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Gelson Fonseca Jr. A LEGITIMIDADE E OUTRAS QUESTOES INTERNACIONAIS PAZ_E TERRA A QUESTAO DA ORDEM INTERNACIONAL: COMENTARIOS A PARTIR DAS IDEIAS DE HEDLEY BULL’ O objetivo deste ensaio € propor uma introdusio diditica & questo da ordem no sistema internacional. Tomar-se-4, como aponto de apoio, a reflexio que Hedley Bull faz sobre o tema com vista a reconstruir 0 que seriam “modelos ideais” de ordem imernacional moderna, ou seja, aquela que se organiza em torno de Estados soberanos. Acreditamos que a questo da ordem é ‘uma porta de entrada das mais ricas para a compreensio de alguns problemas basicos da vida internacional, sobretudo a das ogicas que os Estados podem adotar em “sociedades andrquicas", Antes de chegar a Bull, vamos chamar atengao para alguns fatos da histéria contemporanea e, assim, definir a “problem: " com base na qual o tema da ordem pode ser articulado No pensamento cléssico, as caracteristicas permanentes do sistema internacional ¢ suas “regularidades’ so discutidas a partir da dicotomia guerra-paz, que define situagdes extremas. De fato, a guerra € a expressio violenta, portant, a thima, dos modos de conflito, e a paz, o ideal a que se alcangaria com a prevaléncia de padroes imeversivels e abrangentes de coopera- ‘sao. Na verdade, a-dicotomia esconde um continuum complexo. Nao haverd, na Historia, momentos de conflito absoluto ou paz perfeita. Mesmo quando o conflto impera, como ocorreu durante as Guerras Mundiais, algum ingrediente de cooperacio existiré se lembrarmos a formacao de aliancas ou mesmo a obedincia, pre- ria, € verdade, a algumas normas do direito internacional, como © respeito aos neutros e as populagdes civis. Durante a Guerra 33 Fria, a disputa ideol6gica nao impediu que as superpoténcias assinassem tratados que restringiam a proliferacao nuclear, Assim, passando a situacdes hist6ricas recentes, quem ana- lisasse 0 periodo da Guerra Fria poderia levantar claramente ‘expressoes de conflito, com alcance e intensidade variados, ‘como: a) a persisténcia das disputas entre as superpoténcias, que levou a uma acumulacao extraordinaria de armamentos de altissimo poder de destrui¢io; b) a dificuldade de superacao de ‘crises regionais — algumas expressas efetivamente em guerra como no Oriente Médio — e a fragilidade dos instrumentos multilaterais para o encaminhamento de solugdes pacificas dos -conflitos internacionais; c) as formas crescentemente agressivas das disputas econémicas, a crise da divida, os processos de pauperizagio em algumas regides do plane'a; d) a existéncia de situagdes de clamorosa injustica, como 2 da discriminacao racial, mesmo diante dos mais veementes esforcos da comuni- dade internacional para debeli-las. E, ao mesmo tempo, perce- beria que: e) nao houve guerras de alcance mundial nos shimos 50 anos; ) apesar de violagdes, certos principos de organizagao do sistema internacional mantiveram-se e foram mais respeita- dos do que transgredidos; 2) instinuigoes basicas para 0 convivio internacional, como a diplomacia ¢ os organisos multilateras, especialmente os técnicos, subsistiram ¢ garantiram medidas ex- pressivas de didlogo ¢ de cooperaco entre as nagbes. A ONU, que € 0 simbolo méximo da cooperacio internacional, teré sido inoperante em alguns conflitos centrais do periodo, como (© do Vietna, mas, a0 mesmo tempo, serviu para facilitar o processo de descolonizacao e, de suas reunides, nasceram vé- fos textos de direito internacional. Mesmo insatisfeito com 0 episodio, nenhum pats propds a extincao das Nagbes Unidas. Se olharmos para © panorama atual, pés-Guerra Fria, os mesmos contrastes poderiam ser observados. De um momento quase euférico, logo nos primeiros anos da década de 1990, quando a comunidade internacional enfrentou o problema da Guerra do Golfo, em que alguns imaginaram que estivamos perto de constituir uma “quase policia” internacional, com alto grau de legitimidade e razoavel eficicia, passamos logo depois para as decepgdes com a dificuldade de lidar com os desafios da recomposigao das nacionalidades na ex-lugoslévia. Apesar 4 de exigirem leitura menos simplista do que tiveram, é sintoma- tico da ambigiidade fundamental do sistema internacional o sucesso que alcansaram simultaneamente © artigo de Fukuya- ma, anunciando o “fim da Historia”, com a perspectiva da vit6- ria da democracia ¢ do mercado, ¢ o de Huntington, indican- do, em tom pessimista, que a Guerra Fria seria substinuida por conflitos de outra navureza, jé que, com o esmaecimento das ideologias, as dispuas seriam entre civilizagées e, poranto, me- nos manejéveis diplomaticamente*. Conhecemos as interpreta- ‘ges contraditérias do fendmeno da globalizagio: para uns, afirmacao do triunfo de um capitalismo que, pouco a pouco, levard a uma superacio gradual da desigualdade; enquanto, para outros, a confirmacao de padres de iniqiidade, que, dei- xados sem controle, s6 se aprofundariam, Diante desses fatos € de suas interpretagées, que conclu- sdes tirar sobre os fundamentos do sistema internacional? A primeira linha de reflexao poderia sugerir que, no continuum gue vai da violencia & cooperacao, algum dos lados prevalece © a indagacio levaria a: setia a cooperacio sempre episédica e © conllito, a regra? Ou, a0 contririo, a guerra é a excecio, 0 “defeito” do sistema? Em que condigées a cooperagao emerge? Que tipo de “ordem” resulta desse incessante contraste confi to-cooperagao no sistema internacional? O que se vé € 0 maximo de ordem alcancével numa estrutura constituida por soberanos? (Ou € 0 minimo de ordem, que pode, portanto, ser aperfeicoada? O que favorece ¢ 0 que impede aperfeigoamento da ordem? Essas indagagdes nao sio novas e, na verdade, em expres- ses variadas, vém aparecendo desde os primeiros momentos da formacao da moderna sociedade de Estados. Talvez valha ainda uma vez retomé-las porque, como vivemos, em nossos dias, um processo de transigao de um mundo bipolar, domina- do pelo conflito ideol6gico, para algo que ainda nao conhece- ‘mos plenamente, aquelas quesides fundamentais voltam a interes- sar € s¢ tornam freqdentes. O que significam as transformacoes contempordneas? A perspectiva