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R. Fac. Educ, Sio Paulo VAT, ns. 1/2, p. 212-216, janJdea. 1991 RESENHA: REFLEXOES SOBRE ALFABETIZACAO, de Emilia Ferreiro - S40 Paulo: Cortez e Autores Associados, 1985. Silvia de M. Gasparian COLELLO (*) Tradicionalmente os educadores consideram que a alfa- betizagéo depende tinica e exclusivamente do amadurecimento de certas habilidades infantis ({capacidades motoras, percepti- vas e discriminatérias). A possibilidade de escrever esta vincu- lada ao exercicio mecdnico de desenhar ou reproduzir letras. Em Reflexées Sobre Alfabetizagéo, Emilia Ferreiro defende tese contréria, demonstrando que a aprendizagem da lingua escrita requer um esforco cognitivo que se processa a partir de problemas essencialmente conceituais enfrentados pela crian- ga. Tal distingao é fundamental, pois, quando a escrita deixa de ser compreendida como uma simples transcrico gréfica ¢ pas- sa a ser concebida como um sistema de representacgao da lingua- gem, a alfabctizagao assume o cardter de aprendizagem concei- tual (e ndo puramente técnica), isto é, uma efetiva conquista de saber. No desenvolvimento desta teoria, a autora toma como base os seguintes princfpios: 1®-a crianca 6 um ser inteligente e ativo na construgdo do conhecimento; 2° - na alfabetizagdo, o processo de elaboragdo cognitiva ndo é conseqiiéncia necess4ria do ensino sistemdtico promovido () Professora Assistente do Departamento de Filosofia da Educagio ¢ Ciéncias da Educaglo da Faculdade de Educagio da Universidade de S4o Paulo. REFLEXOES SOBRE ALFABETIZAGAO... -213- pela escola; Ao lado dos conhecimentos especificos e convencionais que s6 podem ser obtidos por meio de professores ou informan- tes alfabetizados (nome das letras, sinais de pontuacdo, uso de pardgrafos, de letras maitisculas e a prépria diregdo da escrita), a crianga, por si sé, é capaz de elaborar hipdteses para compre- ender o funcionamento da escrita. Ainda que distante da “escri- ta convencional”, estas tentativas infantis configuram-se como formas extremamente criativas na produgéo do conhecimento, surpreendentes pelo seu cardter endégeno. Na elaboracio de suas hipéteses, a crianga recebe infor- magées do meio, que s4o sempre processadas no nivel intelecti- vo. Alguns dados séo imediatamente assimilados, outros, mo- dificados, sofrendo uma assimilacio deformada em funcgio das concepgdes da crianca e, por ultimo, existem dados que sdo simplesmente desconsiderados. Vemos, pois, que a construgio da lingua escrita implica muito mais que a mera colegio de informagées. Longe de ser arbitrario, cada estagio dessa con- quista corresponde a construgdo de um esquema conceitual. Trata-se, portanto, de uma ativa elaboragaéo pessoal, pela qual a crianga re-inventa o sistema de representagéo, construin- do suas hipéteses, testando-as e substituindo-as por outras, quando se convence da inadequacéo das primeiras. Tal evolu- géo depende da oportunidade que o individuo tem de interagir com a escrita nas suas mais diversas manifestagdes, chegando, assim, a idéias cada vez mais precisas do seu funcionamento (produg3o e interpretagdo). Ora, sabemos que esta oportunidade ndo se restringe a sala de aula. Segundo Emilia Ferreiro, “a crianga vé mais letras fora do que dentro da escola” e, na maior parte das vezes, no costuma ficar alheia a essas manifestagées préprias do seu mundo. E natural que criangas que vivam num ambiente rico em experiéncias de leitura e escrita tenham maior facilidade de compreender o seu uso e funcionamento. Mas, regra geral, isso R. Fac. Educ, Sio Paulo, v.17, ns. 1/2, p. 212-216, janfdea. 1991 -214- SILVIA DE M. GASPARIAN COLELLO ndo € © que ocorre com individuos de classes menos favoreci- das, privados quantitativa e qualitativamente das vivéncias de leitura e escrita. A evidente distancia de informagSo que separa um grupo social de outro no inicio da escolarizagdo explica-se pela desigualdade das experiéncias vividas, nao podendo ser atribuida a fatores puramente cognitivos. A construg3o da lingua escrita inicia-se, portanto, muito antes do periodo escolar. Ao descrever a evolucdo deste proces- so, Emilia Ferreiro aponta trés etapas fundamentais nos suces- sivos estégios de leitura e escrita: 1° - Distingéo entre o modo de representacdo icdnico e nio icOnico, 0 que permite compreender a escrita como um meio alternativo de representacdo. 