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19h DAstp? Hees oD. Qe. pp / PAIKOES A oferenda obliqua Imaginemos um sabio, Especialista na andli- se dos rituais, ele se apropria desta obra,’ a menos 7 Uin "conte" deterniaado consti aqulo tema ou o niclea desas que, ninguém jamais o sabérd, ela the tenha sido oferecida. Em todo caso, ele faz dela coisa sua, acredita reconhecer nela o desenrolar ritualizado de uma ceriménia, ou até mesmo de uma liturgia, e isso se torna um tema para ele, um objeto de | anélise. O rito, por certo, nao define um campo. | HA rito por toda parte. Sem ele, nfo hé sociedade, no ha instituigdo, nao hé histéria. Nao importa’ quem possa ser especialista na andlise dos rituais, pois esta no é uma especialidade. Esse sabio, digamos, esse analista também pode ser, por exemplo, um sociélogo, um antropélogo, um i se quiser, um critico de arte ou: de algum grau, gracas & experiéncia e de modo mais ou menos espontineo, cada um-de n6s pode desempenhar o papel.de-analista ou de critico dos ritos, ninguém est totalmente livre disso. Alias, para desempenhar. um papel ‘nessa obra, para desempenbar um papel'onde quer. que seja, & preciso estar inscrito nia légica do rito &, do mesmo tempo; justamente para proceder bem, para evitar 08 erros e as transgréssdes, set capaz de analisé-la até certo ponto. E preciso compreender suas notmas ¢ interpretar suas regras.de funcionamento: Entre 0 auttor,€ o' analista, seja qual for a distancia, sejam quais forem as diferencas, a fron- teira parece, portanto, incerta. Sempre permedvel. Ela deve mesmo ser transposta num certo ponto para que haja uma andlise-e também para que haja um comportaniénto adequado e normalmente.ri- tualizado. Mas um “leitor ctitico” (critical reader) obje- taria, com razdo,-que nem todas as andlises sao equivalentes: ndo haveria uma diferenga essencial entre, de um lado, a anélise daquele ou daquela que, a fim de participar comme il faut de um rito, portanto, deve compreender suas normas, e uma anilise que no visa se adequar ao rito, mas sim explicé-lo, “objetiva-lo”, dar conta de seu principio e de seu fim? Mais exatamente, uma diferenca titica? Talvez, mas o que € uma diferenga critica? Pois, afinal, se ele deve analisar, ler, interpretar, o participante deve, ele também, manter uma cera posicao critica. E, de certa maneira, “objetivante”. Embora sua atividade muitas vezes se aproxime da passividade, sendo da paixdo, o participante realiza atos criticos e criteriolégicos: requer-se uma discriminacao atenta por parte de quem, por ‘uma azo ou outta, se torna parte interessada no processo ritual (o agente, 0 beneficiério, o padre, o sacrificante, o aderecista, até mesmo 0 excluide, a vitima, 0 vildo, ou o pharmakos, que pode ser 2 propria oferenda, pois a oferenda jamais é uma simples coisa, porém jé um discurso, ao menos a idade de um discurso, o inicio de uma simbolicidade). O participante deve fazer esco- has; distinguir, diferenciar, avaliar: Deve realizar alguma kringin. O proprio “espectador”, aqui o tor, neste volume ou fora dele, encontra-se nesse sentido na mesma situagao. Em vez de opor © critic 20 nao-critico, em vez de escolher ou decidir entre critico no-critico, a objetividade e seu contrério, seria preciso, portanto, de um lado, marcat as diferencas entre os criticos e, de outro, situar 0 nfo-critico em um lugar que j& nao seja oponivel, talvez.nem mesmo exterior ao critico. Por certo, 0 critico € 0 no-critico nfo sao idénti- cos, mas talvez permanegam, no fundo, a mesma coisa, Em todo caso, participam disso. Suponhamos, portanto, que esta obra seja apresentada (entregue, oferecida, dada) 2 um leitor-analista preocupado com. a objetividade. Esse analista talvez esteja entre nés: nao importa © destinatério ou o destinador deste livro. Pode- mos imaginar isso sem abrir um crédito ilimitado a tal leitor. Em todo caso, 0 analista (evidentemen- te, escolho esta palavra pensando no uso que dela faz.Poe)' estaria certo, talvez por imprudéncia, de aqui estar diante do desenrolar codificado, previ- sivel e prescrito de uma ceriménia. Ceriménia | seria provavelmemte a palavra mais certa e mais rica para reunir todas as caracteristicas do evento. Portanto, como eu poderia, como voces poderiam, como nés poderfamos, como eles poderiam nao ser cerimoniosos? O que é, exatamente, uma ceriménia? Ora, eis que, na descricfo e na andlise do ritual, em seu deciframento ov, se preferirem, em sua leitura, surgiria de repente uma dificuldade, uma espécie de disfungio, outros diriam uma ctise, traduza-se: um momento critico. Talvez. ele jf estivesse afetando o proprio desenrolar do processo simbdlico. Que crise? Ela era previsivel ou imprevisivel? E-s@’a crise mencionada fosse concernente ainda a0 proprio conceito de crise ou de critica? Os fil6sofos encontram-se reunidos nesta obra segundo procedimentos académicos € edito- fais que nos sio familiares, Sublinhemos a deter- mina¢io critica, impossivel posto que aberta, aberta vocés, justamente, por este pronome pessoal: quem. é “nés”, quem.somos nés, a0: certo? Esses filésofos, -universitérios de diferentes pafses, so conhecidos ¢ se conhecem: quase todos’ aqui deveria seguir-sé uma descrigao detalhadade cada um deles, de seu tipo e de sua especificidade; de seu grupo sexual — uma tnica mulher—, de sua nacionalidade, de seu status socioacadémico, de seu passado, de suas publicagdes; de seus interes- ses etc.). Portanto, haviam combinado; pela inicia- tiva de um deles, que:ndo pode ser qualquer um € cujos interesses com certeza ndo'so desinteres- santes, reunir-se e- participar.de'um livro cujo niicleo (relativamente: determinado, portanto in- determinado, poder-se-ia dizer secreto, até certo ponto — e 2 crise permanece por demasiado aberta para ainda merecer este nome de crise) sera este ou aquele (relativamente determinado etc., 10 relativamente identificével, em principio, por seu trabalho, suas publicagdes, seu nome proprio, suas assinaturas, Deixemos “assinaturas” no: plu- ral, pois é imposstvel; de saida, e ilegitimo, se bem que legal, excluir.a multiplicidade delas). Ora, se uma dificuldade critica se apresenta neste caso e, embora ainda nao. esteja:certo, corre o risco de colocar em dificuldade os programas do rito ou de sua anilise, ela nao diz respeito necessariamen- te ao contetido, as teses, as avaliagSes positivas ou negativas, quase sempre sobredeterminadas 20 infinito, em-suma, & qualidade dos discursos de uns e outros, aquilo que traduzem ou aquilo que fazem de sua relacao com o titulo, com.o pretexto 10.do livro, Ela diz respeito ao fato de que se acreditou dever perguntar, propor, oferecer (por razdes que podem ser analisadas) a0 suposto: signatério dos textos que estio no niicleo do livro (“eu", pois nao?) intervir, como se “contribuiz”, o que significa trazer seu tributo, mas fazé-lo livremente,. no livro. Quanto ao grau dessa liberdade, logo mais. teremos algo a dizer, a questio € quase toda esta, O editor da obra, chefe de protocolo ou inestre-de-ceriménias, David Wood, havia sugerido que 0 livro fosse aberto aqui mesmo por um texto de algumas paginas que, sem responder de fato a todos os outros, pudesse figurar sob © titulo significativo de “A oferenda