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HENRI LEFEBYRE O DIREITO A CIDADE Tradugso de Rubens Eduardo Frias EDITORA MORAES ‘© DIREITO A CIDADE A reflexio teérica se vé obrigada a redefinir as formas, fungées, estruturas da cidade (econémicas, polfticas, culturais, cic), bem como as necessidades sociais inerentes a sociedade ur bana. Até aqui, apenas as necessidades individuais, com suas mo- tivagbes marcadas pela sociedade dita de consumo (a sociedade burocrética de consumo dirigido) foram investigadas, e aligs fo- ‘am antes manipuladas do que efetivamente covhecidas © reco nhecidas. As necessidades socials tém um fundamento antropols~ ico, opostas © complementares, compreendem a necessidade de seguranga © a de abertura, a necessidade de certeza © a necessida~ de de aventura, # da organizagio do trabalho € a do jogo, as ne- cessidades de previsibilidade e do imprevisto, de unidade ¢ de di- fereaga, de isolameate © de eacontro, de trocas © de investimen- tos, de independéncia (© mesmo de solidio) ¢ de comunicasio, de imediaticidade e de perspectiva a longo prazo. O ser humano tem também a vecessidade de acumular evergias ¢ a necessidade de asti-las, © mesio de desperdicé-las no jogo. Tem nevessidade de ver, de ouvir, de tocar, de degustar, ea necessidade de reunis cessas percepgées num “mundo”. A essas necessidades antropolé- ficas socialmente elaboradas (isto 6, ora separadas, ora reunidas, agui comprimidas ¢ ali hipertrofiadas) acrescentam-se vecessid es especificas, que nio satisfazem os equipamentos comerciais ¢ culturais que sio mais ou menos parcimoniosamente levades ex consideragao pelos urbanistas, Trata-se da necessidade de uma atividade criadora, de obra (e nio apenas de produtos e de bens tos DIRE:TO A CIDADE ‘materiais consumsveis), necessidades de informacio, de simbo- lismo, de imaginério, de atividades lidicas. Através dessas neces- sidades especificadas vive e sobrevive um desejo fundarvental, do {gual © Jogo, a sexualidade, os ates corporais tas como o esporte, 2 atividade criadora, a arie © © conhecimento so manifestacées articulares € momentos, que superam mais ou menos a divis parselar dos trabalhos. Enfim, a necessidade da cidade ¢ da vida ‘urbana 56 se exprine livremente nas perspectivas que tentars aqui ‘2 isolar ¢ abrir os horizontes. As pecessidades urbanas espectli- cas ndo seriam necessidades de lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontres, lugares onde a troca aio seria to- ‘mada pelo valor de troca, pelo comércio © pelo Iucro? Nio seria também a necessidade de um tempo desses encontres, dessas tro- Uma ciéncia analftica da cidade, necesséria, est hoje ainda ‘em esboga. Conceites ¢ teorias, no comeco de sua elaboracio, $6 podem avancar com a realidade urbana em formacio, com a prd- ‘xs (prética social) da sociedade urbana. Atualmente, a superasio das ideologias © das préticas que fechavam os horizontes, que cram apenas pontos de estrangulamento do saber e da ago, que marcavam um limite a ultrapassar, essa superacio, como dizia, & efetuada po sem dificuldades. |A ciéncia da cidade tem a cidade por objeto. Esta ciéncia to- sma emprestado seus métodos, demarches © conceitos as ciéacias parcelazes. A sfntese Ihe escapa duplamente. Inicialmente, en- quanto s(otese que se pretendia total € que s6 pode consistir, a partir da analftica, ouma sistematizagio € cuma programacio ¢s- twatégicas. A seguir, porque 0 objeto, a cidade, enquanto realida- de acabada, se decompJem. O conhecimento tem diante de si, a fim de decupt-la e recompé-la a partir de fragmentos, + cidade histérica j& modificada. Como texto social, esta cidade hist6rica ‘io tem mais nada de uma seqincia coerente de prescrigées, de uum emprego do tempo ligado a s{mbolos, a um estilo. Esse texto se afasta, Assume ares de um documento, de uma exposiclio, de lum museu. A cidade historicamente formada no vive mais, nfo é mais apreendida praticamente. Nio € mais do que um objeto de consume cultural para of turistas © para o estetismo, Svidos de espeticulos e do pitoresco. Mesmo para aqueles que procuram compreendésla calorosamente, & eigade est4 morta. No entaato, “o urbano” persist, no estado de atualidade dispersa e alienada, de embni, de vistuaidade. Aquilo que 08 olhos e a anélise per cebem