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LUIZ HENRIQUE PASSADOR HERBERT BALDUS E A ANTROPOLOGIA NO BRASIL Este exemplar ooresponde redagao final da dissertacao dofendida © aprovada pola Comisséo Julgadora. em 2710312002 BANCA Dissertagdo de Mestrado apresentada 20 Departamento de Aniropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a ovientagao da Profa. Dra. Mariza Corréa, FEVEREIRO / 2002 UNICAMP BIBLIOTECA CENTRAL uniane ie NP CHAMADA Vex romeo ser 1 B3F/2 2 proc £6. 5372/2 2. cox pateo USI 7, OC. DATA Ne CPD FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP so Passador, Luiz Henrique P2653. Herbert Baldus ¢ a antropologia no Brasil / Luiz Henrique | Passador - Campinas, SP ; {s.n.], 2002. Orientador: Mariza Corréa, Dissertagio (mestrado) — Universidade Estadual de ‘Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. 1. Baldus, Herbert, 1899-1970. 2. Antropélogos. 3.Etnologia. 4. Ciéncia - Historia, 5, Brasil — Histéria, I, Corréa, Mariza, II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia ¢ Ciéncias Humanas. I.Titulo. Resumo O presente trabalho esta inscrito na area de estudos sobre a histéria da Antropologia no Brasil, tomando por objeto de andlise a trajetéria de Herbert Baldus Herbert Baldus (1899-1970) foi um etnélogo alemao, naturalizado brasileiro, que chegou ao pais na década de 1920, tendo empreendido Pesquisas etnogréficas entre varios grupos _indigenas _americanos, majoritariamente no Brasil Descendente de uma linhagem de pesquisadores germanicos que, desde © descobrimento, dedicaram-se a estudar os indigenas brasileiros, Baldus teve uma trajetéria peculiar entre eles. Inserindo-se, desde © principio, no processo de institucionalizagéo da Antropologia no Brasil que se iniciou nos anos 30, Baldus ocupou a cadeira de Etnologia Brasileira na Escola Livre de Sociologia e Politica de Sao Paulo de 1939 a 1960, assumindo posteriormente a chefia da Seca de Etnologia do Museu Paulista de 1947 a 1968, vindo também a dirigir aquela instituicao. Sua trajetéria e obra refletem as transigdes entre diferentes periodos e correntes tedricas na Antropologia brasileira, tendo sido um dos introdutores do funcionalismo e dos estudos de aculturagéo indigena no pais, e tendo desempenhado importante papel de lideranca e definigéo nos rumos tomados pela discussdo de questées indigenistas entre os etndlogos no Brasil desde a década de 30, Esta dissertago, portanto, procura analisar os aspectos que caracterizaram sua trajetoria institucional, sua produgéo etnolégica e sua atuago indigenista, buscando langar luz, a partir do itinerario de Herbert Baldus, sobre alguns aspectos de processos mais amplos dentro da historia da Antropologia no Brasil UNICAMP BIBLIOTECA CENTRAL RCULANTE iti Abstract The present issue is refered to the studies on History of Anthropology in Brazil, analysing the trajectory of Herbert Baidus, Herbert Baldus (1899-1970) was a German ethnologist, who became a Brazilian citzen, arrived in Brazil in the 1920's, and accomplished fieldworks among American indigenous groups, mainly the Brazilian ones. Baldus descends from a German ethnological tradition in Brazilian Anthropology that, since the discovery of Brazil, studied Brazilian native groups. Although, compared with his pairs, Baldus had a peculiar trajectory. He was inserted into the process of Anthropology institutionelization in Brazil since its beginning, in the 1930's. He became the Chairman on Brazilian Ethnology in Escola Livre de Sociologia e Politica de Sao Paulo, from 1939 to 1960. From 1947 to 1968, he was the Chief of the Section of Ethnology on Museu Paulista, where he also became the director of the museum. His works reflect the transition between different theoretical trends and historical periods in Brazilian History of Anthropology. He was one of the former ethnologists who introduced functionalistic theories, began the studies on Indigenous acculturation and developed a leadership role on indigenism discussion in Brazil, since the 30's. Therefore, this dissertation intends to analyse the aspects of Baldus’ institutional trajectory, ethnological production and indigenistic actions, to shed light on some wider process occured in History of Anthropology in Brazil A Dra. Maria Helena C. de Figueiredo Steiner A meus pais, mestres, amigos e amores. Ao tempo, linear e circular, que revela e obscurece, prové e subtrai, une e desata, pune e redime. Inexoravel. 15 22 29 39 41 53 59 59 63 73 7 95 95 Apresentacao Agradecimentos Introdugao Contextualizagao Fontes, metodologia ¢ linhas de abordagem Capitulo I: O periodo inicial (1899-1933) A primeira estadia no Brasil: primérdios de um etndgrafo viajante alemao Retorno & Alemanha: a formago etnolégica em Berlim Capitulo Il: O periodo intermediario (1933-1946) Retomo ao Brasil: tentativas de insergo num novo contexto De volta ao campo: pesquisas etnograficas @ 0 encontro com os tapirapé A construgao de uma certa Etnologia: funcionalismo e mudanga de cultura O ingresso na ELSP: insereao num circuito institucional emergente A trindade da ELSP: Baldus, Pierson e Willems Principios de uma Antropologia ensinada e a formagao de uma geragao de pesquisadores nativos A construgao de um projeto etnolégico-indigenista: a cadeira de Etnologia Brasileira na ELSP Capitulo Il: © periodo final (1946-1970) A atuago institucional no Museu Paulista 104 Rorschach entre os kaingang: uma etnopsicologia frustrada 413 Aculturagdo, indigenismo e Antropologia aplicada 139 143 143 152 160 170 179 189 191 A Bibliogratia Critica da Etnologia Brasileira e a monografia sobre os tapirapé: a construgao de uma autoridade etnolégica Capitulo IV: Herbert Baldus, um antropélogo de transicgées A transigdo institucional Uma obra de transi¢ao A transig&o dentro da tradig&o etnolégica germanica Uma nova tematica, uma nova politica: os estudos de mudanga de cultura € 0 indigenismo Referéncias bibliograficas Apéndices indice dos apéndices e legendas vill Apresentacao A presente dissertagdo é resultado de um trabalho de pesquisa iniciado em agosto de 1986 quando, ainda cursando a graduagao em Ciéncias Sociais no Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, fui incorporade como auxiliar de pesquisa ao Projeto Histéria da Antropologia no Brasil (1930-1960), coordenado pela Profa, Dra. Mariza Coréa € financiado inicialmente pela FAPESP e CNPq e, posteriormente, pela FINEP. 0 trabalho teve continuidade quando ingressei no Programa de Pés-Graduagao em Antropologia Social do IFCH/Unicamp em 1988, tendo sido financiado com boisas do CNPq © da FAPESP e orientado pela Profa. Dra. Mariza Corréa. Preocupados em resgatar e entender a histéria da Antropologia no pais entre as décadas de 1930 e 1960 — periodo de consolidagdo institucional da disciplina no Brasil -, trabalhavamos, dentro do projeto, no sentido de “recuperar © que fosse recuperavel dessa historia. Nés o faziamos a partir de depoimentos colhidos junto a antropélogos que viveram e atuaram nesse periodo, além da determinacao de montar um acervo que 0 documentasse com todo tipo de material acessivel (fotos, manuscritos, artigos publicados, correspondéncias, etc.) Durante esse trabalho de coleta de dados para a nossa pesquisa, alguns nomes @ eventos surgiam com freqliéncia — seja através da meméria dos entrevistados, seja através dos documentados —, lembrados como personagens de importancia fundamental para essa histéria que procuravamos entao reencontrar, formando uma espécie de mitologia herdica do periodo. A partir dessas presengas recorrentes no material que estaévamos pesquisando, ficamos convencidos de que uma das maneiras de se atingir 0 objetivo proposto pelo projeto — resgate e compreensdo da histéria da ‘ CORREA, M. “Traficantes do simbélico’, in Histéria da Antropologia no Brasil (1930-1960) ~ ‘Testemuntos: Emilio Willems e Donald Pierson, volume 1. Antropologia no Brasil ~ seria pesquisar, em maior profundidade, as trajetérias Percorridas por alguns de seus personagens, observando de que maneira elas se inseriam e se cruzavam dentro do contexto mais abrangente dessa histéria, formando redes de relagées e de significados histéricos. Compreendendo quem foram eles na histéria da Antropologia no Brasil, poderiamos estar, também, compreendendo melhor uma parte dessa histéria, visto terem sido agentes no processo de sua constituicao. Partindo dessas premissas, concentrei _minhas pesquisas sobre a trajetéria de Herbert Baldus, um desses tantos personagens insistentemente mencionados por nossas fontes. Procurei entrevistar seus contemporaneos com © intuito de obter dados nao documentades e indicagdes de fontes documentais que registrassem sua trajetoria pessoal, institucional e intelectual Paralelamente, desenvolvi pesquisa bibliografica que englobou, tanto a obra produzida por Baldus, quanto obras de autores que se referiam a ele ou a sua produgo antropologica. Assim, através de uma investigagaio abordando, de um lado, aspectos biogréficos (carreira, atuaco institucional, trajetéria de vida, formagao académica, relagSes pessoais e institucionais) e, de outro, aspectos bibliogréficos (orientacdo teérica, preocupagées tematicas, dreas de interesse e produc&o antropolégica), foi possivel reconstituir, a partir desses dados, sua trajet6ria especifica e de que maneira ela se articulou com 0 contexto histérico e institucional do periodo. Isso possibilitou uma compreensdo de parte significativa da historia da Antropologia no Brasil, sendo essa a contribuigo que se buscou no presente trabalho. J4 resultaram das pesquisas desenvoividos no Projeto Histéria da Antropologia no Brasil (1930-1960), as seguintes dissertagSes e teses defendidas nos Programas de Pés-graduacdo em Antropologia Social (a nivel de mestrado) € Ciéncies Sociais (a nivel de doutorado), do Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas da Universidade Estadual de Campinas: Jodo Baptista Cintra Ribas, O Brasil é dos brasilianos: medicina, antropologia e educagéo na figura 10 de Roquette- Pinto, mestrado, 1990; Femanda Peixoto Massi, Estrangeiros no Brasil: a missdo francesa na Universidade de Sé0 Paulo, mestrado,1991; Francisco Tadeu Ribas Santos Rosa, A alianca e a diferenca: uma leitura do itinerério intelectual de Charles Wagley, mestrado, 1993; Cristina Rubin, Antropologia brasileira e a antropologia no Brasil: a era da pés-graduacao, doutorado, 1996; Raquel Miranda Lopes, Etnografia de um saber disciplinar: um olhar sobre a sociologia e a antropologia do campesinato, doutorado, 1999; Héctor Segura-Ramirez, Revista Estudos Afro-Asiéticos e relagées raciais no Brasil, mestrado, 2000. Agradecimentos Agradego a minha orientadora, Prof.a Dra. Mariza Corréa, pela dedicacao e atengao devotadas a mim e ao meu trabalho durante a pesquisa e a confecgao desta dissertacao. Ao CNPq e a FAPESP pelas bolsas a mim concedidas, que tormaram possiveis a conclusdo dos créditos e a execugdo deste trabalho. Ao Programa de Pés-graduagéo em Antropotogia Social do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, seus professores ¢ funcionérios, pela disponil idade © compromisso que tomaram possiveis a conclusdo de meu Mestrado Aos entrevistados, que simpatica e gentilmente me permitiram o encontro vivo com a meméria e a historia. Coube a mim escrevé-la, mas ela pertence a voces. Obrigado pela oportunidade. Jamais esquecerei nossos encontros ‘Aos meus colegas no Projeto, que vieram antes e depois de mim, e especialmente aqueles com quem compartithei a beleza que pode existir num trabalho académico: Yeda, Maria Helena, Ana Luisa e Tadeu. ‘Ao meu professor de alemao, Herr Egon Zink. Ao Cliff, in memorian, que com seu espirito de viajante, acreditou ter encontrado em Baldus um Marco Polo n Nos trépicos; espero que seu trabalho hercuileo, de transcri¢ao dos didrios, ainda resulte em desvendamento para todos. A todos meus professores e colegas, pela colaboragao que tiveram seus ensinamentos e conselhos. Especialmente aqueles que tiveram a paciéncia e a amizade de ler, criticar e corrigir as imperfeig6es de minhas primeiras redagdes: Maria Teresa de M. P. Furtado e Patricia Porchat Knudsen. Os erros, imprecisées e imperfeigSes, porventura mantidos, séo de minha inteira Tesponsabilidade, por conta da minha insisténcia em julgé-los acertados. ‘Ao pessoal do MAE/USP, que ao me convidar para o seminario e a organizagao da exposi¢ao sobre Herbert Baldus em 1999, foi fundamental para a retomada de um trabalho que deveria ser concluido. Aos meus companheiros da APTA, especialmente Teresinha C. Reis Pinto e Brigida Carla Malandrino. Gragas a vocés, experimentei 0 oficio de antropdlogo, € a descoberta da Antropologia como instrumento de possiveis reflexo, transformagao e emancipacao social Aos meus alunos, por me mostrarem que, as vezes, eu tinha algo de importante a dizer. Ou no. A UNIP, por ter me propiciado a gratificante experiéncia da dooéncia A todos os companheiros e companheiras que estiveram comigo, em algum momento, durante esse trajeto que agora se finaliza. Nossa amizade n&o tem fim, exceto se a vida ou 0 desejo sincero assim o quiserem (aprendi isso com Régis). Agradeco especialmente aqueles que estiveram ao meu lado, de perto ou de longe, pelo “auxilio luxuoso” que me permitiu suportar a angustiante @ solitaria experiéncia de escrever: Nando, Marcinho, Achylles, Marcio Petrella, Joao Mathias, Pati, Claudia, Telé, Mara e Anderson. E, acima de tudo, agradeco @ minha familia, nas figura de meus pais, José Luiz e Diva Zago Passador, meus irmaos, Joao Luiz e Ménica, minha cunhada Claudia, sobrinhos, primos, tios, tias, e avds (tenho saudades), que Nunca me faltaram com apoio € acolhimento temos, Obrigado meus pais, pela 12 providéncia material, educacional, intelectual, moral, emocional e ética que vocés sempre se esforgaram em manter, ¢ que tornaram possivel minha existéncia, Vocés fizeram sua parte; espero fazer jus aos sonhos que sonharam para mim. Eu amo vocés. Por fim, a todos, agradego pela paciéncia e pela espera 3 4 Introducéo, “(..) se vocé quer compreender 0 que € a ciéncia, vocé deve olhar, em primeiro lugar, nao para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente néo para o que seus apologistas dizem sobre ela; voce deve ver 0 que os praticantes da ciéncia fazem.” Clifford Geertz.’ O que um praticante da Antropologia faz? Para Geertz, etnografia, a qual podemos entender como descrigao, sistematizagao ¢ interpretagao de dados culturais, observados pelo antropdiogo a partir de uma experiéncia de campo que ele compartilha com os elementos de uma cultura. Partindo desse ponto de vista, Geertz e os chamados antropélogos “pés-modernos” debateram a produgéo de etnografias como textos e suas estratégias autorais. No entanto, em se tratando do fazer etnogréfico, podemos abordar outro aspecto nao menos crucial para a compreensao da Antropologia Esse fazer 6 compartilhado pelos integrantes de uma comunidade cientifica identificados com essa ou aquela disciplina. Pode-se afirmar ent&o que a Antropologia, como no mais todas as ciéncias, constitui-se num campo de conhecimento calcado numa prética relativamente comum a seus produtores. Esses dados — conhecimento e prética — determinam uma acdo social (uma vez que coletiva e compartilhada) especifica, ¢ a constituigo de um sistema pelo qual os agentes, ou produtores, se expressam num determinado contexto Parafraseando Geertz, isso vai definir ‘maneiras de estar no mundo” (‘ways of being in the world’), de situar-se dentro de uma estrutura sociocultural. Esse situar-se define em grande parte a vida de um sujeito, o papel que ele pensa ocupar no mundo e a sua maneira de pensar e atuar social e culturalmente, sua maneira de interpretar e fazer sentido no contexto de sua experiéncia de vida. * GEERTZ, C. A Interpretagéo des Culturas, pag. 15. 