Você está na página 1de 191
DOCUMENTARIO NO BRASIL Tradic&o e Transformacao Francisco Elinaldo Teixeira lorganizador} saitortal encnensio no aast is» ane Copyright © 2004 by autores Delos desta edi reservados por Summus Editoriat, Capa: Magno Paganelt Ecitragi efotlits: Al Print Summus Editorial tamer str: tu co Sardar ‘ogee se raga "St Tove tae fae (ayaa are itp een enn amecsnmaas cea. erin cosa rere) Sa 0 vend porta: foo aarsaase ax (a) serene ema wedbudazam cone Inpresto no ras Sumario Tnvrodugio: Cultura audioviaual polfonis documenta 7 Franco Elinaldo Teiscira -METAMORFOSES DE UM GENERO: DOCUMENTARIOS EM TEMPOS DE PROLIFERACAO DOS HIBRIDOS Eu ¢ outro: dacumentirio enarativa indies livre 29 FrancicoElnalds Teiseira [A migra das imagens « Jean-Claude Bernardes Cinema Verdade no Brasil at Fernda Pesoa Ramo “Tendéncias do documentito erogrsico, 7 Patricia Monte Mar DAS POETICAS DOCUMENTAIS EXPERIMENTAIS AS ETNOGRAFIAS FILMICAS ESTRATEGICAS (0 documentirio como fonte para 0 experimental no cinema de Arthur Omar n9 Guiomar Rams ‘A imaginagiocinematogrifca em Di-Glauber Teaé Matte ( cinema de Eduardo Coutinho: uma arte do presente Conmelo Lins Leon Hinsaman: em busca do dslogo Arti Aueran elexa ¢ poder: ot documentitos de Joaquim Pedro de Andrade Luciana Corts de Areijo Humberto Mauro © o documentitio. ‘Sil Sehvarcmae 0 documento segundo Cavalcanti Claudio M. Valentine Luin Thomaz Reis: etnogafas flmicas estas Fernando de Tacea Referencias bibliogrfics. 179 a 27 313 Introdugao Cultura audiovisual e polifonia documental Franco Elinalds Teiseira A\ cotinsdecosis qe eto en gem is cans soe um amin ur ei care vo mo Sno slloalcomenprie edo donee: aw poles aoa re el eral Spree Sap ds ease mntas cede Seals com ectuiate read prec Gar spp nvm ii, sim co ieee alana cents de pie, © ma eco tne fc ow some ni sv tare ens Sn fim nena ra npr pra se gue noe domino ines pees deg sds her codaner cnn cl sua Oui ome dade snp cme se cme mn Dita dy dus perms def clae irda» camped neuer apn © ncn de novus da vad vias eres tendo compondo ee rd de gande npc dolmatsdenpermonos camp img fume mee sv un mpenear sas poe “Tamanha imponéncia do documentirio no presente tam- bbém reverberou com forga no ambito da reflexdo, pressionando teéricos, pesquisadorese crticos a uma reviséo de procedimen- tos € concepgées que por longo tempo o tomaram ¢ o situaram ‘como uma espécie de “primo pobre” do “verdadeiro cinema” 6 ficcional. Os efeitos dese parimetro exclsivsta sobre as sub- jesividades artsticas foram duradouros; ele impregnou de ma rcita tio veemente ¢ imperativa o devit-cineasta daqueles que buscavam no meio um modo de expressio e profisionalizayio que o exercicio do documentitio, durante muito tempo, embo- ‘a.com poucas mas relevantes excegSes, nfo passou de um pas saporte para o longa-metragem de fccio. constitu, entio, uma meia-identidade do ser cineasta, que mal se sustentava na relacio especular mantida com a “arte maior” do cinema, ‘Determinante nesta ctcunscrigio foi um ponto de inflexio «que, no decorrer dos anos 20 do século passado,veio indie 0 ci- nema em duas modalidades — cinema de fcsi0 ¢ Cinema de Realidade. Era © momento de jbilo ¢ comemoragio da conguis- 12 da narraividade, ou sea, quando o parimetro narrativa se im: 16s, quando o dispositivo de associagio linear entre imagens, tt pico do saber contar histéria herdado da lteranura e do teatro, cstabeleccu-se. Tal intituig jtivera inicio a partir do final da primeira década do século, quando entio se comegara a deixar para tris © periodo anterior como uma espécie de proto-histéria dda imagem cinematogrifica, um proto-cinema em sua feigio de ‘engenhoca agora oxidada pelo tempo, quando muito a testemt- rnhar @ wansformagdo da mera técnica em arte. [Nao foram poucas a vores dissonantes frente 20 contexto publicitério que propalava as prerrogaivas da ima conquisa ‘Uma delas, a de Antonin Artaud, foi falminante, Acompanhan- do tis processos na qualidade de teéico, roterita ¢ ator, Ar- documentarista taud nunc se animou muito com 3 pura “visualdade” do cine- ima, um mezo cto de superficie para um disposivo que ele conccbia como “atuando diretamente sobre a matéiacinza do cércbro” algo de enorme atalidade em nossa era informacional determinada por “miquinas cerebrais?). A congust da nareate vidade para ee, portato, era reptessva, como o er, jgualmente, a recs da fcgo em favor da realidade. Fosse “dramétco” (de fig) ou “documenta” (de realidade), tal como ele repartia as das modalidades em confi, 0 que o cinema suprimia em am- bax ers. o acto, oimprevs, a atmosferavsiondra da poesia, © poder da imagem de produzit um chogue, , emo “onda ner- vos", como “vibragio neurofisioligica", fier naset © pensi- ‘mento, Era, conc, o limiar da “velhice precoce do cinema” Pasolini retomae recodifca aspects nodasdeses debates, dese © patamar de uma nova inflexio operada pelo cinema de autor tos ans de 1960, quando eno rerorna Bs imagens inaugurais do cinema para falar da domesticasio das forgs dsruptivas de sua “poesia” em prol do estabelecmento da “pros” cinemato- guifica. Ea naceatvidade, outra vez, posta sob o fogo eruzado dhs perdasnela implicadas, e que um “cinema de poesia” vinha (0 que de alguma forma se pe em curso nesses embates &a rencativa de romper com essa linha evolutiva que parte da singe- leza de um proto-cinema, deixado para tris como mé-formagio descartivel,¢ culmina com a complexidade da narrativa cinema- togrfica conquistada, Pouco mais de uma década apés os esfor «98 de Pasolini em restn final dos anos de 1970 iniciam-se uma sie de pesquisassiste- © cinema sua poesia de origem, no sndtcas que visam, justamente, a esse cinema dos primei 1. Antonin Arad, La weir precoe del ine 2 Pher Paolo Pasolini, cinema deposi pos ~ ou “primero cinema" E 6 que els vém descontinar € esa poténcia disupciva das imagens inaugurais do cinema, 2comple- sidade de um mundo audiovisual nascene, desancando de ver 2 familar visho que por décadas o havia siuado no limbo do pré logic e do pr€antstico, do informe e malconsiuido a que tinha sido