A en- cenacao oficial nao conseguiria anular o que a inscri¢ao verdadeira testemu- nha: filmados, os réus de Praga so transportados para a dimensio trégica de uma derradeira sesso. Mesmo Slansky ~ crispado, grave, sombrio, numa pos- tura nada desafiadora, quase sempre de cabeca baixa, filmado de perfil e até ‘mesmo de costas, em trés quartos, quando Ihe fazem uma pergunta — Slansky ‘esiste surdamente, por mais que se deixe abater até o extremo do absurdo, O que fora calculado como humilhacao suprema destinada a perdurar como 'gnominia nao os e1 nvilece. Eles nao inspiram comiseracdo; a aura comunista — °ts muito simplesmente, a de uma inocéncia injustamente punida -, enaltece- ‘ss coragem ea dignidade, a virtude que ainda resplende aos noscos olhos, Sinquenta anos mais tarde. Estamos longe dos personagens hist6ricos arqui- Tidog no tribunal da historia, estamos longe, digo de passagem, dos lamen- Laveis fantoches Que os representam em A confissdo [LAveu, 1970], 0 péssimo fl i neo eid ime de Costa-Gavras, execra¢éo do comunismo no estilo enfatico e ridiculo le NOssa esquerda bem-pensante. Opto de duas faces Se é verdade que o cinema trama pacientemente um complé para evitar que desapareca de nossa meméria o nao espetacular e até mesmo o passado in- diferente, o infimo, 0 anédino, o nao significante, o imemordvel (digamos: as folhas tremulando nas arvores, que causaram tanto pasmo aos espectadores do Grand Café), ele sé poderd leva-lo adiante por meio de uma reviravolta, de uma revolugio de valores capaz de transformar o infraespetacular em es- petaculo, a indiferenca em nao indiferenga, fazendo resvalar a insignificin- cia na significagao. A indiferenga (suposta por nés) de uma rocha, de uma mata, por exemplo, ou de uma tnica pedra, uma simples folha, uma vez fil- mada pela indiferenca (que quiséramos soberana) de uma maquina, resulta em nio indiferenca. O mundo filmado nos concerne porque ele torna pos- sivel 0 que nem sempre se verifica na parte nao filmada do mundo: fazer- “nos sucessivamente, e como por encanto, espectadores, atores, personagens, diretores; desempenharmos um papel numa série de relacdes possivelmente imaginarias, mas decerto sensiveis, com outros seres de cinema. Perante 0 filme, no filme, podemos ser sujeitos condensados, acelerados: a parte ativa e desejante do mundo. Tal é a fatalidade documentiria do cinema. Ela afeta todos os filmes, desde o primeiro. Fazer do mundo uma cena onde nada mais (nos) seria verdadeiramente indiferente. Automéveis passando, transeuntes atravessando o campo, criangas olhando, folhas tremulando nas Arvores do bulevar. Mais do que as outras artes - visto que se dirige familiarmente, na linguagem do realismo, a realidade sensivel -, 0 cinema alimenta a esperanga secreta de concretizar a utopia de um devir estético do mundo. Documen- tal, deixa-se levar por sua inclinagio, que é a de transformar o que é no que deveria ser. A inscri¢do verdadeira pode ser a do tédio, mas 0 tédio supde um sujeito ativo que poderia muito bem no se entediar. Seja por ocasiao do pacto de filmagem (eu te filmo, coisa ou gente, porque tu me interessas), do Pacto maquinico (entre a maquina filmante e o ser filmado, estabelece-se um didlogo, encontro de duas vontades, porém cruzamento de dois impensados) ou do pacto que preside a sesso (0 que é projetado deve me desejar, uma ve que estou ali, e portanto propicia que eu, por meu turno, possa desejé-“lo”), ° cinema nao poderia prescindir do desejo, isto é, do risco do sujeito. Tornar 0 olhar e a escuta mais densos, mais intensos, mais agucados - afa da cinema tografia -, tem por resultado exacerbar no espectador o desejo de um mundo ™ Jean-Louis Comolll ‘ele mesmo exaltado. Foi preciso um esforgo sustentado, ym motivo fobico poderoso, logo, um grande trabalho de ficcao, para trazer aindiferenca de volta a cena cinematogréfica: a Milao filmada Por Antonioni com certeza; OU, entao, a visio de Praga imaginada Por Cuau, cidade aes. siorada, onde nao hé nada verdadeiramente em jogo, entregue ao debilitante um célculo maniaco, enervamento do turista. Cidade que conhece as cinzas, ante a qual o narrador nao teme afi : firmar que subsiste © forte gosto da utopia comunista, sempre viva numa cinema- tografia do entusiasmo, ainda que se trate do fruto da pior propaganda sta. linsta. “Tudo desapareceu’, diz-nos a voz, “Os camaradas, enforcados, Mes as multidées também. O entusiasmo popular, Hoje, um Pombo contempla o Andarilhos desempregados aguardam a partida da automotriz para Nuremberg. ..” De pronto, responde utra vor, a voz, dos anos 1950, a voz. da submissao delirante, a vor do medo e,ao mesmo tempo, do entusiasmo fervoroso: “E manha de primavera’, diz ela, “a manha do Dia do Trabalho. Sobre a festa, Josef Vissarionovitch Stélin, ohomem mais ilustre de nossa