2 GEERTZ, C. "The way we think now: toward an Ethnography of modem thought”. In Local Knowledge, pag. 155. Através de sua aco social definida e especifica, os antropélogos se identificam e s&o identificados enquanto tal, o que nos permite olhar para eles n&o apenas como sendo técnicos ou especialistas que se utilizam de teorias, Métodos e técnicas para uma determinada atividade profissional, Eles também podem ser observados - e isso talvez seja o mais significativo para a compreensdo de sua atuacdo na realidade — como sujeitos que, através de sua ago, se constituem como elementos de uma comunidade particular. Essa “tribo", por assim dizer, representa um segmento social constituide por um grupo de agentes culturais organizados em torno de uma unidade intersubjetiva, que determina 0 grau de sua especificidade dentro de um contexto mais abrangente de uma sociedade. Partindo desses pressupostos, podemos abordar antropologicamente uma comunidade cientifica, definida pela especificidade de sua aco social, que engloba no apenas 0 tipo de conhecimento que ela produz, mas também as suas praticas e formas de organizacéo que interferem e determinam sua produgao. Ou seja, 6 possivel uma Antropologia do campo cientifico e, por conseguinte, uma Antropologia da prépria Antropologia Através dessa dtica, um antropdlogo pode ser tomado como um sujeito inscrito numa sociedade e numa cultura através de sua pertinéncia a um segmento menor e particular delas — a comunidade dos antropélogos — e sua ago e produg&o sociais devem fazer sentido, tanto no contexto mais especifico de sua comunidade, quanto no contexto mais amplo de uma sociedade. Assim, a0 analisarmos a atuacdo dos antropélogos inscrita no contexto de sua do sociocultural, podemos comegar a entender, partindo de seus significados, o que produgdo — comunidade e sociedade —, dentro do qual ela ganha um signi define a pratica antropolégica e a Antropologia naquele contexto. A presente dissertagdo parte dessa concepcdo do que vem a ser a Antropologia e um antropdlogo como fendmenos socioculturais © historicos, procurando olhar para Herbert Baldus como um antropélogo que esteve inserido 16 num determinado momento histérico, atuando como membro de uma comunidade especifica — aquela dos antropélogos no Brasil entre as décadas de 20 e 60 do século passado -, dialogando e interagindo com seu contexto e resultando dai os significados de sua trajetoria, atuagdo e produgao. Tal concepgdo traz desdobramentos que devem ser abordados. Se para compreendermos a Antropologia devemos observar a pratica dos antropélogos, também é verdade que ela envolve mais do que 0 trabalho de campo e a produgao de textos. Enquanto prdtica social, o fazer antropolégico engloba processos de aprendizado e formago dos antropdlogos que devem necessariamente ser observados pelo pesquisador, ou “etnégrafo” da ciéncia como prefere Geertz’, pois s&o insténcias constitutivas do campo da Antropologia, determinando dinamicas internas da comunidade antropolégica. A Antropologia moderna caracteriza-se pela formagéo regular de especialistas profissionais e pela produgdo de conhecimento sistemética, iniciadas a partir da sua consolidag&o como campo cientifico auténomo — com teorias, métodos, técnicas e objetivos préprios e especificos -, e da sua institucionalizagéo enquanto uma disciplina académica. Ha, portanto, toda uma estrutura institucional na qual 0 antropélogo € socializado, constréi sua pratica e desenvolve sua trajetoria. As instituigdes se constituem no locus da produgao e reprodugao da Antropologia e, portanto, da atuagéo dos antropélogos. Na sua pratica, o antropélogo produz, reproduz e modifica essa estrutura, sendo ela uma das instancias em que sua aco ganha sentido. Como alguns autores ja notaram*, as § GEERTZ, C. op. cit. * RABINOW, P. “Representations are social facts: modemity and post-modemity in Anthropology” © MARCUS, G. E. “Afterword: ethnographic writing and anthropological careers’, in CLIFFORD, J. & MARCUS, G. E. Writing cuiture — The poetics and politics of ethnography. condigdes materiais que permitem uma pratica antropoidgica incluem as instituigdes das quais os antropélogos participam, constituindo uma instancia onde essa pratica se define e se legitima. Faz-se assim necesséria uma anélise do contexto institucional do qual os antropdlogos participam, no qual suas agGes esto inscritas e sobre o qual eles interferem, para se alcangar uma dimensdo mais ampla e profunda da pratica do conhecimento antropolégicos. Compreender como se faz Antropologia e em que condigdes esse fazer se constréi pode nos ajudar a entender como se constitu um antropélogo e sua atuacao. Contudo, nao apenas dados relativos & sua passagem por instituicdes, mas também dados relativos & sua trajetéria mais pessoal podem nos permitir atingir 0 sentido de sua atuagdo, uma vez que as relagSes pessoais podem se articular e determinar as institucionais. Portanto, a utilizago de dados ¢ documentagao nao oficiais, coletados em entrevistas com contemporaneos € material inédito e/ou nao publicado nos permitem ter acesso ao acaso, a incongruéncia e a imprevisibilidade que fazem parte de uma trajetéria individual © que podem estar ausentes da documentacdo oficial © mesmo procedimento pode ser aplicado quando procuramos informagées sobre as relagdes entre antroplogos, podendo-se obter dados referentes & constituicdo de redes de relacdes pessoais que perpassam a comunidade, e que permeiam e interferem nas relagées institucionais. Pode-se ainda obter informagées sobre aspectos obscurecidos da prética antropolégica como as experiéncias no trabalho de campo, politica institucional e congéneres Essas informagdes constituem 0 que se costuma chamar de “fofoca’ ou “conversa de corredor”. Tais dados, produzidos e obtidos informalmente, embora Por vezes possam esbarrar em resisténcias éticas (nao sem fundamento), apresentam-se como importantes fontes para a obtencéo de informagdes que possam esclarecer ao pesquisador questées obscuras relativas ao seu objeto. Eles oferecem interpretacées diversas sobre um mesmo fato investigado, o que 18 @ acesso & natureza polifonica da realidade investigada © uma perspectiva mais rica € complexa & observagao da pratica e produgdo antropolégicas e seu contexto. A esse respeito, Paul Rabinow escreve: “(..) For many years, anthropologists informally discussed fieldwork experiences among themselves. Gossip about an anthropologist’s field experiences was an important component of that person's reputation. But such matters were not, until recently, written about ‘seriously’ It remains in the corridors and faculty clubs. But what cannot be publicly discussed cannot be analyzed or rebutted. Those domains that cannot be analyzed or refuted, and yet are directly central to hierarchy, should not be regarded as innocent or irrelevant We know that one of the most common tactics of an elite group is to refuse to discuss — to label as vulgar or uninteresting - issues that are uncomfortable for them. When corridor talk about fieldwork becomes discourse, we learn a good deal. Moving the conditions of Production of anthropological knowledge out of the domain of gossip — where it remains the property of those around to hear it — into that of knowledge would be a step in the right direction.”® A utlizacao de entrevistas como fontes para a pesquisa desenvolvida para essa dissertagao tomou essas premissas como perspectiva de investigagao & andlise. Toma-se também necessaria a discusséo sobre a andlise histérica que az parte da perspectiva © abordagem do tema. Olhar retrospectivamente para 0 Processo de constituicdo da Antropologia é uma pratica relativamente antiga e comum na reflexao sobre @ nossa disciplina, Para exemplificar tal fato, pode ser citado que, ja em 1937, Robert Lowie publicava uma obra sobre a histéria da Antropoiogia®, na qual comentava obras produzidas anteriormente sobre o tema, Procurando dar conta da formacao de teorias antropolégicas. ; RABINOW, P. op. cit, pag. 253. ° LOWE, R History of Ethnology. 19 Essa tradigao de se pensar a Antropologia a partir de um sistema conceitual que desse conta das questées colocadas pela disciplina, embora valida e legitima, produziu uma bibliografia que privilegiava a relagdo entre idéias e conceitos teéricos, desconsiderando ou relegando a um plano secundario as condiges histérico-culturais e 0 contexto de sua produgao. Como nota Sydel Silverman: “(..) the rapid expansion of anthropology over the thirty years, and the necessity of simplifying its ideas for teaching purposes, have produced a standardized treatment of the history of anthropological theory — as seriated ‘isms’, concepts, and names of notables divorced from the social and personal contexts out of which they emerged. As anthropological theory becomes codified in this manner, and as each generation of anthropologists and students becomes further removed from the seminal figures of the field, an understanding of their work as part of a life, a career, a personality, and a social and cultural setting, becomes more and more elusive.” Em geral esse tipo de periodizacao conceitual da Antropologia segue uma linha analitica que procura entender a sua produgdo como uma série de contribuigSes que desembocam necessariamente no estado atual da disciplina Nao que seja um equivoco procurar compreender a produgdo atual de uma ciéncia como resultado de um proceso histérico. A questéo 6 que esse tipo de Perspectiva corre o risco de incorrer no que George Stocking Jr. identificou como “presentism’ in historical study”®. Esse “presentismo”, procedimento de postura “utilitarista’ para Stocking, procura entender as respostas dadas pela Antropologia em contextos remotos a partir de questées que nos s&o colocadas no contexto atual. Tal tipo de abordagem tenderia a perder de vista uma perspectiva mais integral da atividade cientifica de um determinado periodo, pelo fato de n&o observar quais as ] SILVERMAN, S. Totems and teachers: perspectives on the History of Anthropology. pag. ix ° STOCKING Jr., G. W. Race, culture and evolution - Essays in the History of Anthropology. 20 condigdes histéricas especificas que determinaram a sua ocorréncia, quais as perguntas que os antropdlogos se faziam aquela época e quais as referéncias que utilizaram para produzir suas respostas. Assim, Stocking propde como alternativa uma abordagem que considere a produgdo antropolégica de um determinado periodo a partir das questées que Ihe foram impostas pelo seu contexto histérico. Essa é uma abordagem que busca “entender 0 passado pelo bem do passado” (“to understand the past for the sake of the past®), a fim de compreender a dimens&o e 0 sentido da produg&o antropoldgica de um tempo a partir de seu momento de emergéncia histérica. Nesse sentido, a produgdo se apresenta como uma resposta a questdes especificas e que assumiu um significado também especifico, que s6 pode ser plenamente entendido através de sua contextualizagao. Portanto, se ha utilidade numa andlise historica desse tipo para a compreensdo do presente, ela se fundamenta na compreensdo do significado que uma produgao assumiu no contexto de sua emergéncia, ndo se constituindo como um saber teleolégico. Como afirma Stocking “(..) this approach does encourage us to see a body of knowledge as a set of propositions ‘together with the questions they are meant to answer’, to understand the ‘reasonableness’ of points of view now superseded, to see historical change as a complex process of emergence rather than a simple linear sequence — in short, to understand the science of a given period in its own terms.”"° A perspectiva de andlise histérica do material tratado na dissertacao segue as premissas discutidas acima, que se constitui de forma geral na perspectiva adotada por diversos autores que produziram reflexdes sobre a histéria da Antropologia a partir do resgate e compreenséio de trajetorias individuais de antropélogos, analisando seu papel no processo de constitui¢ao ® STOCKING ur., G. W. op. cit. * STOCKING Jr., G. W. op. cit. do campo € do saber antropolégicos"". Apesar de se preocupar mais aprofundadamente com a trajetoria e a produgéo de Herbert Baldus, como o leitor poder notar, a presente dissertagao procura ndo perder de vista os processos histéricos corridos na formagao do campo antropolégico brasileiro, € suas articulagdes com os dados mais particularmente relacionados a Baldus. Contextualizagao Herbert Baldus chegou ao Brasil no inicio da década de 1920, retornando @ Alemanha no final da mesma; estabeleceu-se definitivamente no Brasil na década de 1930 e faleceu no ano de 1970, tendo fixado sua atuacéo em Sao Paulo. Toda a sua atuagao no contexto antropoldgico brasileiro se deu no campo da etnologia e dos estudos de grupos indigenas brasileiros, sendo lembrado principalmente como estudioso de grupos tupi, mais especificamente os tapirapé, mas tendo também pesquisado grupos guarani e jé. O seu periodo de atividade coincide com o periodo em que se processou a institucionalizagao da Antropologia no Brasil. Na década de 1930, em Sao Paulo, foram fundadas a Escola Livre de Sociologia e Politica (1933) e a Faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras da Universidade de Sé0 Paulo (1934)'?, onde passaram a ser oferecidos cursos regulares de formagéo em Antropologia. Antes do surgimento das faculdades, como nota Lilia Schwarcz’®, os Museus se constituiam nos sitios institucionais dominantes da producéo antropolégica no pais, nos quais os pesquisadores se aglutinavam. Aqueles que * Por exemplo: PANOFF, M. Bronislaw Malinowski; KUPER, A. Antropélogos e Antropologia; SILVERMAN, S. op. cit. e CLIFFORD, J. Person and myth: Maurice Leenharat in the melanesian worid, ™ Serdo utlzadas, no decorrer do texto, as siglas ELSP e FFCL/USP quando howver referéncias a.essas instituigdes. © SCHWARCZ, L. K. M. A era dos museus no Brasil 1870-1930: ‘Polvo é povo, molusco também 6 gente’ se dedicavam & Antropologia nao tinham uma formagao regular no pais, vindos em geral de outras dreas académicas — principalmente das ciéncias médicas € biolégicas -, tornando-se autodidatas ou tendo de especializar-se em outros paises. Varios pesquisadores estrangeiros vinham ao Brasil realizar estudos etnolégicos, mas poucos se fixavam ou permaneciam aqui além de seus periodos de pesquisa Com a fundagao das primeiras faculdades de Filosofia e de Ciencias Humanas, teve inicio a formagao sistematica de pesquisadores nativos. Professores estrangeiros foram trazidos para ca a fim de ministrarem cursos regulares nas escolas recém fundadas, formando pesquisadores profissionais que, num momento seguinte, passaram a ocupar as cadeiras de Antropologia. Os museus foram gradativamente perdendo terreno para as faculdades como centros privilegiados da produgdo cientifica e gravitagéio dos antropélogos, e as carreiras tomaram-se mais estaveis e regulares. A comunidade antropolégica nativa cresceu, passando a organizar-se em toro de instituigSes universitarias e associagdes, promovendo congressos, publicando periddicos e ampliando sua 4rea de atuaco na comunidade académica € na sociedade. Paralelamente @ institucionalizagao da discipiina — e em grande medida devido a ela -, houve uma maior sistematizago do conhecimento antropolégico produzido no pais. Isso se deu gracas, primeiramente, a formagéo de pesquisadores treinados para 0 trabalho cientifico e, em segundo lugar, a0 maior intercémbio entre pesquisadores nativos ¢ estrangeiros através de congressos intermacionais, projetos de pesquisa financiados por érgdos estrangeiros e circulagéo de pesquisadores estrangeiros nas instituigbes, permitindo a introdug&o e difuséio de perspectivas tedricas produzidas nos paises em que a Antropologia tivera suas origens histéricas e estava jd estabelecida e desenvolvida como campo de conhecimento, Todo esse proceso permitiu 0 inicio de uma produgdo local e rotinizada sobre 0 Brasil, realizada por especialistas formados no pais. Deixavamos entéo de ser, gradativamente, informantes nativos para nos tornarmos pesquisadores de nds mesmos, passando de objetos a sujeitos da produgdo antropolégica sobre a realidade brasileira’. Herbert Baldus foi um dos varios agentes presentes nesse proceso de institucionalizagao da Antropologia no pais, tendo sua atuacao intimamente ligada a ele, ocupando posigdes relevantes nos quadros institucionais do Periodo, atuando como formador de pesquisadores, produtor de conhecimento e organizador de estruturas institucionais. A compreensdo de sua trajetéria individual deve, portanto, passar necessariamente pelas formas de insergao no contexto descrito, pois 0 seu sentido emerge das articulagSes entre trajetéria e contexto. Por isso, a pesquisa desenvolvida para essa dissertagdo buscou se utilizar do que Geertz nomeou de “dados convergentes” (‘convergent data’), definidos da seguinte maneira: “By convergent data | mean descriptions, measures, observations, what you will, which are at once diverse, even rather miscellaneous, both as to type and degree of precision and generality, unstandardized facts, opportunistically collected and variously portrayed, which yet turn out to shed light on one another for the simple reason that the individuals they are descriptions, measures, or observations of are involved in one another's lives (...)”