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O novo espirito do capitalismo Luc Boltanski e Eve Chiapello Tradugio IVONE C. BENEDETTI BRASILIO SALLUM JR. a wnifmartinsfontes so Pawo 2008 INTRODUGAO GERAL O espirito do capitalismo eo papel da critica Esta obra ter como objeto as mixidancas ideolégicas que acompanharain as recentes transformagses do capitalism. Propde uma interpretagdo do mo- vimento que vai dos anos que se seguem aos acontecimentos de maio de 1968, durante os quais a critica ao capitalismo se expressa alto e bom som, aos anos 80, quando, no siléncio da critica, as formas de organizacao sobre as quais repoussa o funcionamento do capitalismo se modificam profunda- mente, até a busca hesitante de novas bases criticas na segunda metade da década de 1990, Esta obra nao é apenas descritiva. Ela também pretende, através desse exemplo historico, propor um quadro te6rico mais geral para compreender 0 modo como se modificam as ideologias associadas as ati vidades econémicas, contanto que se dé ao termo ideologia nao 0 sentido redutor — que tantas vezes lhe foi dado pela vulgarizago marxista ~ de dis- curso moralizador voltado a velar interesses materiais e incessantemente desmentido pelas praticas, mas sim o sentido ~ desenvolvido, por exemplo, 1a obra de Louis Dumont ~ de conjunto de crengas compattilhadas, inseritas em instituigées, implicadas em ages e, portanto, ancoradas na realidade. Talvez sejamos criticados por tetmos abordado uma mudanga global a partir de um exemplo local: 0 da Franga dos tltimos trinta anos. Evidente- mente, nao acreditamos que o caso da Franga, em si, possa resumir todas as transformagdes do capitalismo. Mas, parecendo-nos nada convincentes as aproximagies e os quadros gerais esbogados pela maioria dos discursos sobre a globalizagao, esperamos estabelecer o modelo de mudanga apre- sentado aqui com base em anélises de orclem pragmitica, ou seja, capazes de levar em conta os modos como as pessoas se engajam na a¢do, suas jus- tificativas ¢ 0 sentido que elas atribuem a seus atos. Ora, tal esforgo, essen. cialmente por razdes de tempo e meios, é ittealizavel na pratica, tanto em 34 O nove espirito do capitatismo escala global quanto continental, tamanho 6 0 peso que as tradigées ¢ as conjunturas politicas nacionais continuam tendo na orientacao das praticas. econémicas ¢ das formas ideol6gicas de expresso que as acompanham. Provavelmente, essa é a raz3o pela qual as abordagens globais sao muitas, vezes levadas a atribuir importancia preponderante a fatores explicativos — habitualmente de ordem tecnoligica, macroecondmica ou demogrética -, tratados como forcas exteriores aos homens ¢ as nagdes, que padeceriam seus efeitos do mesmo todo como se enfrenta uma tempestade. Para esse neodarwinismo histérico, as “mutagdes” se nos imporiarn tal como se im- poem as espécies: a nds compete a adaptagio ou a morte. Mas os homens nao apenas padecem os efeitos da histéria, eles a fazem e nés queremos vé-los em acdo. Nao pretendemos que aquilo que ocorreu na Franga seja exemplo para © restante do mundo, nem que os modelos por nds estabelecidos a partir da situagdo francesa tenham validade universal, tais como se apresentam. No entanto, temos boas raz6es para pensar que processos bastante seme: Ihantes marcaram a evolugao das ideologias que acompanharam a reestru- turagao do capitalismo nos outros paises desenvolvidos, segundo modali- dades que, em cada caso, decorrem das especificidades da histétia politica e social que somente andlises regionais detalhadas permitiriam esclarecer com precisao suficiente. Procuramos elucidar as relagdes que se instauram entve 0 capitaliszo e seus oriticos, de tal modo que pudéssemos interpretar alguns dos fendmenos que afetaram a esfera ideolégica durante as tiltimas décadas: enfraquecimento da critica, simultaneo a forte reestruturagao do capitalismo, cujas conse- quéncias sociais, porém, ndo podiam passar despercebidas; novo entusias- mo pela empresa privada, orquestrado pelos governos socialistas, durante ‘0 anos 80 ¢ 0 esmorecimento depressivo dos anos 90; dificuldades encon- tradas hoje pelos esforgos de reconstituir a critica sobre novas bases e seu poder mobilizador por ora bastante fraco, embora nao faltem motivos de in- ignacio; transformagio profunda do discurso empresarial e das justifica- ges da evolugao do capitalismo desde meadios dos anos 70; emergéncia de novas representacdes da sociedade, de modos inéditos de por