é de que a cooperacao se am- plie, se torne vitoriosa? Que conflitos 0 sistema enseja? Nao ‘vamos, neste ensaio, tentar resolver essas indagacdes. © proce- dimento seré outro; o de sugerir, voltando aos clissicos, de que maneira se podem pensar modelos basicos para entender o 35 internacional e, talvez, indiretamente, dizer algo sobre o siste- ‘ma internacional contemporaneo. Nesse sentido, para simplificar ¢ iniciar uma discussio, di seeia que a questo da ordem admitiria, hoje, duas interpreta- es paradigmiticas. Na primeira, a nogio de ordem € minimalista € ndo vai além da preservaco dos Estados. A logica de preservacio, de natureza egoista, explica a dificuldade que a comunidade inter- nacional tem de juntar esforgos para lidar com situacdes de conflito, da Somélia 4 Bésnia, do Congo 4 Ruanda. No plano econémico, as indicagdes de agravamento da desigualdade ou as crises financeiras também apontam para os limites da coope- ragio internacional. A ordem nao se identifica com solucdes compartilhadas de crises regionais, com 0 desarmamento, cotn 0 cconsenso para 0 encaminhamento das crises econémicas, com a prevaléncia das solucdes pacificas etc., ¢ sim com a mera persistencia de Estados. Nesse sentido, € sintomética, por exemplo, a posigao defendida por alguns analistas que advertem sobre 0s riscos de um desarmamento que, se mal conduzido, pode afetar a ordem — ou um aspecto fundamental da ordem — que € 0 equilibrio de forgas militares’, Assim, em um ambiente essencial- ‘mente hobbesiano, 0 que garante a ordem sao os desdobramen- tos das realidades de poder. De uma certa maneira, o argumento aplicar-se-ia a0 universo do mercado jé que as regras ou a falta delas dependeria do interesse dos hegeménicos que, agora, pre- ferem, p. ex., regras abrangentes para 0 comércio e restritas para as finangas porque, assim, encontram instrumentos para confir- mar a sua hegemonia. Por sua vez, 0 regionalismo pode significar 2 construgao de “fortalezas” econémicas que se preparam para Jutas encarnicadas por vantagens estratégicas. Em suma, para al- ‘guns, a ordem possivel identificar-se-ia com modelos de hegemo- nia, 0 que necessariamente quer dizer “desordem” para outros. Se acentuamos outros aspectos da realidade contempori- nea, o diagnéstico seria radicalmente diverso. Os sinais de coo- peragdo sao numerosos € podem multiplicar-se e ganhar exis- téncia. No plano politico, os organismos multilaterais, apesar de dificuldades epis6dicas, afirmam-se progressivamente como fontes privilegiadas de legitimidade e as formas unilaterais de afitmagao de poder sio contidas; 0s esforcos por desarmamen- 36 to se ampliam ¢, nas crises regionais, as possibilidades de en- tendimento entre as poténcias sio mais freqiientes. A defesa dos direitos humanos ganha fundamentos mais s6lidos, da mes- ma forma que se fortalecem as medidas sobre questées am- bientais. No plano econémico, a constituicio da omc é um fator decisive para organizar 0 comércio internacional. A globa- lizagao podesa significar que os recursos do capital, agora mais abundante, se distribuiriam de forma mais abrangente e facilita- iam estratégicas bem-concebidas de desenvolvimento. © pro- sgresso do regionalismo econdmico é um elemento que “espa- tha” geograficamente instituicdes econémicas que, em alguns casos, desenham bases novas de supranacionalidade. A soma desses elementos leva, sem diivida, a uma concepgao mais am- pla do que ceria a ordem internacional posstvel. Essas vis6es contradit6rias sobre a “qualidade” ou a “quanti- dade” da ordem no sistema internaconal dependem naturalmente de uma definicio prévia sobre o que seja ordem. Mas é possivel alcangas, com objetividade, um conceito de ordem internacional? ‘Umas das melhores e mais profundas reflexdes sobre 0 tema é a do professor de Oxford, Hedley Bull, morto prematu- ramente em 1986, Para quem lida com o tema, seus escritos, especialmente 0 The Anarchical Society, sAo ponto de partida necessirio. Na sua definicao de ordem, diz: “By order in social fe, I mean a patiern of buman activity that sustains elementary, primary or universal goals such as... life, truth and property” (Ou seja: ao se organizarem, os gmipos sociais criam normas, Priticas © processos que buscardo assegurar protecio contra a violencia (especialmente a que resulte em morte), 0 cumpri- mento dos entendimentos e acordos de estabilidade das posses de tal sorte que nao sejam submetdos a desafios constantes ¢ sem limites. No plano internacional, essas trés dimensoes cor- responderiam a doutrina da guerra justa, limitadora da violén- Gia, a regra do pacta sunt servanda e, no caso da garantia da Posse, a0 reconhecimento mituo das soberanias. Quando es- sas normas, priticas € processos forem bem-sucedidos, ha al- guma medida de ordem’. Vincent lembra que, para Bull, 1 was not possible precisely to specify tbe extent to which these purposes needed to be provided for if social order 37 were to obtain, but their achievement in some degree was elementary, primary and universal. It was elementary be- cause such achievement was constitutive of society: it was primary in that other goals pressuposed thelr achievement; ‘and it was universal because no society was to be found that did not allow for their achievement’ Bull tenta, portanto, dar uma medida de objetividade a nogio de ordem por meio de um movimento de reducao precisio do que seriam os objetivos sociais que fundam a or- dem. Ainda que mio se pudesse explicitar antecipadamente a sua extensdo, a essencialidade dos interesses/valores a serem preservacios seria de tal forma clara que garantiia a transfor- macio da nocio de ordem de um instrumento de avaliagio subjetiva em um instrumento analitico ¢ critico. £ bom 0 caminho apontado por Bull? A reacio imediata é de ceticismo, j que, numa primeira aproximacao, parece im- possivel expurgar da nocao de ordem as conotacées de valor. Mesmo quando se fala das exigéncias mfnimas para que exista ordem, € sempre possivel a controvérsia. Tome-se a questio da protecio contra a violéncia como um sinal necessario da or- dem. Quando € possivel afirmar que as instituigdes consej ram a ordem? Quando nio existe mais qualquer atentado