.® Partindo dessa premissa metodolégica, a convergéncia dos dados sobre a trajetéria individual de Herbert Baldus e 0 contexto antropolégico do periodo em que ele atuou apontam para uma caracteristica marcante que define, no meu entender, 0 sentido fundamental de sua atuacdo. Baldus, tanto em seu percurso A produgdo antropolégica brasileira no se ateve apenas aos estudos de populagées indigenas, mas tambem aos estudos de comunidades rurais ¢ urbanas e de relagdes raciais ¢ identidade nacional, GEERTZ, C. op. cit., pag. 156, 24 institucional quanto em sua obra, encama a transigo entre os periodos pré e és institucionalizagdo da Antropologia no Brasil Do ponto de vista institucional, Baldus perfaz um percurso que tem sentido inverso ao processo de institucionalizacdo, iniciando sua trajetéria institucional dentro de um centro universitario (a ELSP) e a conciuindo-a dentro de um museu (o Museu Paulista). Essa inverso, como sera discutido, guarda uma tensdo presente na passagem entre periodos que se sucedem, caracterizando a trajetéria de Baldus. Ainda como dado representativo da transigéo encarnada por Baldus, ha tentativas de periodizacdo da historia da Antropologia que revelam esse sentido. Autores como Darcy Ribeiro'® e Roberto Cardoso de Oliveira’’, que procuraram dar conta da inser¢éo de Baldus no campo antropolégico brasileiro tiveram dificuldades de tipificd-lo, uma vez que sua trajetéria e obra guardam caracteristicas de diferentes periodos. Outros, como Julio César Melatti'® e Eduardo Viveiros de Castro!®, ao analisarem sua obra, reconheceram em Baldus as marcas da transigo entre paradigmas e teorias na historia da Antropologia no Brasil. Seus textos refletem uma tensao entre paradigmas pois, embora trabalhem os dados etnogréficos numa perspectiva funcionalista — heranga de sua formacéo na Alemanha com Richard Thurnwald -, neles ainda subsistem uma acentuada e explicita preocupagao com dados de cultura material, numa perspectiva mais descritiva que analitica e mais histérica que sincrénica, bem ao gosto da tradi¢éo dos estudos alemdes realizados no Brasil no século XIX @ inicio do século XX Portanto, a obra de Baldus pode ser entendida como uma obra de transigao [ RIBEIRO, D. *Prefacio’, in GALVAO, E. Encontro de sociedades: indios e brancos no Brasil. 7 OLIVEIRA, R. C. “O que € isso que chamamos de antropologia brasileira?” in Sobre o pensamento antropolégico. ' MELATTI, J. C. “A antropologia no Brasil: um roteiro’, in Boletim Informativo Biblicgréfico, n.o a7. “" VIVEIROS DE CASTRO, E. Araweté: os deuses canibais. entre a tradigao dos estudos etnoldgicos dos etndgrafos viajantes e os estudos na linha funcionalista que os sucederam No que se refere a sua obra, podem ser apontadas outras duas caracteristicas importantes que a definem. A primeira é 0 emprego de um Método comparativo nos estudos etnolégicos, que privilegiava 0 estudo de areas culturais como campo de trocas histéricas entre grupos indigenas. Essa caracteristica, além de ter sido assumida explicitamente por Baldus™, ¢ destacada por outros autores que comentaram sua obra*", A segunda caracteristica 6 a preocupacdo com os estudos de “mudanga cultural’, como 0 préprio Baldus denominou-os™, que inauguraram na produgao antropolégica brasileira, a partir dos anos 30, os estudos de aculturagao indigena e de relagées interétnicas como temas autonomos e Areas especificas da investigag&o etnolégica®. Baldus foi pioneiro nesse ponto pois, como afirma Egon Schaden a respeito de seus estudos sobre mudanga de cultura: “Até 1937 os poucos autores que se aventuraram a falar da mudanca cultural de indigenas do Brasil fizeram-no incidentalmente, 4 margem de outros assuntos, que Ihes pareciam merecer maior atengdo Naquele ano Herbert Baldus publicou os seus ‘Ensaios de Etnologia Brasileira’, obra em que se desloca para o primeiro plano o problema da aculturagao de algumas tribos de nosso pais. Em anos anteriores Baldus visitara os Kaingang, os Boréro, os Teréna, os Karajé € os Tapirapé, grupos que em grau maior ou menor haviam sofrido variados influxos do mundo dos brancos. Péde, assim, estudar num ensaio comparativo os resultados diretos e indiretos do contacto, Procurando, pela primeira vez, discemnir certas tendéncias comuns *° BALDUS, H. Ensaios de etnologia brasileira. ** Por exempio, SAMPAIO-SILVA, O. “Herbert Baldus: vida © obra ~ Introdug&o ao indigenismo de um americanista teuto-brasileiro’, in Revista do Museu de Arqueologia © Etnologia/USP, n.0 2 ¢ VIVEIROS DE CASTRO, E. op. cit, % BALDUS, H. op. cit. ® Outros autores antes dele tocaram nessa questo, mas no como tema principal e/ou especifico de estudos etnolégicos. A partir de sua obra, inaugurou-se uma tradi¢go na Antropologia brasileira de estudos que tratavam a questo como tal. Como exemplo, podem ser citados os estudos de Egon Schaden sobre aculturacao indigena e os de Roberto Cardoso de Oliveira sobre fricgo interétnica, desenvolvidos em décadas posteriores. 26 que encontram expresso concreta em manifestagdes de mudanga no raro dispares. Desbravou terreno virgem e abriu pistas para os que viriam depois."** E possivel perceber uma articulagao significativa entre sua produgdo etnolégica e sua atuagéo no campo da politica indigenista, que marcaram a trajetoria de Baldus e sua defesa de uma Antropologia aplicada. Seu indigenismo pode ser interpretado como a manifestagao politica de suas preocupacées tedricas relativas a mudanga de cultura, sendo esse um aspecto que atravessa toda a sua obra e atuagéo, emprestando coeréncia @ totalidade de sua trajetéria E nesse ponto que parece residir a heranca de Baldus que permaneceu em seus alunos, pois 6 notavel a mesma articulagdo entre produgo cientifica e atuacao politica presente em trajetérias distintas como as de Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e David Maybury-Lewis, por exemplo, todos tendo frequentado seus seminarios na ELSP. Se Baldus parece nao ter produzido uma linhagem de discipulos no que diz respeito a inauguragéo de uma escola de pensamento — como o fez Florestan Fernandes na Sociologia paulista -, pode- se argumentar que sua influéncia na formagao de um pensamento antropolégico brasileiro se deu no campo de uma atitude e de uma identidade intelectual, que articulam produce cientifica e atuagao politica, presentes numa geragdo de ex- alunos seus. Outro ponto relevante na trajetoria de Herbert Baldus e que merece ser observado com ateng&o, pois é revelador de uma forma de insergdo no contexto mais amplo da histéria da Antropoiogia no Brasil, 6 0 fato de ele ter sido herdeiro, & sua época, de uma linhagem de pesquisadores germénicos presente no pais desde o periodo colonial. Inaugurada no século XVI por Hans Staden e os cronistas viajantes e continuada nos séculos XIX e XX por Martius e Spix, ™ SCHADEN. E, Acutturagao indigena, pag. 10. Karl von den Steinen e Curt Nimuendaju, entre outros, essa tradicéo germanica de estudos etnolégicos constitui-se num fato histérico cuja importancia para a Antropologia no Brasil j4 foi ressaltada por Egon Schaden® e Thekla Hartmann™, por exemplo. Baldus foi um representante dessa linhagem no periodo em que esteve em atividade no Brasil, tendo sido freqlientemente procurado por pesquisadores de lingua alema que vinham ao pais, além ter sido sécio de varias associagdes de antropélogos e colaborador assiduo de publicagdes etnoldgicas nos paises germanicos. Visitou por varias vezes esses paises, passando por congressos, museus € universidades, mantendo contato constante com pesquisadores de lingua alema. Esses fatos todos indicam que ele constituiuse como um Personagem que sustentou essa espécie de conexao germanica no Brasil na segunda metade do século XX. ‘Aiém dos germanicos, Baldus teve grande circulago por outros paises, mantendo contato com instituigses e antropélogos esirangeiros centrais no cenério internacional do periodo. Por varias vezes participou como representante brasileiro e/ou da organizacao de congressos intemnacionais dentro e fora do Pais, 0 que nos permite toma-lo como um dos articuladores das relagdes da Antropologia brasileira com outros centros produtores, resultando num intercambio entre brasileiros e estrangeiros que determinou, em certa medida, o perfil da comunidade e da produgao antropolégicas no Brasil. Todos os aspectos expostos acima so constitutivos da complexidade da trajetoria de Herbert Baldus e da sua articulago com 0 contexto histérico da Antropologia no Brasil no periodo de 1920 a 1970. Resgatados, eles permitem uma compreenséo ndo somente de sua atuacdo especifica, mas também langam luz sobre os significados histéricos de aspectos mais amplos que 3, SCHADEN, E. "Contribuigo alema & Etnologia brasileira’, in Afualidade Indigena, n.0 20, * HARTMANN, T. “Contribuigdes em lingua alema para a Etnoiogia do Brasil, in Revista do ‘Museu Paulista, N. S., vol. XXIV. 28 constituem a formagéo do campo da Antropologia no pais, tais como a transig&o de praticas e paradigmas antropolégicos no processo de sua institucionalizagéo, © surgimento de temas recorrentes na produgao etnolégica, a articulagdo entre a produgao académica e a atuagdo politica dos antropélogos, a relevancia de linhagens distintas na construgéo do campo e as relagdes da produgdo nativa com os centros produtores estrangeiros, Enfim, os dados relativos & aluagdo de Baldus podem nos proporcionar uma compreenséo critica de uma parte da histéria da Antropologia no Brasil através da histéria de um de seus agentes. Esse € 0 objetivo que se buscou nessa dissertacAo. Fontes, metodologia e linhas de abordagem A pesquisa desenvolvida para essa dissertac&o usou como fontes um material bibliografico produzide por e sobre Herbert Baldus, além de obras de autores que deram contribuigdes teéricas © metodolégicas para a pesquisa em historia das ciéncias e, mais especificamente, historia da Antropologia. O material bibliogréfico foi acessado nas bibliotecas do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da Universidade de Sao Paulo, da Fundaco Escola de Sociologia e Politica e do Museu Paulista, além de cpias de textos enviados por bibliotecas no exterior. Alem das fontes bibliograficas, foram utilizadas fontes documentais de arquivos histéricos, como 0 acervo do Projeto Historia da Antropologia no Brasil (1930-1960), Arquivo Edgard Leuenroth (ambos do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas) e os arquivos da Fundagdo Escola de Sociologia e Politica, além de material iconografico que registra o contexto historico e a trajetoria de Herbert Baldus. 2» Por fim, foram feitas entrevistas com contemporaneos de Baldus em busca de fontes de histéria oral. Foram entrevistados por mim Egon Schaden, Thekla Hartmann, Jodo Batista Borges Pereira, Aryon Dall'lgna Rodrigues, Oracy Nogueira, Vilma Chiara, Maria Hele C. F. Steiner, Paulo Camither Florengano, Darcy Ribeiro, Jirn Philipson, Mauricio Segall, Femando Altenfelder Silva, Mario Wagner Vieira da Cunha, Juarez Brandéo e Otavio da Costa Eduardo. Além das entrevistas, foram utilizados os depoimentos de Egon Schaden, David Maybury-Lewis, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira e Antonio Rubbo- Miller, gravados em audio e/ou video, que compéem parte do acervo do Projeto Historia da Antropologia no Brasil (1930 — 1980). Depoimentos de Antonio Candido de Mello e Souza e Hans Becher foram- me enviados por carta pelos mesmos, e encontram-se reproduzidos nos Apéndices, ao final desta dissertacdo. E importante fazer algumas ressalvas aqui. As entrevistas feitas por mim n&o foram gravadas em audio ou video, resultando apenas em anotagdes presentes nos didrios de campo que utilizei durante a pesquisa. Tal procedimento foi adotado, durante as entrevistas, para evitar as interferéncias que os equipamentos de gravac&o pudessem, porventura, introduzir na minha relagao com os entrevistados. Essas interferéncias poderiam levar & omissao, por parte dos entrevistados, de informagdes nao documentadas e que se mostravam fundamentais para o trabalho desenvolvido. Optei, portanto, pela utilizagao de uma metodologia de campo consagrada por uma tradi¢éo antropolégica, que se construiu alicergada nos didrios de campo. © objetivo, como j4 dito, foi obter informagées sobre dados nao documentados, mas que compéem a meméria sobre Baldus que sobrevive na comunidade de seus contemporaneos. Quando forem mencionados dados colhidos nessas entrevistas, serao indicadas as fontes ou no, pois adotei um critério ético de manuteng&o do anonimato (baseado no que tomo como bom 30 senso), quando julguei que as informagédes poderiam causar algum tipo de constrangimento aos entrevistados. As informagdes que coincidiam nas entrevistas, serao mencionadas como tendo sido dadas por varios dos entrevistados Portanto, hd duas ressalvas importantes a serem feitas. A primeira, 6 que © Ieitor no encontraré trechos das entrevistas reproduzidos no texto, pois ndo houve possibilidade de reproduzir fiel e literalmente as palavras dos entrevistados. A segunda, é que assumo inteira responsabilidade pela publicagéo das informagées, pelas mengdes aos nomes dos entrevistados contidas nesta dissertagéo, quando houverem, e pelas imprecisées que porventura se apresentarem. Agradego aos entrevistados a gentileza, disponibilidade e confianga a mim dirigidas durante as entrevistas. Tomando por objeto a atuagéo de Herbert Baldus na histéria da Antropologia no Brasil e partindo das fontes acima citadas, a presente dissertagéo aborda trés instancias constitutivas que a determinam: contexto, trajetéria e produg&o. Tomadas separadamente apenas como procedimento analitico, uma vez que sao indissociaveis e se sobredeterminam, o trabalho procura compreender de que forma se da a articulacao entre essas instancias, buscando 0 sentido que dela emerge. Como esses conceitos estarao perpassando toda a andlise desenvolvida, torna-se necessario defini-los. Por contexto, estou entendendo as condigées materiais, historias, sociais, politicas, econémicas e culturais existentes num determinado espaco e tempo, nas quais se inserem a trajetoria e a produg4o. E o contexto e suas relagdes que definem o grau de pertinéncia e adequacéo destes num determinado periodo historico, determinando assim o seu sentido. Portanto, os significados da trajetoria e da produgao resultam de articulagdes com as interpretagdes contextuais, 0 que impde uma compreenséo de seus determinantes para entender trajetéria e produgao. Por trajetéria, entendo 0 percurso social de um sujeito dentro de um determinado contexto, constituindo seu percurso biografico. Ela nos indica como. situar 0 sujeito dentro do contexto, descrevendo sua interferéncia nas estruturas contextuais e de que forma estas interferem sobre ele. Nao perdendo de vista que a trajetéria é socialmente construida, ela sera observada dentro da rede de relagbes que a definem, partindo do pressuposto de que o “envelhecimento social’ de um sujeito é independente do seu “envelhecimento bioidgico’, como postula Pierre Bourdieu: “C'est a dire quion ne peut comprendre une trajectoire (c'est-a-dire le Vieilissement social qui, bien gu'll Paccompagne inévitablement, est indépendant du vieillissement biologique) qu’a condition d’avoir préablement construit les états successifs du champ dans lequel elle s'est déroulée, done fensemble des relations objectives qui ont uni agent considéré ~ au moins, dans un certain nombre d'états pertinents — 2 ensemble des autres agents engagés dans le méme champ et affrontés au méme espace des possibles.””” Nesse sentido, o sujeito da trajet i@ serd observado enquanto um agente que se insere num contexto de forma sempre relacional e dialégica, o que define @ maneira de perpassé-lo, atribuindo trajetoria um carter mais complexo que uma mera seatiéncia de eventos