época, declarou em alto e bom som ao mundo: ‘A classe operdria oferece & humanidade a primavera que a libertard das ca- deias do capitalismo. A classe operaria foi chamada a renovar o mundo...”” Em alto e bom som: se a retdrica de sempre, que ainda nao alcangara noto- vyazio. Dois criados de libré espreitam os turistas, riedade, deflagra a centelha de uma “renovacao do mundo’, como poderia 0 cinema - que deve, antes de tudo, filmar 0 mundo que renasce e, portanto, ctid-lo desde jd - nao se exceder na exaltagao? Isso poderia ser um eco inocente de Les Enfants jouent a la Russie: Cuau comprova que ha uma espécie de conivéncia dos primérdios entre o entu- siasmo pela revolucao e o entusiasmo pelo cinema, entre dois sistemas de tenga que, por serem diferentes, opostos até (Vertov pagaria por isso um prego terrivel), parecem mobilizar, além do mesmo ardor, os mesmos significantes € amesma retérica demitirgicos: 0 plano das arvores em flor que sustém a frase “Emanha de primavera’ rima perfeitamente com a imagem dos ramos floridos Que a jovem sonolenta de O homem com a camera descobre ao emergir de sua Roite, quando seus olhos comecam a se abrir para a luz, ao mesmo tempo que ® objetiva da cdmera enquadra, isola, exalta o resplendor das flores brancas. Abela cumplicidade dos entusiasmos genialmente inaugurada por Vertov foi, Oespetho de duas faces . parece-me, herdada em parte pelos sucessores tardios dos Kinoks, os anénimos e transidos operadores, montadores e atores dos filmes de propaganda stali- nistas - alids, possivelmente saidos da grande escola eisensteiniana do varx. Desde o final dos anos 1920, um duplo movimento de sintonia e descompasso regula a relacao entre fé comunista e crenga cinematografica: quanto menos 0 Partido se fia no cinema (repressao a Vertov ea Eisenstein), mais o cinema se submete ao Partido e se torna um instrumento servil de propaganda. Assim, ele tende cada vez mais a se concentrar no registro da nova historia oficial, mos- trada em toda a sua extensdo, a nova modalidade de espetaculo politico gran- dioso: manifestagées de massas, ceriménias e cortejos fanebres, assembleias publicas, desfiles... tantas representagdes quanto 0 proprio cinema contribuiu para configurar e por em cena. Um exemplo de tal retérica? Passados alguns minutos do inicio do filme, um plano aberto, em plongée - feito na célebre sacada que domina a praca Venceslau -, mostra a multidao apinhada ao fundo para ouvir o juramento do regime ao finado Stalin: “O céu escuro ja se desanuvia’, traduzem as le- gendas. “Ele vive através do Partido. Morreu Stalin, o Partido vive. Seguindo 0s passos de Lénin, ele contempla 0 mundo em meio as estrelas. Ao lado dos operarios, ele canta. E um deles. Ele vive através do Partido. Eis a nossa pro- messa ao grande Stalin: nés juramos executar o seu testamento.” E a multidao responde: “Nés juramos! Nés juramos!”. Passemos pela maravilhosa sequén- cia de imagens da dupla Lénin-Stélin cantando num coro de operarios, em meio as estrelas. Vejamos as imagens. Dominando a multiddo, em primeiro plano, & contraluz, a silhueta macica do orador que discursa e grita o primeiro “Nos juramos!”. Cena grandiosa, representa¢io do momento histérico com maitisculas, mas, ao mesmo tempo, dispositivo emblematico: o corpo do ora- dor em primeiro plano, de costas, faz sombra sobre a multidao, a sombra do poder projetada sobre as massas. O “Nés juramos” é, assim, dissociado pela mise-en-scéne, a cena se divide. A iluminagao, o enquadramento, a posi¢ao do orador cujo corpo encobre uma parte da multidao dissociam o “nés”: “nds 0s que estdo no balcio, esmagadores; e “vés’, os que esto embaixo, esmaga- dos. A posi¢do da camera (atras do poder, mas ao seu lado) determina evi- dentemente a do espectador: nao temos outra escolha senao contemplar do alto a multidao encoberta pelas costas do poder. Tal restri¢ao provavelmente 190 Jean-Louis Comolli pio passou despercebida ao cinegrafista. Segunidos mais tarde, outra versio. sjesmo plano geral da multidao em plongée, mesmo balcio, mesmo enqua. damento. Exceto que, dessa vez, nenhuma silhueta maciga se projeta sobre a multidéo. A camera e o espectador tomaram o lugar exato do orador que comandava as aclamagées. Sem corpo interposto, sem obstaculo, sem chicana, nosso olhar domina a multidao que grita “Nés juramos!”, Confundimo-nos coma instancia do poder perante a qual o povo presta juramento, ocupamos o lugar do lider. Diante de nés, temos apenas “vés’. Assim, © espectador, in- dividuo comum deduzido previamente da multidio abaixo, acede ao nivel em que representacao e poder se confundem e se fortalecem mutuamente. ‘Amassa, porém orientada, dirigida ~ enquadrada. No momento em que o cinema passa do fervor revoluciondrio a submis- sio publicitaria, ee se reencontra, ele se