cri ‘noso contra individuos? Quando existe uma margem toleravel de atentados? A estatistica policial “resolve” a medida da ordem ou serd alguma sensacao subjetiva de seguranga individual? Se nos afastamos dos casos de desordem que beiram ao caos, a ten- déncia € de as formas de ordem, pela propria precariedade da sociedade dos homens, serem necessariamente imperfeitas, 0 que impde as avaliacdes valorativas, sobretudo em casos de fronteiras ténues, como o do sistema internacional. Sempre haverd, segundo a perspectiva te6rica ou ideolbgi- ca, variagées sobre a f6rmula de avaliar o momento em que se alcanga a protecao do essencial e se configura uma situacao de cordem, Essa conclusao vale ainda com mais forca em relagao 0 sistema internacional, em que cada Estado pode, em tese, propor uma avaliacao diferente para o problema. Vale comen- tar uma anotacao de Bull, quando admite como minimo de ordem a existéncia de instituigdes que garantam “o objetivo de manter a independéncia € a soberania dos Estados.” Ao inter- 38 pretar o seu alcance, ele nao exctui a possibilidade de, em casos individuais, haver reparticao, absorgio de Estados, extin- cao de outros etc. Do ponto de vista das poténcias, que nao estio, em tese, ameacadas por possibilidades de extingao (ad- mita-se que a ameaca nuclear esteja sob controle), é perfeita- mente possivel aceitar que as instiuigdes hoje vigentes no sistema internacional sao adequadas ao cumprimento daquele objetivo de preservacio; portanto, existe ordem, Mas essa posicio dé mar- gem a qualificagées € crticas. Algum analista dir, por exemplo, que, para a maioria dos paises, 2 soberania € uma ficcao juri- dica e a insercao dependente no sistema capitalista internacio- nal mostra que as instituigdes nao sao suficientes para garantir autonomia plena, 0 conirole soberano sobre © proprio desti- no. E 0 argumento concluiré: ou a soberania nao é um dos valores efetivamente protegidos pela ordem ou a ordem é for- temente imperfeita, ou s6 alguns dela desfrutam. Pode haver ordem que trate seletivamente dos Estados que a integram? Outta qualificagdo possivel: em certos pafses, podem ocorrer modlificacdes significativas em determinadas linhas de ago go- vernamental, induzidas pelo sistema internacional, o que leva- ria & pergunta: preservou-se a soberania, a politica adotada corresponde ao que “pteferiria” aquela nacao? Como determi- nar, em casos especificos, a partir da nocao de autodetermina- 40, da idéia da soberania popular, 0 que o “soberano” quer? Ou seja: se argumentamos com a preservacao do Estado como Circunscrita ao territ6rio, esquecemos que este € somente um dos componentes do Estado. Nesse caso, 0 objetivo proposto por Bull nlo estaria sendo atingide ¢, mesmo em sua concep- ¢20 minimalista, no haveria ordem’, Essas observacdes servern para mostrar que o conceito de ordem, como tantos outros em politica, embute inevitavelme te uma carga valorativa, Isso inabilita 0 conceito para fundar andlises, joga-o de maneira inevitivel no dominio das utilizagdes € manipulagdes ideol6gicas? A tentativa de Bull é frustrada? O tema € complexo © 0 que se tentard fazer aqui é, de forma simples, levantar questOes em torno do conceito da ordem*, interesse ea utilidade do estudo derivam, fundamental- mente, das possibilidades de articular uma referéncia analitica para o trabalho crtico. A nogio de ordem tem, no mundo da politica interna, excepcional forga critica. A passagem da “ordem” a “ndo-or- dem’, no direito pablico brasileiro, permite a intervencio fede- ral nos estados. Os casos esto prescritos na Constituigaio que define, portanto, em moldes legais, a “desordem”. Assim, mani- pulada com maior ou menor grau de subjetividade, a importa ia da nocao de ordem, como instrumento politico, é decisiva. £ evidente que nao existe transpasicio perfeita dos mesmos efeitos politicos para a cena internacional, sobretudo porque nada existe que, nas relagdes entre Estados, seja simile perfeito a Constituigao nacional, normalmente resultado de amplo con- senso social. Mas, ainda assim, a nocio de ordem teri um papel similar uma vez que, quando se identificam politicamente sinais de perturbacio — por exemplo, conflitos, intervengdes externas ou, do Angulo da ordem hegem@nica, na década de 1950, nas Américas, a ameaca comunista —, iniciam-se os mo- vimentos dos mecanismos politicos de que dispde o sistema internacional, da acao diplomstica 4 decisio do Conselho de Seguranga € &s contra-intervencdes, que sempre buscam se le- gitimar em uma nogao qualquer de “desordem”. A nogao de “desordem’” varia historicamente e podemos notar que se am- plia significativamente no pés-Guerre Fria, ganhando, em alguns 2508, apoio consensual da comunidade internacional, como na aprovagio pela ONU da a¢ao militar contra o Iraque. A forca critica da idéia de ordem estard sempre ligada a0 que representa historicamente € ao que vale como argumento l6gico no debate. & exatamente por isso que interessa retomar, como faz Bull, a reflexao cléssica sobre o tema, justamente para compor 0 quadro do pensamento critico sobre a vida internacional moderna. A andlise de ordem remete simultanea- mente ao universo do que “existe” ¢ do que é “possivel! O problema da ordem internacional nos classicos (© debate sobre a ordem intera pode, em tese, alcancar ‘um razoavel grau de precisto porque: a) no Ambito nacional, é 40 sempre maior o grau de homogeneidade de valores ¢, portan- to, € mais facil chegar ao consenso sobre o que significariam “interesses basicos” do que no sistema internacional (embora, ‘como aponta Kissinger, um tanto nostalgico do século xix euro- peu, ha momentos, em circunstincias geogrificas bem-defini- das, em que, também no sistema internacional, chega-se a um grau razodvel de consenso em torno de valores bisicos ¢ insti- tuigdes)’; b) a nogio de ordem esta préxima a de autoridade e, desde sempre, quando se discutem modelos de ordem, a preo- cupacio € saber que autoridade “organiza a ordem’. Ao longo da Historia, sucedem-se 0s “produtores de ordem’, 08 filésofos platénicos, empreendedores burgueses, as dinastias, a maioria democritica, 9 lider carismtico, 0 partido revolucionario etc. Em