e datas Por fim, entendo a produg&o como 0 conjunto da obra de um sujeito, que traduz as representagdes e interpretagdes que produziu sobre o contexto no qual sua trajetoria se inseriu. Analogamente € trajetoria, a producdo sera entendida enquanto uma forma de individualidade socialmente construida, relacional e dialégica, expressa através de sistemas concsituais e simbdlicos compartilhados ou nao por seus contemporaneos, mas que tem sue validade e * BOURDIEL 62/63:72. P. “Lillusion biographique’, in Actes de fa Recherctie en Sciences Saciates, n.o adequacao histéricas definidas socialmente. Nesse sentido, a produgdo devera ser sempre entendida nos termos do contexto na qual emergiu para que se alcance © seu sentido contextual. Essa producao engloba ndo somente os resultados, mas os processos ¢ praticas que a determinaram. Essas trés instancias que constituem 0 objeto dessa dissertaco 86 0 determinam se forem tomadas como complementares. Portanto, se analiticamente foi possivel tomar contexto, trajetéria e producao isoladamente para se compreender a atuacéo de Herbert Baldus na histéria da Antropologia no Brasil, elas estaréo se articulando e formando uma totalidade complexa, por vezes desigual e nao uniforme, mas que procura produzir uma compreenso coerente de sua insercdo e sentido dentro desse contexto historico. Ha, como ja referido, uma preocupagéio maior na descric&o e anélise da trajetoria e da produgao de Baldus, Essa op¢do se deveu ao fato de jé haver uma razoavelmente volumosa contribuicao aos estudos do contexto histérico em que se desenrolaram sua trajetoria e a produce, ao passo que pouco se refletiu ainda, de forma mais aprofundada, sobre esses ultimos. Portanto, a andlise que se faz nesta dissertago, resultou de uma leitura mais intema da trajetéria e da produg&o de Herbert Baldus, sem contudo deixar de articuld-las com os dados contextuais, Em se tratando de um fenémeno histérico que se desenvolveu de formas distintas no decorrer de um tempo e processo razoavelmente longos e nao uniformes, foi feita a opgéo metodolégica de se dividir a atuacdo de Herbert Baldus em periodos que se caracterizassem por atuagées distintas, e que se articulassem com eventos significativos de sua trajetéria, produgao e contexto. Se analiticamente foi possivel compartimentar sincronicamente sua trajetéria nesses trés periodos, ha eixos transversais que os atravessam, os articulam e thes emprestam uma unidade diacronica Essa abordagem histérica foi uma opgao tomada a partir do contato inicial com os dados presentes nos obituarios, nos depoimentos e nas entrevistas. O que se observa nesse material é uma histéria “contada’, ou seja, tentativas de seus contemporaneos ordenarem e darem um sentido a histéria de Herbert Baldus, através da memérie e formas de narragéo. Portanto, é possivel identificélo como uma mitologia, que procura dar conta de uma experiéncia historica experimentada por Baldus € seus pares. Assim sendo, o procedimento adotado na estruturagao da dissertacdo inspirou-se na teoria e na metodologia de andlise dos mitos proposta por Claude Lévi-Strauss, sem contudo seguir fieimente seus procedimentos metodolégicos. Buscou-se seguir © arranjo histérico geral presente nas falas dos “informantes’, prestando-se ateng&o a seqiiéncia de dados sincrénicos que se repetiam nas varias vers6es, tomados como os marcadores estruturais das narrativas. Da repeti¢éo de determinados dados sincrénicos e suas articulagées, buscou-se as estruturas harménicas presentes nas verses para que, de sua anélise, emergissem os eixos diacrénicos que sugerem os sentidos que as verses emprestam a histéria narrada, constituindo 0 conteido dessa mitologia. Portanto, a opgao de se dividir a trajetéria de Baldus em periodos segue a periodizagao presente nas versées colhidas, seguindo sua ordenagdo. As andlises diacronicas procuram dar conta da origem dos sentidos emprestados a historia por seus narradores. A investigacdo, estruturacdo, descrigao e andlise dos dados presentes nesta dissertagao seguem, portanto, as indicagdes presentes no material mitolégico constituido a respeite de Baldus. O primeiro periado da trajetoria de Baldus vai de 1899 a 1933, iniciando- se no ano de seu nascimento e terminando no ano de seu estabelecimento definitive no Brasil. E um periodo marcado por sua primeira vinda ao pais, quando toma contato pela primeira vez com grupos indigenas, produz seus ® LEVISTRAUSS, C. “A estrutura dos mites", in Antropologia estrutural, pags. 237-266. primeiros textos e estabelece suas primeiras relagées com a comunidade antropolégica brasileira. Sem uma atuagdo institucional significativa, esse é um periodo caracterizado pela formacéo do antropélogo, que retorna para a Alemanha no final da década de 20 para fazer seu doutorado em Filosofia, estudando Etnologia com Richard Thurnwald na Universidade de Berlim. Em fungéo da ascenséo nazista ao poder na Alemanha, Baldus retorna definitivamente ao pais em 1933. Sua obra no periodo 6 pouco volumosa e, exceto por sua tese de doutoramento, reflete uma pratica e uma formagao ainda inconsistentes do ponto de vista tedrico-metodolégico, mas ja anuncia sua preocupagao com as questées do contato interétnico © segundo periodo compreende os anos de 1933 a 1946. Coincidindo com a formagao dos dois centros universitarios voltados ao ensino das Ciéncias Sociais em So Paulo (ELSP e FFCLIUSP), nesse periodo Baldus tem sua trajetéria marcada pelo ingresso na ELSP em 1939, onde colabora com Donald Pierson e Emilio Willems na instalacao do primeiro curso de pés-graduagao em Ciéncias Sociais no pais, assumindo a cadeira de Etnologia Brasileira. Tem importante colaborago na revista Sociologia ¢ publica suas primeiras obras de peso em lingua portuguesa (por exemplo, Ensaios de Etnologia Brasileira em 1937, Diciondrio de Etnologia e Sociologia em co-autoria com Emilio Willems em 1939, e Lendas dos indios do Brasil, em 1946). Caracterizado por sua insergéo no contexto institucional da época e por uma intensa atividade de pesquisas de campo, esse 6 também o periodo em que Baldus comeca a se dedicar & docéncia e & formacéo das primeiras geragdes de antropdlogos surgidos em faculdades e universidades brasileiras. E também 0 periodo em que estabelece suas areas de interesse e produgao etnolégica, relativas aos estudos de mudanga de cultura e ao debate indigenista. O terceiro e ultimo periodo vai de 1946, ano em que ingressa no Museu paulista, a 1970, ano de seu falecimento. Embora continuasse ligado 4 ELSP, esse periodo é marcado mais por sua atuagao dentro do museu, do qual chegou a ser diretor, chefiando e revitalizando 0 Setor de Etnologia, e ainda iniciando a Publicagao da “Nova Série” da Revista do Museu Paulista. Foi um periodo caracterizado por um grande volume de artigos publicados em periddicos nacionais e estrangeiros, além da publicagdo de duas de suas principais obras: 0s dois volumes da Bibliografia Critica da Etnologia Brasileira, em 1954 © 1968, € a sua monografia Tapirapé, tribo tupi do Brasil Central. A atuacéo no museu permitiu a Baldus uma grande circulagao dentro e fora do pais, constituindo-se numa figura de referéncia dentro do cendrio antropolégico brasileiro, que resultou, entre outras coisas, na sua efetiva participagao na fundacdo da ABA — Associacao Brasileira de Antropologia, da qual chegou a ser presidente. Por fim, 6 nesse periodo que Baldus consolida seus estudos sobre aculturacdo indigena @ suas contribuigdes ao indigenismo, tomando-se figura de referéncia dentro do campo antropolégico brasileiro, Essa periodizagéo 6 um procedimento metodolégico que permitiu delimitar areas mais especificas de um mesmo universo de pesquisa, sem contudo perder de vista sua totalidade, visto que os periodos definidos no so estanques, mas se superpdem uns aos outros. A dissertagéo segue essa estruturagao periddica, sendo que os trés primeiros capitulos tratam, respectivamente, de cada periode em particular. S40 capitulos de cunho mais descritivo e sincrénico, nos quais foi buscada uma exposicao minimamente ordenada dos dados referentes a cada periodo, com 0 objetivo de reconstituir a trajetéria de Herbert Baldus respeitando sua cronologia O capitulo seguinte se debruca de forma mais analitica e reflexiva sobre Pontos significativos de sua trajetéria e produgdo, articuladas com os dados contextuais, que se constituem nos eixos transversais e diacronicos que emprestam sentido a totalidade de sua trajetéria, permitindo conclusées ¢ generalizagdes. Dessa forma, no quarto capitulo hd uma andlise dos aspectos de transigao que marcam a trajetéria e a produgao de Herbert Baldus, analisados @ luz dos desdobramentos da histéria da institucionalizagdo da 36 Antropologia no Brasil. Trata-se também dos aspectos historicos ¢ institucionais de sua trajetéria que 0 caracterizam como membro da linhagem germanica de etndlogos na Antropologia brasileira. Por fim, 6 abordada sua atuaco indigenista, articulada com os aspectos teéricos de sua produgéo sobre a mudanga cultural e sua proposta de uma Antropologia aplicada, que resultam na construgéo de sua identidade e autoridade antropoldgicas, determinando em grande medida sua inseredo na histéria da Antropologia no Brasil Capitulo |: O periodo inicial (1899 — 1933) “(...) 0 meu conhecimento de Baldus foi superficial, embora cheio de cordialidade @ estima miftua. Nés nos viamos pouco, sempre na presenca de terceiros, geralmente os professores Emilio Willems € Egon Schaden, cujo gabinete frequentava. (...) Baldus era bonitéo e bem lancado, robusto, muito simpatico, de maneiras finas, cheio de senso de humor, com tendéncia para 0 sarcasmo. Ouvi dizer que foi cadete do exército aleméo e participou da 1.a Grande Guerra, mas n&o sei se é verdade. Sei que gostava de esgrima, praticando a espada no Instituto Jaguaribe com Willems e Juan Francisco Recalde, paraguaio tradutor de Curt Nimuendaju exilado por aqui naquela altura. Quanto aos seus gostos, me disse certa vez: ‘O que gosto mesmo é de literatura. A antropologia é a minha vaca leiteira’. Um de seus autores prediletos era Joseph Conrad, a cujo respeito ouvi dele a seguinte observacdo: ‘A base da ficgao de Conrad é 0 sentimento de honra, mas néo sei se um brasileiro entende isso’. No fundo, como se vé, apesar da cordialidade, 0 menosprezo dos europeus por nés. (2) Ouvi dizer que foi mascate no Chaco paraguaio, quando entrou em contato com os indios que estudou na sua tese de doutorado, orientada se néo me engano por Richard Thurnwald. E registro que 0 Diciondrio de Sociologia ¢ Etnologia que fez em colaboragéo com Emilio Willems nos prestou grande servigo naquele tempo de bibliografia brasileira quase inexistente sobre 0 assunto. Era amigo de Mario de Andrade, Sergio Milliet, Sergio Buarque de Holanda, com quem trabalhou no Museu Paulista como chefe da Seccéo de Etnologia, organizando e editando a Nova Série da respectiva Revista, onde publicou em 1950 a tese de doutorado de minha mulher, Gilda de Mello e Souza. Tratava-se de sociologia estética sobre a moda, 0 que mostra a sua largueza de vistas naquele tempo de sociologite aguda e estreita. Na casa de Sergio Buarque de Holanda ia sempre, e Ié 0 encontrei diversas vezes.” Antonio Candido de Mello ¢ Souza’ O trecho acima transcrito é fragmento de uma carta na qual o professor Antonio Candido, impossibilitado de prestar um depoimento 2o vivo, enviou-me por escrito suas “lembrangas e impressées" a respeito de Herbert Baldus. O ‘Trecho de carta enviada ao autor, reproduzida nos apéndices. texto da epigrafe é bastante representativo das sinteses que foram ouvidas em entrevistas ou lidas em obitudrios a respeito de Baldus durante o meu trabalho de levantamento de dados. Essa parece ser, em linhas gerais 6 resumidas, a representacdo de Baldus que permaneceu na meméria de seus contemporaneos. Fica claro no trecho acima, como em todas as demais fontes Consultadas, orais ou escritas, a dificuldade em se resgatar os primérdios de sua trajetoria De toda a trajetéria de Herbert Baldus, o primeiro periodo € o mais Nebuloso, pois é o mais escasso em documentagao. Isso se deve ao fato de, em primeiro lugar, grande parte dele ter se desenrolado na Alemanha — até 0 inicio da década de 20 e, depois, de 1928 a 1933 -, 0 que dificultou o acesso & documentagao da época. Em segundo lugar, durante 0 tempo em que esteve no Brasil, Baldus no se atrelou formalmente a qualquer tipo de instituigao que porventura pudesse guardar documentagao de sua passagem por ela. Portanto, em termos de fontes documentais, 0 periodo é de dificil pesquisa. Soma-se a isso 0 fato de nao ter sido possivel, durante todo o processo de levantamento de dados, encontrar qualquer contemporaneo seu com o qual tivesse convivido nesse periodo e que, portanto, se constituisse num observador privilegiado. Dessa forma, houve também escassez de fontes orais. As informag6es colhidas nas entrevistas referentes ao periodo so de terceira mao, ou seja, so informagées que o préprio Baldus passou aos entrevistados em conversas informais, guardando portanto uma fragmentacdo inerente a esse processo de construgdo da meméria a que tive acesso. Logo, apés sondagem das fontes possiveis, a concluséo que se mostrou mais viavel foi a de que a principal fonte para esse periodo era a propria obra de Baldus. Nela relatou suas viagens a campo, deixando pistas sobre seu itinerario @ contatos com pessoas e instituigdes. Foram também utilizadas outras fontes bibliograficas que remetiam ao mesmo tipo de dados, destacando-se entre elas 40 os obituarios publicados apés sua morte, que constam na bibliografia ao final dessa dissertagao. Por todos os motivos acima apontados, a reconstituigao de sua trajetoria no primeiro periodo resulta de uma leitura feita a partir de indicios e fragmentos, relacionando-os entre si e procurando dar um sentido geral & atuacdio de Baldus. A primeira estadia nc Brasil: primérdios de um etnégrafo viajante alemao Herbert Baldus nasceu em 14 de marco de 1899 na cidade de Wiesbaden, Alemanha, filho de Martin ¢ Carolina Baldus ~ ele um matemético e ela descendente de uma familia de armadores. Os primeiros anos de sua vida S80 obscuros, mas sabe-se que em 1909 ingressou no Corpo Real Prussiano de Cadetes, no qual teve uma educagao militar responsdvel por uma postura pessoal que cultivaria por toda sua vida, como a rigida disciplina e o gosto pelo treinamento fisico, ressaltados pelos entrevistados que o conheceram e expressos em alguns obituarios. Teria sido também, segundo as mesmas fontes, poeta e ator de teatro. Por conta de sua formagao militar, chegou a participar da | Guerra Mundial como oficial aviador alemao. Egon Schaden, em entrevista, contou-me que Baldus teria, apés o final da guerra, se associado aos spartaquistas, grupo de esquerda liderado por Rosa de Luxemburgo na ‘Alemanha. N&o me foi possivel encontrar qualquer indicio que documentasse tal fato, 0 que 0 torna pouco certo e mais assemelhado a um dos tantos fragmentos de uma mitologia em torno da figura de Baldus, que busca dar conta de uma origem para suas preocupagées e posturas ditas ‘Iiberais” por boa parte dos entrevistados, O que pode ser compreendido através desses poucos, mas significativos dados, é que eles indicam a origem de alguns tragos da personalidade de Baldus e de algumas de suas atividades e posturas dentro e fora do oficio de etndlogo. © cultive da disciplina e do condicionamento fisico remetem, 4 respectivamente, a sua postura dentro das instituigdes — um misto de sisudez metédica, que Ihe emprestava autoridade, associada a um humor irénico & cortante — © & dedicacao, até seus Ultimos dias de vida, a atividades esportivas, notadamente a esgrima, responsavel por um vigor fisico sempre lembrado pelos entrevistados. A disciplina e 0 condicionamento fisico também compéem seu Perfil etnogréfico, com frequentes idas a campo em diversas éreas indigenas que exigiam disciplina e tenacidade. Baldus foi um pesquisador meticuloso e disciplinado no que diz respeito coleta de dados, tanto empiricos quanto bibliograficos — a sua Bibliografia Critica da Etnologia Brasileira pode ser vista como resultado desse espirito -, assim como suas exigéncias enquanto docente podem ter essa mesma raiz comum a varias de suas atuagSes. Por fim, o seu envolvimento precoce com a poesia ajuda a entender sua dedicagdo 4 literatura, resultando mesmo na publicagéo de um romance”, e seu interesse pelas artes em geral, levando-o a relacionar-se, apés seu estabelecimento definitive no Brasil, com um circulo de artistas além da comunidade cientifica Essa caracterizagao de Baldus 6 bem explicitada no depoimento de Antonio Candido. Embora mais parega ter sido uma frase de efeito, pois o interesse e dedicagao de Baldus & antropologia demonstram mais que mera atividade de sustento, sua declaracéo de que o gosto pela literatura se sobrepunha @ antropologia (sua ‘vaca leiteira’) revela seu grande interesse pela atividade literaria, e nos permite compreender as motivagées que o levaram a se ligar a grupos de intelectuais e artistas fora dos circulos da comunidade estritamente antropologica. Embora no objetive desenvolver a questo no espago desta dissertacdo, a relag&o entre Antropologia e Literatura é bastante notéria, haja visto as influéncias antropolégicas nas obras dos citados Mério de Andrade e Joseph Conrad. Nao ha, portanto, contradigéio na dedicacdo de Baldus a essas atividades e nas suas relagdes com suas comunidades. ? BALDUS, H. Madame Lynch. 