rlegado desde a conquista da narratvidade, Novo co- ‘ego, portanto, pars histéra do cinema, com as mips re verberages e deteminages que imprimird na vasa cultura au- diovisual moderna a0 longo do stulo Signiiaivamente, tas pesquisa so concomitantes aos ric dlosos remanejamentos que se comesam a procesar no campo audiovisual pela emergécia das exéticas vdeogriicas, primero ‘com a imagem cletdica,c, logo a seguir, com a imagem digital Os nivcs de exratifiasso do campo adquirem em pouco tempo ~ dos anos de 1980 em dante uma espesura de tira 0 fleg, quando entio o tema da hibridaio dos meios, das eticas, das formas, dos processos artistic, técnicos ¢ informacionais néo patou mais de Langa desfios 20 pensamento, sea na esfera da cvigio,seja na da tflesio. A sensagio que se tem é a de um. complewo desblogucio em rlacfo 3longa tadigio do dispositive rego da yb, daquilo que er tdo coma transgressio wlejan- te, 08 ej, a miscigenacio como violagio das leis naturis, na ‘medida em que no se parou mais de reitera, em todos 08 qu2- drantes e por cima de toda divesiade, 0 mote da "prokferagio dos hibridos"* Durante séculos, marcada pelo selo da regres Sivdade, a hibrides, pervrsamente, adguite hoje sua plena posi- Gividade até noe processos mas infimos que se operam em nivel ‘enético-molecuar, com a natures ea cultura transmutando-s¢ chs préprias em hibridos. 3 Fla Coarino Cont O primes nme: pat, nema, domenica 4. Bruno Latour, Crs E possvel que nese leitmoto da proiferaio dos hibrides repercita uma forte sensagio de esgotamento em relagi0 20 aft moderno de busca do novo, i aitudes vanguardistas de afi smagio de um gra zero da eriagfo, quando enti se insti sama poltizacfo entre o peso morte de uma tadiio que sere casavarse a inovar ¢ investimento nos poderes de uma acla mada novidade. Essa ¢ uma das lnhas de forga do pensamento piemoderno, Seja como for, a nogio de uma crasfo demitrgi- ca, absolut, hi tempo entrou em erosio « cain de corto, Como afirma o hstoridor da cultura Peter Burke, em sua ani- lise da atulidade como bricolagem e einvengio de uadigies, 0 mundo cultural é “uma espéce de canteico de obras onde os andaimes nunca sio desmontados porque 2 reconstrugio cultu- «30 como recragio continua, ral nunca termina” E ac portanto ‘A atualizagio das virualidades soverradas do “primeieo cine- ‘ma’, cuja riqueza de formas e procedimentos veio compor 35 tantas estratificagbes que sacuditam 0 campo audiovisual con- temporineo, repercutix forte no documentirio. Operou-se um remanejamento de sua histéria, ue quase sempre comesava com ‘ tema difuso dos “filmes de viagens”, dos relatos sobre mundos afastados, e aos poucos foi adquitindo a consciéncia de uma et- nografa do exético/distance em Robert Flaherty, do préximolfa- riliar em Alberto Cavalcanti, Dziga Verov, John Grierson Era a histéria do documentiio enquanto autoconsciéncia de ‘uma modalidade especiica, com procedimentosdistnto,firma- dda quando da cisio entre fcgio e realidade nos anos de 1920. [Acualmente, rato & 0 empenho de histéria do documentério que ‘foo situe como um “género” inaugural do cis do a cortoboragio de sua “objetvidade” no at ‘spontineo” de 5. Peer Bute, "Brclager de wads". Fae de.Pao, 18 ma. 200 ‘volar a cimers para uma coriqucra« mundana chegads de um tem a uma esta, para una otdiana sada de operrios de seu Joel de wabalho ete. Ou sea, 0 documentirio repsise agora seta nascido jf com os filmes dos imios Lure Tais remanejamentos na hiséria do. documento, que plem em agia 0 dispostva do lasro temporal oslo de anti- suidade no qual se adentea uma forma arses, tornam-se mais reteratvos quanto mais o género ocupa tm higar de relevo na reflado da produsio audiovisual contemporinea, quanto mais se altera seu regime de producio de imagens e ganham comple dade seus procesos construtivs. De fit, poderseiaafiemar, 2s creunstincas sf de extrema saturacio visual, com as visas ‘muita vezesansiosas por uma paisagem mio vista onde ancorae tum cansago extenuante E assim que o recuo ds pisagens org dras da imagem, que 0 desejo de cortespondéacia costuma des pit de toda complexidade para a visa poder alcangar sem abst clos, tome um kiomoriv que vem funcionar como uma ‘specie de lenitivo para os olhos. © sinico sendo € que, em termos culursis, de educasio do olho, o isto & quase sempre um jf isto, um vist coado por uma visio anterior. Desse ‘modo, as bess (ou fis) paisagens origina da imagem, se por tum lado podem desencadear todo um documentirio de desco- ber, por outo, ase permaneeer no puro embevecimento da dlescobera ¢ se Fazer tdbuls rasa de sus promessas como ainda io cclzadss, também podem constitu um blogucio 3 emer sfncia de um documento de invensfoteinvengto. sta senso de uma vida eapeurads numa paraferdlia de dlsposiivos que bloguctam a expansio de suas forsas nio € recente. Ao contra, foi hastante diana ao longo da moder nidade téenico-arstica, para fica apenas num recore mais pro- imo, quaseinvaiavelmenteassociaa 8 afirmacio das preroga- tivas da novidade emergente. Ela se confunde, asim, com sim ssraoougan 13 ineento de lustragio da opacidade dos sentidos que pretende Fazer brilhar o novo em sua total e inédita transparéncia, pouco antes dele se rornar objeto de incontida discursividade que o conver ‘e-em cdnone ¢ 0 langa novamente, por efeto de saturagio, no Jimbo. No campo das priticas audiovisuais, o documentirio, repetidas veres, foi codificado enquanto um dominio dos mais ppopicios A manifesagio da “vida como ela ¢. Falando da enorme novidade, “verdadeira revelagio" que foi o filme Ne- ‘ook, comparando-o em impacto 20 que foi para 0 pibico pa- risiense os “primeros filmes dos irmios Lumitre”, € Cavalcanti «quem afirma Pois bem, para nés, os das audincias de 1923, Nanoot era “a vie tlle méme”,Sabiamos que o filme tnha sido completamente re- feito apds um incéndio do negativo e que o seu relzador no 6 ‘ha hesitado em enfientar novamente um wabslho difitimo. E Robert Flaherty tornou-se logo um personagem legendiro. Nés, {gue na confasto do grupo Avant-Garde uivamos conta o filme “arco”, o