pessoas e coi- sas a prova e, assim, de novas maneiras de ter sucesso ou fracassar. Para realizar esse trabalho, rapidamente se nos impds a nocao espirito do capitalismo, pois, como veremos, ela permite articular 0s dois conceitos centrais sobre os quais repousam nossas anélises ~ 0 de capitalismo e 0 de oritica numa relagao dinamica. Apresentamos abaixo esses diferentes con: ceitos nos quais se fundamenta nossa construgio, bem como 0s mecani mos do modelo que elaboramos para dar conta das transformagies ideolé- CO espitito do capitalismo e o papel da critica 35 gicas em relagdo 20 capitalismo durante os tiltimos trinta anos, mas que nos parece ter um alcance mais amplo do que apenas o estudo da situacao francesa recente. 1, © ESPIRITO DO CAPITALISMO Uma definigio minima do capitalismo Entre as diferentes caracterizagdes do capitalisino (ou, frequentemen te hoje, dos capitalismos) feitas no iltimo século e meio, escolheremos uma férmula minima que enfatiza a exigéncia de acumulagao ilimitada do ca- pital por meios formalmente pacificos. Trata-se de repor perpetuamente em jog0 0 capital no circuito econdmico com o objetivo de extrair lucto, ou seja, aumentar o capital que serd, novamente, reinvestido, sendo esta a princi- pal marca do capitalismo, aquilo que Ihe confere a dinamica e a forga de transformagao que fascinaram seus observadores, mesmo os mais hostis. Oactimulo do capital nao consiste num amontoamento de riquezas~ ou seja, de objetos desejacios por sou valor de uso, por sua fungao ostentatéria ‘ou como signos de poder. As formas concretas da riqueza (imobilisria, bens de capital, mercadorias, moeda etc.) nao tém interesse em si e, por sua falta de liquidez, podem até constituir obstéculo ao Gnico objetivo que importa realmente: a transformagao permanente do capital, de equipamentos e aqui- sigdes diversas (matérias-primas, componentes, servigos...) em produgao, de prodiugio em moeda e de moeda em novos investimentos (Heilbroner, 1986). Essa dissociagao entre capital e formas materiais de riqueza lhe confe- re um cardter realmente abstrato que vai contribuir para perpetuar a acumu- lagio. Uma vez que 0 enriquecimento é avaliado em termos contabe do 0 lucro acumulaco num perfodo calculado como a diferenca entre dois balangos de duas épocas diferentes’, nao existe nenhum limite, nenhuma saciedade possivel’ como ocorre, ao contrétio, quando a riqueza é orientada para necessidades de consumo, inclusive 0 luxo. Certamente ha outra razdo para o carter insacidvel do processo capita- lista, ressaltada por Heilbroner (1986, pp. 47 ss.). Como o capital é constan- temente reinvestido e s6 pode crescer circulando, a capacidade que 0 capita- lista tem de recuperar sua aplicagdo aumentada pelo lucro esté perpetua- mente ameagada, em especial pelos atos dos outros capitalistas com os quais cle disputa o poder de compra dos consumidores. Essa dinémica cria uma inquietagao permanente c da ao capitalista umn poderaso motivo de autocon- servacdo para continuar infindavelmente o proceso de acumulacao. 36 © novo espirito do capitalismo A tivalidade entre operadores que procuram obter lucto, poréin, nao gera necessariamente um mercado no sentido classico, no qual o conflito entre uma multiplicidade de agentes que tomam decisdes descentralizadas tem como desfecho a transagdo que faz aparecer um prego de equilibrio. O capitalismo, na definicao minima aqui considerada, deve set distinguido da autorregulacéo mercantil baseada em convengdes e instituigdes, especial- mente juridicas e estatais, que visam a gatantir a igualdade de forgas entre operadores (concorréncia pura e perfeita), a transparéncia, a simetria de in- formagGes, um banco central garantidor de uma taxa de cambio inaltetavel para a moeda de crédito etc. Sem ciivida o capitalismo se apoia em transa- Ses € contratos, mas esses contratos podem dar sustentaggo apenas a at~ ranjos discretos em beneficio das partes ou comportar apenas eldusulas ad hioc, sem publicidade nem concorréncia. Na esteira de Fernand Braudel, faremos uma distingdo entre capitalis- moe economia de mercado. Por um lado, a economia cle mercaclo constituiu- se “passo a passo” e é anterior ao aparecimento da norma de acumulagio ilimitada do capitalismo (Braudel, 1979, Les Jeux de I'échange [Os jogos das trocas], p.263). Por outro lado, a acumulacio capitalista s6 se dobra 3 regu- lagdo do mercado quando Ihes sao fechados caminhos mais diretos para o Iucro, de tal modo que o