qualquer caso, determinado arranjo social, econémico ¢ politico serviré para promover determinado modelo de pro- priedade, determinado modelo de contrsto, determinado mo- delo de defesa contra a violencia. Existe, assim, uma ligacao entre a compreensio politica do que so os valores essenciais € as formas minimas de sua organizacao. £ exatamente por isso que a nogo de ordem pode desempenhar, sempre © com efi- ciéncia critica, um papel nas articulagdes ideologicas € teéricas no plano interno. A auséncia de instituicdes uniformizadoras de valores ¢ de ‘uma autoridade comum dé 0 sentido especifico a indagacao sobre a ordem internacional: como se desenha a ordem sem autoridade, como se artioulam regras de convivéncia social num meio anarquico? Bull refaz as perspectivas te6ricas que, a partir do século xvi, foram propostas para resolver essas questées e indica como nasce historicamente o problema. Aceitando que o processo de formagio do Estado nacional na Europa € complexo e obedece a ritmos ¢ modelos diferentes, € possivel propor uma generali- zacdo: 0 Estado nasce no momento em que a ordem feudal se toma frégil. Caracteriza-se um verdadeiro vazio politico de onde sugird, em sua feiclo moderna, o Estado. No quadro medieval, 08 grupos sociais em conflito buscavam em uma autoridade superior, de cunho religioso, os preceitos e as normas que dirimem as diividas sobre direitos, apontam 0 que € justo © legal, portanto, definem padres de ordem. E a auséncia dessa 4a autoridade superior, seja sob a forma institucional da Igreja, sseja sob a forma juridico-moral do direito natural, que marca 0 injcio da vida moderna do Estado. Gierke apresenta com clare- za a transiclo ao referin: ‘The State was no longer derived from the divinely ordained harmony of the universal whole, i was no longer explained 4s a partial whole which was der'ved from, and preserved by, the existence of the greater, it was simply explained by itself. The starting point of speculetion ceased 10 be general humanity; tt became the individual and self-sufficient sove- reign State; and this individual State was regarded as based (on a union of individuals in obedionce tothe dictates of Natu ral Lau, to form a society armed with supreme power! Os Estados-6rfiios so colocados lado a lado, em condicio de igualdade juridica e, com isso, deixa de existir a alternativa de que uma autoridade, legal ou moral, 0s ordene. "A igualda- de repele a ordem nascida das imposicdes hierirquicas’. Ou, ainda quando existam, ao lado da igualdade juridica, formas de desigualdades, como as derivadas ce diferenciais de poder, nao € facil utilizé-las para instaurar a ordem. Por causa da sobera- nia, a hegemonia nao se converte em modelo hierdrquico, ins- tiucionalizado, de imposi¢io. Havera formas de dominacao, mas as passagens entre o juridico © o politico, entre a lei € 0 poder, sao ambiguas no sistema internacional. Como ordenar soberanos? Num mundo sem pretores, a primeira reagao é inevitivel: cada um que lute por sua preser- vacio. Nao haveria outra garantia para que o Estado continuas se, a ndo ser as que nascem de instrumentos construfdos indi- vidual, egoisticamente. Nao € por acaso que as duuas marcas caracterizadoras do momento da passagem para a Idade Mo- derna sao, de um lado, a desvinculagio entre ética e politica, que Maquiavel opera em O principe e, de outro, a doutrina da soberania, desenvolvida por Bodin. Westphalia é a consagragao ‘convencional da nova realidade, que supe, justamente, a au- ‘éncia das orientagbes e determinagSes supra-politicas ea ausén- ia de hierarquias"’ Nesse novo universo, sem hie-arquia, a questio da ordem gera problemas teéricos complexes, inclusive porque, a dife- a renga dos processos nacionais, o fim légico nao pode ser sim- plesmente a constnucéo do Leviata supranacional. Se fosse, os Estados perderiam a sua qualidade essencial, a soberania, ¢ a ‘ordem nao seria mais a ordem de um mundo de Estados, mas algo qualitativamente diferente. A construgao da ordem deixa de ser uma questao de auto- ridade e passa a envolver condutas de autocontengio, quando se trata de soberanos. O que pode motivar, porém, um Estado forte a nao se apropriar do territério de um Estado fraco, se nao existe uma autoridade que tenha forca bastante para puni- lo caso desrespeite a soberania alheia? E, ainda: como é possi- vel sequer conceber que se chegue a esse conjunto de regras de limitacao? Por que € como a soberania é uma barreira & invasio? E justamente 0 paradoxo da ordem entre soberanos, ou, na expressio feliz de Bull, da “sociedade na anarquia’, que as, tradigdes clissicas vao procurar resolver. Fazem isso de suas formas paradigmaticas: ou os Estados controlam-se mutuamen- te por meio de mecanismos de balanga de poder ou, os Esta dos se autocontém porque, em seu interesse, discernem moti- vos para tecer instituicdes internacionais. Na primeira versio, a “realista’, é 2 propria dinamica dos jogos de poder que impoe limites ao crescimento incontido e interminavel dos mais fortes, ja que os fracos se unem para impedir a expansao e, com isso, se preservam como Estados; a ordem tem significacao minima € nao vai além da manutencio dos Estados como tais. Na se~ Bunda, “racionalista”, admite-se que os Estados tém a possibili- dade de escolher a cooperagao e a ordem nasce de formas de aco conjunta, que desembocam em regras estiveis, disciplina- doras do uso da soberania, Haver uma terceira solugio, “radi- cal’ ou “revoluciondria”, que supera o problema 2o propor wu modelo de ordem em que desaparecem os soberanos. Inctui desde as solugées federalistas européias até, em certa medida, a proposta marxista de um comunismo que eliminaria os Esta- dos ¢ traria a paz mundial. £ evidentemente o paradigma que tia os mais agudos instrumentos de critica ao sistema de Esta- dos, embora, pelo seu feitio ut6pico, sera examinado de forma mais sucinta neste ensaio, quando explorarmos a sua versio moderna, basicamente expressa em instituicdes que proclamam % a defesa de valores universais, validos em si mesmos, além da sociedade de Estados.’ O argumento realista ‘Ao examinar a hist6ria das relagées internacionais ¢ deter- minar conseqientemente a situagao de fato, a partir da qual construiré 0 seu argumento sobre a ordem, o realista faz uma constatagao basica — 0 antagonismo entre Estados é natural e, portanto, inescapavel. Treitschke exprime o que seria 0 nticleo do pensamento realista ao dizer que a “a grandeza da Hist6 reside no conflito perpétuo entre nacdes ¢ é simplesmente in- sensato 0 desejo de supressao da rivalidade". Toda constru- io realista apoiar-se-A nessa constatacao; a natureza antag6ni- @ terd de ser levada em conta, e de maneira decisiva, em qualquer processo internacional, inclusive ¢ sobretudo o da construcio da ordem. ‘Mas, por que © conflito? A légica realista articula-se com base em dois elementos: o primeiro é estrutural ¢ tem a ver com, proprio fato de os atores internacionais serem sobera- nos™; o segundo € processual ¢ vai desvendar, em algum as- ecto da constituigao do Estado, as origens do cariter aquisitivo ‘ou expansionista que leva ao conflito de “todos contra todos”. ‘A caracterizagao da origem dessa atitude do Estado leva, como veremos, a modalidades diferentes da escola realista, Nao existe, no sistema de Estado, a possibilidade de que ‘qualquer autoridade, fisica ou moral, fique acima do Estado. O sistema internacional, constituido de soberanos, nao pode prever ‘mecanismos, a semelhanga dos que venham a inibis, preventiva ou punitivamente, as tendéncias expansionistas dos atores que (© compdem. As forcas éticas ou religiosas seriam fracas para conter a vontade de poder num universo leigo. Ao direito falta, num mundo de soberanos, um foco institucional, supra-sobera- nos, que seja capaz de controlar 0 comporamento dos Esta dos, impor-lhes sangdes, de acordo com algum padrao consen- sualmente estabelecido. Em contrapartida, existe, em tese, a possibilidade efetiva de se imaginar a perfeita autonomia na medida em que, em suas formulagdes iniciais, 0 conceito de 4a soberania estava ligado a idéia de auto-suficiéncia, com as co- nolagdes mercantilistas que envolver os primeiros momentos do Estado nacional’. Wight também sublinha que o interesse fundamental do Estado, na perspectiva realista, é a liberdade de acao,"® © segundo elemento-chave € 0 expansionismo imanente dos Estados. O Estado é um ator social que tende a se expan- dir e, dai, o conflito inevitavel. Cria-se, assim, uma situacio de ameaca permanente para os Estados: esto sempre & mercé da disposicao expansionista do outro, o que exigird, como respos- ta, que vivam permanentemente a contrabater a expansio, seja por meios defensivos, seja por formas diferentes de expansio. © jogo no sistema € soma-zero: 0 que o Estado A ganha, 0 Estado B perde. A equacio 6 de cristalina clareza se lembra- ‘mos que realista classico esta pensando sobretudo em disou- tas sobre territ6rios. A forca da orientagio expansionista € de tal ordem que, nos primeiros momentos da formacio do Esta- do, as utopias sobre 0 convivio internacional a incorporar aceitam que a harmonia € alcangvel somente pela realizagio do império universal. (© argumento realista sustenta-se’ nesses dois elementos: “expansionismo” © “soberania”. Os dois combinados — e é essencial que se combinem — dao origem a compreensao do sistema de Estado como uma situacio de puro conflito. Seno, ‘vejamos. Se 0 expansionismo fosse inato ao Estado, mas hou- vesse uma autoridade superior, moral, juridica ou politica, po- deria ser sistematicamente contido. O processo internacicnal teria, como pivé da ordem, algum foco institucional de autori- dade, uma espécie de Leviata mundial (veremos adiante 90° que, para os realistas, do estado da natureza entre Estados no decorrem as mesmas conseqiéncias do que existe entre indi duos). Em contrapartida, a soberania, em si mesma, nao seri ameacadora, caso nao fossem os Estados contaminados pelo virus da aquisigdo e da expansio. Nao existe nenhuma exigén- cia I6gica de que individuos iguais ou grupos sociais iguais (ou de constituicio similar) entrem necessariamente em conflto H14 que se atribuir, como fizeram os contratualistas, especial- mente Hobbes, determinadas caracteristicas psicol6gicas ou gadas & propria dindmica dos grupos para que se entenda por 4s que 08 individuos ou grupos vao ter encontros necessariamen- te conflitivos. Embora alguns autores tendam a separar as duas dimensoes, é fundamental, para que © argumento realista se articule, que se somem a dimensio expansionista ¢ a dimenso andrquica. Dessa combinagao, nasce o conflito necessirio entre os Esta- dos, intermindvel ¢ recorrente, justamente pela impossibilidade de um salto institucional que crie uma autoridade supra-sobe- ranos, € pela impossibilidade de matar 0 germe aquisitivo do Estado e, consequentemente, conseguir uma modificagao pro- funda de suas caracteristicas. Na visio realista, nfo cabe 0 re- formismo institucional sob a forma de arranjos que apelem a ética ou ao direito, ¢ nem é aceitavel uma psicandlise coletiva que “dome” os instintos agressivos da formacao estatal Nessa situacdo, no resta ao Estado seniio construis, solita- riamente ou por intermédio de aliangas, 0s mecanismos de sua autopreservacdo, que Vao ser a matéria-prima da reflexao tea- lista ao longo das diversas etapas da construgdo, consolidacio ¢ fortalecimento do Estado moderno. Estabelecido © marco em que s¢ coloca o argumento rea- lista, restaria desenvolver, ainda que muito esquematicamente, algumas de suas implicac6es analiticas, 0 que se faz por meio de uma seqiiéncia de perguntas, e a primeira sera: por que os Estados so expansionistas? Passa-se, aqui, da constatagao do expansionismo — que € situagao de fato a partir da qual o realista pensa — para o exame das razdes do expansionismo. Haveria, esquematicamen- te, trés explicagoes: a) a natureza humana € guiada pela paixao do poder, pelo animus dominandie, ao se constituir 0 Estado, fica © corpo politico impregnado dos mesmos instintos que tem 0 individuo; dai ser aquisitivo 0 comportamento politico, correspondendo & busca de mais poder o teflexo politico do que € a “esséncia” do homem; b) a natureza do Estado deter mina 0 expansionismo; 0 governante €, por definicao, alguém que exerce fungdes despéticas e, assim, tende naturalmente a promover ameacas