filme licertio, o filme restral, compreandemos que 2 solugio que procurivamos ali estava com toda asa admirivel simplicidade, com toda poesia de verdadiro drama cinemato- _grifico, Os filmes de entiotinham uma parafrnli, hoje esque ida, de fasdesbrancas, de molduras que varavam do binculo ‘duplo (nunca se soube por que este era sempre opicamente du plo} ou do buraco da fechadua, aos txpticosgticos. Cheguc a ver uma coroa de serpenes em torno do primeto plano de uma “samp”. Jer tempo que a imagem na ela fossevariada de tudo ino, O estilo de interpretagio também necesitava de conto com 4 reildade. Os temas dos Feuilade, dos Poitier, dos [Herbier e dos outros sets extavam muito longe dos verdade: to ema cinematogrico, Naot nfo pi ter io uma mais oportuna 6 Allee Caazani,O filme documento, ctvo em 1936, aualizando uma senagio de 1923, o texto dle Covalent tesa 0 quanto o parame fcional, om soa pa- rnferia de arf, esto, vamp et. hava invadido e tomado © lugar da eaidade. £, eno, quando o mote do“ vida como ela, ‘que duas déadas€ meia antes embeveccra 0 pblico das primeias projets cinematorifis, vem contapor a exe ego precoce- mente sacarado da imagem em movimento os prvlgios do nate ral da filmagem em locas, do clenco nio-profisional, tornan- dos conelatos de bse do documenta, doravant astocado a todo tum requstrio de auseriade, despojamento, sine, depuraio, auséncia de omamen Tas pré-condigies ou elements primiios «qe disinguiram da em dante um flme documenro de um fle me de fio constvem elements genéicos, premonitéros no ‘ampo audiovisual, do que poserionment (meas dos anos de 1960) via a ser chamado de minimalsmo ou minimal a, © que uma vee mais, pretend fier fene a um estado de exces esa ragiorevberado nos manismas da pop art Enutetanto, "avid como ela "nos anos de 1920 jf no era mesma do final do século anterior, como no seria a mesma no pés-gurta, nos anos de 1960 ¢ nos das de hoje, oportunidades, em que nio se dexou de tetera ese mesmo moto-continuo para sintedzar uma suposta eséncia do documenttio. Enga- nse quom toma aqueles princpios de base como equivalentes «de uma arquitetura documenta firmada na espontancidade ¢ob- jetvidade da imagem, quem toma despojamento por simpli ‘aslo, 0 vivido imediato como expressio artistica em si. A vida ‘uae crua jamais propiciou e sustentou alguma arte de imeresse duradouro, a nlo ser quando se deixou passar pelo erivo de um trabalho de tansformasso, de transfiguragio. As condigées de reinvengio na arte, portanto, esto implicadas com uma nova combinatiria de elementos que vem revolver um solo fiemado € langar por sobre ele novasestratifcagbes E assim tem sido em relagio 3s metamorfoses no campo do documentirio, Embora a principio reclamando para sia reali- dade direta contra 0s atificios da feo, o vvido imediato con tra a sua recomposicio em estidio, tis reclamos foram catalisa- ores de mudangas que afetaram a ambos € uma espécie de minima fiegio” jamais deixou de alimentar¢ realimentar 0 do- ccumentirio ao longo da trajetéria desses embates. Nao da mes- rma forma, & cero No pésguerra, com o cinema neo-tealista, foi a ver da fice go reclamar paras as premissas do documentirio, 20 impregnar suas nartativas com 0s signos contundentes de uma realidade em rufnas e suas demandas de reconstrugio. Nese sentido, 0 Neo- realism constituiu um ponto de inflexio da imagem audiovisual fem que a oposigio de base realficcional perdeu 0s fortes contot~ nos adquitidos duas décadas antes Mas nem por iso deixou-se de retomnar ¢ reterar a antiga ‘oposigio quando da revolucio na base técnica, com a miniaturi- acto dos equipamentos, que veioalterar sensvelmente a relagio entre imagem ¢ relidade, Al, por volta do final dos anos de 1950 ¢ inicio dos anos de 1960, outra ver os privilégios do real/diteco foram reivindicados pelo ji mum contexto de revravolta no Ambito da narcativa que s6 por inérca lingistica reverberava ainda a antiga oposigio. Ou seja, 0 que neste momento chamow-se de Cinema Direto, Cine- ‘ma Verdade ou Cinema do Vivido, na Europa ou Amética, nfo eve mais 0 mesmo sentido daquele descjo de decolagem de {quatto décadas antes. O que estava em jogo no era mais a opo- sigfo entre ficsi0 e realidade, com ambas as modalidades cine- rmatogricas correspondentes, mas sim mudangas substanciais 1 regime narrativo que ateraram por completo os termos dessa relagio, E por mais que se fale de rupeura definitiva com as so- bras de ficgio que insstram da heranga flahertyana, de rupcura inema documentitio, mas ‘com 0s restos ilusionistas da herangagriersoniana, “dieto"/“ver dade"I"vivido", s6 muito superfcialmente podem ainda remeter 30 antigo desejo de poder captar uma realidade/vida nua e crua, bbruta, “como ela €°. O Cinema Direto, com seus planos fecha- dos de uma clausura de loucos, de um ambulatStio ou de uma penitencidia agricola, apesar de todo o reivindieatério do prinet- pio da nio-intervengio, mal consegue esconder a forte dose de plsio escépica investda e mediada por uma clmera estatelada diante da cena do mundo, © Cinema Verdade, a0 contitio, ‘como tum dispositivo intervencionista que cia recortae se inclu no acontecimento em curso, picotando espagos e tempos, falas € ruidos que se amalgamam numa montagem reflex, vem expor 0 labirintico trabalho de construgio que jaz por sob qualquer ver dade que venha tons, mais ainda quando ea se fax no campo audiovisual, Portanto,seja teiterando a profissio de fé da recusa de re composigio dos fatos vivides operada pela fic (Cinema Dire- to), seja ainda diante da “angéstia do ilusionismo” que apela ‘para a auco-efleividade (Cinema Verdade), com ambos aden- trou-se numa transformagio no regime da imagem que veio transcender as dicoromias origindris. Doravante, 0 tal/direco do documental e recompostofindieto da fcgio jé no puderam ‘mais demarcar,conforme o requisitio anterior, modalidades tio dlvergentes de exercico da imagem audiovisual, quando entao ela comegou a tomar a feigio de um “discurso indirero livre” que no mais cessou de variar aprofundar seus procedimentos. E asim {que se pode entender uma avaliagio como a de Godard: "Sempre pense que o que se chama de documentiri e © que se chama de Ficgdo fossem para mim dois axpectos de um mesmo movimento, © sua ligagio que cra verdadeiro movimento"? 