filma, filma o préprio espetéculo, Em Les Mots et la mort, o comunismo filmado é duplamente exaltado. Reitera-se aafirmagio jovial da dimensao liberadora do espeticulo enquanto espeta- culo de massas de contetido revolucionario. “O novo mundo recebido com festas nas pragas, neste 1° de Maio de 1950”, diz a voz, é também celebrado pelo cinema. Acabada a danga, aonde vao os jovens militantes? Ao cinema. Seguem-se, ento, imagens de jovens rejubilando, de aglomerados de gente dangando nas pragas, de espectadores que se acotovelam, debaixo do letreiro “Kino’ 4 entrada de um cinema. Os personagens de um filme de propaganda se dirigem a uma sala escura para assistir a outros filmes de propaganda. Es- petaculo ao quadrado. O que irdo ver? O espetaculo da vitéria do espetaculo: © novo mundo triunfa sobre o velho. Ascenso do espetaculo, Ele se torna uma forga também nas democracias populares. Mais um didlogo entre filmes: operarios saindo de uma fabrica para se manifestar. Essas imagens de arquivo se acrescentam & antologia que Harun Farocki coligiu, ao refazer a histéria do cinema (Operdrios saindo da fabrica [Arbeiter verlassen die Fabrik], 1995). Aqui também, tal como no primeiro filme e modelo do género, A saida dos Speririos da fabrica Lumiére[La Sortie des usines Lumiére, Louis e Auguste Lumiére, 895), a camera, posicionada do lado de fora da fabrica, aguarda os “Perérios que vém em sua dire¢ao. Em direcio a qué? A camera, ao filme. Sair dotrabatho, ir em direcdo a camera. Diriamos de imediato: “ir 20 espetaculo’. Um novo poder atrai as multidées, Oespetho de duas 191 faces A distancia, como sonhava Godard, os filmes conversam uns com os ou- tros. Em Les Enfants jouent 4 la Russie, ha também uma fachada de cinema e duas atrizes, no papel de operarias, convidam para a sesso nao mais os ope- rarios, mas os cineastas soviéticos desaparecidos — nomes sem corpo, ausen- tes das imagens, Vé-se também, como em O homem com a camera, o interior da sala de cinema, a tela com as silhuetas dos espectadores, o filme dentro do filme. Pensei, a principio, que a eterna tentacao do cinema de reproduzir- -se em abismo, fundada por O homem com a camera, podia ser encontrada até mesmo na forma elementar do filme de propaganda. A tela, os cames do projetor, a janela da cabina de projecao com seu feixe-fetiche de luz nao sao, porém, imagens de arquivo. Todo esse cinema dentro do cinema foi fil- mado por Cuau e tratado para parecer material de arquivo, uma extenso dele. O que importava era assinalar o lugar do cinema na montagem do espe- taculo stalinista. Na tela, pois, as imagens brumosas de uma charrua pode se sobrepor um trator dos tempos modernos. O velho e 0 novo [Staroye i novoye, Grigori Aleksandrov e Serguei Eisenstein, 1929]. E a voz: “A vida, a cada dia que passava, parecia se aproximar da felicidade suprema. Quem, aqui, ainda se lembra de que Stélin foi o criador da felicidade humana? As imagens e as palavras do cinema daquele tempo nao serviam essencialmente para mentir, mas, sobretudo, para inventar 0 novo mundo — com o tinico inconveniente de que era ficticio” Nao creio que o narrador tenha abusado das préprias palavras. Esta bem dito que a propaganda filmada, a doxa stalinista, “as imagens e as palavras do cinema daquele tempo [...] inventam um novo mundo”, Teria sido dificil fazer passar por verdade a mentira de que tal mundo fosse o comunismo: ele é somente a ficcao (uma das ficcdes possiveis) do comunismo. Vamos rever- ter o enunciado: comunismo é a ficgao cujo espetaculo é possivel no passado. Hoje, mal conseguirfamos filmar o jlbilo dos desfiles, as danas, a alegria no rosto da juventude do mundo. Em lugar disso, nao ha nada, indiferenga talvez. Certa auséncia. Nao hé mais nenhum espetéculo possivel da efervescéncia comunista. Essa comunhio politica se tornou suspeita, os corpos filmados antigamente nao esto mais disponiveis para as encenages de massa, a alma, como os pombos, evolou-se, A mesma suspeita pesa sobre as imagens € aS palavras do comunismo. Com a ressalva de que as imagens néo sio as pala- yras, as arvores em flor so € nao sao 0 slogan do 1°, de Maio, 0 acordeio que abre o desfile € e nao é, em absoluto, “a Primavera oferecida a humanidade pela classe operdria O que se passa quando vemos tais cenas hoje, nesse fil rador as alfineta, se deixa intrigar por elas, revela-lhes lucie a queda? Essa tentativa de por distancia justa nio pode me, € a voz do nar- idamente o abismo e rd ser levada a efeito as cenas para diante, num movimento de citagdo que literalmente as exume. Entao, sendo quando a mesma voz impelir tiradas do esquecimento, egressas do recalque, pdem-se estranhamente a viver ea brilhar, As palavras, como se sabe, esto do lado da morte. E as imagens, os sons da €poca, 0 tom das vozes, o frescor das flores? Filmados