obliqua” (An oblique offering). O qué? De quem? Para quem? (a seguir). Ora, de repente, diziamos, o desenrolar do tito corre o risco de nao mais estar conforme com u sua automaticidade, quer dizer, com a primeira hipétese do analista, H4 uma’ segunda hipétese. Qual? Em um determinado lugar no sistema, um dos elementos do sistema (um “eu”, ainda que nem:sempre, e um “eu” “sem-ceriménia’’, nfo sabe mais 0 que deve fazer. Mais precisamente, sabe que deve fazer coisas contraditérias e incom- pativeis. Contradizendo-se ou contrariando-se a si propria, esta dupla obrigagao corre o risco, con- seqiientemente, de paralisar, de desviar ou de colocar em perigo a'realizacao bem.sucedida da cerim6nia. Mas a hipstese desse risco iria de encontro ou, pelo contratio, ao encontro do desejo dos participantes, supondo-se que no haja m: do que um, que haja‘um tinico desejo comum a todos ou que cada um tenha em si apenas-um desejo nao-contraditério? Pois € possivel imaginar que um ou mais participantes, até mesmo'o pré- prio mestre-de-ceriménias deseje, de alguma ma- neira, 0 fracasso da mencionada ceriménia. De maneira mais ou menos secreta, 6bvio, e € por isso que ser preciso que digamoso segredo, que no © revelemos, mas, com. base no exemplo dese. segredo, que nos pronunciemos sobre © segredo em geral. © qué é um segredo? Certamente, mesmo se esta obra no corres- ponder em nada a uma cerim6nia secreta, imagi- na-se que n&o haja cerim6nia, por mais ptiblica e exposta que seja, que nfo gire em torno de um segredo, mesmo se for o segredo de um n&o-se- gredo, ou ento, o que se chama em francés um 12 “segredo de polichinelo”, um segredo que nao € segredo para ninguém. Na’ primeira hipétese do analista, a ceriménia se desenrolaria normalmente, conforme o rito; ela atingiria seu fim ao prego de um desvio ou de um suspense, que, além de no a ter ameacacio em nada, talvez também a tivesse confirmado, consolidado, aumentado, suavizado ow intensificado por uma expectativa (desejo, primicia de seducao, prazer preliminar do jogo, preltidio, aquilo que Freud chama Vorlusi). Mas 0 que aconteceria na segunda hip6tese? Talvez seja essa a pergunta que, & guisa de resposta ¢ em sinal de infinito reconhecimento, eu mesmo gostaria de fazer, por minha vez logo de infcio, a todos os que tiveram a generosidade de contribuir para esta obra. Tanto na amiizade quanto na cortesia, haveria um duplo dever. no seria exatamente evitar, a qualquer prego, 4 linguagem do rito e também a linguagem do dever? A duplicidade, 0 ser-duplo desse dever no se conta como 1+ 1=2,oul+ 2, mas, pelo contratio, se aprofunda em abismo infinito. Um gesto “de amizade” ou “de cortesia” no seria nem amigdvel nem cortés se obedecesse pura’e simplesmente a uma regra ritual. Mas esse dever de fugir & regra da conveniéncia ritualizada pede também um comportamento além da propria \guagem do dever, Nao se deve ser ami | cortés por dever. Aventuramo-nos tal proposi¢ao, | provavelmente, contra Kant. Haveria, pois, um ! dever de nao agir segundo o dever em conformi- dade; nem com o dever, diria Kant (pflichtmdssig), nem mesmo por dever (aus Pflich#)?:Como um tal dever, um tal contra-dever, nos endividaria? Com | relago.a qué? Com relagio a quem? ! essa hipétese em forma de | te para provocar vertigem. Ela faria tremer, poderia também paralisar & beira do abismo, ali onde vocé estaria s6, completimen- | te 86, ou jé requisitado por um corpo a corpo com “outro, um outro que procuraria em vao deté-lo ou precipité-lo no vazio, para, salvé-lo ou para perdé-lo. Supondo-se, voltaremos a isso; que al- guma vez se tenha escolha a esse respeito. Uma