7 Jean-Luc Godard, Ida «wma verdad hired cinema Hi quem faga dessa nova infleio no campo do documen- titi, operada pelo Cinema Direto/Verdade, uma espéce de ho- rizonte de nosso tempo documental, se no insuperivel pelo menos produtor de fortes reverberagSes até a atalidade, de- terminando ainda boa pare das produgées nese campo. Mas atengio: al {que canoniza uma forma surgida num determinado momento, faz dela um modelo do qual surgem as formas que Ihe sucedem, ‘mantendo inalterada a esferarepetiiva da representa. E assim que, segundo ela, er-seia, com um duplo gope, eliminado os resquicos de encenagio do vivido que pesisiam como materia de composigio do documentitio e,simultaneamente, o horizon- teilusionista que durante décadas sustentara os rclamos de vera- cidade da narrativa cinematogréfica. De um lado, os privilégios redivivos do aces diet &realidade: de outro, fizendo-heFen- te, a panactia do dispositivo de reflexividade, Aqui vale lembrar as proposigdes de Pasolini a respeito da normatvidade das for- sas cinematogrfieas. Relativamente ao alto nivel de articulagio do sistema de uma lingua diz le ais formas possuem uma ss- tematizasaofrouxa eefémera, 0 que faz que sas convengées jam postas constantemente em cheque € ultrapasadas “sem ex- cesivo escindalo”, impedindo que se firme “uma tradigio esilitca secular, mas simplesmente decenal"® Ora, cerca de quatro décadas se passaram desde a afiemagio do cinone do Ci nema Direto/Verdade. Estarse-ia vivendo ainda sob 0 influxo — se nao exclusiva ~ intensivo e extesivo de suas formas? oincidéncia ou nfo, 0 contexto atual é também de reno- meagio do documentiio para “cinema de nio-ficgi0". Ou sia, novo nome para algo que continua ase remeter 3 velha oposicio. E cero que a ampla cultura de reciclgem do momento sustenta ainda ¢ tebutéia de um tipo de procedimento 8. Pier Paco Pasolini op. ci sem problema este tipo de encontro (do velho com o novo). Mas ambém & certo que, em sua ambigncia de “redescrgio” de tudo, rela o trabalho conceitual, atento 3s complexidades do pensa- mento, nio é mera questio de renomeagio. Paradoxalmente, ‘ste é ainda um momento em que de todos 0s lados, tanto na produgio documental em si quanto na produsio teérica, o que seem observado ¢ um “retorno” contundente da fies, da fa- bulagio, da pequena encenagéo, do pequeno drama, da tecom- posigio do vivide como procedimento integrante do material de filmes documentirios Para o leigo pouco habituado ao in trincado desta histria, a jd antigo vaivém de realidade e fio ria imagem, 0 diagnéstico, corroborado pelo pensamento da época,é 0 de "confusio” entre ambss. O que, sem divida, é ge- rador de um certo estranhamento para quem se habituou como cspectador a uma visio exclusivista desses dominios; mas € um ‘stranhamento que, felizmente, pela mudanga que opera nos habitos, em sido extalisado a favor da ampliagéo da audigncia do documentiio. Eniretanto, c 0 caso nfo chega a set de confusio entre reali- dade ¢fiogio, 0 que hi & um jogo cada ver mais labirintico de “indisceribilidade” de ambas;¢ isto porque nem uma nem ou ‘ta consegue mais, por s 6, dar conta das virrualidades de sent dos que extravasam dos temas, objetos © agentes implicados « {que os enredam em vitios nds de tendéncias, istaurando 0 que se podetia nomear de nova sensibiidade documental ampliada, Sensibilidade esta que tenta se delinear em meio a um movi= mento vertiginoso entee um real gue insist, persist, resiste coma sobra, resto (nosso real habitual, cotidiano, banal), € uma ‘urbulenta realidade virtual em fuga, atualizando-se de modo in- cessante para logo tomar a0 problemaico, e que vem langar essa sensasio de confuso a0 ultrapassat em muito a dicotomia radi- cional que repartiafcgio erealidade Poranto, a psisagem documenta asl nfo se ergue num hovizonte candnicotiica, mas nama mlipliidade sem prece- dents de formas, certamente como algo que se deou afetat abrivpassgens por ence at tantasondulagese revolues da Cala audovistalcontemporines. Nunes se prods tantos ddocumentiros, nunca se disas de anos soporte mia (ql rmios,eletnicos, digits), inca um regime imagtico pro- piciou tamanha variagi evi, Das formas faberyafier Sonianas revstads, do. compenetrado Cinema perambuante Cinema Verde, dos mes de montagem quer iterrogam os aguivs audiovsiais As posicas experiments peformatcas qu sacodem a igniicagesdominants 0 campo flo documentiiodigrama-se como uma va ¢polifnica rede de produgées urdida na conreaséo de decobera © invensio, tradigio ewansformagso, referencia, asim, num tipo de tem- poraldade bastante dverso do pado exclusiva moder ‘Nese context, ser dacumentatia, 20 iavés da Fxagio me- Iancéica anterior numa meis-idemtdade do set cineasa, vio convererse num momento pleno de ama de uma subjei- vidade area "A caletnea de textos de que dsp ago o str atéme a esses avatars de histriae devi do documento, mas com wma artclasidade: a de ser invenro percrso eagados & pani {k produgio document braira, Unica em 3 propést, pea do exenso lst formado ¢ tasformado a0 longo de dé ‘adas, com ela pretende-se inca 0 preenchimento de uma lai tu injstifiiel no campo eitria, no datefleo eno de obras de referencia, camo para a pesquisa sstemitica quanto para quel ipo de vsada mais informal embora cio e intressada ‘scar de aalises no mbito da produio document! local difeemement do que ocorte no campo do audiovisual de iso, ‘em rebaternosmeandros daquelacrcunscigi que até recente ‘mente, conforme me teferi antes, concebia e simava o documentic tio como “arte menot”, desprovida de interes socal © com au- dignca ral. Jusificaivas hoje posasabaixo uma a uma, [Em seu conjunto, a aniises aqui presentes recobrem cerca de oito décadas da produgio documenta realizada no Brasil, dos primcios filmes feito pelo major Thomaz Reis para a Comissio Rondon aos ilkimos de Eduardo Coutinho. Tal