hé tanto tempo, as. Pessoas, as luzes, os gestos 08 rostos de um tempo obliterado pelo horror revivem a cada projecio, tor- nam a mostrar-se para nds tal como em si mesmos o cinema os transforma e exalta: vibrantes. O entusiasmo que os movia talvez fosse fabricado e facticio, mas o falso, ele mesmo, faz-se a verdade do falso sob o efeito do registro cinematografico, da inscrigao verdadeira. Filmada, a mentira revela sua verdade. Ela se mostra pelo avesso, como uma luva que deixa ver nao apenas suas costuras, como a carne que recobria. Haveria uma verdade cinematografica do comunismo que teria continuado a se propagar, como a luz de um astro extinto, Nao é por acaso que a cinematografia concede um tratamento privilegiado as histrias de espectros e almas do outro mundo, na medida em que o mo- tivo profundo do cinema, a ressurreicao, ou melhor, o eterno nascimento do mundo, é essencialmente um tema religioso e politico. Todo registro de uma cena cinematografica é levado a efeito de acordo com a lei da inscricao ver- dadeira: aqui, agora, uma verdade, a da passagem do tempo, é filmada, re- Bistrada, produzida e ao mesmo tempo arquivada pela presenga simultanea, numa mesma duragao compartilhada, de um ou varios corpos e objetos, e de uma maquina, Essa verdade, esse momento singular, esse aqui e agora so ini- Bualéveis, inicos, nao iterativos. Uma primeira vez, uma vez por todas. Toda tomada cinematografica é um ato de nascimento. Todo encontro de um corpo ¢de uma maquina é sempre o primeiro. A vigésima tomada nunca deixaré de ser tio singular quanto a segunda. A dimensao documental de todo filme ‘ema ver fundamentalmente com a singularidade extrema de cada fragao de Oespetho de duas faces “ tempo registrado. Por tratar-se de um movimento que se desenrola numa du- racdo ~ o tempo necessério para realizar um movimento de camera, ir de um ponto a outro, mas, sobretudo, o tempo necessario para deslocar certa quan- tidade de metros de pelicula ou de banda magnética de um ponto a outro do tempo; no cinema, como é sabido, os metros se contam em segundos, tal como os fotogramas -, o cinema filma o tempo, fabrica durages que serao experi- mentadas, isto é, vividas pelo espectador. A experiéncia vivida pelo espectador durante a projegao do filme é, acima de tudo, tempo vivido; ela est ligada a percepgio psiquica ¢ fisica de uma sucessao de duragdes combinadas, encai- xadas umas nas outras, montadas numa composi¢ao ritmica mais ou menos elaborada. Creio que muito dessa singularidade extrema do tempo filmado — sua verdade documental - entra no fascinio do cinespectador, sempre ativo na crenga denegada que o liga ao cinema. A singularidade nao iterativa da cena cinematografica se repete como tal a cada projecao. A primeira e tinica vez da inscricao verdadeira recomeca a cada projegao, para cada espectador. Aquilo que nasceu como filme retorna como nascimento filmado. Pois a originalidade intata do encontro do corpo filmado e da maquina filmante recomeca, renova- -se, numa unidade de tempo singular (sendo cada sesso datada, justamente), como encontro desse filme com esse espectador. O tempo transcorrido du- Tante o registro da cena e o tempo da cena transcorrido durante a projecao combinam-se com o tempo da sesso que transcorre também para o especta- dor, ¢ essa confusio de tempos é inimitavel, nao iterativa. A primeira vez apre- Senta-se a mim como uma enésima vez que volta a ser a primeira. Ainda aqui, denegacao maior: sei muito bem que tudo o que vejo e ougo na sala de cinema foi filmado hé muitos meses, hd muitos anos ou dezenas de anos. Entretanto, €no presente que esse mundo filmado nou! 0 'tros tempos chega a mim, surge 4 minha frente, inscreve-se em mim. Embora consciente do retorno do passado, crelo no presente da emogao sentida. Assim tempo, mais ainda que no espago. Os rostos © éxtase no sofrimento pela perda de Stalin € que o cinespectador viaja no le mulheres jovens crispados até podem me comover como um TeJel¢40, atracao, identificacdo com os jovens que desfilam cantando, apesar de saber muito bey ‘™m que Os corpos que vibram na tela esta 194 Jean-Louis Comolli mortos hé muito. Eles celebram o nascimento de um n momento em que eu, cinespectador, cujo efeito sobre minha tela mental é mundo sensivel. Um entre outros mot querida pela crenga cinematografic: apenas sofrem e estao convencidos d: tivos para ceder a alucinacdo positiva re- hego a crer que esses personagens nao A verdade do comunismo, mas que ti- nham razao para isso. Reflexdo da teoria do cinema sobr pratica do espectador: a lei da inscrigéo verdadeira po fantasmas do stalinismo triunfante o beneficio da sin si mesma, a partir da deria conceder a esses \ceridade das primeiras vyezes, 0 que autenticaria nao somente a minha crenga como também a deles, langando uma