vez que jé corremos 0 tisco de no saber mais onde poderia nos levar a evidéncia, ousemios dizer, 0 duplo axioma implicado na hipétese ou na questo pela qual foi preciso, efetivamente comegar. Provavelmente seria gros- seiro parecer fazer um gesto, por exemplo, res- pondendo um convite, porsimplesdever. Tampouco seria amistoso responder a um arhigo por dever. Nao seria melhor responder a um convite ou aum amigo em conformidade com o dever, pflichth- massig (de preferéncia por dever, aus Pflicht, citamos outra vez a Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, de Kant, nosso “critical reader’ exem- plar, devedores que somos, como herdeiros, com relagao a0 grande filésofo da critica). De fato, isso somaria & caréncia essencial uma falta a mais: acreditar tornar:se irrepreensivel, 20 jogar com a aparéncia, ali onde faz a intengao. Quanto ao “é preciso” da amizade, assim como ao da cortesia, nao basta dizer que ele ndo deve ser da ordem do 4 dever. Ele nem mesmo deve assumir a forma de uma regra, ‘menos ainda de’ uma regra ritual. A partir do momento em que se submetesse 2 ne- cessidade de aplicar a um caso a generalidade de um preceito, o gesto de amizade‘ou de cortesia destruir-se-ia a si proprio. Setia vencido, abatido e destrufdo pela rigidez regular da regra, em outras palavras, da norma. Axioma do qual nao se deve deduzir que somente se chega 2 amizade ou & cortesia (por ‘exemplo respondendo 20 convite, ou mesmo ao pedido ou 4 pergunta de um amigo) transgredindo todas as regras e indo contra todos os deveres. A contra-regra também é uma regra. Um leitor eritico talvez ficasse surpreso 20 ver aqui a amizade e a cortesia regularmente associadas, ambas diferenciadas de uma sé vez do comportamento ritualizado. Pois aqui a hipétese disia respeito, no caso da cortesia, no caso. da determinagdo aguda desse valor, quer ela esteja ligada ou nao a uma ou a outra tradi¢ao cultural (ocidental ou no), a0 que tem por injungo agir além da regra, da norma e, portanto, do rito. A contradigao interna do conceito de cortesia, como de todo conceito normative que ele exemplificas- se, € que implica a regra e a invengao sem regra, Sua regra € que se conheca a regra, sem nunca se ater a ela. falta de cortesia ser apenas cortés, ser cortés por cortesia. Portanto, aqui temos uma regra —e essa regra recorrente, estrutural, geral, isto 6 singular e exemplar a cada vez — que pede que se aja de maneira a no fazé-lo apenas de acordo com a regra normativa nem mesmo, em virtude da regra mencionada, em respeito a ela. ‘Vamos direto ao assunto:’ trata-se do concei- to de dever, e de saber se, ou até que ponto, pode-se confiar nele, naquilo que ele estrutura na ordem da cultura, da moral, da politica, do direito, até da economia (sobretudo quanto & relagao entre a divida e o dever)’; quer dizer, se e até que ponto pode-se confiar naquilo que o conceito de dever, ordena em todo discurso responsivel sobre a decisao sesponsavel, em todo discurso, toda légi- ca, toda ret6rica' da responsabilidade. Ao falar de discurso responsdvel sobre 2 responsabilidade, j4 implicamos que 0 proprio discurso deve'se sub- meter As normas ou a lei da qual: fala. Essa implicagao parece inelutavel, mas continua des- concertante: qual poderia ser a.responsabilidade, a qualidade ou a virtude da responsabilidade, de um discurso conseqiiente que pretendesse ‘de- uma responsabilidade nunca pode- sem equivoco e sem contradicao? que a autojustificativa de uma decisio é impossivel e nao poderia, a priori e por razdes estruturais, de maneira alguma responder por si propria? Dissemos: "n'y allons pas par