externas para assegurar a preservacio do poder intemo; c) a natureza do sistema internacional determina a situagio do conflito permanente, j que a auséncia de um soberano supranacional gera uma estrutura de convivéncia que 6 exige de cada Estado a preparaio permanente para enfrentar ameacas & sua integridade, o que, gerando respostas em ca- deia, torna a aquisicao de poder o caminho necessizio para 0 comportamento governamental”. Nessas explicagdes, 0 que € marcante € a irreversibilidade. £ perfeitamente possivel trabalhar nos niveis propostos com explicagdes expansionistas que tenham, contudo, uma diferen- ‘6a basica: 0 expansionismo teria um fim, Por exemplo: o Esta- do, na teoria marxista do imperialismo, é também expansionis- ‘a, suis quando 0 capttalismo monopolista for superado pelo socialismo, o Estado desaparece. No caso das hipéteses “auten- ticamente” realistas, 0 instituto de dominago, a tendéncia des- ética dos governos e 0 feitio anarquico do sistema internacional so dados imutaveis e, portanto, qualquer tentativa de ordem no sistema nio pode descarté-los. Ou melhor: a ordem s6 se ConsuSi sobre a argamassa expansionista. Como se demonstra a hipstese expansionista? H4 varias maneiras, desde as que recorrem & Antropologia até as que simplesmente, 20 olhar para o sistema internacional ou para qualquer sistema de sobe- Fanos (como 0 das cidades gregas ou da Itilia renascentista), constatam que o que garante — quando garante — a preserva 0 das unidades sao as forcas armadas."* Para dar exemplo ‘mais concreto: num debate sobre a auséncia de conflito grave fos tikimos 150 anos entre o Brasil ¢ a Argentina, 0 racionalis- mo defenderd a tese da solidez do entendimento diplomatico, Tembrando que sempre se encontrou um ponto de equilibria que superou as divergéncias naturais entre os dois paises, en- quanto o realista dird simplesmente que a auséncia de conflito deveu'se, em Ultima insténcia, a um equilibrio de poder que tem impedido as vantagens da vit6ria militar. fe desse quadro, encontra angumento realista um problema delicado: por que preservar o Estado? Os individuos, enquanto tais, nlio podem ser modificados e, ainda que o Esta- do se dissolva, no terminariam os conflitos, j& que o instinto continaa. Porém, extinto 0 Estado, a guerra, a forma mais bru- tal de conflitos, se extinguiria. E, € claro, 4 medida que o Esta- do seja modificado, seria conseqiientemente alterada a estrutu- ra do sistema internacional que, como se viu, também € vista como causa de conflito. Por que nio admitis a hipstese de que a vale a pena extinguir a sosiedade de Estados soberanas? Ou, pelo menos, continuar com os Estados mas sem soberania, atri- buivel a um Leviata mundial? Por que nao lutar para a sua ‘superagio, criando mecanismos que eliminassem a anarquia? J4 ‘que o Estado é uma instituigo anificial, representa uma, entre ‘outras, escolha humana para organizar politicamente os grupos sociais? Ou posto de outro modo: quais sio as vantagens da ppreservacio do Estado? ‘A discussio € complexa ¢ toca em questées fundamentais da reflexio politica. Esquematicamente, terfamos: a) 0 Estado seria uma solugo natural e, portanto, necesséria, para a orga nnizagao dos grupos humanos; 0 “contrato” que, 2 feicio de Hobbes, cria Estado consitui a melhor alternativa para garan- tir a propria cobrevivéncia da humanidade; e, se em contato ‘com outros Estados, o resultado é o conflito constante, nada ha que fazer, salvo armar-se para enfrenté-lo. Para os contratualis- tas, existiria uma diferenca essencial entre os individuos ¢ Esta- dos que impede a transferéncia do argumento da criagao do Leviata para o plano internacional: como individuos, em estado da natureza, todos sao vulreraveis a todos, mesmo 0 mais forte em relaglo ao mais fraco, pois 0 ando pode ferir 0 gigante enquanto este dorme; dai, sem o Estado, a seguranca serd sem- pre preciria. Como o Estado € composto de muitos individuos e alguns podem se especializar em seguranca, nio existe a necessidade de nenhuma criacio supranacional para, depois, de um segundo movimento de alienacao da liberdade, garantit- Ihe a seguranca™, b) num desenvolvimento da linha do Estado como instrumento de garantia de valores, como o da seguran- «2, € 0 Estado — e nao outra organizacio — que encarnaré, por exemplo, os valores aulturais de uma nacao, justificando- se, assim, ser preservado; ¢ ai dé-se um salto importante ¢ fundamental para entendet os classicos do realismo; se o Esta- do garante a realizagio de valores, além de dar condicdes de seguranga, todos os Estados — ou pelo menos aqueles Estados ‘importantes’ culturalmente — devem ser preservados.” Vale recorrer a uma citagio de Treitschke: In a single State the whole range of culture could never be full spanned, no single people could unite the virtues of demo- cracy and aristocracy. All nations, ike all individuals, hove ‘heir limitations, but 1 is exactly in the abundance of these limited qualities that the genius of mankind is exhibited G defesa da diversidade nacional, que efetivamente agrega uma nova dimensio de valor no quadro do argumento realista, tem varias consequéncias, e uma delas é a de identificar nas tentati- vas de dominac&o imperial — porque tem objetivo uniformi- zadores — um inimigo que deve ser combatido sem hesita- cao)", ©) Finalmente, ter-se-ia a justificagio do Estado, que parte das consideracdes da estrutura do sistema internacional: por- que se constitui historicamente no quadro do conjunto de so- beranos, o Estado passa a se justficar como uma das pecas que ‘arante a seguranca minima da populagao que ele abriga (ustif- ‘cago € préxima, mas diferente da que oferecem os contratualis. tas; para estes, 0 Estado nasce de necessidades dos individuos que 0 compdem; enquanto, para os estruturalistas, a origem € a propria dindmica internacional; existria uma cadeia de criagio de Estados que surge com a formacio do primeiro Estado e que cexige que se componha um segundo para a protegao das amea- as do primeiro, ¢ assim por diante)*. E bem sabido que a justificacao do Estado, especialmente © resumido na letra b) pode atingir excessos, com a identifica- cio do que € préprio de um Estado