ponte de uma a outra. E assim a Propaganda triunfaria - tem- pos depois da batalha. Enquanto os atores, as causas, os referentes desaparece- ram, ou, mais precisamente, foram dissolvidos na histéria, a propaganda (sta- linista, no caso, mas qualquer Propaganda) continuaria a veicular, sem outro motivo que nao o cinematografico, fragmentos de esperan¢a sem causa, Essa, alids, seria uma das explicacdes Possiveis para o éxito dos filmes baseados em compilacées de material de arquivo e dos programas de televisio baseados na reciclagem de atualidades: a revivescéncia filmica do passado (seja ele qual for), que constitui 0 tra¢o cinematografico como referente tiltimo da historia recente. Hoje, as imagens de arquivo, tal como montadas e mostradas em Les Mots et la mort, adquirem novo valor: elas representam 0 que permanece do Sonho na passagem do tempo. A emogao que ai se inscreveu pode ser sincera ou fingida - filmicamente, ela é crivel. Ela pode ser retérica, fabricada sob en- comenda e distante de toda verdade politica, porém nao da verdade cinema- tografica. Por mais duvidosa e datada que seja, essa emocao atravessa 0 tempo. Vemo-la, hoje, emitir uma chispa de utopia que ainda resiste e que nos i sinal. Paradoxo do trago cinematografico: despertado, ele ressuscita a esséncia da qual nao era senao trago. Haveria uma verdade cinematogréfica que nao teria senéo relagées acidentais om a verdade histérica. Como nao renunciamos de boa vontade 4 verséo ““confortante de um “cinema reflexo do mundo’ a eventualidade de tal diver- 8éncia nos inquieta. 195 Oespetho de duas faces No cinema, o “verdadeiro” e o “falso” nao sio como na ldgica ou na matemé- tica, esto mais préximos da musica. Questo de ouvido. Pois, para a maquina, s6 € verdadeiro o registro que ela efetua de certa quantidade de tempo, segundo uma presenga dada, sob uma luz dada. No cinema, disse anteriormente, essa verdade pode afetar tanto 0 “verdadeiro” quanto o “falso”. Como esses dois valo- res nao sio nem mais nem menos reversiveis e intercambidveis do que o sio na experiencia subjetiva, eles permanecem bastante relativos e, por certo, so atrai- dos por toda sorte de disfarces (o grande motivo do cinema juntamente com a ressurrei¢do, que é sua versio maior). Retomadas bruscas, golpes de teatro, representacao de tolos ~ se alguma duivida nao pesar sobre o “verdadeiro” e 0 “falso’, nao hd comédia possivel, tampouco critica dos poderes. Espelho giratério. Para ndo ceder a vertigem desse torniquete favorito do cinema, prefiro falar em “falsidade” e “justeza” no sentido musical, por conseguinte, em harmonia, tona- lidade, timbre - numa musica dos corpos e da fala, numa ritmica da enuncia¢ao. Certamente, tais critérios so modelados por correntes histéricas e polaridades sociais, no entanto encontram no cinema seu campo por exceléncia, na medida em que ressaltam as relacées, as ligagdes e os lugares de preferéncia 4s quali- dades intrinsecas. A linguagem da mise-en-scéne fala em faux-raccords, isto é, raccords entre planos. Uma decupagem (sucessao de planos que decompéem uma a¢do, um gesto, uma relagao) canhestra, um raccord canhestro entre olha- res ou cadéncias, é, no cinema, mais falso do que um plano trucado, uma cena forcada, uma reconstituigao de material de arquivo... Os mais belos e magis- trais exemplos de mistificagiio que conhe¢o sao dois filmes de propaganda - por acaso, dois filmes de guerra -, um soviético, o outro inglés, falsas atualidades, falsos “documentos”, reconstituigdes e ficgdes, A queda de Berlim [Padenie Ber- lina, Mikhail Tchiaureli, 1949] ¢, ainda mais surpreendente, Vitdria no deserto [Desert Victory, Roy Boulting, e David MacDonald, 1943]. Serd preciso reiterar que o mundo filmado, em todos os casos, foi fabricado pelo cinema e As vezes para o cinema? Que os arquivos cinematograficos nao revelam sendo 0 estado do mundo filmado, que nada mais é que 0 mundo suscetivel de ser filmado, o mundo destinado a se tornar filme - e que tal s€ tornou, mais e mais? Desde a Segunda Guerra Mundial, 0 espetaculo fabrica " Jean-Louis Comolll ym mundo a sua medida, mas também A sua imagem: a partir de imagens fil. madas. O mundo espetacular torna-se uma fonte ; de referéncias mais real que as outras. De agora em diante, podemos ter certeza de que o mundo filmado €0 unico que ja estava “ai”: temos arquivados seus tracos. Ainda mais perturbadora ¢ a infidelidade, a ambivaléncia (voltarei a esse ponto); a hesita¢ao intrinseca a todo traco cinematografico, a “ documental ou ficcional, de arquivo ou no. Isso se sabe, isso nao quer saber de si. Hoje, uma curiosa demanda insiste sobre os arquivos filmados, Exige-se deles que forne- gam uma prova irrefutavel da existéncia do que foi, quando nao podem conter senao o trago da conjungao particular que os tornou possivel e