reconhecimento dos poderes benfazejos do mer- cado e a aceitagao das regras e injungdes das quais depende seu funciona- mento “harmonioso” (livre-comércio, proibigao de cartéis ¢ monopélios ete.) podem ser considerados uma forma de autolimitacao do capitalismo'. O capitalista, no ambito da definigao minima de capitalismo que util zamos, 6, teoricamente, qualquer um que possua um excedente ¢ 0 invista para extrair um Iueto que venha a aumentar o exceciente inicial. O exem- plo tipico disso é o acionista que aplica seti dinheiro numa empresa e fica A espera de uma remuneragao, mas o investimento nao assume necessaria- mente essa forma juridica ~ pensemos, por exemplo, no investimento em locagao de imdveis ou na compra de bénus do Tesouro. O pequeno aplica~ dot, © poupador que nao quer que seu “dinheiro fique parado” mas “dé ctia” - como diz a linguagem popular -, pertence, portanto, ao grupo dos capi- talistas tanto quanto os grandes proprietétios, que costumam ser mais fa cilmente imaginados com essa designacao. Em stia extensao mais ampla, o grupo capitalista retine, pois, o conjunto dos detentores de um patriménio rentavel', grupo que constitui, porém, apenas uma minoria, desde que seja ultrapassado certo limiar de poupanca: embora isso seja dificil calcular, em vista das estatisticas existentes, pode-se acreditar que ele representa apenas 20% das familias na Franga, apesar de se tratar de urn dos paises mais ricos do mundo’. Em escala mundial, essa porcentagem deve ser bem menot. Oespirito do capitalismo e o papel da critica Neste ensaio, porém, reservaremos prioritariamente a designacao de “capitalistas” aos principais atores responsaveis pela acumulacao ¢ pelo crescimento do capital, aqueles que exercem pressao diretamente sobre as ‘empresas para que estas produzam lucros méximos. Evidentemente, seu numero é muito mais reduzido. Seu grupo é formado nao s6 por grandes acionistas, pessoas fisicas capazes de influir sobre a marcha dos negécios apenas em virtude de seu peso, mas também por pessoas juridicas (repre- sentadas por alguns individuos influentes — dirigentes empresariais de pri- meira plana) que possuem ou controlam, por meio de seus atos, as maiores parcelas do capital mundial (holdings e multinacionais — inclusive bancérias = por meio de filiais ¢ participagées, ou fundos de investimento, fundos de pensao). Sendo eles grandes proprietatios, diretores assalariados de gran- des empresas, administradores de fundos ou grandes acionistas, sua in- fluéncia sobre o processo capitalista, sobre as praticas empresariais e sobre as taxas de luctos obtidas é indubitavel, diferentemente dos pequenos in- vestidores mencionados acima. Mesmo formando uma populacdo que apresenta grandes desigualdades patrimoniais, mas com uma situagao mé- dia muito favoravel, eles merecem 0 nome de capitalistas, uma vez. que as summem a responsabilidade de exigit a maximizagao de lucros ¢ repassam essa exigencia para as pessoas, fisicas ou juridicas, sobre as quiais exercem poder de controle. Deixando de lado por ora a questao das injungoes sisté- micas que pesam sobre o capitalista, deixando de indagar, em especial, 0s diretores de empresa podem deixar de se submeter &s regras do capita~ lismo, consiceraremos apenas que se submetem, € que seus atos so em grande parte guiados pela busca de luicros substanciais pata seu proprio ca- pital ou para o capital que Ihes é confiado”. ‘Também caracterizaremos o capitalismo pelo trabalho assalariado. Marx, assim como Weber, pde essa forma de organizagao do trabalho no centto de sua definicao do capitalismo. Consideraremos o trabalho assalariado in- depencentemente das formas juridicas contratuais que ele pode assumir: 0 que importa € que uma parte da populagao que nao possui capital ou 0 possuii em pequena quantidade, para a qual o sistema nao é naturalmente orientado, extrai rendimentos da venda de sua forga de trabalho (e nao da venda dos produtos de seu trabalho), pois nao dispée de meios de produ 0 e, para trabalhar, depende das decisdes daqueles que os possuem (pois, em virtude do diteito de propriedade, estes tiltimos podem recusar-Ihe o Uso de tais meios); enfim, que essa parcela Ihes cede, no ambito da relagao salarial ¢ em troca de remunerasdo, todo o direito de propriedade sobre o re- sultado de seu esforco, estando certo de que ele reverte totalmente para os donos do capital’. Uma segunda caracteristica importante do trabalho as- 37 O nove espirito do capitalismo