incursio opera nas viras interfices de histéra,teora estética do documenté- rio, compondo um quadro amplo e minucioso de suas miltplas formas e meramorfoses. Sim, temos uma tadigio que recua em relagio 3 arquime- diana referéncia &s produgSes do Cinema Novo, asim como a sua transformacio para além delas. Refiro-me, aqui, & priticain- crustada na historiografia audiovisual brasileira, instauradae fi ‘mada pela auto-referncia cinemanovista, que confunde devi do documentétio com o devi do Cinema Novo. Tudo se pass, nese encémio reflexivo, como se 0 momento disparador da ayto-conscigncia de uma forma coincidsse com © momento inau- gurl de sua ierupgio. A conflugncia da emergéncia do Cinema Novo ¢ do Cinema Verdade contibuiu, sem davida, para que isso se fiease No entanto, como se vers com os enssios aqui reunids, a produgio © um certo padrio cinemanovista de document constituem um ponto de inflexio relevante, mas no tnico, nem antes, nem depois. No final dos anos de 1920 e inicio dos anos de 1930, 0 debate em torno do fizer cinema de Fiegio ou Cine- sma de Realdade ~ as prerrogativs de um ou de outro ~ atuali- 1201s aqui 20 modo da oposigio "posudo” versus “natural”, que «se desdobrava no que era. 2 atvidade propriamente “artistca", no ‘azo do primeito pdlo, e a mera atividade de “cavagio", no caso do segundo. A afirmacio do documentirio, asim como a con- versio de seus opositores, apenas se deu através da conjungdo de uma sie de fore, marcadamente legislative, que 0 encamic sharam para a modalidade espetfca do “cinema educativo", conforme o texto dedicado a Humberto Mauro. No final dos anos de 1960 ¢ inicio dos anos de 1970 uma rupeura se deem relagio a um patio "socioligio" de reiagio documenta ‘om 0 surgimento de uma muliplcidade de tendéncias que De fato, nos quatro tlkimos eapitulos do livro de Bernatdet, € a problemitica do outro que se impseinteiramente e sobresai em tiulos como *A vor do outro” (Tarun, Jardim Nove Ba- Jia), “A outra vetente” (O velbo eo novo, Cultura eloucura), “O ‘outro € um segredo? (Gilda, Destrugao cerebral, Jad, Mito ¢ me- tamorfse das maes nag), "O intelectual diante do outro em gre- ve" (Os quexadas, Greve, Porto de Santos). O movimento que se observa nessa altura das andlises de Bernardet em rlasS0 a0 seu ponto de partda, © modelo sociolégico que objtifica 0 outro, é, por um lado, © outro se exguendo come sujeito no apagamenta do cineasta (caso de Jardim Nowa Bahia, de A. Raulino, que cede a cimera ao personagem), e, por outro, rsistindo & sua decifia- ‘o enquanto se pe como “consciéncia indevassada”, enquanto aleridade radical (Gilda, Desruigdo cerebral, lad, Mito ¢ meta- orf.) ‘Numa sintese final de seu percutso, Bernarder destaca trés clementos de rupeura, no nivel da “linguagem”, entre o “modelo sociolbgico” ¢ a5 “diversas tendéncias posterioes": 1) “deixar de acreditar no cinema documentério como reprodusio do real tomé-lo como discurso e exacerbi-lo enquanto tal"; 2) “quebrar 6 fluxo da montagem audiovisual e desenvolver uma linguagem bbaseada no fragmento ¢ na justaposiglo"; 3) “opor-se & univeci- dade e trabalhar sobre a ambighidade”. Nao € diflell perceber, no inventirio dessas meramorfoses, coda uum trajeto histérico da forma-documentirio que vai do discurso mimético-reprodutivo a0 artefato, 20 metacomentirio, & intervengio deliberada © 08 tensiva do cincasta, 5. Gilles Dee, As poten dob. p18. “Traar tl tnettio hstrco consti, de fo, 0 propésio ras amplo da pesquisa de Da-Rin, eujo tio ¢ Fpl parte radio ¢ ansformagio do documentri cinemaugrifca® Mas agui fcaremos apenas no recorte dado por este ensiio sobre "Auco-teflexvidade no documento”. Da Rin retomae subscreve vitosaspecos dos dis textos de Omar ¢ Beard, juntamente com uma série de fomes, marca damence americanas, sobre » dacumentito contemporsneo. De Bernat ele reafrma a ruptra,naforma-documentiro awa, em elagio & univocidade e totalizagio enquanto “caracteritcas aque pontuam toda a histéria do documentirio", com 0 ralce dado 20 trabalho sobte « ambivaléncia, No caso de Omar sua avalagio € mais polémica, Ao tenarconfgurar o peti de “do- cumentitios auto-relesvos", dacumentirios de ruptura com 0 ‘none clisico inscrita no proprio tecide do filme, Da-Rin afr- ra que atéo “inicio dos anos de 1980” nao se fez por aqui uma problematizgio desse cinone, e que o “cinema etnogrificoe so- A partir desses deslocamen- tos, Deleuze pode, entio, nfo apenas recolocar a relagio entre a subjetiva indireta livre do cinema e © discurso inditero livre da literatura sob uma perspectiva diferente da de Pasolini, no limite 14. Pc Polo Paolini, pt p 146 15, Delewe reams, cm cs cer, uma daborgio de Bergson sobre a “fabulago como una fculdade vont muito diferente da magi co, que conse erm car dss egiganey, ‘potncias emi-pesions ou presen fice cade ea ie "ie entceincalmente nas el [Beas deserlteacemente ne arte em erat” Gils Dele fee Flix Guar Prep fect ¢ cones, p23, oa 8, Langan abo or proetimens no Ambo de ume nde blade, mas sro, rsisndo ns novo cinemas capac dena do ut, da cif, la vader exhorts ete es paar do cna fbulgs propi dis ponagesengunto ont ar inveneo de novos “poreuments, de um dvr pore. nfm, named cm que dsl do ems preene,ce no preset tl cmo x6 acon nos “les mu" sounds crc odatdan, qe soja ine led ema ea 1 condor de una nova Imagem-empo dre, acm Dee, numa “mesma tnnsfnmasio ates o ema de fe Gio co Cinema de Redd c conf sus irons om todo cine comand “um dcr indore operand ina realidade”. i Documentarios em tempos de poéticas hibridas Eat tkimas conchae de Deke, dein dos aos 80 consiuem pei importants de uma aguclgia do presente da imagem document ede fxma mas abrangen da mage cinematogfies de ue sus di Ios traam, Def ape final do volume soe a imaem-empo, eas tats dex connie rps gies ene 0 cinema cle me deme, vols aspen damage leona emerge par indi ue orf bala wl com que ves Signor comesas inva a cla E nee seni qu ss conte cera fir vm evel em sido, jue sca ponte de paride. Com efto, um proctimemo sguelgco an partes de um probit do presente prs se nega ua fundies, oslo uc The deu nasimen sie de ead ee romper uma configurasio atual de 16 Gils Delee, Conch. 