2 Outros entrevistados fizeram meng&o ao interesse que Baldus tinha em relagdo as artes, mais especificamente a literatura, tendo sido um poeta que, embora sem publicar, teve uma intensa produgdo literaria. Esse interesse o ligaria, futuramente, a figuras notérias do meio artistico paulistano, tendo escritores € artistas pldsticos como amigos e freqientando reuniées informais por eles promovidas®. Por fim, Darcy Ribeiro, um de seus alunos seu ELSP, referiu-se @ Baldus como “poeta teuto-brasileiro”* em texto publicado como prefacio a uma obra de Eduardo Galvao. Em 1921, Herbert Baldus veio pela primeira vez a América do Sul. Foi inicialmente para a Argentina e depois para S40 Paulo, onde se fixou até seu retorno para a Alemanha em 1929. Os motives de sua vinda sao outra faceta obscura de sua trajetéria, mas € possivel aventar a hipétese da articulagdo de dois fatores. Primeiramente, no inicio da década de 20 a Alemanha experimentava as turbuléncias sociais, politicas e econdmicas do pés-guerra e da Reptiblica de Weimar, o que pode ter impelido Baldus, ainda jovem, a buscar alterativas de vida por aqui. Outro fator de sua escolha pela América do Sul pode ter sido um interesse prévio pela Etnologia e 0 desejo de estudar grupos indigenas. A época ja havia uma vasta produgo etnolégica alema sobre o Brasil, com a qual Baldus poderia ter tomado contato ainda na Alemanha. indicio desse interesse pode ser encontrado no prefacio & primeira edi¢o dos Ensaios de Etnologia Brasileira, escrito por Afonso d’Escragnolle Taunay em 1937, em que afirma “HA longos anos venho acompanhando a carreira do Dr. Herbert Baldus. Conheci-o apenas saido da adolescéncia e apaixonadamente preocupado com os problemas de nossa etnografia ° Maria Helena de Figueiredo Steiner me relatou que Baldus freqiientava saraus promovidos por Jan de Almeida Prado em sua residéncia, dos quais participavam artistas e intelectuais paulistanos. - RIBEIRO, D. “Prefacio’, in GALVAO, E. op. cit. 7 N&o s6 se entregou a leitura exaustiva de todos os tratadistas cujas obras pode consultar na j& assaz larga biblioteca do Museu Paulista, como ainda em viagens no exterior, e a freqlentar as maiores livrarias da Europa, acumulou largo cabedal informativo. Passando ao terreno da pratica, decidiu-se a viver longamente entre os indios, De suas observagées colhidas in foco provieram muitos estudos dos quais diversos tive o ensejo de fazer inserir em varios tomos da Revista do Museu Paulista.”> Apesar de nao referir-se ao ano, Taunay, ao afirmar ter conhecido Baldus “apenas saido da adolescéncia’, certamente refere-se ao inicio da década de 20, portanto, @ sua primeira vinda ao Brasil, Taunay era diretor do Museu Paulista & época e os primeiros artigos de Baldus publicados no Brasil, em 1927°, 1929’ e 1931°, 0 foram pela revista daquele museu, Depois desses e anterior ao prefacio de Taunay, apenas um artigo de Baldus foi publicado na revista, em 1936°, apés seu retorno definitive a0 Brasil. Portanto, 0 que o texto de Taunay deixa transparecer é que, jd no inicio de seu primeiro periodo brasileiro, Baldus se mostrava “apaixonadamente preocupado com os problemas de nossa etnografia’, o que reforga a hipétese de que ele havia procurado o pais por ja ter interesses etnolégicos Outro dado que Taunay oferece em seu prefacio 6 que Baldus gravitou em torno do Museu Paulista no periodo. Nao ha evidéncias de qualquer ligagdo formal de Baldus a uma instituigao brasileira naquela época, mas é certo que sua referéncia institucional foi esse museu, que se constituia entéo como o principal centro paulista de produgdo etnolégica e onde encontrou material para suas primeiras pesquisas bibliograficas. S TAUNAY, A. d'E. "Prefacio’, in BALDUS. H. Ensaios de Etnologia Brasileira, pag. XIV, © BALDUS, H. “Os indios Chamacocos”, in Revista do Museu Paulista, XV. * BALDUS, H. “Ligeiras notas sébre os indios Guaranys do litoral paulista*, in Revista do Museu Paulista, XV ° BALDUS, H. “Notas complementares sdbre os indios Chamacocos’, ii Paulista, XVI. * BALDUS, H. “Ligeiras notas sébre duas tribus tupis da margem paraguaia do alto Parana’, in Revista do Museu Paulista, XX. Revista do Museu 44 Em 1923, Baldus teve seu primeiro contato com grupos indigenas, o que pode ser tomado como o marco inicial de sua trajetoria como antropélogo. Foi esse ano que liderou uma expedic&o cinematografica denominada ‘Asa’, formada por membros alemaes e brasileiros, que acabou por leva-lo 20 Chaco Paraguaio, onde contatou grupos xamakoko, kaskihé e sanapana'°. Sobre os membros da equipe, Baldus nomeia apenas 0 “gedlogo e zodlogo Dr. Rudolf Hermann (falecido a 31 de Julho de 1924 em S. Paulo)""'. Sobre o filme, no Obtive informagées de seu paradeiro ou mesmo se foi concluido, Materiais recolhidos durante a expedigao formaram uma colegdo etnogréfica enviada ao Museum fur Volkerkunde de Hamburgo, que ao que tudo indica foi o érgéo financiador da expedigdo. Ha fotos da viagem publicadas no Indianerstudien im nordéstlichen Chaco de 1931. © itinerario original da expedicao, aparentemente de cunho cientifico, nos moldes das expedigSes do século XIX € inicio do século XX empreendida por alemdes no Brasil, partiria de Corumba, no Mato Grosso, e prosseguiria “através da Bolivia até o Lago Titicaca e de la cortando 0 Peri até o Grande Oceano [Pazifico}'®. Condigées adversas impuseram uma mudanga no itinerério que levou a equipe em diregéio a0 Chaco. © que de mais significativo ocorreu, relativo ao interesse presente, foi que ssa expedicao marcou 0 primeiro contato do jovem Baldus com populagdes indigenas, no qual ele recolheu material para o seu primeiro artigo de cunho etnografico até ent&o publicado, “Os indios Chamacocos"*, e para as obras que produziria ao voltar para a Alemanha Nesse artigo, que no meu entender é o mais significative do periodo, pois revela um Baldus *romantico” que seria superado apés sua formagao académica ' Essas informagdes e as subseqiientes sobre a expedicio foram colhidas do seu artigo “Os {ndios Chamacocos” e do_ seu livro Indianerstudien im nordéstlichen Chaco. " BALDUS, H. “Os indios Chamacocos’”, op. cit., pag. 6. * BALDUS, H. op. cit. *® BALDUS, H. op. cit., pag. 6. “*BALDUS, H. op. cit. 45 em Berlim, o antropélogo ja se desenhava com suas principais caracteristicas: a Preocupagao empirista com a pesquisa de campo e a descriggo etnogréfica minuciosa, ainda que um tanto desordenada; a critica aos missionarios, as Politicas indigenistas oficiais e aos maleficios do contato; e uma defesa apaixonada dos indios @ suas tradigdes. As uiltimas ficam bastante explicitas na “Nota principal’, ao final do artigo, revelando 0 tom “romantico” indicado acima e que sera objeto de autocritica no segundo periodo de sua trajetéria, Por isso, apesar de um tanto longa, vale a pena reproduzi-la aqui, pois servira de contraponto a algumas discusses do segundo capitulo, além de indicar pistas de suas relag6es contextuais. A citagdo que se segue é a integra da “Nota Principal’, na qual foram mantidos a grafia e os trechos em itdlico e maitisculas do original “O problema de ajustar definitivamente as relagdes entre brancos e Indios n&o foi até hoje resolvido na América do Sul. A maioria das autoridades e notabilidades, especialmente proprietarios de terras e infelizmente também alguns ethnologos de gabinete, quer exterminar os indios. E preciso exterminar primeiramente estes superhomens. E bem extranhavel que um naturalista e outrora director do Museu Paulista, o dr. Hermann von Ihering, haja condensado no seu palantrorio sobre os indios o material colleccionado pelos exploradores, para prégar em altas vozes o exterminio dos authoctones da America, acco reprobabilissima que até hoje nao foi assas profligada como merecia. E necessario estigmatizar os nomes de taes ‘sabios’. Homens com mais corag&o querem ‘civilisar’ os indios. Mas se © seu cérebro podesse ver as consequencias dos seus desejos cordeaes, observariam que este civilisar é no melhor dos casos um escravisar ¢ lento assassinar. Que tal so os visinhos ‘civilisados' dos indios? Theodor Koch-Griinberg diz em ‘Vom Roroima zum Orinoco’, tomo |, que os colonos podem aprender dos indios ainda alguma cousa na construcgao de casas. Em ‘Unter den Naturvélkern Zentral- Brasiliens’, p. 22, falla Karl von den Steinen dos ranchos dos colonos ‘cujos habitantes podiam aprender dos indios do Xingu muitissima cousa a respeito da installagéo commoda e solida e solicitude diligente para a vida.’ A civilisago esforga-se para que os indios se 46 vendam por aguardente; para que se vistam, facto pelo qual desaprendem o banhar-se e degeneram; para que morram das doencas dos brancos. E se elles resistem a todos estes males, so explorados até a ultima gota de sangue pelos desfructadores da actual ordem economica. Haverd realmente ainda pessoas serias que apreciem as vantagens dos dons da civilisagao em relacao ao indio e que hes deem mais valor do que 4 bondade e ao apego 4 vida livre do homem pardo? E 0 mais nobre dever dos estados sul-americanos seguir 0 exempio da America do Norte e ‘reparar’ 0 assassinato de milhées de indios nos ainda restantes, no roubando os territorios hoje habitados pelos restos dos povos primitivos e sim separando-os quanto possivel dos brancos. Isto é a Unica verdadeira proteceao aos indios. Estes nao assaltaro os seus visinhos brancos porque é indiscutivel facto que as hostilidades sempre foram iniciadas pelos traficantes brancos anciosos de terras. 7 QUEM TEM UM CORACAO HUMANO, SO PODE DESEJAR QUE SE DEM AOS INDIOS TERRITORIOS PROPRIOS QUE NUNCA POSSAM PERDER NEGANDO-SE A QUALQUER BRANCO O DIREITO DE N’ELLES ENTRAR!" 0 trecho citado é bastante rico de referencias que permitem entender a insergao de Baldus no contexto historico da Etnologia brasileira na década de 20. Primeiramente, ao citar Hermann von Ihering, ele toma posicao em relagéo a uma notéria polémica que mobilizou a comunidade antropolégica brasileira no inicio do século XX, fundamentando as politicas indigenistas nas décadas que se seguiram. Em fungdo de frequentes ataques de grupos indigenas aos operarios que construiam as estradas de ferro no oeste do Estado de Sao Paulo, na passagem do século XIX para 0 século XX, von Ihering - médico e naturalista alemao que foi diretor do Museu Paulista de 1894 a 1916" * BALDUS, H. op. cit., pags. 61-62. ® cf. ANONIMO, “Prof. Dr. Hermann von Ihering’, in Revista do Museu Paulista, XVIUIl 47 — defendeu, em artigo que circulou em 1908'’, 0 exterminio dos entéo chamados “Indios bravos", argumentando que jamais poderiam ser civilizados e integrados & sociedade nacional, como os "indios mansos” Tal artigo desencadeou um debate na imprensa brasileira da época que foi paradigmatico para o indigenisme brasileiro, evidenciando as duas posturas que dicotomizavam 0 préprio debate em torno da questo indigena desde o século XIX: exterminio ou integracdo"®. Esse fato veio somar-se a uma discuss40 que ganhou amplitude internacional sobre a questdo indigena brasileira, desencadeada no XVI Congresso Internacional de Americanistas de 1908, realizado em Viena, no qual denunciou-se o exterminio e escravizagao de grupos indigenas em Santa Catarina, noticia amplamente divulgada pelos jornais europeus da época’®. Essas polémicas se estenderam até 1910, ano de criagdo do SPI (Servigo de Protegao ao Indio e Localizagéo de Trabalhadores Nacionais), primeiro érg&o oficial e governamental especificamente criado para a administragao da questo indigena no Brasil Se nao infiuiram de forma decisiva sobre a criag&o do SPI, como argumenta Souza Lima contra outros autores”, as polémicas dentro e fora do pais criaram um discurso legitimador entre os intelectuais da época para sustentar sua instalag&o. Seu primeiro presidente foi Candido Mariano da Silva Rondon, militar ligado ao grupo dos positivistas, que havia se notabilizado por seu trabalho de “pacificacéo” de grupos indigenas durante 0 projeto de implantagao de linhas de telégrafos nas fronteiras, desenvolvido pela Comissaéo " IHERING, H. v. “Antropologia do Estado de Sao Paulo", in Revista do Musou Paulista, Vil. A data de publicagdo é de 1907, mas 0 volume da revista “entrou em circulagdo na segunda quinzena de setembro de 1908", cf. GAGLIARDI, J. M. O indigena e a Republica, pag. 71. A respeito desse debate © das categorizagdes dos indios em “bravos” e “mansos”, ver CARNEIRO DA CUNHA, M. (01g. Histéria dos indios no Brasil. 2, A fespeito da polémica do congresso e do artigo de von Ihering, ver GAGLIARDI, J. M. op. cit, * SOUZA LIMA, A. C. de, “O govemo dos indios sob a gestdo do SPI’, in CARNEIRO DA CUNHA, M. (0Fg.), op. cit. 48 de Linhas Estratégicas do Mato Grosso ao Amay , Cua finalidade era auxiliar na colonizagao ¢ defesa do territério nacional. Rondon logrou contatar varios grupos indigenas sem uso da violéncia, constituindo-se como referéncia para os defensores de uma politica indigenista adepta de métodos pacificos ¢ leigos, isto é, sem a participacéo de missionarios e contréria a politica oficial de catequese e civilizagao que vigorou até o advento da Republica, Essa postura tinha suas origens nas idéias de José Bonifacio de Andrada, sendo defendidas pelo grupo de positivistas que compuseram o governo republicano. Constava do regulamento do SPI a protegao ao indio, demarcagéo de suas terras e criagéo de povoamentos para a sua sedentarizacéo. Abolia o principio de catequese e civilizagao em favor de uma assisténcia leiga que incluia a educagao laica. A idéia de protegao passava por medidas contra abusos trabalhistas e escravizaco, e fiscalizagao contra o tratamento dispensado aos indios em geral. Pretendia pacificar os indios nomades para sedentarizé-los, suprir os antigos aldeamentos (sobreviventes das politicas de aideamento da Colénia e do Império) e estender os mesmos direitos aos indios ja “assimilados’. Abandonava a politica de aldeamentos e concentragao” em favor da instalagéo das povoagées indigenas, nticleos onde a integridade tribal deveria ser respeitada e onde se daria a assisténcia necesséria para sua integrag&o & sociedade” A criagéo do SPI significava uma mudanga em relacdo as politicas indigenistas da Colénia e do Império. Era a efetivacao de um projeto de administragao secularizada, laica e estatal da questo indigena, que vinha tomando forga desde a instalagéio da Republica, defendida por personalidades * & respeito dessa politica, ver PERRONE-MOISES, B. “Indios livres e indios escravos ~ Os principios da legistacao indigenista do Periodo Colonial (séculos XVI a XVIII", in CARNEIRO DA SUNHA, M. (org.), op. cit. © As informagées contidas nesse pardgrafo foram tiradas de GAGLIARDI, J. M. op. cit. e SOUZA LIMA, A. C. de. op. cit 9 como Leolinda Dattro, Luis Bueno Horta Barbosa ¢ outros, que criaram no meio intelectual do periodo um discurso que viria legitimar essa politica indigenista®. Ao posicionar-se contra von Ihering, criticar os defensores da politica de Civilizaga0, “com mais coragao” e “desejos cordeaes” — critica implicita aos missionarios e 0 trabalho de catequese — e defender a demarcagao de territérios indigenas, Baldus declarava seu