va pritica pode, an melhor das hipéteses, passar pela sour ta de um objeto furtro oa claridade de urn sol nascerte. Inv posstvel considera a hipétese a seconstituisdo da cidade antiga possfvel aponas encarar a construgio de uma nova cidade, sobee Fovas bases, ima outa eseala, em outras condigées, numa outa seciedade. Nem retomo (para a cidade tradicional), nem fuga para a frente, para a aglomeracio colossal informe ~ esta & a pres ‘cigio, Por outras palavras, no que diz respeito a cidade, 0 objeto da cigncia nfo estédeterminade. © passado, 0 presente, 0 poss vel nfo se separam. E um objeto virtal que 0 peasamesto estuda © que exige novas demarches. (© velho humanismo cléssico acabou sua careira hé muito tempo, ¢ acabou mal. Esté morto, Seu cadaver mumificado, em- balsamado, pesa bastante © ndo cheira bem. Ocupa muitos lugares pilblicos ou nfo, tansformados assim em cemitézis cultuais com 4 aparéncias do humano: museus, universidades, publicagSes di- versas. Mais as novas cidades e as revistas de urbanismo. Triv fades © insigniticincias #80 cobertas por essa embalagem. Ea “medida tumana’, se diz. Quando na verdade devertams nos cencarregar da desmedida, © car “alguma coisa” A altura do wi [Este velho humanismo encontrou a more nas guerras mn- iis, durante 0 impulso dewogréfico que acompanla sempre os sgvandes massacres, diamte das brutaisexigéncias clo crescimento € a competigio econémica e diante do impulso de técnieas mal Gominadas. NGo € nem mesmo mais uma ideologia, apenas um tema para discursos oficias ‘Como s¢.a more do humanism cléssico se idemtiicasse com mone do homem, recentemente ouviram-se altos exits. “Devs std mort, o homem também". Essa IGrmolas divulgadas em li- ‘ios de sucesso, reiomadas por uma publicidade pouco sesponsé- vel, ndo tém nada de novo. A meditagao nietzcheans comesou, hk quase um século, por ocasiio da guerra de 1870-1871, mau prességio para a Europa, para sua cultura e sua civilizagbo. ‘Quando Nietzsche anunciava a morte de Deus ¢ a morte de ho- 106 © pRutso A eAnADt mem, nio deixava atris de si um vario berrante; nao preencinia esse vario com materisis improvisades e provisérios, com a io: guagem © com a Linguistica. Ele anunciava 0 Super-humano, que fle acreditava se tornar. Superava o nihilismo que ele mesmo Giognosticava, Os autores que vondem tesoures teéricos ¢ post 0s com um século de atraso nos jogam de novo no nihilismo. Depois de Nietzsche, os perigos do Super-humano apareceram ‘com ma eruel evidéneia. Por outro lado, 0 ‘“homem nove" que vemos nascer da producio industrial e da racionalidade planific dora como tal nos desapontou em muito. Ainda um eaminho se ‘bre, 0 da sociedade urbana e do humano como obra nessa soci dade que seria obra e néo produto. Ou a superacéo simultinea do velno “animal social” e do homem da cidade antiga, o aoimal ur ‘bano, na direcio do homem urbano, polivalente, polissensorial, capa, de relagdes complexas e transparentes com "‘o mundo” (0 ineio € ele mesma); ou entao 0 nihilismo. Se o homem ests motto, para quem vamos construir? Como construir? Pouce importa que 4 cidade teoha ou nfo desaparecido, que seja necessirio pensi-la dde novo, recoustruf-la sobre novos fundamentos ou ultrapassé-la Pouco importa que 0 terror impere, que a bommba atémica seja ou tio langada, gue 0 planeta ‘Terra exploda ou no. © que é que ‘importa? Quem ainda pensa, quem age, quem fala © para quem? Se desaparecem 0 sentido e a finalidade, se no podemos nem mesmo declari-los mais numa praxis, nads tem importineia ov in teresse. E © as capacidades do “'ser huumano™, a técnica, a ciéa- cia, a imaginagio, a arte, ou a auséncia disso se erigem em pode res autGnomos € se 0 pensumento mediativo se contents com essa constatacio, a auséncia de “sujeito”, o que replicac? O que fazer? (© velo humanismo s> alasta, desaparece. A nostalgia se ate ‘nua e n0s voltamos cada vez menos a fim de rever sua fonma es- tendida no meio da estrada. Era a ideologia da burguesia liberal Ele ee inclinava sobre © povo, sobre os sofrimentos hnumnos. Re- cobria, sustentava a retGrica das almas caridosas, dos grandes sentimentos, das boas consciéncias. Compunha-se de citacdes greco-latinas salpicadas de judeo-cristianismo, Um pavoroso co- quetel, uma mistura de fazer vomitar. Apenas