salariado 6 que o trabalhador é teoricamente livre para recusar-se a traba- Ihar nas condigdes propostas pelo capitalista, assim como este tem a liber- dade de nao propor emprego nas condigdes demandadas pelo trabalhador, de tal mado que essa relaco, embora desigual no sentido de que o traba- Ihador nao pode sobreviver muito tempo sem trabalhar, distingue-se mui- to do trabalho forgado ou da escravidao e sempre incorpora, por isso, cer- ta parcela de submissdo voluntéria. trabalho assalariado em escala francesa, assim como em escala mundial, nao parou de se desenvolver ao longo de toda a histéria do capi- talismo, de tal modo que hoje ele atinge uma porcentagem da populacio ativa nunca antes atingida'. Por um lado, ele aos poucos substituiu 0 traba~ Iho por conta propria, encabecado historicamente pela agricultura’; por ou- tro lado, a prépria populagao ativa aumentou muito, devido ao ingresso das mulheres no trabalho assalariado, exercido por elas em ruimero crescente fora do lar". A necessidade de wm espirito para o capitalismo O capitalismo, sob muitos aspectos, é um sistema absurdio: os assalatia- dos perderam a propriedade do resultado de seu trabalho e a possibilidade de levar uma vida ativa fora da subordinagdo. Quanto aos capitalistas, es {Go presos a um processo infindavel e insacidvel, totalmente abstrato e di sociado da satisfagao de necessidades de consumo, mesmo que supérfluas. Para esses dois tipos de protagonistas, a inser¢ao no processo capitalista ca- rece de justificages. Ota, a acumulacao capitalista, embora ocorra em graus desiguais con- forme o caminho do lucro pelo qual se enverede (em maior grau, por exem- plo, para auferir beneficios industriais do que para obter lucros mercantis, ou financeiros), exige a mobilizago de um niimero imenso de pessoas cujas chances de lucro séo pequenas (especialmente quando seu capital de par- tida é mediocre ou inexistente), ¢ para cada uma delas é atribuida uma res- ponsabilidade infima, em todo caso dificil de avaliar, no processo global de acumulacao, de tal modo que elas nao sao particularmente motivadas a empenhat-se nas praticas capitalistas, quando nao lhes sio hostis. Algumas pessoas poderao mencionar a motivagao material para a par- ticipagao, mais evidente, alids, para o assalariado que precisa de seu salétio para viver do que para o grande proptietério cuja atividade, ultrapassado certo nivel, nao esta mais ligada a satisfagdo de necessidades pessoais. Mas essa motivagao, por si s6, mostra-se bem pouco estimulante. Os psicdlogos O espirito do eapitaismo eo papel da eitca do trabalho tém evidenciado com regularidade a insuficiéncia de remune- ragao para provocar 0 empenho e agucar o entusiasmo no cumprimento das tarefas; 0 salério constitui, no maximo, um motivo para ficar num em- prego, mas nao para empenhar-se. ‘Do mesmo modo, para que seja vencida a hostilidade ou a indiferenga desses atores, a coergao é insuficiente, sobretudo quando o empenho exi- gido pressupde adesdo ativa, iniciativas e sacrificios livremente assumidos, como aquilo que, cada vez mais, se espera néo $6 dos executivos, mas do conjunto dos assalariados. Assim, a hipstese do “empenho forgado”, cres- cente diante da ameaca da fome e do desemprego, jé nao nos parece mui~ to realista, Pois, embora seja provavel que as fabricas “escravagistas” ainda existentes no mundo ndo venham a desaparecer em futuro proximo, pare- ce dificil contar unicamente com essa forma de incentivo ao trabalho, no minimo porque a maioria dos novos modos de obter lucro e das navas pro- fissdes inventadas durante os tiltimos trinta anos, que getam hoje uma par- te significativa dos lueros mundiais, enfatizou aquilo que em recursos hu- manos se chama de “envolvimento do pessoal”. ‘A qualidade do compromisso que se pode esperar depende, antes, dos argumentos alegaveis para valorizar nao s6 os beneficios que a participago nos processos capitalistas pode propiciar individualmente, como também as vantagens coletivas, definidas em termos de bem comum, com que ela contribui para todos. Chamamos de espitito do capitalismo a ideologia que justifia o engajamento no capitalismo, ‘Atualmente, cle esté pasando por uma grande crise, manifestada pela perplexidade e pelo ceticismo social crescente, de tal modo que a salva- guarda do processo de acumuiagao, ameagado pelo estrangulamento de suas, justificagdes numa argumentagao minima em termos de submissio neces- sdria as leis da economia, supde a