2° - Busca de formas diferenciadas para a produgo escrita a partir de critérios quantitativos e qualitativos. 3°- Compreensdo do cardter fonético da escrita e atengio as Ppropriedades sonoras da palavra. Ao desconsiderar a psicogénese da lingua escrita, isto é, os problemas enfrentados pela crianga e as solugdes que ela admite em cada estdégio de evolucdo, os educadores tratam o individuo como ser passivo, incapaz de construir o seu préprio conhecimento. A conseqiiéncia disso se faz sentit na pretensio de controlar o processo de aprendizagem pela seriagdo de difi- culdades (do “facil para o dificil”), numa seqtiéncia artificial e estranha A crianga. E justamente por nao coincidir com as con- ceitualizagdes naturais desta que os métodos de alfabetizacdo esto longe de intervir satisfatoriamente na evolucdo da apren- dizagem infantil. Nesse sentido, a maior contribuigio da obra em pauta é Ppromover uma revisdo das praticas pedagégicas e das préprias concepgdes subjacentes ao ensino elementar que: 1° subesti- mam os conhecimentos ja conquistados pelas criancas, suas vivéncias lingiifsticas e sua produgdes escritas (consideradas como simples rabiscos); 2° superestimam as capacidades infan- R. Fac, Educ. Sio Paulo, v.17, ns. 1/2, p.212- 216, jan.fdez. 1991 REFLEXOES SOBRE ALFABETIZAGAO... -2iS- tis, pois, mesmo partindo de “um marco supostamente zero de conhecimento”, os alfabetizadores pressupdem o dominio de certas idéias é6bvias para o adulto alfabetizado, mas nem sem- pre conquistadas por aqueles que entram na escola (como, por exemplo, a natureza fonética da escrita). A distancia que se instaura entre “aquele que ensina” e “aquele que aprende” ser4 tanto maior quanto mais elementa- res forem as conceitualizacées infantis. Com efeito, em pesqui- sas realizadas no México no inicio dos anos 80, a autora demos- tra que, nas escolas com maior indice de reprovagao, 71% dos alunos, mesmo sofrendo as influéncias da tradicional alfabeti- zagdo escolar, passam por escritas no alfabéticas, 0 que nos permite concluir que, nas atuais circunstancias, a escola pouco faz para atender criancas que nela ingressam sem ter tido sufi- cientes oportunidades de refletir a respeito da lingua escrita e do seu modo de representacao. Frente a essa realidade, Emilia Ferreiro procura apontar alguns caminhos para o ensino elementar e para a alfabetizacdo, chamando a atencgdo para a necessidade de: 1° - abandonar a visdo de adulto alfabetizado. O conhecimento da evolugao psicogenética permite ao professor adaptar seu ponto de vista ao da crianga e criar condigdes para que ela faga suas proprias descobertas; 2° - distinguir os métodos ou procedimentos de ensino do processo de aprendizagem, porque nem sempre o segundo € conseqiiéncia direta, natural e necessdria do primeiro. Na relagdo ensino-aprendizagem, é preciso dar prioridade ao aluno quanto as suas possibilidades de assimilacao, fazendo dele o centro da agéo pedagégica; 3° - considerar a diferenca entre escrever (compreender o modo de construgéo do sistema de representagdo) e copiar (desenhar letras e repetir mecanicamente os modelos apresentados) para valorizar 0 processo de construgdo in- fantil na conquista do conhecimento significativo; R. Fac, Educ, Si0 Paulo, v.17, ns. 1/2, p. 212-216, janie. 1991 216 - SILVIA DE M. GASPARIAN COLELLO 4° - compreender a leitura como atividade inteligente (insepa- rAvel da interpretagio e do conhecimento), que ndo se re- duz ao exercicio de pura adivinhac&o ou de reconhecimento das letras; 5*- abolir todas as prdticas mecanicas de aprendizagem da escrita que procuram seriar, controlar e dirigir 0 conheci- mento, como se ele pudesse ser introduzido de fora para dentro (como, por exemplo, determinar a época da alfabeti- zacéo ou a ordem de apresentagSo das letras e das dificul- dades ortogrdficas), Em sintese, Emilia Ferreiro propde uma verdadeira revo- lugdo conceitual a respeito da alfabetizago. Os 4 artigos que compdem esta obra funcionam como um convite aos educado- res para repensar as atuais praticas pedagégicas, mudando o seu modo de encarar a lingua escrita e a sua concepgdo de aprendizagem. O primeiro passo nessa direcio € ver o aluno como ser ativo, alguém que pensa, que constréi o conhecimento de modo criativo e sobretudo inteligente. (Recebido para publicacio em 18/10/89 e liberado em 27/11/90) R. Fac, Educ., Sto Paulo, v. 17, ns.1/2, p.212- 216, jan/dea. 1991

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