alinhamento ao indigenismo representado por Rondon. Esse alinhamento politico e etnolégico, explicitado no artigo citado, tornou-se uma de suas caracteristicas mais marcantes, tanto no que se refere Sua atuagao na comunidade antropolégica quanto na sua produgo etnolégica posteriores. Rondon foi uma das figuras mais respeitadas por Baldus, uma de suas referéncias no plano do indigenismo, 0 que fica patente pelo fato de ter Pendurado, décadas mais tarde, uma foto do marechal em sua sala no Museu Paulista. O texto citado revela que a questéo da catequese e civilizagao dos indios nGo havia sido ainda superada enquanto alternativa para uma politica indigenista, mesmo apés a fundacéo do SPI e seu banimento como pratica Oficial. Os missionarios continuavam atuantes e grupos conservadores, associados Igreja, continuavam a defender a antiga politica ainda na década de 20. Numa reacdo respaldada por grupos oligrquicos influentes, em 1924 os conservadores chegaram a propor na Camara dos Deputados a extincdo do 6rgéo protetor nos estados do Parana e Santa Catarina, alegando ma administrago™ De qualquer forma, Baldus revela também, através de suas criticas, que o SPI estava longe de conseguir solucionar os problemas indigenas com sua Politica de criagéo de povoamentos e integracéo dos indios através da imposigao de habitos ‘civilizados’, além de no ter conseguido demarcar as terras indigenas de forma satisfatoria. Ao colocar em duvida a competéncia de cf. GAGLIARDI, J. M. op. cit * cf. GAGLIARDI, J. M. op. cit., pags. 278-280. missionarios e administradores no trato com os indios, ele estava explicitando uma disputa que ocorreria com maior intensidade a partir da década de 40, entre etndlogos, Igreja e Estado, sobre quem teria competéncia para definir uma politica que atendesse as necessidades indigenas. Finalizando 0 texto com uma proposta radical de isolamento dos grupos indigenas para garantir sua integridade cultural, procurava dar uma solugo simples e até mesmo ingénua, se pensarmos na complexidade ¢ longevidade da questo. Pode-se interpretar isso, contudo, como uma tentativa de dar uma contribuigéo ao debate e, mais que isso, marcar posigéo como membro da comunidade etnolégica, Baldus estava se inscrevendo na comunidade e estabelecendo uma tematica para suas investigagées futuras. Sua aproximacdo com o Museu Paulista nesse periodo, referida anteriormente no trecho citado de Taunay, ganha sentido coeréncia quando confronta-se esse alinhamento explicitado em seu artigo com o fato de o museu estar procurando livrar-se do estigma de seu antigo diretor, von thering, como afirma Schwarcz®, A insergo de Baldus na comunidade antropolégica se di portanto, desde 0 inicio, junto ao grupo de etndlogos com uma preocupacao indigenista, e a raiz desse envolvimento pode ser entendida como resultado de suas relagdes com o museu. E interessante notar também as referéncias que faz a Koch-Grinberg e von den Steinen no artigo citado, fazendo uma articulagéo desses autores com seu discurso protecionista. Baldus parece estar com isso querendo demarcar sua identidade antropologica, articulando a heranga da tradi¢go etnolégica germanica com as preocupagées indigenistas, que vai se constituir no eixo de sua trajet6ria como um todo dentro da hist6ria da Antropologia no Brasil Por isso, esse primeiro artigo sobre os xamakoko, especialmente em sua “Nota principal’, pode ser tomado como uma espécie de carta de intengdes, um * cf. SCHWARCZ, L. K. M. op. cit., pag. 101-102. 31 texto seminal, no qual pode-se antever um projeto antropolégico que vai caracterizar a atuacdo de Baldus no campo da Antropologia. Ainda que o autor parega t6-1o renegado ~ ele sintomaticamente omite o artigo em sua Bibliografia Critica da Etnologia Brasileira -, muito provavelmente por ser um texto pouco: amadurecido, panfletario até, e fora das imposigées estilisticas e metodolégicas que Baldus vai aprender no seu retorno a Alemanha e desenvolver nos periodos posteriores. ‘Apés sua primeira expedicao ao Chaco, Baldus visitou um grupo guarani no litoral paulista em 1927 e, completando seus trabalhos de campo nesse primeiro perfodo, retomou em 1928 aos grupos que contatara em sua primeira viagem. Recolheu nessas viagens material linguiistico que utilizaria para sua tese de doutoramento na Alemanha, além de objetos indigenas que compuseram uma cole¢do etnografica enviada mais uma vez ao museu de Hamburgo. Nessa primeira fase, Baldus se preocupou especialmente em recolher material lingUistico, basicamente com o intuito de constituir léxicos dos grupos pesquisados. Essa sua dedicaco a linguiistica 6 fruto de sua ligac&o com o especialista paraguaio em lingua guarani Juan Francisco Recalde, que ele conheceu em fungéio de sua expedicSo pelo Chaco. Recalde acompanhou Baldus na sua visita aos guarani do litoral paulista em 27, tomando-se desde ent&o um interlocutor privilegiado. Como aponta Antonio Candido em sua carta, Recalde também era tradutor de Nimuendaju e um elo de ligagdo entre os dois antropdlogos alemaes. Sua obra nesse periodo caracteriza-se pela auséncia de um método mais apurado de descri¢ao etnogréfica, pontuada por um estilo textual impressionista € muito préximo a crénica de viagem, que comegaria a mudar apés sua formagao na Universidade de Berlim. Retorno a Alemanha: a formagao etnolégica em Berlim Em 1929, Baldus retorna & Alemanha, ingressando na Universidade de Berlim, na qual doutorou-se em Filosofia, Esse fato foi o “divisor de dguas” entre © primeiro e 0 segundo periodos de sua trajetéria. Em Berlim estudou Etnologia com Richard Thumwald e Americanistica com Konrad T. Preuss e Walter Lehmann. Sua formagao, portanto, teve énfase na drea etnolégica americanista. Frutos dessa formac4o so 0 livro Indianerstudien im nordéstlichen Chaco” e o artigo “Beitrage zur Sprachekunde der Samuko-Gruppe’””, nos quais trabalha os dados recolhidos nas suas duas viagens ao Chaco. O primeiro é um livro de 1931 em que faz descrigdes etnogréficas dos xamakoko e kaskihd, da cultura material & organizac&o social, passando por temas consagrados pela etnografia tais como reli io, guerra, arte, parentesco e varios outros. O segundo, Publicado em um niimero da revista Anthropos de 1932, foi sua tese de doutoramento, no qual trabalha especificamente os dados linguisticos recolhidos no Chaco. Juntamente com outros artigos menores publicados em periédicos alemdes e austriacos até 1933, essas obras revelam uma importante mudanca na obra de Baldus quando comparadas com seus primeiros artigos. Tendo estudado em Berlim, Baldus tomou contato com o conhecimento antropolégico rotinizado nas universidades e © treinamento cientifico profissional que caracterizam a antropologia moderna a partir de Malinowski, que unifica © trabalho de campo e a andlise tedrica, fazendo do antropélogo um especialista treinado nas técnicas do trabalho empirico e da manipulaco dos dados e teorias™. E isso que vai diferencid-lo de seus antecessores germanicos 2 BALDUS, H. op. cit *” BALDUS, H. “Beitrage zur Sprachekunde der Samuko-Gruppe’, in Anthropos, XXIX. * Essa caracterizagdo da antropologia modema segue as concepgdes presentes em STOCKING Jr., G. W. “The ethnographer's magic: fieldwork in British anthropology from to Malinowski", in Observers observed ~ Essays on ethnographic fieldwork, € CLIFFORD, J. “On ethnographic authority’, in The predicament of culture ~ Twentieth century ethnography, literature and art na produgao etnolégica sobre o Brasil, fazendo de Baldus o primeiro antropélogo moderno dessa tradigdo a atuar no pais. © efeito desse aprendizado etnolégico institucionalizado aparece nas ‘suas obras publicadas a partir da década de 30. Seus textos assumem um estilo mais cientifico, com método, pasando a dividir-se em tépicos consagrados pela antropologia modema de origem anglo-sax, além do uso de uma terminologia técnica especializada. Abandona assim, embora néo por completo, o tom pessoal, confessional e por vezes indignado dos primeiros artigos, afastando-se da crénica de viagem que marcou sua producdo anterior. Aproxima-se assim do que Marcus e Cushman™ definem como “realismo etnografico”, que marca o estilo textual inaugurado por Malinowski. A origem dessa mudanga esta na influéncia de Thurnwald em sua formacao. Como afirma Egon Schaden: “Baldus fora discipulo de Richard Thurnwald, da Universidade de Berlim, propugnador, na Alemanha, da perspectiva funcionalista na investigag&o etnolégica. O funcionalismo (...) vinha opor-se (...) & chamada Escola Histérico Cultural, 4 qual se filiavam quase todos os etndlogos dos paises de lingua alema, e que era liderada por Wilhelm Schmidt, ent&o professor da Universidade de Viena e diretor do Instituto Anthropos."° Thumwald foi a principal influéncia tedrica sobre a obra de Baldus. Nascido em Viena em 1869, estudou Direito, Economia e Linguas Orientais com 0 interesse de se iniciar nos estudos etnolégicos © sociolégicos, ausentes no curriculo da Universidade de Berlim @ época. Entre 1906 e 1909, realizou estudos etnograficos na Micronésia e nas IIhas Solomon, e entre 1912 e 1915 na Nova Guiné, Seu principal trabalho foi a monografia sobre a organizagao social e 0 sistema de parentesco dos banaro da Nova Guiné. Em 1924, ingressou como ® MARCUS, G. e CUSHMAN, D. “Ethnographies as text’, in Annual Review of. Anthropology, 11 © SCHADEN, E. “Apresentagdo & 2° edicao”, in BALDUS, H. Ensaios de etnologia brasileira, pag. IX. professor de Antropologia e Sociologia na Universidade de Berlim, onde no entanto nunca conseguiu criar uma cadeira regular para si, fato atribuido as criticas que dirigia A Escola Histérico Cultural, hegeménica na Antropologia alemé e influenciada pelas teorias do Kulturkreis propugnadas pelo Pe. Wilhelm Schmidt. Thurnwald realizou estudos sobre a mudanga de cultura na Africa em 1930, e em 1932 voltou as IIhas Solomon. Teve grande circulagéo por instituig6es universitérias da Europa e Estados Unidos, fundou a revista Sociologus ¢ foi editor do Archiv far Anthropologie. Faleceu em 1954°* Frequentemente identificado como funcionalista e introdutor dessa corrente tedrico-metodolégica na Alemanha, por suas ligacdes e afinidades tedricas com Malinowski ¢ seu grupo (0 antropdlogo anglo-poionés fazia parte do conselho editorial da Sociologus, por exemplo), Thumwald nunca deixou, no entanto, de privilegiar uma perspectiva histérica em seus estudos etnolégicos. Preocupava-se com a din&mica dos processos de difusdo de elementos culturais e mudanga de cultura, que o aproximava da linha boasiana, com criticas ao difusionismo esquematico da escola alema. Influenciado pela Psicologia, prestava especial aten¢ao ao papel do individuo na organizacao social e nos processos de mudanga. Essas perspectivas teérico-metodolégicas estarao presentes na producao de Baldus, ¢ de forma mais explicita no segundo periodo, que sera abordado no capitulo seguinte. Mas a influéncia de Thurnwald, das formas institucionalizadas de produce etnolégica ¢ do funcionalismo ja se fazem sentir nos primeiros textos da década de 30. A tensdo entre as perspectivas da escola hist6rico- cultural e do funcionalismo esta presente na obra do period e permanecera na sua producao subsequente. Isso porque Baldus utilizou, desde 0 inicio, as obras do Pe. Schmidt e de etndlogos germanicos ligados & sua escola como principais °! Cf. EBERHARD, W. “Thumwald, Richard’, in international Encyclopedia of the Social Sciences, vol.16:20-21; LOWIE, R. Historia de la Etnologia e “Richard Thumwald, 1869-1954", in ‘American Anthropologist, New Series, 56:863-867. fontes para suas pesquisas sobre os povos indigenas brasileiros. Como nota Schaden, no texto anteriormente citado, essa era a produgo etnoldgica alema majoritéria & época. Reflexo disso € 0 fato de ter publicado artigos tanto em Anthropos quanto em Sociologus no pericdo em que fazia sua formagéo com Thurnwald em Berlim, 0 que continuou a ocorrer durante os anos posteriores, inclusive com uma frequiéncia de publicagées maior em Anthropos que em Sociologus. Jurn Philipson, em entrevista, também comentou que Baidus era um antropélogo muito ligado ao grupo de Anthropos. Em fungao de tal tens&o entre paradigmas 6 que as concepgées tedricas de Baldus vao assumir algumas peculiaridades que seréo melhor discutidas no segundo capitulo, uma vez que isso fica mais claro na produg&o do periodo seguinte. O que jé fica claro na obra do final do primeiro periodo é que, embora as andlises de Baldus estivessem embasadas nas categorias de totalidade, causalidade e funcao, t&o caras ao funcionalismo, ele néo abandonou as preocupagées tedricas da escola histérico-cultural, como a difusdo de tragos culturais, o estudo da cultura material, constituigao fisica e psiquica dos homens e até mesmo questées relativas & origem © evolugdo biolégica. Como nota Schaden em outro trecho do texto ja citado: “Em seus numerosos trabalhos sobre indios brasileiros, Baldus. entretanto, nao se deixou cercear pelos conceitos apregoados pelos mentores do funcionalismo. Era espirito independente, de personalidade marcante e sempre avessa a qualquer camisa-de-forca com que, por ventura, tal ou qual posiggo teérica, mais ou menos ortodoxa, pudesse restringir a expressdo da originalidade de seu pensamento." Portanto, 6 preciso relativizar a influéncia do funcionalismo e da formagao académica sobre a Antropologia de Baldus. Ao mesmo tempo em que esses ® SCHADEN, E. op. cit., IX. fatores intraduzem na sua produgdo perspectivas modemas da Antropologia, eles nao determinam um abandono de perspectivas anteriores. E essa tensao, ja presente nas perspectivas de Thumwald citadas anteriormente, que vai caracterizar a produgdo de Baldus como uma obra de transig&io, como sera discutido posteriormente. © periodo que passou em Berlim, de 1929 a 1933, foi de grande efervescéncia cultural e politica na Alemanha®. Baldus certamente nao se furtou a envolver-se com as questées que perpassavam seu contexte, marcado, de um lado, pelos movimentos politicos, artisticos e intelectuais de esquerda e, de outro, pela ascenséo do nazismo. Alguns fatos permitem deduzir essa sua insergdo contextual E nesse periodo que casa-se com Ursulla Mary Hassenpfiug Baldus, a quem dedica, juntamente com Thurnwald, seus Indianerstudien de 1931. Ulla (como era chamada por Baldus), segundo informagées colhidas em entrevistas, era uma mulher envolvida com a esquerda alema, o que sugere o mesmo para Baldus. Fora jornalista na Alemanha, tendo-se casado anteriormente com Ludwig Ferdinand Hassenpfiug, antigo embaixador alemo na Italia. Baldus e Ulia separaram-se pouco tempo depois de ele retornar de uma expedicao ao Brasil Central, em 1935. Ulla casou-se novamente no Brasil. Baldus no. Ainda em 1931, Baldus publica o romance Madame Lynch, sua unica obra literaria e nao etnolégica publicada até seu falecimento, no qual romanceia a historia da amante de Solano Lopez, lider paraguaio durante a Guerra do Paraguai. Segundo varios entrevistados, esse foi um dos livros queimados em praca pUblica durante as manifestagdes nazistas contra a “arte degenerada’, apés a ascensao de Adolf Hitler a0 poder na Alemanha, em 1933. © cf, RICHARD, L.A vide cofidiana na republica de Weimar e THALMANN, R. A repiiblica de Weimar. A Universidade de Berlim, segundo Lionel Richard™, foi um palco Privilegiado de enfrentamento entre nazistas e militantes de esquerda durante a década de 20 e inicio da década de 30. Entre os docentes havia representantes de ambos os lados, assim como os estudantes se envolviam ativamente nas questées politicas. Com a ascenséo de Hitler, os curriculos universitérios foram Teestruturados © passaram a veicular os canones nazistas, resultando numa “diaspora” de intelectuais e cientistas contrarios ao nazismo. Além disso, ainda segundo Richard, nas universidades alemas, os departamentos de Psicologia e Sociologia eram identificados como aqueles que abrigavam os professores antinazistas. Era dificil, portanto, sendo aluno da Universidade de Berlim e estudando Filosofia e Etnologia, néo tomar uma posigao politica frente ao contexto que se desenhava. Baldus assumiu uma posicao antinazista, que definiu os desdobramentos de sua trajetéria. A sua permanéncia na Alemanha, portanto, tanto do ponto de vista politico quanto de possibilidades de construgao de uma