alguns intelectuais| (de “esquerda’” ~ mas serd que ainda existem intelectuais de di- reita”), nem revoluciondrios, nem abertamente reactonérios, nem (@ DIREFTO A cIDADe 107 dionisiacos, nem spalinianos, bebida Portanto, € va direséo de um novo humanismo que devemos tender © pelo gual devemos nos esforcar, isto é, ne direséo de uma nova praxis ¢ de um outro tomem, o homem da sociedade lurbana, E isto, escapando aos mitos que ameagam essa voniade, estruindo as ideologias que desviam esse projeto e as estratérias (que afastam esse tajeto. A vida urbana ainds nfo comecou. s- {amos acabando hoje 0 inventério dos restos de uma sociedade rmilenar na qual o campo dominou a cidade, cujas idéias e “valo- res", tabus e prescrigdes eram em grande parte de origem agréria, de predominio rural e “natural”. Esporddicas cidades apenas cemergiam do oceano do campo. A sociedade rural era (ainda é) a dda no abundancia, da penutia, da privaso aceita ou repudiada, as protbigées que dispunham’e regulasizavam as privagdes. A Sociedade rural foi aliés a sociedade da Festa, mas este aspecto, 0 melhor deles, 30 foi retido, e € ele que € preciso ressuscitar € 1do 0s mitos e 0s lirsites’ Observagio decisiva: a crise da cidade tradicional acompanha a crise mundial da civilizacio agrécia, igualmente tradicional. Caminham juntas € mesmo coincidem, Cabe a “n6s" resolver essa dupla crise, notadamente a0 criar com ‘2 nova cidade a nova vida na cidade. Os palses revolucionsnios (entre os quais a URSS de dez ou quinze anos apés a revolusa0, de Outubro) pressenticam o desenvolvimento da sociedade basea- a oa inddstria, Apenas pressentiram. [Nas frases precedentes, 0 “n6s" tem apenas o aleance de uma metdfora. Ele designa os interessaos. Nem o aryuiteto, nem © urbanista, nem 0 socidlogo, nem © economist, nem 0 fildsof0 ou ‘0 polftice podem tirar do nada, por decreto, novas formas © re~ lagges, Se € necessério ser exato, o arquiteto, no mais do que o sovi6logo, nao tem of poderes de um taumaturgo. Nem um, nem outro cria as relagGes sociais. Fm certas condigées lavordveis, auxiliam certas tendéncias 2 se formular (a tomar forma). Apenas 1 vida social (a pr&xis) na sux capacidade global possui tis pode res. Qu no 08 possui. As pessoas acima relacionadas, tomadas separadamente ou em equipe, podem limpar 0 camino. também podem propor, teatar, preparar formas, também (e sobretudo) podem inventariar a expenéncia obtida, tar lig6es dos fracass05, oda sentem prizer com ease Ciste 108 9 piREITO A CIDADE ajudar © parto do possfeel através de ina maigutica nuirida de cigncia. Yo ponto em que chegamos, assinalemos a urgéncia de uma ‘ransformacdo das demarches e dos instrumentos intelectusis. Re- tomando formilagSes erupregadas noutras ocasides, certas demar- ‘ches memtais ainda pouco familiares parecem indispenssveis. a) A transducedo. 1 uma operacdio intelectual que pode ser reali- zada metodicamewe ¢ que difere da indugio ¢ da dedugdo clfssicas e também da consirusio de “modelos”, da_ simu ago, do simples enunciado das hipéteses. A transduccao el bora € constréi un objeto te6rico, um objeto possivel, e isto a partic de informacées que incidem sobre a realidade, bem com mo a partis de uma problemdtica levantada por essa realidade. ‘A transducclo pressupée uma realimentacio (feed-back) inces- ‘sante entre 0 contexto conceitual utilizado eas observagées ‘emplricas. Sua teoria (metodologia) formaliza certas operagdes mentais espontineas do urbanista, do arquiteto, do sociélogo, do polftico, do filésofa. Ela introduz 0 rigor na invenslo © a conhecimento na utopia. b) A utopia experimental. Atualmente, quem nko & utdpico? Sé (8 prdticos estreitamente especializados que trabalham sob en- comenda sem submeter a0 menor exame exfico as nommas © ‘oagées estipuladas, s6 esses personagens pouco interessantes ‘escapam a0 utopismo. Todos sio utépicos, inclusive os pros pectivistas, of planificadores que projetam a Paris do ano 2000, os eagenheiros que fabricaram Brasflia, e assim por diante! Mas existe vérios utopismos. O pior nfo seria aquele que nio diz seu nome, que se cobre de positivismo, que por essa razdo impée as coagGes mais duras © a mais imisdria ausencia de wenicidade? A utopia deve ser considerada experimentalmente, estudando- se na prética