os produziu, encontro circunstancial de um referente e de um processo de producio, con- jung4o novamente acionada num segundo encontro, nao menos circunstan- cial, desse traco com o olhar que se mostra capaz de interpreta-lo (retorno da primeira vez). Em Imagens do mundo e inscrigdes da guerra (Bilder der Welt und Inschrift des Krieges, 1988-89], Harun Farocki filma as fotografias aéreas feitas em 1944 pelas cameras automaticas dos bombardeiros americanos que sobreyoavam a Silésia. Eis o comentario de Farocki: Aufkldrung é um termo da hist6ria das ideias. E também um termo militar: re- conhecimento, Reconhecimento aéreo, Na Europa Central, o céu se apresenta geralmente encoberto, Sé se tem boa visibilidade durante uns trinta dias por ano. No dia 4 de abril de 1944, 0 céu estava sem nuvens. A poeira do ar baixara, com as pancadas de chuva caidas pouco antes. Os avides americanos decolaram de Foggia (Itdlia) e rumaram para seus objetivos na Silésia: usinas de carburante e de borracha sintética (buna). Ao sobrevoar os canteiros de obras da usina IG- -Farben, um piloto disparou a camera instalada no aviao e tirou uma fotografia do campo de concentragao de Auschwitz. Primeira imagem de Auschwitz, feita a7 mil metros de altitude. Os filmes expostos em abril de 1944 na Silésia foram encaminhados para processamento em Medmanham, Inglaterra. Os analistas de fotografias aéreas identificaram uma cesma investigacio sobre 0 campo de Auschwitz, nao o encontraram. [...] Somente em 1977, dois funciondrios da cla tomaram a iniciativa de pesquisar as vistas aéreas de Auschwitz nos arquivos e analisd-las. Somente 33 anos mais tarde é que as palavras foram inscritas, estas Palavras: torre de vigia; casa do comandante; escritério de registro; quartel-ge- Oespetho de duas faces i. neral; administracao; valado; paredao de execugao; bloco n°. 1, e foi inscrita a expressio “camera de gis” Fabula moderna. As imagens e as palavras. Era preciso um céu despejado, mas isso nao bastava. Uma fotografia, mas ela nado bastava. Um olhar para in- terpretd-la, mas isso tampouco bastava. Foi necessario 0 sucesso da minissé- rie Holocausto (Holocaust, Marvin J. Chomsky, 1978] para, 33 anos mais tarde, dois funcionarios da c1A (!) lerem o que nao tinha sido lido, escreverem pa- lavras em face dos vestigios. E preciso um olhar humano para ler o vestigio registrado por uma maquina, contudo nem sequer o olhar basta. Dizer que as imagens, de arquivo ou nao, sao uma questao de leitura, isto é, que depen- dem do trabalho de interpretagao de um espectador e que essa interpretacao é necessariamente conjectural, tampouco é suficiente. J4 de saida, sublinha Farocki, a imagem produzida por uma maquina automatica — isto é, prati- camente fora da demanda de um sujeito desejante ~ permanece ilegivel, ou, mais precisamente, sua legibilidade ¢ condicionada a previsibilidade de uma solicitaco, é determinada pela leitura prévia de uma expectativa (barracas do canteiro de obras, em vez de um campo de concentrago). E preciso uma aposta, imaginéria ou no, feita por sujeitos para sujeitos. Um impulso, um movimento capaz de repor tais imagens em jogo, de arrisca-las entre nés, de fazé-las circular pelos nossos circuitos significantes. E preciso, pois, montar as imagens, monté-las a outras imagens, a outras associagées (Holocausto- -Auschwitz; ou entao, fabrica~campo de concentra¢ao; trabalho forcado-ex- terminio etc.), palavras, cifras, datas, a outros signos, a outras representa¢6es, para que o traco eventualmente se faa signo. E preciso, de inicio, que as ima- gens nos identifiquem — 0 que queremos delas, o que queremos de nés com elas? -, para que, por nossa vez, possamos identifica-las. Presas faceis, sim, mas que nao se deixam domesticar facilmente. Se o poder das imagens tem a ver com a sua reserva de enigma e/ou de significacao, ele é proporcional a nossa impoténcia em junté-las, confronta-las, articuld-las - em monté-las. A utilidade da imagem se esgota mais rapidamente do que ela. Mais adiante no filme, Farocki observa: “Os nazistas no perceberam que seu crime era ag Extraido de “La Guerre, inscrite sur les images du monde”. Trafic, n. 11, verao 1994. > Jean-Louis Comolli BS ee a a fotografado, e os americanos nao perceberam mas nada perceberam. Isso foi registrado com americanos fotografaram Auschwitz, ue o faziam. As proprias viti- ‘© num livro divino, Os avides mas nao 0 atacaram”. No livro divino, i eriam sé-lo no cinema, arte “humana, demasiado humana”. Aquestio dos arquivos,¢, portanto, essencialmente uma questao de mon- tagem. Parafraseando ironicamente a célebre formula de Roberto Rossellini, diria: se quiserem que as coisas estejam ai, temos de comecar por manipuli- -las (0 que é também fazé-las passar de mao em mio). Pér em pé 0 mundo é,primeiro, monté-lo. A