formacao de um novo conjunto ideol- gico mais mobilizador. Isso vale pelo menos para os paises desenvolvidos que, situados no centro do proceso de acumulagao, esperam continuar sendo os principais fornecedores de pessoal qualificado, cujo envolvimen- to positivo necessério. O capitalismo precisa ter condigbes de dar a essas pessoas a garantia de uma seguranca minima em verdadeiros santuarios — onde é possivel viver, formar familia, criar filhos etc. -, tais como os bairros residenciais dos centros econdmicos do hemisfério norte, vitrines do suces- s0 do capitalismo para os adventicios das regides periféricas e, por isso mesmo, elemento crucial na mobilizacdo ideolégica mundial de todas as forcas produtivas Em Max Weber, o “espitito do capitalismo” remete ao conjunto dos mo- tivos éticos que, embora estranhos em sua finalidade a logica capitalista, 39 40 O novo esptrito do capitalismo inspiram os empresérios em suas ages favordveis & acumulagao do capi- tal. Em vista do caréter singular e até transgressivo dos modos de compor- tamento exigidos pelo capitalismo em relacéo as formas de vida constata- das na maioria das sociedades humanas™, ele foi levado a defender a ideia de que a emergéncia do capitalismo supusera a instaurago de uma nova telagdo moral entre os homens e seu trabalho, determinada por uma voca- ‘40, de tal forma que cada um, independentemente de seu interesse e de suas qualidades intrinsecas, pudesse dedicar-se a ele com firmeza e regu- laridade. Segundo M. Weber, foi com a Reforma que se impds a crenga de que o dever € cumprido em primeiro lugar pelo exercicio de um oficio no mundo, nas atividades temporais, em oposigao & vida religiosa fora do mun- do, privilegiada pelo éthos catdlico. Essa nova concepeao, na aurora do ca pitalismo, teria possibilitado esquivar-se questo das finalidades do es- forgo no trabalho (enriquecimento sem fim) e assim superar 0 problema do empenho proposto pelas novas praticas econdmicas. A concepgio do tra- balho como Beruf ~ vocagéo teligiosa que exige cumprimento — servia de ponto de apoio normativo para os comerciantes e os empreendedores do capitalismo nascente, dando-thes boas razies — “motivacao psicolégica”, como diz M. Weber (1964, p. 108) — para entregar-se sem descanso e cons- cienciosamente & sua tarefa, para empreender a racionalizagao implacvel de seus negécios, indissociavelmente ligada & busca de um lucro maximo, para perseguirem o ganho, sinal de sucesso no cumprimento da vocagio” Ela também Ihes servia porque os operdrios compenetrados da mesma ideia mostravam-se déceis, trabalhadores incanséveis e — convencidos de que 0 homem deve cumprir seu dever onde quer que a providéncia o tenha co- Jocado ~ nao procuravam questionar a situagao que se thes oferecia. Deixarennos de lado a importante controvérsia pos-weberiana, essencialmen- te relativa & questo da influéncia efetiva do protestantismo sobre o desen- volvimento do capitalismo e, de modo mais geral, das crengas teligiosas so- breas praticas econdmicas, para considerarmos, da posigao weberiana, sobre- tudo a ideia de que as pessoas precisam de poderosas razes morais para aliar-se ao capitalismo" Albert Hirschman (1980) reformula a indagagio weberiana (“como uma atividade no maximo tolerada pela moral péde transformar-se em vo- cago no sentido de Benjamin Franklin") da seguinte maneira: “Como ex- plicar que, em determinado momento da época moderna, se tenha chega~ do a considerar honrosas atividades lucrativas como o comércio e o banco, 0 passo que tinham sido reprovadas e amaldigoadas durante séculos, por nelas se ver a encarnago da cupidez, do amor ao ganho e da avareza?” (p. 13). Mas, em vez de recorter a méveis psicoldgicns e & busca, por novas elites, de O espirito do capitaismo eo papel da ertca um meio de garantir a sua salvaciio pessoal, A. Hirschman menciona moti- vos que teriam, em primeito lugar, afetado a esfera politica antes de tocar a economia. As atividades lucrativas teriam sido valorizadas pelas elites, no século XVIIL devido as vantagens sociopotiticas que deelas eram esperadas. Na interpretacéo de A. Hirschman, o pensamento laico do lluminismo jus- fica as atividades lucrativas como um bem comum para a sociedade. A. Hirschman mostra também como a emergéncia de praticas em harmonia com o desenvolvimento do capitalismo foi interpretada como algo compa~ tivel com 0 abrandamento dos costumes ¢ 0 aperfeigoamento do modo de governo. Em vista da incapacidade da moral