suas implicagdes e consequéacias. Estas podem surpreender. Quais so, quais serio os locais que socialmeate tendo sucesso? Como detecté-los? Segundo que cntérios? ‘Quais tempos, quais ritmos de vida quotidiana se inscrever se escrevem, s prescrevem nesses espayos “bem-sucedidos”, isto 6, nesses espacos favordveis 2 felicidade’ F isso que inte- essa, 1 DIREITO A CIDA 09 Ouiras demarcles infelectualmente indispenséveis: discenir, sein os dissocias, as tr8s conceitos teGrices fundamentals, a saber: f estrutura, a fungio, a forma. Conhecer 0 alcance deles, suas freas de validez, seus limites ¢ svas relagSes recfprocas ~ saber {que eles formam um todo, mas que os elementos desse todo temo lama certa independéncia ¢ uma autonomia relativa ~ do privile- iar nenhum deles, falo que of origem a uma ieologia, isto é, um sistema dopmtico e fechado de signifieacées: o estruturalismo, © formalise, © funcionalismo. Unilizé-los alternadamente, em pé de igualdade, para a andlise do real (anélise que nao € nunca cexaustiva e sem resfduos) bem como para a operagio dita "trans- Gucgio”. Compreender que uma funcio pode se realizar através e estruturas diferentes, que no existe ligagto unfvoca enure 08 termos. Que funcdo e estrutura se revestem de formas que as re- velam € que as acultam ~ que a triplicidade desses aspectos cons- titui um “todo” que € mais que esses aspectos, elementos © par~ tes. Dentre os instrumentos intelectuais de que dispomos, hé wm que néo merece nem o deprezo, nem 0 privilégio do absoluto: 0 sistema (ou antes 0 subsistema) de signilicagoes. (Os politicos tém seus sistemas de significagGes ~ as ideoto- sglas — que Ihes permitem subordinar a suas estratépias os atos © acontecimentos sociais que sio por ele influenciados. ‘© humilde habitante tem seu sistema de significagSes (ou an- tes seu subsistema) ac nivel ecol6gico. O fato de habitar aqui ou ali comporta a recepsio, a adocio, a transmissio de um determi- nado sistema, por exemplo o do habitat pavilhonista. O sistema de significagdes do habitante diz das suas passividades e das suas atividades; € recebido, porém modificado pela pritica. E perce- bdo, (Os arguitetos parece ter estabelecide © dogmatizado um ‘conjunto de significagées, mal explicitado como tal e que aparece siravés de diversos vocdbulos: “fungso”, ‘forma, “estrutura”, 0 antes funcionalismo, formalismo, estruturalisino. Elaboram-n0 rio a partir das significagGes pereebidas vividas por aqueles aque habitam, mas a partir do favo de habitar, por eles intespretado, Esse conjunto € vexbal ¢ discursivo, tendendo para @ metalingua- em. & prafismo e visualizagio. Pelo fato de que esses arquitetos 10 0 ommeiTo A croane constituem um corpo social, que eles se ligam a instituigées, seu sistema tende a se [echar sobre si mesmo, a se impor, a eludir qualquer erftica. Haveria razées para se formular esse sistema, freqdentemente erigido em urbanismo por extrapolagio, sem ne~ rnhum outro procedimento, nem precaugao. 'A teoria que se poderia leyitimamente chamar de “urbanis- mmo”, que se reuniria As significayées da velha prética chamada “habitar” (isto é, © humano), que acrescentaria a esses fatos par- ciais uma teoria geral dos tempas-espacas urbanos, que indicaria luma nova prética decorrente dessa elaborasao, este urbanisme existe virtualmente. S6 pode ser concebido enguante implicacio pritica de uma teoria completa da cidade © do urbano, que supera fs cisdes e separagdes atuais. Especialmente & cisio entse filoso- fia da cidade © cigncia (ou ciéncias) da cidade, entre parcial © global, Neste trajeto podem fgurar os projetos urbanisticos atuais, mas apenas através de uma critica sem fraquezas de suas implicagées ideol6gicas e estratéricas, Por mais que se possa definislo, nosso projeto ~ 0 urbano = nfo estaré nunca intoiramente presente © plenamente atval, hoje, diante de nossa reflexto. Mais do que qualquer outro objeto, ele possi um carter de totalidade altamente’complexo, simutanes- mente em alo © em potencial, que visa 2 pesquisa, que se desco- bre pouco a pouco, que 6 se esgotaré Ieatamente € mesmo nunca, talvez. Tomar esse “objeto” por real, como um dado da verdade, uma ideologia, uma operaclo mistificante. © couhecimento de- ve considerar um nimero considerdvel de métodos para apreender