montagem é primordial. Tal primazia é a regra em Vitéria no deserto. Ela submete a realidade referencial (a batalha de Fl Ala- mein, em outubro de 1942, ¢ a investida aliada até Tripoli) ao principio, quase diria, & ditadura do espetaculo, dobrando-a as regras e rigores da escrita ci- nematogrdfica mais formal. Os promotores, os idealizadores desse (grande) filme de propaganda (bem-sucedido), nao se preocuparam tanto em captar, ou capturar (6 a guerra), a realidade de uma batalha, e sim em cativar o especta- dor, induzindo-o a crer que as cameras de fato lograram apreender a verdade documental da batalha. Pouco antes do inicio da batalha, enquanto as tropas, em estado de alerta € preparadas para agir, esperam ouvindo um tocador de gaita de foles que circula por entre os soldados, o espectador espera também — € 0 relato é sus- penso, Tal como os soldados, ainda melhor do que eles, o espectador foi pre- parado para a batalha. O filme apresentou-lhe os atores e os objetivos envol- vidos, os homens e os planos, as forcas e a topografia, a politica e a tatica. Nao sem aquele toque bem inglés de realar, antes que se desencadeie a morti- fera barragem de fogo, 0 individuo, o seu lado familiar, fraternal. A exposi- 640 do relato e a exposicao da batalha coincide exatamente. A luz ofuscante do deserto esbate-se nas contraluzes. Creptisculo, vento, areia, os elementos &a noite so lentamente convocados aos palcos homotéticos da batalha e do filme, Silencio, A locugao se interrompe."® O 8° Exército aguarda. Nés também. Insensivelmente, passamos da luz do sol para o luar. As sombras nao se me- xem ainda, Segundo a mesma retérica da suavidade, transpomos outra fron- 2° O tom do comentario constitui um modelo do genero. 199 Oespetho de duas faces teira invisivel: 0 relato abandona o passado pelo presente. Nao estamos mais “apés a batalha’, como no inicio do filme, naquele a posteriori que permite ver e compreender, animar os mapas, figurar as posigdes. O relato passa para o presente, a batalha para o futuro. As expectativas do espectador e do soldado se tornam sincronas. A guinada da narrativa nos transporta ainda do regis- tro da informagao ilustrada para o registro do cinema, momento em que 0 documentirio procura compartilhar nao tanto informagées quanto emogées. Sobre a imagem crepuscular de um tanque 4 espera, escurecimento gradual, seguido de tela escura com uma duracio inabitual (trinta segundos). A voz do locutor retorna com a escuriddo e conta-nos 0 que vai se passar, o que ja esta se passando. “At zero, the barrage begins” (A zero hora, o bombardeio se inicia]. O fogo de artilharia ja comecou, diz-nos 0 locutor no escuro, mas nao ouvimos nem vemos os tiros. A escuriddo é uma porta aberta para a ficcao. Contagem do tempo. Efeito de presente, efeito de presenga. Uma luz oscila fracamente sobre a tela escura. Insert de um relégio de pulso no braco de um oficial. A luz bruxuleante que ilumina o reldgio figura a incerteza de um eterno presente - 0 de uma batalha, o de um filme. Isso acontece a nossa frente, a nés mesmos. Um oficial que mal vemos grita “Fogo!”. Clardes inten- sos. Eis-nos em plena batalha, corpos em meio a corpos, enfrentando a noite ¢ os relampagos. Uma vez devolvido ao presente da ago, isto é, privado de dominio, o espectador, soldado de infantaria extraviado, choca-se com 0 es- petdculo paradoxal de uma escuridio que subtrai quase tudo & sua visao, ex- ceto os clarées que o ofuscam. Apari¢ées, desaparicées em meio aos jatos de luz das explosées." O que faz medo é 0 que nao se vé, sobretudo no cinema. E medo é 0 que faz crer. Crer, no cinema. Todo o material utilizado no filme, atualidades verda- deiras, atualidades reconstitufdas, cenas feitas no local, cenas refeitas em es- ttidio, soldados verdadeiros ¢ falsos, tanques verdadeiros e falsos etc., tudo obedece a lei da eficdcia espetacular. Nao faltam exemplos:* a maioria dos 21 Em Um punhado de bravos (Objective, Burma!, Raoul Walsh, 1945], a noite desempenha o seu papel mais terrivel, violéncia da suavidade. O mais belo filme de guerra assemelha-se a um documentirio, tal como Vitéria no deserto assemelha-se a um filme de fico. 22 Remeto o leitor ao encarte (em inglés) que acompanha o videocassete de Vitdria no deserto 200 Jean-Louis Comolli assaltos em que vernos soldados britanicos varando obstaculos de arame far- pado, destruindo postos inimigos, avan¢ando enquanto desativam minas a ponta de baioneta foi filmada nos estudios de Pinewood por uma equipe es- pecializada na reconstitui¢ao de cenas de guerra, o “Chet's Circus”; 0 mesmo yale para oS (magnificos) planos fechados e primeiros planos dos soldados e oficiais durante o ataque, em plena noite, dos quais o mais extraordinario sem duvida o do oficial que consulta seu relégio de pulso na hora H, com