quatre che- ‘mins’ llocugdo francesa quase intraduzivel, que © cruzamento dos caminhos, 0 quatro e a forquilha da encruzilhada (quadrifurcum) para dizer: procedamos direta- TT eipressio comespondente em francés & Ny allons pas par quare ‘chemins eset corneriada no pardgrafo segulete pelo aut. QV) mente, sem desvio obliquo, sem artimanha.e sem trata-se do conceito de |...) e de saber se © que supde uma palavra de ordem tio imperativa? Que se possa e que se-deva abordar de frente um conceito ou um problema de maneira n&o-obliqua. Haveria um conceito é'um problema Gisto ou daquilo, do dever, por exemplo, pouco importa por enquanto), isto é, alguma coisa deter= mindvel por um saber (‘trata-se de. saber se”) que se encontra 2 frente de vocés, af na frente (problema), in front of you; dai a necessidade de abotdar de frente ou de-cara, de modo ao mesmo tempo direto, frontal e -capital, aquilo que se encontra em frente dos olhos, da boca, das mios (e nfo as costas) de vocés, af na frente, como um objeto pro-posto ou pré-posto, uma questio a ser tratada, um sujeito proposto, portanto, da mesma forma (isto é, entregue, oferecido: em principio se. oferece sempre em presenca de, nao é mesmo? em principio). Seguindo a semintica de problema, tratar-se-ia. também de um ob-sujeito adiantado como um quebra-mar ou como o promontério de um cabo,‘ uma armadura ou-uma vestimenta de protecao. Problema também diz, em certos con- textos, as desculpas apresenttadas para se esquivar ow se desculpar, mas ainda uma outra coisa qué aqui talvez nos interessasse mais: por metonimia, por assim dizer, problema pode vir a designar /aquele que, como se diz em francés, da cobertura, endossando a responsabilidade de um outro ou se fazendo passar pelo outro, falando em nome do outro, aquele que se coloca & frente ou atras de quem alguém se dissimula, Estamos pensando 7 aqui na paixio de Filoctetes, em Ulisses, 0 obliquo —e na terceira pessoa’(terstis),.a6-mesmo tempo testemunha (testis) inocente; ator-— participante, mas também atorao.qual se:faz desempenhar um papel, instrumento e delegado, agindo: por repre- sentagdo, a saber, a ctianga problemdticd, Neo t6lemo.> Desse ponto. de vista, a.responsabilidade) seria problemdtica 2 medida suplementar que poderia serAs vezes, talvez mesmo sempre; aquela que'se assume no por si; em sew proprio nome e ‘frente ao outro (a mais.classica definicao metafisi- ca da responsabilidade), mas aquela.que se deve assumir por um outro, nolugar,em nome do outro ‘ou em seu nome como outro, frente.a um outro, eum outro do outro, a.saber,o inegéyel' mesmo da ética, “A medida suplementar’, diziamos, mas devemos ir mais longe: medida que a responsa- bilidade nfo: apenas”.ndo diminui, mas,: pelo contrério, surge snuma. estrutura ‘que também: é suplementar, Ela é sempre. exercida, em-meu nome como em nome. do outro; e isso-em nada afeta sua singularidade, .Esta,secoloca.e deve tremer no equivoco-e na inseguranga exemplar desse “como”. Se a experiéncia da résponsabilidadle nao se reduzisse & do dever ou da divida; se 0 “fespon- de:” da responsabilidade nao mais se anunciasse em um conceito sobre o qual seria necéssirio “saber se..";-8e tudo’ isso desafiasse 0 espagd do problema e voltasse nao aperias do'lado dec da forma pro-posicional da resposta como ‘também do lado de cf da forma “questdo" do pensamento 18 ou da linguagem, entio 6 porque, desse modo, jé no é ou ainda nao.