esse objeto, sem se fixar numa demarche. As decupagens analfti- cas sepuirio de to perto quanto possvel as articulagGes internas dessa “coisa” que ado € uma coisa; serio seguides por recons- trugées nunca acabadas. Descrig6es, andlises, tentativas de sfnte- se nflo podem nunca passar por exaustivas ou definitivas. Todas as nodes, todas as baterias de conceitos entrargo em agio: forma, cesrutura, fungio, nfvel, dimensfo, varidveis dependentes e inde- pendentes, correlagées, totalidade, conjunto, sistema, etc. Tanto peste como em outros casos, porém mais do que em outros casos, 9 res{duo se revela o mais precioso, Cada “objeto” construsio Seré por sua vez submetide ao exame crflico, Na medida do poss(vel, seré realizado e submetido A verificagao experimental. A. © DiREITO A CIDADE mM cigncia da cidade exige um perfodo histérico para se coustrair € para orientar a prética social Necesséria, essa cigncia nfo basta. Ao mesmo tempo que per- cebemos sua necessidade, percebemos seus limites. A reflexdo turbanfstica propée 0 estabelecimento ou a reconstituicko de unt- dades sociais(localizadas) fortemente originais, particularizadas e ‘centrulizadas, cujas ligagées ¢ tenses reestabeleceriam uma uni dade urbana dotada de uma ordem interna complexa, nfo sem es- ‘rutura mas com ume estrutura flexfvel e una hierarquia. Mais precisamente ainda, a reflexio sociolégica visa a0 couiecimento © a reconstituico das capacidades integrativas do urbano, bem ‘como 8s condisies da participacio prftica. Por que lo? Com Juma condicfo: a de ounca subtrair essas tentativas parcelares, portanto parciais, & critica, & verificacio prética, a preocupagio alobal. ‘O conhecimento pode postante construire propor “modelos”, Cada “objeto”, neste sentido, nic € ovtra coisa além de um mo- delo de realidade urbana. No entanto, semelhante “realidade” nto se tomaré nuaca manejdvel como uma coisa, nem se toraré ins tmumental. Mesmo para o conhecimento mais operatério. Que a cidade tome a ser 0 que foi: ato obra de um pensamento com- plexo, quem nfo desejaria isso? Mas assim nos mantemos a0 nfvel dos votos © das aspiragées ¢ no se determina uma estratésia wr- ‘bana, Esta nio pode deixar de levar em conta, de um lado, as es- tratégias existentes ©, por outro lado, 08 conhecimentos adguiri dos: clencla da cidade, coubecimento que teode para a planifir cago do crescimento e para 0 dominio do desenvolvimento. Quem diz “estratépia” diz hierarquia das “vasiéveis" a serem consideradas, algumas das quais tm uma capacidade estratégica e outras permanecem a0 afvel tético ~ também chamado de forca suscetfvel de realizar essa estratégia na pritica. Apenas srupos, classes ou fragdes de classes sociais capazes de iniciativas revo luciondrias podem se encartegar das, ¢ levar até a sua plena reali- zag, solugses para os problemas urbanos; com essas forgas s0- ciais © polticas, a cidade renovada se tornar4 a obra. Trata-se io = ciaimente de desiazes as estratégias ¢ as ideologias domsinantes na sociedade atual. © fato de haver diversos grupos ou vérias ¢s- tratégias, como divergéncias (entre © estatal © 0 privado, por 12 © pig A c1DaDt exemplo} nio modifica a situasio, Das quest6es da propriedade da terra aos problemas da segregacie, cada projeto de reforma urbana poe em questdo as estruuras, as da sociedad existeate, as das relagGes imediatas (individuais) ¢ quotidianas, mas também as que se pretende impor, através da via coatora e institucional, aguilo que resta da realidade urbana. Em si mesma reformisea, a testratégia de renovaglo urbana se torna “necessariamente” revo- luciondria, no pela forca das coisas mas contra as coisas estabe- lecidas. A estratégia urbana baseada na ciéncia da cidade tem ne~ cessidade de um suporte social ¢ de forvas polfticas para se tomar stuante. Ela nfo age por si mesma. Nio pode deixar de se apoiar ta presenga e na ago da classe operdria, a nica capar de pér fim ‘2 uma sepregagio dirigida essencialrente contra ela. Apenas esta Classe, enguanto classe, pode contribuir decisivamente para 8 re- construgio da ceotralidade destrufda pela estratégia de searegacio f reeocontrada na forma ameacadora dos “centros de decisio”” Isto ndlo quer dizer que 2 classe operéria far sozinha a sociedade turbana, mas que sem ela nada & possfvel. A integracfo sem ela pio tem sentido, ¢ a desintegracio continuars, sob a méscara e a nostalgia da iotegraglo. Existe af no apenas uma opsfo, mas também um horizonte que se abre ou que se fecha. Quando classe operdria se cala, quando ela nfo age © quando nio pode realizar aquilo que a teoria define como sendo sia “mistSo histé- rica”, € ento que faltam 0 “sujeito” € o “objeto”. O pessamnento que feflete interina essa auséncia. Isto quer dizer que convém ‘laborar duas séries de propos 8) Um programa polftico de reforma urbana, reforma nio defi- rida pelos contextos € possibilidades da sociedade atual, no fujeita a uma “realismo”, sinds que haseado no estudo das realidades (por outras palavras: a reforma assim concebida néo se limita ao reformistho). Esse programa terf, poranio, um carter singular e mesmo paradoxal. Seré estabelecido a fim de ser proposto as forcas politicas, isto é, aos partidos. Pode-se ‘mesmo ecrescentar que ele serd submetido preferencialmente 08 partidos “de esquerda”, formacGes polfticas que represen- tam ou que querem representar a classe operfris. Mas esse programa nfo serf estabelecido em fungio dessas forcss formagies. Fm relacio a elas, ter um cardter espectfico, 0 4 provéim do conhecimento. Ter&, portanto, uma parte eieattfica. Ser proposto (livre para ser modificade por ¢ para aqueles que Se encarregario dele). Que as forgas politicas assumam, suas responsabilidades. Neste setor que compromete © futuro da sociedade moderna ¢ dos produtores, 2 ignorincia © 0 des cenhecimento acarretam responsabilidades diante da histévia que € reivindicada. 6 Projetos urbanisticos vem desenvolvidos, compreendendo “modelos”, formas de espago ¢ de tempo urbanos, sem se preocupar com seu carter atualmente realizdvel ou no, ut6- pico ou nBo (isto 6, lucidamente “ut6picos”). Nao parece que esses modelos possam resultar seja de um simples estudo das cidades ¢ dos tipos urbanos existeotes, seja de uma simples combinatéria de elementos. As formas de tempo e de espaco serio, salvo experiéncia em contrério, inventadas e propostas 2 pris. Que a imaginacio se descobre, no 0 imaginttio que permite a fuga € a evasio, que veicula idcologias, mas sim 0 Imagingrio que se investe na apropriacdo (do terapo, do espa- 50, da vida fisioldgica, do desejo). Por que n&o opor & cidade tema as cidades efémeras ¢ aos centros estéveis as central ddades méveis? So permitidas todas as audécias. Por que limi tar essas proposicSes apenas A morfologia do espaco e do ten po? Nio se excluem proposic6es referentes ao estilo de vida, a9 modo de viver na cidade, ao desenvolvimento do urbane ‘em felagio a esse plano. estas duas séries entrario proposigGes a curto prazo, a prazo imédio ¢ a longo prazo, constituindo estas a estratégia urbana pro- prlameate dita. A sociedade em que vivemos parece voltada na diregio da lenitude, ov pelo menos na dirego do pleno (objetos © bens urfveis,, quantidade, satisfagSo, racionalidade). Na verdade, permite que se cave em si mesma un vazio colossal; nesse vari agitam-se as ideologias, espalha-se a bruma das retéricas. Uma ddas maiores aspirag6es que 0 pensamento ativo pode propor a si mesmo, pensamento este que tenha safdo da especulacio ¢ da a fo miREHO A cipade contemplagao ¢ também das decupagens fragmentérias ¢ dos com ‘nhecimentos parcelares, € de povear essa lacuna, e povoar néo apenas com a linguagem. "Num perfodo em que 0s ideéloges discorrem abundantemente sobre as estruturas, a destruturagio da cidade manifesta a profus- didade dos fenémenos de desintegracio (social, cultural). Esta sociedade, considerada globalmente, descobre que ¢ lacunar. Eo- tre os subsistemas ¢ as estruturas consolidadas por diversos meios (coasao, terror, persuasio ideolégica) existem buracos, &s vezes abismos. Esses vazios nfo provém do acaso. Sio também os luga- res do possivel. Contém o3 elementos deste possivel, elementos flutuaates ou dispersos, mas no a forsa capaz de os reunir. Mais sinda: as agées estraturantes e 0 poder do vazio social tendem a impedir a ago © a simples presenga de semelhante forge. As instincias do possivel 26 podem ser realizadas no decorrer de uma smetamorfose radical. ‘Nessa conjuntura, a ideologia pretende dar um caréter absolt- to A “cientificidade”, incidindo a ciéncia