insert; estiidio, atores, iluminagio artificial. Todos os tipos de stock shots fo- ram montados e mesclados com as imagens “verdadeiras” da batalha de El Alamein - milhares de metros de pelicula rodados por cerca de trinta cine- grafistas operando na linha de frente. Deslocamentos de tanques, ataques aé- reos, colunas blindadas atravessando o deserto, lagartas em meio a nuvens de areia, carcacas incendiadas, uma pletora de imagens de procedéncia variada, feitas naquela ou noutras batalhas, naquele ou noutro recanto do deserto. Semelhante bricabraque poderia sugerir o trabalho atabalhoado de pescar “jlustragdes” em bancos de imagens e emenda-las apressadamente ao som de um comentirio jornalistico, como ainda é praxe na televisdo. Nada disso ocorre aqui. O desdém das referéncias, tal como se manifesta no filme, é so- berano. As necessidades prioritdrias da narra¢ao, da dramaturgia, do efeito realista tiveram precedéncia sobre a exatidao militar (os tipos exatos de tan- ques, canhées, avides...). Quando o espetacular cinematogréfico é regulado pelo rigor da escrita, quando o frenesi de mostrar se integra com a parte de le atravessa a cena ci- sombra que transtorna 0 visivel, uma nova intensidad: os mais espe- nematografica. Vitéria no deserto ilustra esse paradoxo. Os efeit taculares do filme sao também os mais realistas, pela simples razio de terem sido arrancados a impossibilidade de filmar. No estudio, foi preciso reconsti- nificina, como também a noite e 0 perigo. tuir nao apenas os combates e a carl que as imagens frageis e precdrias da Reproduzir o medo, a ameaga, a morte guerra revelam. Reencenar o perigo que corriam os cinegrafistas na linha de frente (registraram-se casos de feridos e uma morte), no ambiente seguro dos platés de Pinewood. Foi preciso por em cena, além de figurantes, cenarios (colegao de videocassetes After the Battle). No texto do encarte, ‘Trevor Popple descreve to- das as operagées de trucagem, manipulagio e refilmagem. Oespelho de duas faces “ acessérios, o proprio invisivel. Todo um trabalho de ficgao foi desenvolvido para produzir uma verdade documental mais forte que a dos documentos auténticos, julgados insuficientes, em ultima andlise, do ponto de vista do espetdculo, Foi preciso ligar sem solugao de continuidade imagens verda- deiras e falsas, construir-Ihes a sucessao. Nao apenas camuflar sua origem heterogénea (diversidade de iluminagao, de pelicula, de processamento etc.), mas também organizé-las numa continuidade narrativa e dramética que pa- recesse sem falhas. O realizador nao temeu, por exemple, inverter os planos de tanques e de soldados em movimento a fim de reorienta-los de acordo com a dire¢ao correta adotada para a ofensiva: da direita para a esquerda da tela. Quanto aos planos rodados em estudio, seu lugar na montagem, sua relagdo com os planos cont{guos, sua escala, sua iluminagao, a direcao dos movimentos, dos olhares, tudo foi calculado para integré-los perfeitamente ao material procedente do campo de batalha. O cuidado com a preciséo mi- nuciosa dos detalhes é visivel na decupagem, no agenciamento narrativo, na montagem, e néo mais, como no caso dos filmes de arquivo que pretendem ser rigorosos, na relacao das imagens com seus referentes, na remissio as fontes. Vitéria no deserto talvez nao seja o filme mais trucado da histéria do cinema, entretanto sao as trucagens mais bem realizadas do cinema. Uma verdade mais verdadeira que a verdade: tal é a ambicao do espetaculo. Este soldado, este fuzil, este cadaver, esta tempestade de areia, pouco importa seu lugar preciso no mundo ~ 0 que conta é seu lugar no filme. Nenhuma rea- lidade resiste ao espetaculo, quando ele é conduzido com tamanha energia e determinagao — tal como se conduz uma guerra. Dé-se, entao, o triunfo do espetculo sobre todos os seus referentes, Melhor, ele mesmo os fabrica sob medida. A batalha filmada s6 é verdadeira pela metade. Pouco importa. A verdadeira batalha esta noutro lado. Esta na mise-en-scéne do filme, na sua montagem ~ no assalto a propria realidade pela fabricagao de um espetaculo mais realista que ela. Os combates filmados em esttidio, os planos trucados de Vitéria no deserto deram a volta ao mundo, figurando numa infinidade 23, Esta resolusao em favor do espetaculo é 0 oposto do que Godard reivindicava em relagio 4 banda sonora de Tempo de guerra (Les Carabiniers, 1963): nenhuma detonagao que nio correspondesse & arma realmente utilizada, ‘sempre o barulho exato da arma exata. 20 Jean-Louls Comolli es de arquivo sobre a Segunda Guerra, ea as imagens da batalha de El Alamei verdade! empo — em seguida, o substitui, os quais eles passavam pelas in. O cinema fabrica o mundo, primeiro te dugao do francés de Hugo Mader.] (Tra 203 Ocspetho de duas faces

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