carreira institucional nas universidades, era pouco provavel Todos esses fatores ajudam a entender os motivos da vinda definitiva de Baldus para o Brasil no ano de 1933, que encerra o primeiro periodo de sua trajetéria. Sua oposicao ao nazismo e seu interesse pela etnologia brasileira trouxeram-no de volta a So Paulo. O ano de sua chegada coincide com 0 ano de fundago da primeira faculdade paulista de Ciéncias Sociais, a ELSP, dando inicio & institucionalizag&o da Antropologia enquanto disciplina académica. Esse fato revela mais que uma coincidéncia. Herbert Baldus retorna ao pais como etndlogo de formagao académica, com o titulo de doutor e uma experiéncia universitaria que iro ser fundamentais na construgao de sua trajetoria e na formago do contexto antropolégico em Sao Paulo a partir da década de 30. * RICHARD, L. op. cit segundo periodo da trajetéria de Herbert Baldus € menos obscuro que © primeiro. Isso se deve ao fato de ser mais rico em fontes documentais acessiveis, uma vez que se desenvolve todo no Brasil e 6 marcado por sua passagem por instituigdes que documentam sua trajetéria. Além disso, foi possivel encontrar contemporaneos seus que conviveram e atuaram junto com ele, constituindo uma meméria acessivel como fonte de tradig&o oral. Por fim, a produco antropolégica de Baldus é mais intensa e volumosa, constituindo-se em fonte bibliografica mais ampla para uma pesquisa mais aprofundada. © period caracteriza-se pela inserggo de Baldus no contexto da institucionalizagéio emergente da Antropologia no Brasil, que se inicia na década de 30, sendo esse um corte tematico que se privilegia nesta dissertacdo. Portanto, a analise que se desenvolve neste segundo capitulo procura se debrugar mais sobre questées relacionadas aos aspectos da institucionalizacao, e da insergao da trajet6ria e da produgao de Baldus nesse contexto. Retorno ao Brasi tentativas de insergao num novo contexto ‘Ao deixar a Alemanha e retomar definitivamente ao Brasil em 1933, Baldus vai restabelecer e expandir suas pesquisas e produgdes etnoldgicas, expandindo sua rede de relagdes no pais. Sem ter sido incorporado a uma institui¢ao brasileira até 1939, quando ingressou na ELSP, ele retomou seu contato com o Museu Paulista 20 mesmo tempo em que buscava um sitio institucional. Ha dois fatos que indicam essa busca © primeiro, a mim relatado por Egon Schaden e Aryon Dall'igna Rodrigues em entrevistas, se refere a uma tentativa frustrada de ingresso na USP em 1935, quando foi criada a cadeira de Etnografia Brasileira e Lingua Tupi. Baldus, segundo esses entrevistados, teria tentado se inscrever no concurso para a catedra, tendo sido impossibilitado pelo fato de ndo possuir ainda a cidadania brasileira — s6 a obteria em 1941. A cadeira parecia, por assim dizer, ter sido criada para alguém com seu curriculo: Baldus possuia o titulo de doutor, com uma tese sobre material linguistico e formagéo académica na area de Etnologia, com experiéncia etnogréfica entre grupos indigenas brasileiros. Impossibilitado de concorrer, foi contudo convidado, por conta de seu curriculo, a compor a banca que selecionou Plinio Ayrosa para ocupar a cadeira A segunda tentativa de assumir de um posto institucional foi descrita por Luiz de Castro Faria em artigo publicado em 1984'. Em 1936 Baldus escreveu uma carta a Heloisa Alberto Torres, ento diretora do Museu Nacional do Rio de Janeiro, consultando-a sobre a possibilidade de seu ingresso naquela instituicdo. “Dona” Heloisa respondeu-lhe negativamente. De volta ao campo: pesquisas etnograficas e o encontro com os tapirapé Enquanto buscava estabelecer-se no contexto institucional, Baldus sobrevivia dando aulas de alem&o em So Paulo, juntamente com Ulla, que ensinava inglés. Ao mesmo tempo, retomou seus trabalhos de campo entre grupos indigenas. Jé em 1993, subvencionado por uma instituigéo alema, a Notgemeinschaft der Deutschen Wissenschaft (Sociedade Assistencial da Ciencia Alem, em tradugdo livre), chefiou uma expedicéo ao sul do Brasil, visitando os Kaingang de Palmas, no Parana, e seguindo para o Paraguai oriental a fim de procurar um grupo disperso e desconhecido de indios guayaki Ainda no Paraguai, visitou brevemente os xirip4. Em 1934, viajou para o estado de Mato Grosso, onde estudou pinturas rupestres nos rochedos de Santana da Chapada, além de visitar os bororo de Meruri e um grupo terena. Em 1935, ainda no Mato Grosso, visitou os bororo de Tori-paru, dirigindo-se a seguir para * CASTRO FARIA, L. “A Antropologia no Brasil. Depoimento sem compromisso de um militante ‘em recesso”, in Anudrio Antropolégico/e2. oo. a lIha do Bananal, no Brasil Central, onde contatou os carajé e, por fim, através do rio Tapirapé, contatar pela primeira vez a tribo homénima’. © encontro com os tapirapé foi um fato fundamental na trajetéria de Baldus. Aparentemente, ele foi o primeiro etndélogo a estabelecer contato mais préximo e intenso com o grupo, 0 que transformou-o em seu “dono”. E o que comenta Charles Wagley na introdugao de seu Welcome of tears’, sua monografia sobre a mesma tribo, publicada em 1977: “While reading in the library at the Museu Nacional, | had run across a new book, Ensaios de Antropologia Brasileira [sic] (1937), by Herbert Baldus. In it | learned, to my dismay, that Baldus had carried out research in 1935 among the Tapirapé. | use the word ‘dismay’ with good reason, for traditionally among anthropologists there has been a property attitude toward the tribe or village with which they have worked. It becomes ‘my tribe’ or ‘my people’.”* © que Wagley explicita no trecho citado sdo fatos significativos para o entendimento da trajetéria de Baldus e da propria constituigéio do campo antropolégico no Brasil. © primeiro é a explicitago de uma caracteristica do campo antropolégico como um todo, que € a construgao de uma identidade e de uma autoridade dos antropdlogos através da “apropriacéo” de um grupo indigena. Esse fendmeno no € particular @ Antropologia brasileira, mas faz parte da constituigéo do campo da ciéncia antropolégica, a partir do surgimento das monografias etnogréficas como produgao caracteristica e legitimadora do fazer antropolégico. Assim, a associagao do antropélogo a um grupo do qual foi o produtor de uma primeira monografia institui sua autoridade como especialista, instituindo-o como teferéncia dentro da comunidade antropolégica. Exemplar disso sdo os casos de ‘As informagées referentes 8s viagens etnogréficas de Baldus foram retirades do obituério “Herbert Baldus (1899/1970), in Revista do Museu Paulista, N. S., XVIII ® WAGLEY, C. Welcome of tears — The Tapirapé indians of Central Brazil. *WAGLEY, C. op. cit, pag. 7. 6 Malinowski e os trobriandeses, Evans-Pritchard e os nuer e azande, Firth e os tikopia, para ficar apenas nos exemplos da Antropologia briténica. O “desanimo” (‘dismay’) explicitado por Wagley, formado na tradipo antropolégica norte- americana, resulta do reconhecimento desses procedimentos informais, porém consensuais @ institucionalizados pela pratica, que compdem uma tradigao da Antropologia moderna e que raramente so explicitados da forma como Wagley © fez. Em geral, esses procedimentos ficam obscurecidos no campo das relagdes a que Rabinow nomeou “corridor talk e que, ao emergirem como dados objetivados, revelam estruturas que determinam praticas fundamentais para se compreender a construgéo do contexto antropolégico. Em segundo lugar, Wagley explicita uma disputa pela “posse” dos tapirapé, comentada também por varios dos entrevistados, que se constitui num Ponto importante para a compreensdo da trajetéria de Baldus. Essa disputa envolve no somente a construcdo das identidades e autoridades desses dois antropélogos, mas pode ser entendida também num plano mais amplo da historia da Antropologia no Brasil. Como nota Mariza Corréa®, no final da década de 30 @ inicio da década de 40, observa-se uma “troca de guarda’ na Antropologia brasileira, com a chegada dos norte-americanos e a sobreposicao de sua influéncia as tradigdes estrangeiras do periodo anterior. Baldus ¢ Wagley, portanto, disputam mais que um grupo indigena e a autoridade antropolégica sobre ele. O que se pode observar nessa disputa 6 a propria tensdo relativa a transig&o historica e superagdo de tradicdes das quais os dois se constituem em expoentes no Brasil — Baldus do lado germanico, Wagley do lado norte-americano. Wagley s6 publicou sua monografia sobre os tapirapé em 1977, depois da publicagao da monografia de Baldus em 1970, as duas bastante § RABINOW, P. op. cit. ° CORREA, M. “Traficantes do excéntrico ~ Os antropblogos no Brasil dos anos 30 aos anos 60", in Revista Brasileira de Ciéncias Sociais, 3 (6). tardias em relacdo as pesquisas de campo de ambos, sendo que essa espera pode revelar respeito a uma hierarquia dentro do campo antropolégico. A construgao de uma certa Etnologia: funcionalismo e mudanga de cultura Das pesquisas realizadas entre 1933 e 1935, resultaram varios artigos de Baldus, publicados no Brasil e no exterior, e sua obra mais significativa do periodo, os Ensaios de etnologia brasileira’, de 1937. E nos Ensaios que a mudanga que se desenha em suas obras, a partir de sua formagao em Berlim, consolida-se em termos de estilo textual e propostas tedricas e tematicas. Nos artigos que compéem o livro, Baldus estabelece suas concepgées de cultura, método investigativo e do oficio antropolégico, além de formular uma proposta tedrico-metodolégica sobre 0 que denominou como “mudanga de cultura”. Com suas propostas de estudo da mudanga de cultura entre os grupos indigenas, Baldus inaugura os estudos de contato interétnico como uma rea tematica dentro da produgo antropoldgica brasileira, que veio a se constituir numa tradig&o de pesquisa no pais. O que se segue € uma andlise dos principais pontos que fazem dos Ensaios uma obra significativa para se compreender as posturas antropolégicas defendidas por Baldus, constitutivas de sua identidade no campo No primeiro capitulo, intitulado “Etnologia Brasileira’, que é uma verséo modificada de artigo publicado em 1935°, Baldus elabora sua definigao de cultura: Cultura’, no sentido que the dao os etnélogos, é a expressaio harménica total do sentir, pensar, querer, poder, agir e reagir de uma unidade social, expressao que nasce de uma combinagdo de fatores hereditarios, fisicos e psiquicos com fatores coletivos morais, e que, 7 BALDUS, H. op. cit. * BALDUS, H. “Conceito modemo de Etnologia’, in Revista do Arquivo Municipal, XVII unida ao equipamento civilizador (instrumentos, armas, etc.), da a unidade social a capacidade e a independéncia necessérias luta material © espiritual pela vida. Um dos problemas principals da etnologia é estudar a mudanga continua desta expresso e as causas dessa mudanga."* E possivel perceber nessa definico, a concepgéo de cultura como uma totalidade harmonica constituindo uma unidade funcional, formada por partes especificas ~ que € caracteristica do pensamento funcionalista -, convivendo com uma concep¢ao de cultura dinamica e histérica - mais proxima de uma concepgao da escola histérico-cultural. E notavel, portanto, a tentativa de Baldus articular as perspectivas das duas escolas de pensamento, que reflete a jd apontada tensao entre paradigmas presente em sua obra, resultante de sua associagao com Richard Thumwald e 0 grupo de Wilhelm Schmidt. Essa ambiguidade se explicita novamente no texto, ao fazer uma diferenciagao entre etnografia e etnologia: “A etnografia descreve 0 povo e tem seu objeto, por assim dizer, na configurag&o exterior da cultura (...), enquanto que a etnologia procura compreender 0 pove na sua esséncia e conhecé-lo nas particularidades funcionais de sua cultura. (...) A etnografia tem Por condic&o @ estabilidade no momento da observacso; a etnologia examina a dinamica (..), isto 6, 0 estado instavel, mas sempre mutavel, de um povo (...). Assim, 0 etndlogo sera sempre etndgrafo; o etnégrafo nao poderia, sem conhecimentos etnolégicos, fazer trabalho til, Ambas as ciéncias so empiricas e indutivas. (...) O etndarato recolhe os fatos, 0 etndlogo elabora-os, (...) E fora de divida que a etnoarafia pertence as ciéncias hist6ricas, porque os materiais que ela recolhe representam documentos histéricos. Em sentido muito mais profundo, a etnologia também ¢é ciéncia_histdrica, pois necessita documentos historicos e deles se vale para poder realizar seu trabalho”? (Obs: grifos sao meus) * BALDUS, H. “Etnologia Brasileira’, in Ensaios de etnologia brasileira, pag. 1 * BALDUS, H. op. cit, pags. 2-3. 64 Ao descrever as tarefas (etnografia e etnologia) daquele que estuda o “povo” e sua ‘cultura’, visto que deve incorporar as duas tarefas enquanto pratica e teoria, Baldus situa sua antropologia na tenso entre o que Roberto Cardoso de Oliveira identifica como paradigmas ‘estrutural-funcionalista’ e “culturalista’. Isto é, entre um paradigma que trabalha com a sincronia e outro com uma perspectiva diacrénica nos estudos antropologicos, ambos paradigmas de tradigéo empirista, sendo o primeiro representado pela “Escola Britanica de Antropologia’, e o segundo pela “Escola Histérico Cultural" Para Baldus, sendo “empiricas e indutivas’, etnografia e etnologia tém por imperativo o trabalho de campo, a observacdo in Joco da cultura estudada, para uma descrig&o sinerénica de seu funcionamento. Por outro lado, sendo “ciéncias histéricas’, que recolhem “documentos histéricos” para estudar sua dinamica, dando conta da mudanga da cultura no decorrer do tempo, ambas devem assumir uma perspectiva de andlise diacrénica. A tensdo entre paradigmas nas concepgées antropolégicas de Baldus séo bastante explicitas, o que & reconhecido também por Eduardo Viveiros de Castro ao apontar que “Baldus representava uma espécie de ‘ponte’ entre a tradipao etnolégica alema (...) eo estilo monografico anglo-saxdo (...)""”. A concepgao de histéria na obra de Baldus é difusionista. Embora critique as perspectivas historicas adotadas pelo evolucionismo e pelo difusionismo de larga escala — este Ultimo representado “pela ‘doutrina dos circulos culturais’ (Kulturkreisiehre) @ pela ‘escola da histéria cultura’ (Kulturhistorische Schule), cujos mestres so Frobenius, Ankerman, Graebner, Foy, o padre Wilhelm ‘Schmidt e 0 padre Koppers”® -, Baldus adota uma perspectiva difusionista de pequena escala, que procura dar conta dos contatos e trocas culturais em areas * CARDOSO DE OLIVEIRA, R. “Tempo e tradig&o: interpretando a Antropologia’ pensamento antropolégico. VIVEIROS DE CASTRO, E. op. cit., pag. 89. "5 BALDUS, H. op. cit, pag. 6. especificas. Essa € uma perspectiva culturalista, que pode ser identificada também na escola norte-americana de Franz Boas e que, no Brasil, teve como Tepresentativos os estudos de areas culturais desenvolvidos por Eduardo Galvao. Para Baldus, a finalidade dos estudos historicos na etnografia e na etnologia ¢ a determinagdo dos ciclos historicos, origem e difuséo de tragos culturais que, em ultima instancia, devem dar conta da historia da humanidade. Portanto € possivel perceber que, apesar das criticas ao evolucionismo e ao difusionismo de larga escala, Baldus mantém preocupagées teleolégicas no estudo antropolégico. Essa perspectiva de andlise histérica desembocou num método comparativo “algo ‘descontrolado”, como aponta Viveiros de Castro’, caracteristica marcante em sua produgéo. Aplicando tal método, Baldus procurava estabelecer ligagdes histéricas entre diferentes grupos indigenas, através dos tragos culturais que observava se assemelharem e/ou se repetirem neles. Sampaio-Silva'> também chama nossa atencéo para esse método comparativo como uma caracteristica importante na Antropologia de Baldus. Exemplar da aplicagao dessa perspectiva metodolégica 6 um artigo seu de 1938"°, no qual procura identificar um provavel processo histérico de contato e difusdo cultural entre os grupos indigenas do Xingu e do Araguaia. Sua argumentagao, nesse artigo, vai se sustentar na comparagéo de dados etnograficos sobre os aravine e os tapirapé, grupos tupi habitantes do Araguaia, com dados sobre os kamayuré, grupo tupi habitante do Xingu. Segundo Baldus, apés examinar esses dados chega-se a conclusdo de que os aravine, apesar de vizinhos préximos dos tapirapé, guardam maior semelhanga lingliistica com os kamayuré, mais distantes, o que a seu ver