sobre o real, decupan- 0-0, recompondo-o € com isso afastando o possfvel e barrando © camioho. Ora, numa tal conjuntura, a ciéncia (isto €, as citnclas parcelares) tem apenas ium aleance programdtico. Contribui com elementos para um programa, Se se admitir que esses elementos constituem desde agora uma totalidade, se se quiser executar lite- ralmente 0 programa, j6 af se estard tratando 0 objeto virtual co- ‘mo um objeto técnico. Realiza-se um projeto sein erftica nem av- tocrftica, © esse projeto realiza, projetando-a oa prética, uma 1se0- logia, a ideologia dos tecnocratas. Necessério, 0 programstico no basta. Ele se tansforma no decorrer da execugo. Apeoas a orga social capaz de se investir a si mesma no urbano, no decor rer de uma longa experiéncia politica, pode se encarregar da rea- lizagio do programa referente a sociedade urbana. Reciprocamen- te, a ciéncia da cidade traz para essa perspectiva um fundamento tedrico e critica, uma base positiva. A utopia controlada pela razio dialétiea serve de parapeito As ficgSes pretensamente cient ficas, ao imaginério que se extraviaria. Esse fundamento € essa base, por outro lado, impedem que a reflexio se perca no pro- ‘gramftico puro. O movimento dialético se apresenta aqui como tuma relacdo entre a cigncia e a forsa politica, como um dislogo, © DRLEETO A CIDADE 4s fato que atualiza as relagSes “teoria-prét gatividade exitica”. Necessfina como a eifneia, nfo suficiente, a arze was para a realizagio da sociedade urbaoa sua longa meditacdo sobre a vida como drama ¢ fruigao. Além do mais, ¢ sobretudo, a arte restitai 0 sentido da obra; ela oferece mailtplas figuras de tempos e de es pacos apropriades: nio impostos, bio aceitos por uma resignagio passiva, mas metamorfoseados em obra. A milsica mostra a spro~ riagio da tempo, a pintura e a escultura, a apropriagae do espa~ 0, Se as cigncias descobrem determinismos parciais, a aste (© a filosofia também) mostra como nasce uma totalidade a partir de determinismos parciais. Cabe a forsa social capaz de realizar a sociedade urbana tornar efetiva e eficaz a unidade (a “sfntese") da arte, da técnica, do conhecimento. Conguante que a ciéncia da cidade, a arte e a histéria da arte entrem na meditasao sobre 0 ur- ‘ano, que quer tornar eficaz as imagens que o aunciam. Esta meditaso voltada para a aco realizadom seria assim utdpica © realista, superando essa oposiclo. © mesmo possivel afirmar que ‘0 mfximo de utopisimo se reunité 40 optimum de cealismo Entre as contradigdes caracter(sticas desta época, esto aque- las (particularmente duras) existentes cote as realidades da so- ciedade of fatos de civilizago que nela se inscrevem. De um lado © genoefdio, ¢ do outro os esforgas (iédicos € outros) que pemitem salvar uma crianga ov prolongar uma agonia. Uma das ‘Stimas contradisdes entre a socializacdo da sociedade © a segre- gordo generalizada, Fxistem muitas outras, por exemplo entre a tetigueta de revoluciondrio © 0 apego as categorias de um racions Tismo produtivista superada. No seio dos efeitos sociais, devidos A pressio das massas,'o individual no morre ¢ se afirma. Surgem direitos; estes enttam para os costumes ou ex prescrigSes mais ou menos seguidas por atos, e sabe-se bem como esses "ducitos” concretos vém completar os direitos abstratos do homem e do ct dado inscritos no frontio dos ediffcios pela democracia quando te seus primSrdios revoluciondiios: direitos das idades ¢ dos se~ xos (a mulher, a eriaaca, o velho), direitos das condigées (0 pro- letdsio, o camponés), dieitos & instruso e a educagio, dueito ao trabalho, & cultura, 20 repouso, a sade, 2 habitagio. Apesar, ou através das gigantescas destruig6es, das guerras mundiais, das a © “positividade-ne~ 6 piREITo A cIpape fameagas, do terror nuclear. A presso di classe operéria foi € continua a ser necesséria (mas alo suficiente) pare o cove’ mento desses direitos, para a sua entrada para os costumes, para a sua inserisf0 nos eédigos, ainda bem incompletos. Muito estranhamente, 0 direito d natureza (a0 campo eA “nae tureza pura”) entrou para a pritica social ff alguns anos em favor dos dazeres. Caminhou através das vituperagies, que se tornaraza banais, contra o barulho, a fatiga, 6 universo “concentracionista” das cidades (enquanto a cidade apodrece