311-332 questées. Naquela altura da década, jd se tornavavisvel uma tie de remanejamentas no campo da imagem postos em curso ‘com a emergéncia edifusio das estéticas videagricas, cao efei- te de contaminagio, esultando numa producio audiovisual que ‘confere is imagens uma consisténcia eminentemente hibrida, 0 bem nomeada por Bellour de uma “podtica das passagens” que se opera pela via de um “entre-imagens”,'7 principas eivos dos novos apores téricos. De modo que, a0 coneluir com a proposigio de que € todo © cinema que se toma um diseurso indireo livze, confundindo as diferengasentte cinema de fcgio e Cinema de Realidade, De- leaze vem insert tas conclus6es na séie do presente, no Amago da atuaidade. Ou seja 20 recolher e resignificar um amplo de- bate que ver, pelo menos, dos anos de 1920, muda de configu ragio nos anos de 1960, chegando & atualidade justo num mo- ‘mento em que os parimetros que antes distinguiam realidade ¢ ficgio entram em colapso, tomam-se cada ver mais opacos, De- leuze prope que uma madanca nos termos do problema se ope rou com um novo mode de narrar que nos dé devites mais que hisevias, com uma outra relagio entre abjeivolsubjetivo, com a demoligio do modelo de verdade fundante, com o deslocamento «da oposigio entre realidade/fceio para a oposigio ficgZolfabula- ‘go = e que novas demandastedrcas i se pbem em curso. Enere- fanto, mesmo com a imagem cletrdnica (e, logo em seguida, 2 digital) ircompendo em solo jé to estratficado, compondo-se & rmetamorfoseanda-se em antigos € novos yetores auiovisuais, durante muito tempo ainda o a6 problemtico entre fiegdo realidade nao cessard de emitir suas reverberaghes no campo da imagem, doravante As votas com esse principio de indiscernibili- dade entte ambos apontado por Deleuze, além do complicador se consituid num dos 17 Raymond Ballou, Enteimagens. p14 18. Franco lnalde Tetra, Cinema e pods de subjevago, 7199 das chamadas “ralidades viuas”, cujo significado nio € outra coisa senio uma duplicacio de tl principio. Talvee um sintoma mais visivel da dificuldade, mesmo que residual, de mudar de curso, de operat uma mudanga nos termos da oposigio entre ficgioe realidade, encontre-se, atualmente, na ddenominagio cada ver mais reiterativa na qual torna-se a inset ‘© campo do documentirio ~a de “cinema de nio-ficgao” ou “ci- ‘nema nio-ficcional”. Al, embute-se a antiga oposigio, nomeia-se ‘pela negativa, comando-se a repor uma heteronomia constitu +a, um ributo origindtio, mesmo que, como se vu, o ultrapasss- mento da altenativarealifctcio tenha se dado sem o favored mento de um ou de outro. E isso se torns mais estranho quando “entre nomeagio ¢ conceito vem se instalar uma dssonfncia, com ‘ conceto de fito reolhendo os efeitos das mudancas, enquanto 4 nomeacio permanece no imbito da pura inétca linglstica Documentirio, Cinema Verdade, Cinema Direto, Cinema do Vivido, Cinema de Realidade, Cinema de nio-fiegio, tio ex- tensa sinonimia exp claramente, um fato lingistco revelador de um intenso jogo de estratégias operadas no Ambito de uma politica da representacio cinematogrifica, que ora acitra a oposi- 60 dos termos de base reallfcticio, ora transforma um em corre: Jato do outro, ota 0s langa no campo de uma indscernibilidade E possvel afiemar que através desses txts diagramas,isolados, combinados ou transmutados, e process boa parte da produsso documenta contemporinea. Circunstanciemos, primeiro, aum lvel mais global e, a seguir, local Em seu artigo “Impressoes de Amsterdam’! Carlos Alberto ‘Matos nos tra informagées sobre a décima edigio, em novembro de 1997, daquee que € considerado o mais importante festival de documentérios do mundo, o Festival de Amsterdam (Interatio- 19, Clos Alber Matos, Impress de Amsterdam, Cinema reve de ema xtra gcc eudarinat,noSex 1997. p. 103112 nal Documentary Filmfestval Amstexdam). © festival eomemo- tou saa primeira década tealizando um mapeamento das principa- is tendéncis do géneto no mundo, tendo observado, segundo Matos, que os documentirios “esto ficando cada ver mais pes- soais, formatados para 0 mercado da televsio e explorando os li- sites entre o real e a encenagio". Matos vai destacar cera de seis tendéncias “detectadas em Amsterdam”, assim disriminadas: 1 =A cdmera ¢ ee uma tendéncia “quase dominante", na qual 0 cineasta torna-e 0 "tinico narrador possivel”, far do seu trabalho uma espécie de “difrio confessional”, a0 mesmo tempo em que expie 0 “fracas” de sua empretada 2 — Cinema do cinema: um grande volume de “produgies vol- tadss para o cinema”, com muitos “making of, “retraros de cine astase técnicos, “reflexes sobre 0 métier,reveladores do quanto “o cinema tornouese um fetche dentto do documentitio". 3 ~ Foco naz conexier so “documentirios ensisticos’, do tipo do “flio dha das flor”, que enfocam “nio mais persona- ‘gens ou situages especificos, mas cadeias de idéiasconstruldas a parte de personagens ¢ stuagSes particulars”, assim ganhando distincia “do modelo de reportagem jornaistica que se costuma associat ao géncro 4 = De olbo na TV; aqui eeina uma “certa homogencizagio de estrururas¢ esis", na medida em que a televisio consticui hhoje“o principal mercado um dos maiores parceiros na produ- ‘fo de documentiris". Muitos esto impregnados de "marcas Tipicas do formato que axpira 3 telinha”, tas como “colagem Fragmentada’, “ritmo acelerado”, “duragio em torno de 50 mi- rnutos seus miliplos’, “aternincia homogénea de depoimen- os, material de arquivo e cenas reconstinuldas”. 