€ problematica ou questiond- vel, portanto critica, isto é, da ordem da decisiio judicativa, e nao mais poderiamos, sobretudo néio deveriamos abordi-la de modo direto, frontal, brojetivo, ou mesmo tético ou tematico. Esse “nao- offazer”, esse “sobretudo-no-dever”, que parece se retirar do, problema, do projeto, da questo, do tema, da tese, da critica, absolutamente nao seria uma caréncia faltosa, um enfraquecimento ‘no igor légico ou demonstrativo, muito pelo contré- tio Gupondo, aliés, que o imperative do rigor, siricto sensu, do mais estrito rigor, esteja ao abrigo de qualquer questo)’. Houvesse caréncia, tanto no que se refere-A justiga quanto .leitura, ela sobreviria antes do lado em que se quisessé fazer comparecer um Certo “nio-o-fazer’, “sobretudo- nao-dever-fazé-lo" perante algum tribunal filos6- fico ou moral, isto é, perante uma instancia 20 mesmo tempo critica e juridica. Exigir mais fron- idade, mais tese ou mais tematizacao, supor que aqui se tenha a medida, nada parece 20 mesmo tempo mais violento e mais ingénuo. Como esco- Iher entre a économia ou a discrig&o da elipse & qual se credita uma escritura, e uma a-tematicida- de, uma explicitagao insuficientemente tematica, da qual se cré poder acusar um filésofo? { i r Em vez de abordar a questo ou 0 problema de frente, de modo direto, sem. rodeios, 0 que provavelmente seria impossfvel, inapropriado ou ilegitimo, deverfamos proceder, obliquamente? Jé © fiz muitas vezes, chegando a r quidade pelo nome,’ confessando-o mesmo, al- guns pensariam, como uma falta a0 dever, uma vez que se associa com freqiiéncia a figura do obliquo & falta de franqueza ou de retidao. provavel que tenha sido pensando nessa fatalida- de, uma tradi¢o do obliquo na qual de algum modo estou inscrito, que, para me com encorajar ou me obrigar a participar deste volume, | David Wood. me propés intitular estas poucas paginas de “A oferenda obliqua’ (An oblique offering). Ble até ja havia impresso 0 titulo anteci- padamente. no. projeto da Table of Contents do ‘maniuserito geral, antes que eu tivesse escrito uma linha deste texto.? a Saber-se-4 algum dia se esta “oferenda” é a minha ou a dele? Quem assurne essa responsabilidade? A questao é tio séria e intratavel’ quanto a responsabilidade pelo nome dado ou pelo nome usado, pelo nome que se recebe, ov pelo nome que se dé. Perfilam-se aqui os paradoxos infinitos daquilo que se chama com tanta tranqiiilidade de narcisismo: supde que X, alguma coisa ou alguém (um rastro, uma obra, ca), use o teu nome,” ingénua ou fantasma comum: deste teu nome a X, portanto tudo aquilo que retorna 2 X, de modo direto ou indireto, em linha direta ou obliqua, retorna a ti, como um-beneficio para’ teu nari sismo. Mas como ndo és teu ‘nome nem teu ti e que, como:0 nomie’ou 0 titulo, X passa mito bem semi ti, e sem tua vida, a saber, sem'o local para onde alguma coisa pudesse retornar,’ como af estio a definigao e a propria possibilidade de ‘qualquer rasiro, de qualquer nome e de qualquer tulo, teu narcisismo fica frustrado @ priori quanto aquilo de que ele se beneficia ou espera se beneficiar, Inversamente, supde que X recuse teu nome ou'teu titulo; supSe que, por uma razio qualquer, X selivre dele e escolha para sium outro nome, fazendo uma espécie de desmame reitera- do do ‘desmame original; entao, teu narcisismo, 7 Opie, nse paleo, elo uso log do pono psiessvo meagan pests gy, pu ear pes aiglacey, Froveestae poo uso do pronoak ponesivo ns treks penton GO Rngoar OF) duplamente: ferido,’ ficasd:pon isso’ mesmo ainda mais enriquecido:.aquele que-usa, usou; ou tera usado teu nome parece bastante livre, -poderoso, criador e aut6nomo para viver sé e radicalmente passar bem sem-tie sem tev nome. Retorna a teu nome, no mais secreto de teu nome, poder desa- parecer, em teu nome. E, portanto, nao