ou explode). Estranho ercurso, dizemos: a natureza entra para o valor de troca e para a mereadoria: é comprada ¢ vendida. Os lazeres comercializados, ingustrializados, organizados institucionalmente, destroem essa ‘naturalidade” da qual as pessoas se ocupam a fim de trafic&-la © lrafegar por ela. A “natureza", ou aquilo que ¢ tido como tal, aquilo que dela sobrevive, torna-te © gueto dos lazeres, 0 lugar separado do gozo, a aposentadoria da “criatividéde””. Os urbanos ‘wansportam o urbano consigo, ainda que nfo careguem a urbani- dade! Por eles colonizado, 0 campo perde as qualidades, proprie- aces e encantos da vida camponesa. O urbano assola 0 campo: este campo urbanizado se opée a uma ruralidade sem posses, e230 extremo da grande miséria do habitante, do habitat, do habitar. © ireito a natureza € 0 direito a0 campo nio se destroem a si mes- ‘mos? Face a esse direito, ou pseadodiseito, 0 direito a cidade se firma como um apelo, como uma exigencis, Através de surpre. endentes desvios - a nostalgia, o turismo, o retorno para 0 co- ago da cidade tradicional, 0 apelo das centralidades existentes ou recentemente elaboradas ~ esse diteito caminha lentamente. A reivindicaglo da natureza, 0 desejo de aproveitar dela so desvios do direito & cidade. Esta Ultima reivindicagéo se anuacia indire- lamest, como tendéncia de fugir a cidade deteriorada © no re- ovada, a vida urbana alienada antes de existir “realmente”. A necessidade e 0 “direito” eaturera contrariam 0 direito a cidade sem conseguir eludi-lo. (Isto nile significa que néo se deva pre~ servar amplos espagos “naturais” diante das proliferacées da ci- dade que explodiu.) O direito a cidade ato pode ser concebide como um simples Gireito de visita ou de retorno as cidades tradicionais. S6 pode ser o DIREITO A CIDAB% uy formulado como direito d vida urbana, transtormada, renovada Pouco importa que o tecido urbano encerre em si o campo e aqul- lo que sobrevive da vida camponesa conquanto que "a urbane”, lugar de encontro, privridade do valor de uso, insengso no espace de um tempo promovide & posicio de supremo bem entre os bens, fenconire sua hase morfoldgica, sum realizacio pritico-rensivel. O (que pressupde ums teoria intexral de cidade © da sociedade urba- he. qo utilize o§ recursos da citacia e da arte. Sé a classe operi- ria pode se tomar o arente, o portadar ou o suporte social dessa, realizagéo. Aqui ainda, como hd um século, ela nega © contesta, lunicamente con sua presenca, 2 estratégia de classe dirigida con- tra cla. Como hf um século atrés, ainda que em oovas condigses, cla reune os interesses (aqueles que superam 0 imediato € o su perficial) de toda a sociedade, ¢ inictalmente de todos aqueles que hhabiuam. Os moradores do Olimpo e a nova aristocracia burguesa (quem ign?) no habitam mais. Andam de paléeio em palé- cio, cu de castelo er castelo; comandam uma armada ou um pals de dentro de um iate; estdo em toda parte c em parte alguma. Dat provém a causa da fascinagdo que exercem sobre as pestoas mc gulhadar 90 quotidiano; eles transcendem a quotidis.:sidade, pos- suer a natureza e deixam os esbistos fabricar a cultura. Seri Uispeosivel descrever longamente, ao lado da condigio dos jo- vens e da javentude, dos estudantes e dos intciectusis, das exérci- (os de tabalhadores com ou sem colarinho © eravata, dos wnterio- anos, dos colonizados € semico'onizados de toda espécie, de t0- Jos aqueles que sotrem a asdo de uma quotidianeidade bem orde= sada, serd necessério mostrar aqui a miséna irrisdria © sem nada de trdgico do habitante, clos suburbanos, das pessoas que moram nos guetos residencizis, nos centres em decomposicio das cidades velhas e nas proliferacbes perdidas lone dos centros dessas cida- ses? Basta abrir os olhos para compreender a vida quotidiana da- quele que corre de sua moradia para a éstago proxima ou distan- te,’ para 0 meir6 superiotado, para o escritério ou para a fabrica, para retomar 3 tarde © mesmo eaminho e voltar para casa a fim de recuperar as forcas para recomesar tudo no dia seguinte. © gua- dro dessa miséria generalizada no poderia deixar de se faz acompachar pelo quadro das "satisfagées" que a dissimulam ue se tornam os n:sios de eludi-la e de evadir-se dela

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