religiosa para coibir as paixdes humanas, da impoténcia da razio para governar os homens e da dificuldade de submeter as paixdes por meio da pura repressio, restava a solugdo que consistia em utilizar uma paixdo para compensar as outras. Assim, 0 lucro, {que até entdo encabecava a ordem das desordens, obteve o privilégio de ser eleito paixdo inofensiva sobte a qual passou a recait 0 encargo de subjugar as paixses ofensivas”. Os trabalhos de Weber insistiam na necessidade de o capitalismo apre~ sentar razées individuais, 20 passo que os de Hirschman langam luzem so- bre as justificagdes em termos de bem comum. Quanto a nés, retomamos essas duas dimensGes, inserindo o termo justificagio numa acepgao que possibilite abarcar ao mesmo tempo as justificagdes individuais (aquilo em que uma pessoa encontra motivos para empenhar-se na empresa capitalis- ta) € as justificagdes gerais (em que sentido o empenho na empresa capi~ talista serve ao bem comum). A questio das justificagSes morais do capitalismo nao é pertinente his- toricamente apenas para esclarecer suas origens ou, em nossos dias, para compreender melhor as modalidades de conversio ao capitalismo pot par- te dos povos da periferia (pafses em desenvolvimento e ex-paises socialis~ tas). Ela também é de extrema importancia nos pafses ocidentais como a Franga, cuja populagao se encontra integrada, em grau nunca igualado no pasado, ao cosmos capitalista. De fato, as injungSes sistémicas que pesam sobre os atores ndo bastam, por si s6s, para suscitar o seu empenho". A in- jungao deve ser interiorizada e justificada, e esse, alids, foi o papel que a so- ciologia tradicionalmente attibuit a socializagao e as ideologias. Participan- do da reprodugao da ordem social, elas tém como efeito permitir que as pessoas ndo achem insuportavel o seu universo cotidiano, o que constitu uma das condigées para que um mundo seja duradouro. Se 0 capitalismo no s6 sobreviveu ~ contrariando os prognésticos que regularmente anun- ciaram sua derrocada ~ como também nao parou de ampliar o seu impé- rio, foi porque péde apoiar-se em certo numero de representagdes ~ capa~ 41 42 0 novo espirito do capitalismo zes de guiar a agdo — e de justificagées compartilhadas, que 0 apresentam como ordem aceitavel e até desejével, a tinica posstvel, ou a methor das or- dens possiveis. Essas justificagdes devem basear-se em argumentos sufi- cientemente robustos para serem aceitos como pacificos por um niimero bastante grande de pessoas, de tal modo que seja possivel conter ou supe rar o desespero ou o nillismo que a ordem capitalista também nao para de inspirar, ndo s6 aos que so por ela oprimidos, mas também, as vezes, aos gue tém a incumbéncia de manté-la e de transmitir seus valores por meio da educagio. O espirito do capitalismo é justamente 0 conjunto de crengas associa- das a ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa or- dem, legitimando os modos de ago e as disposigdes coerentes com ela. Es- sas justificagdes, sejam clas gerais ou praticas, locais ou globais, expressas fem termos de virtude ou em termos de justiga, déo respaldo a0 cumpri- mento de tarefas mais ou menos penosas e, de modo mais geral, a adesio a.um estilo de vida, em sentido favordvel 4 ordem capitalista. Nesse caso, pode-se falar de ideologia dominante, contanto que se renuncie a ver nela apenas um subterfiigio dos dominadotes para garantir 0 consentimento dos dominados e que se reconheca que a maioria dos participantes no pro- cesso, tanto os fortes como os fracos, apoia-se nos mesmos esquernas para representar o funcionamento, as vantagens ¢ as serviddes da ordem na {qual estao mergulhados”. Se, na tradigdo weberiana, pusermos no cere de nossas andlises as ideologias nas quais se baseia o capitalismo, daremos & nogdo de espitito do capitalismo um uso discrepante em relagdo a seus usos candnicos. Isto porque, em Weber, a nogao de espirito tem lugar numa andlise dos “tipos de condutas racionais praticas”, das “incitages praticas a agao™” que, cons- titutivos de um novo éthos, possibilitaram a ruptura com as praticas tradi- ionais, a generalizagio da disposi¢ao para 0 calculismo, a suspensio das condenagdes morais ao lucto e a arrancada do processo de acumnulagao ili- mitada. Como no temos a ambigio de explicar a génese do capitalismo, mas de compreender em que condigdes ele pode ainda hoje angariar os atores necessarios & formagao dos lucros, nossa dtica sera diferente. Delxa- remos de lado os