5 — Os arguivorresstem:tratam-se de documentitios realiaa dos com material de arquivo (cinejornais, aniincios, clipes de epoca) e que, contando com 0 “olhar original de alguns aucores {o americano Jay Rosenblatt, por exemple), vem dar “um nove lento” ao “tradicional filme de compilagio" 6— Nem tudo parece verdade aqui é2 problemstica da indis- cermibilidade entre realifeticio, processada em alguns documen: trios no em termos de exata "transposigio de elementos dra- ‘matirgicosficcionais”, mas de forma a trabalhar “com a divida do espectador quanto a exata narureza daquilo a que asiste", tomando “impossivel distinguir entre documentacio ¢ constru 50 ficcional”, assim deixando a impressio de que “para aleangar tama certa dimensio do teal, o filme passou por um intenso pro cesso de fabricagio”. Paradoxalmente, destaca ainda Matos, com um jst compos- to de documentarstas, fotdgrafos, drerores de festivais, "ne- ‘nhum dos filmes contemplados com os prémios principaisreflete as tendéncias mais marcantes no panorama do documentirio contemporinea”,tendo-se dado “nitda prefeéncia por filmes de Formato clisica, sem imposicio da personalidade do diretor ¢ {que tampouco se rendem 20 estilo dominante da televisio". Enfim, diagnost¢s uma “encruzihada deicada” que ronda esas “cutioras mutagdes” que se processim no documentirio mun- ial; cle “precisa manter-se independente para continuar fiel tealidade dos diverss palses, mas nio pode prescindir de pa dries ténicos que 0 conservem interessante para um pablico lobalizado” (© panorama tracado no texto de Matos, como se péde ob- servar, comega € termina por reiterar, entre outros aspectos, 0 persistent dilema ou, como ee afrma, a “discusto tebrica sem fim no meio do documentarismo”, no caso a busca de critérios para se distingur “encte documentirio¢ ficgio". Em relagio a0 {que hi pouco chamei de politica da representagio, que tornou a bbusca de novas terminologias um verdadeiro fat lingistico, 0 desdobramento novo por ele apontado é ese da “encruilhada” centre como ser local global simultaneamente, como mancer“ a ‘ i © problema € como ee “out” & reeiado ness visi, cpus sempre a fe da buses deneacto o ovo de Cslombs de uma nora buna. Tomowse um lr coma pase culos de igi toca em quo ous es ana nt er 4 incmpleidee do noses, ar logo em sepia dence dears uma verdes voragem do ute come tna epi de toque de ergs reno asec se nce e cose 620 plo oats humanismosredivos sbredo no pan de tele de gncton de ci, de ses Sempre camo se 0 to foe uma ec de nosincrigoou deseo inde que depen vi de una nag bit de un ds jo de imei, fresee 0 cig de seu acon, A senna te etm dae des cabs € de que mal ot prt hisds do nonce de gue a da lens doco 21 Tumil Xavier. cinema brasileiro hoje. Entrevts com email Nave Poth de S Pane 03 dx, 2000 22a Sorts Sl“ stele document, Ft de ‘S.Paulo, 04 mar. 2001. se 29. Gilles Dees, Cinema, coro eétebn,pensmenta,p. 265 64 soxinantie nom deada no pé-Segunda Guerra apagou seus restos. Ora, 0 outco io € umn no-ser nem uma transparéncia, mas um desafio posto © reposto em meio 3 heterogencidade e is ambivalncias dos jogos de linguagem, isso para far apenas na esfera da intercomuicagao. Portanto, pasar do imperativo do “flr pelos que no tem vor" 20 do “dara vor 20 outro", no éndicio nenhum de uma grande ms dang, mas to-somente de wma inverso que num momento far da prdpria fico verdade do outro, para num segundo momento fazer da fiogio do outro a prépria verdade. Duplamenteimvasivo, tal procedimento apenas escancara o jogo identitirio “EucEu” liante da imposbilidade de aalhimento do “Eu € outro” Ismail Xavier, a comentar essas questBes em documentitios| ecentes ~ Fé (1999), Santo forte (1999), Noticias de uma guerra ‘particular (1999) ~ através do tema do “inesperado encontro”, deseaca 0 exercicio de uma “ernografia discreta", de uma dispo- gio interativa (marcante em Santo forte e rarefita em Fé) e de uma teatralizagio diante da cimera, apés repasar 0 modelo do falar “em nome de", de décadas anteriores, 0 do “dar a vou", esses filmes atuais, Sua indagacio, no entanto, & quanto & au- séncia de discusso a respeto das “estruturas socias” (marcante fem Noticias de wma guerra particular, “o melhor documentirio da década") jf que “a época & de individualizagso dos gestos”. Mas seré que esse repisar sobre a fuga de um social esrurural (que jéera um problema para os fundadores das cigncias soci, ‘com suas oposigdes genéticas entre comunidade/sociedade, indi- viduolsociedade, sujcita/abjeto, ordem/anomia), de um social {que se retém em suas formas ¢ nio em suas metamorfoses, tam- ‘bém nao embaga a visio quanto a0s novos processos de subjeti vaglo em curso para além dele? Nem bons, nem maus, cer- tamente para além das consciéncias, idiossincrasias pessoas ou individuais, exis procestos apenas dio curso a0 ilimitado movi- ‘mento de heterogénese do humano, No caso de JoZ0 Moreira Salles, a0 responder “erés questies sobre documentirio", entre elas “qual a cara do Brasil des docu smentaristag”, ele assim discorre: “De um modo geral, 0 Brail aque aparece nos documentitios ¢ sempre um Brasil muito dife- rente daquele em que mora o documentarista, Com excegio de Opinio piblica, de Arsaldo Jabot, 0 documentarista brasileiro io se filma. Até porque, no fundo, € mais ficilflmat 0 que € diferente, iso & uma pena, porque 0 documentirio brasileiro sinda precisa falar da classe média e ~ por que no? ~ da elite” Salles € transparente quanto 3s failidades de acesso& diferensa, 20 outro, desde que 0 outro nfo sea “eu”, no abismo que os se- para, Se o documentarsta“nio se filma”, como pode entio colo- ‘car-se a questio do “fazer das pessoas interlocutores” que, como firma, é“tarefa" primordial e que, apesar de dificil, possivel e “no Brasil, Eduardo Coutinho consegue”? Ou sea, 2 concepgio do “filmarse” af exposta & a mais restiiva possveh as avessas, ‘obviamente, jf que € uma questio de insergio num estrato so- cial, numa case, etna ou genero. Por acato, a0 subie 0 motto, 0 cineasta depde tal bagagem” na encosta? Oua dif, mas, bus- cada interlocugio, invertendo © anterior mondloge da rardo so- bre 0 outro (2 "vor do saber”, como tio bem nomeou Bernat= det), vem inscreverse, perversamente, como um monélogo do outro sobre os arazoados? Eis como, de forma inesperada, uma certa dase de mi-cons- cincia, 04, como afirma Salles, de “algum grau de culpa social", ‘se arquiconhecido personagem concetual do cinema nacional reaparece nessa humanitiria incinagfo de “dar” a vor ao outro. Mas tal questo vai além nesses filmes. No caso de Santo fort, 