com 0 necessario para todos os Estados. Esti af a origem das ideologias dos processos de tentativa hegeménica que, como se disse, sA0 0 virus basico da ordem internacional para o realista”. A questio da preservacio do Estado liga-se naturalmente a uma outra, que é a de que instrumentos podem e devem ser usados para que tal fim seja obtido. Como sabemos, as teorias realistas sublinham naturalmente a andlise dos instrumentos de aco propostos pela escola. £, como sfo instrumentos de po- der, nesse passo da légica realista, surgem as dificuldades pro- prias a criagio de uma ordem, qualquer ordem. Num mundo de conflito, © Estado precisa ter poder para sobreviver no embate constante que marca as suas relagdes com os outros. Como a Histéria é dinamica, instrumentos € meios de poder devem ser permanentemente aperfeicoados para que a “ameaga constan- te” que o sistema engendra e renova seja bloqueada e o Estado 49 consiga preservar-se. O bloqueio (por A) da ameaca atual pode crias, para quem ameaca (B), uma nova ameaga. E assim as ameacas se tornam em espiral intermindvel”. Dai, aliés, 0 fato de a preocupagao com a avaliacao ¢ a mensuracao do poder ser um traco distintivo do paradigma (de Tucidides, que intro- duzia a narragao de cada batalha com uma avaliacao do poder dos contendores, até 05 livtos-texto contemporineos, como 0 de Morgenthau, que se prescupam em desenhar uma lista dos fatores de poder) ‘Anotando que tém miltiplas dimensoes, das militares as psicol6gicas, que podem ser diretos, como a pressao politica, © indiretos, como a propaganda, que podem ser ostensivos © clandestinos, como a espionagem, que tem variadas expresses hist6ricas, podemos passar, neste ensaio, 2 margem da questio dos instrumentos de poder e referir logo o problema conceitual basico, que é o da ‘utilizaglo do poder’. Retome-se o argu- mento realista: se a preservacio do Estado € um objetivo le; mo € inescusavel, se os Estados contam basicamente com suas prOprias forcas para a luta pela preservacio, se, em vista do expansionismo imanente, os instrumentos necessérios para a de- fesa do Estado sflo os que 0 poder oferece, se, conseqtiente- mente, a sobrevivéncia no sistema internacional est sempre em causa, a “hipstese necessiria € a de que nada deve limitar a utilizago do poder, quando se trata de defender o Estado’. A preservacio do Estado € um valor que garante a possibilidade de realizaga0 de todos 05 outros valores e, portanto, ganha a forca de um verdadeiro imperativo ético. Ou melhor: cria-se uma ética propria, conceitualmente diferente da que decorre das normas cexigéncias da ética individual e que se fundaria, na expressio de Weber, em responsabilidade. No resumo de Bobbio, © universo da moral e da politica movese no ambito de dois sistemas éxicos diferentes ¢ até mesmo contrapostos (.) 0 que conta para o primeiro é a pureza de intengdes a coeréncia da aglo com a intencio; para o segundo 0 que importa € a certeza ¢ a fecundidade dos resultados G) a moral (da politica) € a moral pela qual devemos fazer tudo 0 que esté a0 nosso alcance para realizar o fim ‘2 que nos propusemos, pois sabemos, desde o inicio, que ‘seremos julgacios com base no sucesso" Vamos a um exemplo recente. Durante 0 governo Nixon, Kissinger usou com habilidade a diferenca entre modos éticos quando, ao se articular a détente com aUnss, dizia que, a margem da conviccio democritica e da defesa dos direitos da pessoa humana, os UA deveriam entrar em entendimento com a su- perporéncia “inimiga” pelas exigéncias da l6gica de confrontacio: ‘mais estabilidade significaria melhores condig6es para a propria sobrevivéncia do Estado norte-americano. Ou seja, a “primeira responsabilidade” do Estado americano € a sobrevivéncia ¢ é a partir desse valor que se articulam “realisticamente” as demais, orientacdes de politica externa. A acomodacao com o “inimi- g0" é decorréncia natural de uma situacao de empate de poder, em que @ confiontacZo leva a uma dupla derrota. O mesmo vale para as modificagées na doutrina socialista que, desde Stalin, comeca a admitir, com o “socialismo em um s6 pais", restrigdes ao expansionismo original e ideologicamente motivado do marxismo. Seria interessante contrapor a atitude de Nixon com a de Reagan, esta mais beligerante (a URS como 0 império do mal) e, derivada, se aceitarmos a légica realista, de vantagens de poder, acurnuladas pelos EUA com o avango tecnolégico e a des- legitimacao crescente do socialismo, De que maneira repercutem essas proposigdes sobre os dois elementos mais caracteristicos do processo de convivéncia internacional, a guerra e o tratado? Na perspectiva realista, a guerra € um dieito soberano do Estado, uma “contingéncia normal” do jogo do poder, que deve ser examinada essencialmente do Angulo de sua oportunidade, £ 0 primeiro dever do principe estar preparado para empreen- dela, justamente porque € 0 recurso de que dispée quando esti diante de ameacas & integridade de seus dominios e, se tiver ambicdes de expansionismo, o instrumento para reali lo.* A decorréncia de colocacao é, em primeiro lugar, a de desvincular a guerra de qualquer conotagao de pecado, de de- sumanidade. Esti, afinal, na natureza das coisas. Uma segunda implicacto a de afastar consideracées le- sais € de justica do fenémeno da guerra. De fato, num choque entre entidades soberanas, em que exercitam direito elementar, “ndo existe um que seja mais justo do que 0 outro”. Nao exis- tem guerras justas porque no existem crtérios, éticos ou jurf- 3 dicos, que possam controlar, limitar ou mesmo avaliar uma de- isto soberana, Bull explora com clareza a questio num artigo do Diplomatic Investigations, em que contrapde Grotius a Oppe- nheim e mostra que, pata os grotianos, o tratamento da guerra é essencialmente eticizante™. J4 para os realistas, a guerra é uma questio de oportunidade e estar preparado para ela, uma ne- cessidade. Para o pais expansionista, a guerra é um instrumen- to na estratégia da expansio; para 0 pafs ameagado, é a solu- sao natural de defesa, jé que nao valeria a contencio que a norma juridica ou, como atualmente, que 0 organismo interna- ional incorpora. Na crueza da “razio” ateniense no didlogo de Mélios, os