posicionamentos perante o mundo necessérios & partici- pacdo no capitalismo como cosmos — adequag&o meios-fins, racionalidade pratica, aptidéo para 0 célculo, autonomizacio das atividades econdmicas, relagdo instrumental com a natureza ete,, bem como as justificages mais gerais do capitalismo, principalmente produzidas pela ciéncia econdmica, que mencionaremos adiante. Estas dizem respeito hoje ~ pelo menos entre 6s atores empresariais no mundo ocidental - as competéncias comuns que, espirito do capitatismo eo papel da critica em harmonia com injung6es institucionais que se impdem de algum modo de fora para dentro, so constantemente reproduzidas por meio dos pro- cessos de socializagio familiares e escolares, Constituem a base ideolégica a partir da qual se podem observar variagies histéricas, ainda que no se possa excluir a possibilidade de que a transformacao do espirito do capita- lismo implique 8s vezes a metamorfose de alguns de seus aspectos mais duradouros. Nosso propésito & o estudo das variagies obseroadas, e ndo a des- cricito exaustiva de todos os constituintes do esptrito do capitalismo. Isso nos le- vvaré a separar a categoria espirito do capitalismo dos contetidos substan- | ais, em termos de étlios, que esto ligados a ela em Weber, para traté-la como uma forma que pode ser preenchida de maneiras diversas em dife~ rentes momentos da evoluigéo dos modos de organizagao das empresas e dos processos de obtencao de lucto capitalista. Poderemos assim procurar integrar num mesmo ambito diversas expressGes historicas do espirito do capitalismo ¢ formular indagagGes sobre sua mudanga. Enfatizaremos 0 modo como deve ser tragada uma existéncia em harmonia com as exigén- cias da acumulagao, para que grande niimeto de atores considere que vale a pena vivé-la. No entanto, a0 longo desse percurso histérico, permaneceremos fiéis ao método do tipo ideal weberiano, sistematizando e ressaltando 0 que nos parece especifico de uma época em oposico as épocas precedentes, dan- do mais importéncia as variagdes que 3s constincias, mas sem ignorar as caracteristicas mais estaveis do capitalismo. Assim, a persisténcia do capitalismo, como modo de coordenagéo dos atos e como mundo vivenciado, nao pode ser entendida sem a considera- so das ideologias que, justificando-o e conferindo-the sentido, contri- buem para suscitar a boa vontade daqueles sobre os quais ele repouisa, para obter seu engajamento, inclusive quando — como ocorte nos paises desen- volvidos ~ a ordem na qual eles estdo inseridos parece baseat-se quase to- talmente em dispositivos que Ihe so congruentes. | De que é feito o espfrito do capitalismo t Em se tratando de alinhar razSes para pleitear em favor do capitalis- | mo, logo se apresenta um candidato: nada mais, nada menos que a ciéncia econémica. Acaso nao foi na ciéncia econémica e, em particular, em suas correntes dominantes ~ classicas e neoclassicas ~ que os responsaveis pe- las instituigdes do capitalismo foram buscar justificagées, a partir da pri- meira metade do século XIX até nossos dias? A forca dos argumentos que 43 44 O novo esptrito do capitalismo nela encontravam decortia precisamente do fato de que estes se apresen- tavam como nao ideolégicos e nao diretamente ditados por motives mo- rais, ainda que incorporassem a referdncia a resultados finais globalmente conformes com um ideal de justiga para os melhores e de bem-estar para a maioria. © desenvolvimento da ciéncia econémica, quer se trate da eco- nomia cléssica ou do marxismo, contribuiu ~ conforme mostrou L. Dumont (1977) — para erigir uma representacdo do mundo que era radicalmente nova em relagao ao pensamento tradicional e marcava “a separagao radical entre os aspectos econdmicos do tecido social e sua construgao em domi nio autdnomo" (p. 15). Essa concepgao permite dar corpo & ctenga de que a economia constitui uma esfera autdnoma, independente da ideologia e da moral, e que obedece a leis positivas, deixando-se de lado o fato de que mesmo essa convicgio jé era produto de um trabalho ideoldgico, e que ela 86 pudera constituir-se incorporando ~e depois encobrindo com o discurso cientifico ~ justificagdes segundo as quais as leis positivas da economia es- do a servigo do bem comum". Especialmente a concepgao de que a busca do interesse individual ser. ve ao interesse geral foi objeto de um enorme trabalho, incessantemente retomado e aprofundado ao longo de toda a histéria da economia cléssica Essa dissociagdo entre moral