0 contrat de fala, o dizimo pago pelo depoimento,escancara-se € ‘omna-se pare integrante dos materais de composiio, excavan- do seu duplo sentido: o do negécio mesmo da religio, desde sempre ¢ hoje com sua esperaculariagio miditia, © 0 da nego- ciagio da incerlocugio, das imagens negociadas, da empreitada comercial que subjaz até mesmo num “filme independente” (ualfcativo por virias ves emitido em Babilénia 2000). Em Fé, a0 conteitio, & um personagem-devoro que pede dinheito & ‘equips, a0 responder que veio do “inferno” quando est ali para a festa de Sa0 Francisco do Canindé. Ou sea, de uma ou de ou- ‘a manciea, uma certa légiea do “toma If df ci” exerctase af aquém de qualquer principio de didiva, segundo o qual a obri- ‘gacio do "dom", a sua circulago, se opera num circuito de du- pla mio que 0 costume acaba insituindo e cransmutando num 140 de espontinea generosidade Enfim, no x tata nem de dar a voz ao outro nem mesmo, ‘como diz Xavier a rexpeita de Coutinho, de “tirar das pessoas 0 ‘que elas tém a dizer, sem esquecer que tudo diante da cimera se tora teatro". De fato, que a cimera age sobre situagées perso- nagens 3 sua presenca, nunca constituiu problema desde os pri mérdios do documentirio. O desfi, viuse a respeito da fungio fabuladora, € 0 de como se dar inercessores, de como o cineasta fa imterceder a fabulasio que se pe 2 criar © personagem real no ato interativo de ambos, para além das identidades jf ancora- clas no presente, de tal modo a abandonar as iegdes prontas que trap na bagagem ¢ rumar com ela na consttuiglo de novos po- ‘voamentos, de um povo que ainda nio esti dado, que nunca seré dado, mas a se consticuir num devir incessant. Tornarse outro Junto com 0 persnagem Fazer do outro, portanto, no um intr locutor, menos ainda um a quem se dia vor, mas, para além dis 0, 0 outro como um intercessor junto a0 qual o cineasta possa dlsfazer-se da veneragio das propras fiegBes ou, de outta forma, {que 0 poe diante da identidade inabalivel como uma fice. Ressigntica-se, com isso, a visio recortente sobre as facilidades cdo dacumentério como um dominio no qual “sabemos quem so- ‘mos © quem filmamos ‘Como toda ane, a arte do documentitio se constitu como lum pensamento que desafia 0 caos, 0s bons sensos, consensos € sensos comuns, pata poder pensar de outta maneira ¢ assim, cconforme nossa epigrafe niewsche-godardiana, “evtar que nos rmate a verdade”,® moreifera verdade quando se crisaliza no a priori de um modelo ¢ dexa de ser virtualidade criadora Bi Fee Goda, Aft os habla de fin y los medion p. 121-126 A migragao das imagens Jean-Claude Bernards IN tines an (99, sans pnd inp so de délares € um plano de uma nota dem délar. Sobre or anor 60 & um média-metragem montado na sua quasertalidade ‘com material de arquivo, As imagens de dolar foram exeadas deum filme de Wale Lima Jinior, Ne bcs de rite (1970). Pode se afiemar com certeza que Walter Lima no a filmou, mas as extaiu por sua vez de algum filme docamentri encontrado nos arquivos de uma tclevsio ou do United States Information Service (Us). Talver Walter Lima se lembre da fonte original dlesss imagens nds, que montamos Sabre a anor 60, a desco- hecemos, Para nds, a sua origem se perdew s6sabemos do slkimo elo. Ess imagens, além de Na bcs di noite Sobre os «anos 60, podero te sido reaproveiadas em outos filmes ou programas de tleisio, brasilios, amercanos ou de outra na- conalidade. NSo sbemos. De outa imagem, podemos rater seu percuno: tatase de tum plano extaido de Vramundo (Geraldo Sarno, 1965), que fi reutlizad por Joo Batista de Andrade ¢ por mim em Eterna er perana (1971), poserionnente erm Sto Paulo snfniaecxofonia ‘ean-Claude Bernardet, 1995), ¢finalmente mais uma ver (por enquanto) em Sobre or anos 60. Esse plano de Viramando € um ‘reveling bastante scado, filmado em branco ¢ reo, da dicta pars a exquerds, que apresnta uma filera de nordestinos.. no. de homens pobres. Plo contexto do filme orginal, sabemos se rer nordesinos na sua chegada a Séo Paul, na sepfo de rage Esse homens sio apresentados de frente, imdveis,olhando para frente, muitos em diresdo tcémera. O plano documenta uma si- ruagio, um fato (a presenga daqueles homens epecticos a sua chegada especfica a So Paulo), mas 0 documentiio de Geraldo Sarno generaliza, de modo que do fato especiico pasimos para tuma significasao genética: 0 Fendmeno da chegida de migrantes nosdestinos a Sio Paulo! Dao plano pasa para Eterna eiperan- {4.0 filme foi realizado bi mais de vinte anos © nfo tenho Cépia, de modo que nio lembro exatamente em que momento dda montagem ee incdia. Em todo aso, & certo que vinha acompa- nado de uma narrago no exraida de Viramundo, a qual, bastan- te longa, excedia 0 tempo da imagem. Resolvemos montat pelo tempo di locusio:fzemos um anel com o pla e orepetimas © necessirio para ascegurat a fala (pela minha lembranga, ele entra duas vezes¢ meia), Houve uma opcoestlitica caracersica de tuma determinada forma de montagem do final dot anos de 1960 e inicio de 1970, Mais de vince anos depos, cle entra mn Szo Paulo snfona e cacofinia inserido numa seqiéncia que jun- ta avling fonts, da diria para a esquerdse vice-versa, ex ‘aidos de viios filmes, apresentando pessoas de diversos extratos socais, Neste contexto, a significago especifca “migrantes” pet ddewse,passando 0 significar“operirios” "homens", num con junto que, 0 mostrar homens e mulheres, burgueses¢ operiros, jovens e mas vlhos, sugere uma amostragem da populago pa- Tstana. Neste filme, plano foi montado ineiro (8 exclusio tl- ver de uns dois forogramas inicial e final ~ para posibiltar 0 corte) apenas uma ver. Na sua quarta vida (pelo menos, das vi- das que conheso), Sobre or anos 60, €apresentao apenas uma vex, tendo sido cortada a pare final: diferentemente do que bocortia no primeito uso que femos dele, opso nest filme foi pata planos mais curtos. A insrsiofinaliza uma sequénci: ti 1 Abordel a questo do paticulargcrl em filmes documentirios em Cine tas ingens do pov. tha sonora apresentadiversos questonamentos sobre 0 povo,

Você também pode gostar