voltar a si, 0 que € a coridigao do dom (por exemplo, do nome) como também de toda expansio de si, de toda elevagao de si, de toda auctoritas. Nos dois casos dessa, mesnia paixio dividida, é impossivel dissociar o maior beneficio.e a maior privagio. Conseqiientemente, € impossivel construir um conceit nio-contradit6rio ou coerente do narci- sismo, ¢, portanto, dar um sentido unfvoco ao eu. lo, como “eu” e, segun- do arexpressio de Baudelaire, “sem-ceriménia”. £ © segredo do arco ou da corda instrumental (newra) conforme Filoctetes, conforme a paixio segundo Filoctetes: a crianga € 0 problema, sempre, eis a verdade. Refletindo bem, o obliquo nao parece Ser a melhor figura para todos'os procedimentos que tentei qualificar assim. Sémpre me senti pouco & vontade com relagao a essa palavra que uti porém, com tanta freqiiéncia. Mesmo se o fiz de maneira sobretudo negativa, antes para romper do que para’ prescrever, para evitar ou dizer que se deveria evitar,'e com a qual, aliés, nfo se poderia deixar de evitar © enfrentamento ou o confronto direto, 2 abordagem imediata. Portanto, confissio ou autocritica: dever-se-ia sortir’ hipdtese da mais hiperb6lica hybris, a saber, a hipétese de que esse leitor critico” (critical reader) seria,.em suma, um leitor autocritico* (autocritical reader) (critica de si, mas critica de quem,’ a0 certo? A quem 0 refletido remeteria aqui?), um leitor que se porta € se transporta por si*mesmo,:sobretudo j& nio precisando de.“mim” para isso, de um eu que,ele proprio, ja nao precisaria de ninguém para fazer todas as perguntas ou todas as objegdes criticas que se queira. (Aliés, ria sintaxe de “K: um leit critico”, sempre sera dificil saber quem € 6 leitor de quem, quem é 0 sujeito, quem é 0 texto, quem €0 objeto, e quem oferece o que — ou quem — a quem.) Hoje, 0 qué seria :preciso criticar no obliquo € provavelmente a figura geométrica, 0 compromisso ainda mantido com a primitividade do plano, da linha, do Angulo, ‘da diagonal. e, pottanto, do Angulo: reto entre a vertical e a horizontal. © obliquo permanece comio a escolha de uma -estratégia ainda frustrada, obrigada a cuidar do mais urgente, um cAlculo geométrico para desviar 0 quanto antes tanto a abordagem frontal quanto @ linha reta: 0 caminho suposta- mente mais curto de um ponto.a outro. Até sob sua forma ret6rica e nessa figura de figura que se chama a oratio obliqua, esse deslocamento parece ainda muito direto, linear, econémico,.em suma, em conivéncia com 0 arco diagonal. (Alusao late- ral a0 fato de que.um arco as vezes esti estendido dizer que um car, conforme o contexto, que sua corda esté esticada e pronta para propulsar a arma, a saber, a flecha mortifera, ou ry9 que ele €:oferecido, dado, entregue,. enviado; handed on, over to). Portanto, esquegamos o obli- quo. Seria uma manéird de nfo responder a0 convite de David!’ Wood € de totlos os que ele representa aqui? Eu deveria responder-lhe? V4 saber. O que € um convite? © que é responder a um convite? Isso representa o que; para quem? Um convite deixa livre, sem o que se torna obrigagao. Nunca deveria subentender: vocé tem obrigagao de'vir, vocé deve, é preciso.:Mas 0 convite deve ser insistente, no indiferente. Nunca deveria su- bentender: vocé tem a liberdade de no vir e se no Vier, azar, no importa. Sem a pressio de um certo desejo — que ao mesmo tempo diz “vena” e deixa 26 outro, contudo, sua liberdade absoluta —, 0-convite imediatamente volta atrés e se torna inospitaleiro. Portanto, ele deve desdobrar-se e se redobrar ao mesmo tempo, ao mesmo tempo deixar livre e tomar.como refém: golpe duplo, golpe redobrado. £ possivel um convite? Acaba- mos de vislumbrar as condigdes em que ele existiria, caso exista, e mesmo que exista; alguma vez se apresenta de fato como tal, atualmente? Aquilo que vislumbramos do convite bém do apelo em geral) aciona de um s6 “golp a légica da resposta, da resposta ao convite e da resposta simplesmente, Aquele que meditar sobre 8 do conceito de responsabilidade niio pode deixar de se perguntar, a um dado momento, o que quer dizer “responder” e “respon- siveness’, palavra preciosa para-a qual no.encon- tro'um equivalente preciso’em francés: £ de se perguntar se ‘responder’ tem um oposto que consistiria,, dando crédito 20: senso comum, em nao responder. £ possivel uma decisao a respelto do “responder” e da * responsiveness”? Hoje, em muitos lugares, pode-se presenciar | um esforco simpatico.e inquiétante e idele:partici- pati para restaurar ‘a moral.e sobretudo: para tranqhilizar os que tinham sérios motivos'para se inquietar a esse respeito, Certos. espiritos, .que acreditaram ter reconhiecido em™"A” Desconstru- ¢40,, como se houvesse uma e-uma tinica, uma forma moderna de imoralidade, de amoralidade ou de irresponsabilidade (etc. discurso demasia- damente conhecido, gasto,,mas que nao acaba, no insistamos), outros, mais,sétios, menos apres- sados, com melhor disposicdo para com:A Dita Desconstrucdo, pretendem hoje 0 contririo. ‘Eles desvendam sinais,encorajantes ¢.cada vez: mais numerosos (8s vezes, devo. confessar, ‘emvalguns textos meus) que seriam testemunhas dé uma atengio permanente, extrema, direta ov obliqua, em todo caso cada vez mais intensa, com relagao a essas coisas que se cré poder identificar sob os belos nomes de “ética”, “moral”, “responsabilida- de”, “sujéito” etc. Antes de voltar ‘i nao-résposta, seria preciso declarar, da mansira mais direta, que, se 0 senso do dever ¢ da responsabilidade’ fosse respeitado, ele ordenaria o rompimento com esses dois moralismos, com essas duds restauragbes da moral, incluindo af, portanto, a re-méralizacao da 6 desconstrugio, que parece;naturalmente mais ten- tadora do que aquilo a que ela justamente se opée, mas (que- corre 0risco, a cada instante, de se tranqiillizar para tranqhillizar 0 outro, e de obse- quier,o.consenso com um-novo sono dogmatico. E que.ninguém se-apresse'a dizer que € em nome de uma responsabilidade mais alta e de uma exigéncia moral mais intratével que se declara pouco gosto, por.desigual que-seja, em relagio a esses dois moralismos, Provavelmente, é sempre com base na afirmac3o de, um certo excesso que se pode:pressentir a imoralidade bem conhecida, até-a hipoctisia recusativa,dos moralismos, mas nada permite garantir que.os-melhores nomes ou as figuras mais justs para essa afirmagio sejam a ética, 4 moral, a politica, a responsabilidade, o sujeito. Alids, séria moral e responsavel agir mo- ralmente porque se tem o senso justamente (subli- nhemos também esta palava) do dever e da resporisabilidade? # evidente que ‘ndo, isso seria facil demais e, justamente,’ natural, progfamado pela natureza: € pouco mioral ser moral (tespon- sfvel etc.) porque se tem 0 senso da moral, da inéncia da lei etc. (problema bem conhecido pela lei moral, ela propria “causa” no sentido kantiano, cujo interesse todo reside no paradoxo inquietante, gravado no cere de uma moral incapaz de dar conta da inscrigd, justamente, num afeto (GefZ) ou numa lade, daquilo que nfo deve estar af ins- ctito; ou’ que deve apenas impor o sacrificio de tudo 0 que obedeceria somente a essa inclinag4o sensivel; sabe-se que 0 sactificio ¢ a’ oferenda a

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