e economia e a incorporaco & economia (no bajo desse proceso) de uma moral consequencialista®, baseada no céleu- lo das utilidades, propiciaram caugao moral as atividades econdmmicas pelo ‘inico fato de serem lucrativas". Se nos for permitido um resumo rapido, mas capaz de explicitar um pouco melhor o desenrolar da historia das teo- rias econémicas que nos interessa aqui, pode-se dizer que a incorporagao do utilitarismo & economia possibilitou considetar como ponto pacifico que “tudo o que 6 benéfico ao individuo é benéfico & sociedade. Por analogia, tudo o que engendra um Iuero (portanto, serve para o capitalismo) também serve para a sociedade” (Heilbroner, 1985, p. 95). Nessa perspectiva, s6 0 crescimento das riquezas, seja qual for o seu beneficirio, considerado cri- tério do bem comum”. Em seus usos cotidianos e nos discursos piiblicos dos principais atores responsaveis pela exegese dos atos econémicos ~ di rigentes empresariais, politicos, jornelistas etc. ~ essa cattilha possibilita as~ sociar, de maneira ao mesmo tempo estrita ¢ suficientemente vaga, Iucro individual (ou local) e beneficio global, para evitar a exigéncia de justifica~ gao das agdes que concorrem para a acumulagao. Ela considera ponto pa- cifico que o custo moral especitico (entregar-se & paixao do ganho), mas di ficilmente quantificdvel, da instauragao em uma sociedade aquisitiva (custo que ainda preocupava Adam Smith) é amplamente contrabalangado pelas vantagens quantificaveis (bens materiais, satide...) da acumulagéo.Também O espirito do capitalismo e o papel da critica possibilita afirmar que o crescimento global de riquezas, seja qual for seu beneficiario, é um critério de bem comum, conforme reflete cotidianamente. o fato de se mensurar a satide das empresas de determinado pais pela sua taxa de lucro, seu nivel de atividade e de crescimento como critério de me~ dida do bemn-estar social”. Esse imenso trabalho social realizado para ins- taurar 0 progresso material individual como um ~ se néo 0 ~ eritério do bem-estar social permitiu que o capitalismo conquistasse uma legitimida~ de sem precedentes, pois assim se tornavam legitimos ao mesmo tempo seus propésitos e seus mébeis. Os trabalhos da ciéncia econémica também possibilitam afirmar que, entre duas organizagSes econdmicas diferentes orientadas para o bem-es- tar material, a organizacao capitalista é a mais eficaz. A liberdade de em- preender e a propriedade privada dos meios de produgao introduzem no sistema a concorréncia ou um risco de concorséncia, Ora, esta, a partir do mo- mento em que existe, mesmo sem precisar ser pura e perfeita, é 0 meio mais seguro para que os clientes sejam beneficiados pelo melhor servigo a0 me~ nor custo. Por isso, embora orientados para a acumulag3o do capital, os ca- pitalistas se sentem obrigados a satisfazer os consumidores para atingir seus fins. E assim que, por extensdo, a empresa privada concortencial con- tinua sendo considerada mais eficaz e eficiente do que a organizagao nao lucrativa (mas isso tem o prego néo mencionado de transformer o amante de arte, o cidadao, o estudante, a crianca em relacdo a seus professores, 0 beneficidrio da ajuda social... em consumidor), e a privatizagZo e a mercan- tilizagdo maxima de todos os servigos mostram-se como as melhores solu- Ges do ponto de vista social, pois reduzem o desperdicio de recursos ¢ obrigam a antecipar-se as expectativas dos clientes” ‘Aos t6picos da utilidade, do bem-estar global e do progresso, mobili- ziveis de modo quase imutavel hé dois séculos, & justificago em termos de eficdcia sem igual na oferta bens e servigos é preciso acrescentar, evidente- mente, a referencia aos poderes libertadores do capitalismo e a liberdade politica como efeito colateral da liberdade econdmica. Os tipos de argumen~ to apresentados aqui fazem mengio a libertagao constituida pelo sistema salarial em comparacao com a servidao, ao espaco de liberdade permitido pela propriedade privada ou mesmo ao fato de que, na época moderna, nunca existiram liberdades politicas, a nao ser de modo episédico, em ne~ nhum pais franca e fundamentalmente anticapitalista, ainda que nem to- dos os pafses capitalistas as conhegam® Evidentemente, setia pouco realista ndo incluir no espitito do capita- lismo seus trés pilares justificativos fundamentais: progresso material, efi- cdcia e eficiéncia na satisfacao das necessidades, modo de organizagio so 45

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