torna-se indicativo de um processo de § VIVEIROS DE CASTRO, E. op. cit, pag. 89, 13 SAMPAIO-SILVA, O. op. cit. ® BALDUS, H. “Uma ponte etnogréfica entre o Xing e 0 Araguaia’, in Revista do Arquivo ‘Municipal, XL 66 migragao e difuso cultural. Esse mesmo método foi usado nos seus estudos sobre 0s tapirapé, que acabaram desembocando na monografia de 1970, nos quais baseia suas andlises a partir de uma comparagao daquele grupo com os caraja. A concepgo de cultura em Baldus, explicitada nos Ensaios, também vai determinar formas peculiares de investigagao e andlise de dados que caracterizam sua produgao antropoldgica. A cultura, para ele, tem dois niveis de expressao: 0 nivel “espiritual” e 0 nivel ‘material"'”. Identificava, dessa maneira, duas possibilidades relativamente auténomas e independentes de estudar a cultura de um mesmo grupo social. Para ele, compunham a cultura espiritual fatos relativos 4 organizag4o social, parentesco, casamento, chefia, economia, religio, lingua, moral, tragos psicolégicos e carater, enquanto a cultura material pertenciam a arquitetura, instrumentos e artefatos de caga, pesca, agricultura e culinéria, arte e omamentos. Essa separagdo em dois niveis permitiu que em ‘suas obras observasse, descrevesse e analisasse dados culturais relativos a cada um deles de forma desarticulada e independente. Assim, quando de seus estudos sobre mudanga cultural, Baldus abordava as alteragées observadas em cada nivel de forma independente, pressupondo que a mudanga pudesse se dar num ou outro nivel, sem sobredeterminagdo ou estreita interdependéncia. Baldus procurou desenvolver, no ultimo capitulo dos Ensaios"®, uma teoria de mudanga de cultura, Nela identifica as causas que desencadeiam o processo como podendo ser internas ou externas a unidade cultural. Dois seriam os fatores que deflagrariam a mudanga de cultura: a “necessidade” € 0 “individuo condutor’ A necessidade provocaria mudangas quando da alteragéo das condigées geograficas, emprego de novas matérias-primas na produgo de artefatos BALDUS, H. “A mudanga de cultura entre os indios do Brasil’ in Ensaios de etnologia brasileira *® BALDUS, H. op. cit, or culturais, epidemias e alteragao nas relagdes com outros grupos, que obrigariam @ unidade original a um rearranjo de sua propria cultura para adaptar-se as Novas condigdes. A necessidade como fator determinante das relagdes € organizaco sociais 6 uma categoria de anélise antropoldgica presente nas concepgées teéricas de Malinowski, 0 que permite caracterizar o funcionalismo presente na perspectiva de Baldus. J&0 individuo condutor poderia induzir o grupo a mudanca através de sua influéncia e poder sobre ele. Poderia tanto ser um elemento do grupo que decide Por si proprio, sem influéncia externa, induzir seus pares a novas formas de vida, quanto um elemento do grupo que introduz tragos culturais de outra unidade, ou ainda um elemento no pertencente ao grupo, que introduz nele tragos de sua propria cultura. Nesse ponto 6 possivel perceber a influéncia de Thumwald nas concepgées tedricas de Baldus. Segundo Wolfram Eberhard: “The individual's solution to a specific situation remained for Thurnwald the principal source of all social change.” ® Baldus identificava ainda dois tracos possiveis de mudanga de cultura: parcial e total. A mudanga parcial implicaria na assimilacéo reciproca de tragos culturais entre dois grupos em contato, estabelecendo-se um equilibrio entre eles. Para Baldus, esse tipo de mudanga era raro, sendo mais freqiente a mudanga total de cultura, na qual se processava o desaparecimento de uma cultura “como unidade no espaco e no tempo, pela assimilagao global dos tragos de outra cultura. Era esse processo que ele observava entre os indios brasileiros, que estariam assim, na sua visdo, fadados a perderem suas culturas tradicionais devido ao contato continuo e prolongado com a civilizago ocidental O que se nota por suas concepgdes é que Baldus, apesar de reconhecer na cultura um carater dinamico, no incorporava o contato interétnico como: * EBERHARD, W. op. cit, pag. 21 68. componente dessa dinamica, resultando num olhar sobre a cultura como unidade que se desenvolve isoladamente, Sua visdo de cultura privilegiava a tradigéo e a estabilidade como fundamentos da vida cultural, aceitando a mudanga como componente da cultura apenas se resultasse de um movimento interno a ela, Em sua visdo, @ cultura se descaracterizaria com a perda de formas tradicionais de organizagao e produgdo da vida material, quando essa perda no fosse determinada por fatores internos. Portanto, nessa perspectiva, 0 contato interétnico apresenta-se sempre como um fato problematico. Embora expressasse um grande pessimismo em relagéo ao futuro dos indios e suas culturas, Baldus, em 1937, assumia um discurso diferente daquele presente em seus textos do primeiro periodo. No final de seu capitulo sobre mudanc¢a de cultura nos Ensaios” — que ja revela uma caracteristica sua, de pensar aculturagdo e indigenismo de forma articulada -, ele critica aqueles que pretendiam proteger os indios através do isolamento destes, identificando-os como elementos “embaracados por escripulos sentimentais em falar, sem disfarce, a favor da exterminac&o", ou “etndlogos que temem pela conservagéo de seu material de estudo”, ou ainda “criaturas romanticas que querem por os interesses dos indios acima dos interesses de sua propria raga”. Seus alvos nesse ataque so, além dos etndlogos que defendiam o isolacionismo por mero interesse cientifico, as “missées cristés” e a “Comissdo de Protegao aos Indios, criada pelo governo’, que defenderiam o isclamento para promover uma assimilagdo “filantrépica”. Reconhece que “nem todos os indios desejam o isolamento’, muitos desejando ‘uma assimilagéo para poder gozar das comodidades da nossa civiliza¢do”. Ele via nisso um direito dos indios, constituindo um dever da civilizago, representada pelos érgaos oficiais de protegdo aos indios, prover suas necessidades para que se integrem a nossa ® BALDUS, H. op. cit., pags. 185-186. 69 Sociedade se assim o desejarem. Incorpora assim uma perspectiva de direito & autodeterminacao dos povos indigenas ausente nas obras do primeiro periodo. Mais que uma incorporagao de novas perspectivas, no entanto, esse Posicionamento explicita uma relativizagéo das suas concepodes indigenistas anteriores. Pode-se fazer uma leitura dessa reviséo de postulados como uma autocritica de Baldus. Ao atacar os “criticos romanticos” defensores do “isolamento permanente e completo dos indios", ele esté alacando uma Posi¢éo que defendia calorosamente em 1927, no seu artigo “Os indios Chamacocos’, analisado no capitulo anterior. E provaével que, ao escrever os Ensaios, Baldus estivesse de fato fazendo essa autocritica, revendo suas Posig6es expressas na obra de juventude. E sintomético, nesse sentido, que nao tenha citado seu artigo de 1927 no primeiro volume Bibliografia Critica, Publicado em 1954”, caracterizando um lapso bastante elogiiente, Isso reforca a interpretacao de que, a partir dos Ensaios, Baldus cristaliza uma nova postura © um novo estilo para sua producdo etnolégica, resultado de sua formagao na Universidade de Berlim, demarcando suas posigées tedricas, metodoldgicas e Politicas e suas associagdes dentro da comunidade antropolégica brasileira da época © que parece constituir-se num paradoxo em relagdo as concepgées indigenistas que iré defender nos anos que se sucedem publicagdo dos Ensaios, quando continuaré a defender o isolacionismo contra o integracionismo, na verdade é a sinalizagao de que Baldus jé estava pensando num indigenismo que incorporaria a critica & administragéo direta e as contribuigées de uma Antropologia aplicada, o que ficara mais evidenciado na andlise de sua aula inaugural na ELSP, mais adiante, e na andlise de suas discussées indigenistas a partir dos anos 40, presente nos capitulos posteriores. 2" BALDUS, H. op. cit, pag. 185. ® BALDUS, H. Bibliografia Critica da Etnologia Brasileira. 0 Baldus, no momento em que publicou os Ensaios, parecia jé estar querendo delimitar um campo de competéncia para lidar com as questées indigenistas. Ao criticar os “romanticos", defensores de um isolamento puro e simples, estava apontando para a necessidade do comprometimento de instancias competentes, tais como o Estado, com a questéo indigena, sendo contrério ao abandono dos grupos indigenas a sua propria sorte. Ao criticar os isolacionistas, estava se referindo a um tipo destes, representado pelo SPI e pela Igreja, que protegeria e isolaria os grupos indigenas para tutelé-ios e promover uma assimilagdo dirigida, através de uma administragdo direta. Ao atacar os etndlogos isolacionistas, estava se referindo ao descomprometimento de uma certa viséo antropolégica — que Baldus reconheceria mais tarde representada pela postura de Evans-Pritchard ~, que criticava uma Antropologia aplicada e defendia uma suposta neutralidade cientifica, descomprometendo-se com as questées politicas. Enfim, 0 que se pode perceber no conjunto dessas criticas, € que Baldus estava preparando terreno para suas propostas de necessidade do conhecimento etnolégico e da competéncia dos etndlogos para orientar o trabalho indigenista, respeitando ao mesmo tempo a competéncia dos proprio grupos indigenas para determinarem os rumos de uma administragéo indireta, nao tutelada. Ha nos Ensaios outro dado significative. Em dois capituios™, Baldus afirma que o carater do brasileiro ¢ em sua esséncia o carater do tupi. Ao aventurar-se no campo das interpretagdes sobre a constituigéo de uma identidade nacional brasileira — uma tradigéo no pensamento brasileiro —, Baldus retoma 0 mito do tupi como 0 “indio bom’, retratado na literatura romantica Porém, mais que isso, essa interpretagao também revela uma aproximagéo com as concepgées do movimento modemista em Sao Paulo, que procura nas culturas indigenas as raizes culturais que determinam o carater nacional, como ® 0s ja citados “Etnologia Brasileira” e “A mudanga de cultura entre os indios do Brasil". n fica explicitade pelo conceito de antropofagia cultural formulado por Oswald de Andrade. Isso pode ser resultado de uma relagdo que Baldus mantinha com um “grupo de intelectuais e artistas paulistas ligados ao modernismo, que incluia Mario de Andrade. Sua aproximagéo com esse grupo foi-me relatada, nas entrevistas, por Egon Schaden, Jin Philipson e Maria Helena Steiner, além de estar indicada na carta de Antonio Candido citada no capitulo anterior. As fronteiras da comunidade antropolégica pareciam ainda ténues na década de 30, 0 que permitia uma permeabilidade entre a antropologia e a literatura. O proprio Mario de Andrade sempre demonstrou interesse pelos estudos etnolégicos e folcioristas, baseando-se nos mitos recolhidos por Koch- Grunberg para escrever 0 seu romance Macunaima, por exemplo. Além disso, fez expedigdes etnograficas pelo norte e nordeste e foi diretor do Departamento de Cultura em So Paulo, que publicava a Revista do Arquivo Municipal, na qual 0s antropélogos do periodo tiveram artigos publicados, incluindo Herbert Baldus. © préprio Baldus, além de ter um romance publicado, interessava-se por literatura e escrevia poemas, como jé citado anteriormente. Por fim, dado que reforga esse transito, diélogo e compartilhamento de interesses entre artistas modernistas e antropélogos em Sao Paulo, 6 que Mario e Baldus foram sécios da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, fundada por Artur Ramos”, compartilhando espagos institucionais e interesses Esses dados convergentes permitem observar que Baldus inseriu-se numa rede social que extrapolava os limites da comunidade antropolégica. Permitem também pensar que as fronteira dessa comunidade eram atravessadas por outras comunidades € que a Antropologia no Brasil, durante o seu processo de institucionalizacao, ao menos em S4o Paulo, sofreu influéncias da literatura e das artes, como ocorreu na Franca”. * cf, AZEREDO, P. R. Antropdlogos e pioneiros: a hist6ria da Sociedade Brasileira de Antropotogia e Etnologia, ® cf. CLIFFORD, J. “On Ethnographic Surrealism’, in Society and History, 23(4):539-564, n O ingresso na ELS inser¢ao num circuito institucional emergente Com o ingresso de Herbert Baldus na ELSP, em 1939, e sua consequente insereao no circuito institucional, sua trajetéria ganha novos contornos, articulando-se definitivamente com o processo de institucionalizagao da Antropologia que havia se iniciado na década de 30. Sua atuagéo passa a ser caracterizada por uma maior dedicagdo a docéncia e divulgacao da Etnoiogia, tendo diminuido a freqiéncia de suas viagens a campo. As excegées ficaram por conta de suas pesquisas entre os imigrantes japoneses do vale do Ribeira, em companhia de Emilio Willems, professor da ELSP na época, e uma expedicao ao municipio de Cunha, acompanhado por Carlos Borges Schmidt, entdo aluno na escola, Essas viagens foram realizadas respectivamente em 1941 e 1945. Fez também, em 1944, uma viagem de reconhecimento de areas indigenas ao norte do Parana. No mais, Baldus se dedicou as suas atividedes como professor na ELSP e a publicar textos em periédicos, além de um diciondrio em co-autoria com Willems em 1939, e uma coletanea de lendas indigenas de grupos brasileiros, em 19467” Toma-se, dessa forma, necessério entender o que significou, em termos gerais, a ELSP nesse periodo dentro do contexto institucional, para que se possa ter uma dimensdo mais clara da atuagao de Baldus. Fundada em 1933, como reacdo de elite paulista 4 derrota na Revolucdo de 32, a ELSP tinha por objetivo a formagao de pessoal de nivel técnico & superior capacitado para administrar os interesses publicos ¢ privados no Estado de S40 Paulo. Estava embutida em seu projeto a idéia de se promover uma revolugo cientifica e tecnolégica através do ensino especializado, que permitisse aos paulistas tomarem a dianteira no processo de modernizagao e industrializago do pais. Derrotado politica e militarmente, excluido das esferas ® BALDUS, H. ¢ WILLEMS, E. Dioiondrio de Etnologia e Sociologia, ® BALDUS, H. Lendas dos indios do Brasil do poder central no pais, S40 Paulo buscava se modernizar para conquistar um lugar de lideranga no panorama econémico brasileiro, que the assegurasse novamente um papel decisivo na vida nacional. Essa era a resposta das elites Paulistas ao fracasso de 32. No ano seguinte, em 1934, foi fundada a USP, que incluia a faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras (FFCL/USP). Embora baseado no mesmo espirito de promogao de uma revolugao pelo saber, 0 projeto da USP, influenciado pelos ideais dos ‘normalistas” franceses, era voltado a formagdo de professores secundarios que contribuiriam para uma melhoria da educagao ginasial e elevagao da cultura geral da populagdo. A razdo politica por tras disso era formar um eleitorado mais informado e consciente. Embora se entenda a fundagéo da ELSP e da FFCLIUSP como uma Teagdo da elite paulista, € preciso fazer notar que, ainda que os objetivos politicos fossem 0 mesmo, os projetos que as fundaram guardavam concep¢des distintas. A ELSP tinha uma vocagéo mais técnica, voltada para o setor empresarial e administrativo, com uma maior preocupagdo com as ciéncias aplicadas. Ja a USP tinha um projeto cultural e académico, voltado mais para as ciéncias puras € 0 ensino tedrico. Isso fica bastante claro em texto de Samuel H. Lowrie*, antigo professor da ELSP, apresentado em 1935 a Assembiéia Legislativa do Estado de Sao Paulo, no qual pede auxilio financeiro do estado a ELSP, que era gerida por uma fundagdo que captava recursos na area privada. AUSP, por sua vez, era mantida pelo Estado com verba publica Essa distingo refletia as diferengas que haviam entre os grupos fundadores das duas instituigdes. O grupo da ELSP era ligado a drea empresarial, preocupado mais com quest6es administrativas, e que via nas Ciencias Sociais a possibilidade de produgéo de um conhecimento sobre as condigées sociais e de vida da populacdo, o que permitiria planejar racionalmente as atuag6es dos setores pliblico e privado. Essa mentalidade °° LOWRIE, S. H. “Informagées sobre a Escola Livre de Sociologia e Politica de S40 Paulo — Memorial apresentado aos Srs. Deputados”, in Revista do Arquivo Municipal, XV. 4

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