argumentos éticos e as idéias que procuram conter a forga so sonho™. Porque implica a sobrevivéncia do Estado, ainda que resposta a instintos basicos, a guerra paradoxalmen: te exige a mais rigorosa e fria das andlises, jA que € um exe: cio arriscado ¢ incerto. O isco deve tomar a guerra e as outras formas de aquisigo do poder um exercicio controlado. Nem sempze mais poder € 2 melhor estratégia para obter o fim tii- mo da estratégia realista, a seguranca nacional E esse paradoxo, central ao realismo, que Aron analisa. com lareza ao apontar as dificuldades que a “maximizagio do poder’, ‘com vista & “maximizacio da seguranca”, pode provocar a maximizacio das recursos no leva necessariamente & ‘maximizagao da seguranga. Na Europa tradicional, nenhum Estado podia aumentar a riqueza, a populacio ou 0s efet- vos militares sem suscitar 0 temor € © citime dos outros Estados, provocando a reagao de uma coalizao hostil. Em cada sistema, existe um optimum de forcas, que, s¢ for ultrapassado, provocari uma inversio dialética, Um au- mento de forga, por parte de uma unidade, leva 20 seu enfraquecimento relativo, devido aos aliados que se trans- ferem para uma posigio de neutralidade e 20s neutros que se passam para o campo adversirio”. £ muito importante fixar a tese de Aron: 0 expansionismo, que pode até ter origens “instintivas’, nfo € uma forca incon- troldvel, sem directo outra que uma satisfacio primaria que pode ser autodestruidora. O instinto é parte de uma construgao politica, em que inevitavelmente entram outras forcas, domesti- 52 cadoras ¢ racionalizadoras do instinto. Nao tem sentido outro; aliés, 0 esforco dos realistas — que se veja, por exemplo, os textos criticos de um Morgenthau, de um Aron, de um Kissin- get — que o de dar "boa direao” a politica externa das potén- cias, para que ajustem, com seguranca ¢ prudéncia, recursos € objetivos. Passemos, agora, a examinar como o realismo trata as ob- rigacoes juridicas no sistema internacional. © que vale a norma de uma convengio no argumento realista? Por tudo que se disse até aqui, a resposta no é inespera- da. As necessidades da “raza0 de Estado” como pivd do com- portamento internacional colocam a obrigagio de cumprir tra- tados, obrigacao que faz. a esséncia do direito internacional, ‘em posicio subordinada as necessidades € objetivos de poder. A palavra empenhada seri ou nao cumprida em fungao do ‘custo da oportunidade do cumprimento. O elemento de cilcu- Jo € que decide no cumprimento da norma, € no o fato de que existe a obrigagao convencional.. Diz Tretschke que “every State bas the undoubted right to declare war at its pleasure, and is consequently entitled to repudiate treaties”. Assim, quem pode © mais, pode o menos: quem pode a guerra pode repu- diar tratados. E continua: “All law is grounded upon the mutual give-and-take and that 1s useless to bold up phrases and docirt- ines of vaguely general humanity for the edification of the coun- tries concerned”?> & critica aqui € 20s que procuram justificar 8 fundamentos da obrigacio juridica no sistema internacional com doutrinas gerais, como a da existéncia de uma lei natural. £ imeatista imaginar que, no mundo de soberanos, preceitos gerais que se revelem por processos intelectuais possam modelar © comportamento dos Estados. A lei internacional pode exists, aceitam os realistas, mas s6 enquanto for expresso, epifend- meno, do jogo politico. A lei esta condicionada as variagdes de poder, subsiste enquanto interessa a quem tem poder. As ex- presses mais claras do fendmeno sao evidentemente recolhi das nos tratados de paz, que selam o fim da guerra: © Congres- so de Viena, as negociagdes de Versalhes em 1918-1919, a série de conferéncias que culmina na Carta da ONUsi0 exemplos per- feitos desse movimento de consagracao juridica de processos 38 politicos anteriores. Da mesma forma, a revisio de Viena € ‘Versalhes seguiu de perto as variagdes de poder na Europa Nio seri possivel pensar em processos menos evidentes de transformagio do jogo do poder e modificagio de quadros juridicos. Ou melhor, situagdes em que as diferencas de poder ‘a0 longo da Hist6ria nao se baseiam ¢ se revelam em vit6rias militares. A consagracao da regra de nao-intervengao do siste~ sma interamericano culmina um longo processo politico de afir- "mago latino-americana contra comportamentos hegemOnicos dos Eu; da mesma forma, é possivel entender a transformagao das regras do direito do mar como um reflexo da presenca polit- a dos paises em desenvolvimento no cendtio internacional. E importante sublintar — e aqui, de novo, emerge o ele- mento racional, calculists — que a quebra de tratados, em especial os que criam aliangas, deve ser regulada por critétios frios, bem-calibrados. Nao sto bons os tratados que se susten- tam 6 na ideologia, s6 na compatibilidade de idéias que sofrem exatamente porque nao estao sedimentados € apoiados por interesses concretos, efetivos. O calculo frio que preconiza realismo vai comportar a mais ampla e variada gama de atitudes: em certas ocasi6es, a linha correta de aco serd a guerra; em outras, a alianca e 2 coopera- Go. O realismo pode aconselhar a participacio ativa nos neg6- cios da vizinhanga ou a abstengdo cuidadosa.™ Decidiré o me- Ihor caminho a perspectiva do éxito: vence a idéia que prometer mais ganhos com menor custo, no aquela que for mais equita- tiva, mais justa ou mais humana. A racionalidade nao é de fins, de meios. © imperativo das habilidades comanda, no o cate- ‘g6rico. Parte-se sempre ca necessidade de se preservar o Esta- do. A partir dai, qualquer acto € valida. Coma-se, porém, 0 expansionismo sem limites justamente porque a preservacio do Estado € um esforco que deve ser regulado com frieza: € um bem de extraordinaria importancia para ficar submetido as paixdes. [As definigdes dos objetivos do comportamento internacio- nal do Estado vao encontrar conceitos em que a marca da racionalidade é transparente. A evolucao da idéia da “razio de Estado", como mostra o estudo hist6rico de suas origens por Meinecke, obedece em parte a um processo de objetivacio: ou 54 seja, desprende-se paulatinamente

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