Colóquios de Cutiliquê

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Colóquios

de
Cutiliquê
COLÓQUIOS

DE

CUTILIQUÊ

Felipe
Rey
Personagens

Um homem
e
Uma mulher
(Uma sala cercada, espargida, iluminada por velas. Quase não
há decoração. Quase não há objetos. Apenas um telefone fixo no
centro. Um homem está situado na extrema direita da sala
falando ao aparelho celular. Enquanto, a mulher está na extrema
esquerda sentada elegante e sensualmente na cadeira com as
pernas cruzadas, lixando e pintando as unhas das mãos com
esmalte de cor negra.)

Um homem: Alô, alô, alô, alô! Oi! Oi! Oi! Tem boi na linha?
(pausa) Tem boi na linha.

Uma mulher: Boi?

(o telefone central toca.)

(a mulher ameaça levantar-se da cadeira.)

Uma mulher: Não vai atender, ó!

Um homem: Eu já estou numa ligação aqui! não está vendo?!

Uma mulher: Com quem você está falando?

Um homem: Com a sua mãe.

Uma mulher: Com quem você está falando?

Um homem: Com sua vó.

(o telefone central continua a tocar insistentemente.)

Uma mulher: Não vai atender, caramba!


Um homem: Estou numa ligação comercial muito importante,
cacete! Não está percebendo, não?

Uma mulher: Ué, você não está falando com o meu pai e com o
meu avô?

Um homem: Quem disse isso?

Uma mulher: Você! você disse.

Um homem: De maneira nenhuma.

Uma mulher: O que foi que você falou, então?

Um homem: Eu falei que eu estava numa ligação comercial com


a sua mãe e com a sua avó. (pausa) Estou negociando a venda das
duas.

Uma mulher: Você vai vendê-las por quanto?

Um homem: Primeiro, eu tenho que pesa-las na balança.

Uma mulher: ah... Mas a minha mãezinha até que tá bem enxuta.
(pausa) a minha vózinha cortou o açúcar devido à diabete e não
come mais pão com manteiga por causa da hipertensão.

Um homem: Por pouco, eu cantei a tua mãe...

Uma mulher: Por falar em cantar... que tal uma música pra
alimentar os ouvidos?! (breve pausa) Liga o rádio aí, paixão!

Um homem: E cadê o rádio?

Uma mulher: Acho que levei pra cozinha, enquanto eu preparava


um franguinho com quiabo e farofa que você tanto gosta.

Um homem: hum... já estou começando a ficar laricado...


Uma mulher: Tem cigarro?

Um homem: hi... esqueci de comprar cigarro, minha paixão!


(breve pausa) Eu não durmo, não durmo de jeito nenhum sem
antes fumar um cigarro. Que vício do cacete esse!

Uma mulher: Você precisa largar desse cigarro industrial e fumar


apenas o natural.

Um homem: Eu fumava cachimbo com fumo-de-rolo. É muito


bom. Parece que os pulmões ficam mais ativos...

Uma mulher: É mesmo?

Um homem: É sim.

(o aparelho celular da mulher toca. No momento que ela termina


de pintar as unhas de preto. Ela levanta-se da cadeira e dirige-se
ao centro.)

Uma mulher: Olá, flor do sol! Olá! (ela para pra ouvir a outra
pessoa falar). (Retoma a fala) Pois então, vamos tomar uns
chopps no shopping, é! Posso ir acompanhada, não tem problema.
(Pausa) Eh, você vai adorar ele! Elas vão adorar conhece-lo sim!
(Pausa) Ok. Tá combinado, tá fechado. Até mais ver, Flor do sol.
(termina a ligação).

Um homem: Você quer ir ao shopping!? Não, não vamos ao


shopping! Eu odeio shopping! Um antro capitalista do demo!

Uma mulher: Então vamos para um motel? Que tal, heim?!

Um homem: Ah, bem melhor!!! (num tom melífluo) É tão bom


quando você entende a minha língua, meu tchutchu...
Uma mulher: hrrrhurrr.... estragou tudo! Caramba! Que isso de
meu tchutchu!!!??? Me chame de qualquer coisa menos de meu
tchutchu!!!

Um homem: Minha abelhinha!

Uma mulher: Meu querubim!

Um homem: Minha oncinha!

Uma mulher: Meu leopardo!

Um homem: Minha coelhinha!

Uma mulher: Meu mestre!

Um homem: Minha cadelinha!

(O telefone central toca novamente)

Uma mulher: Não vai atender, ô cão pulguento!!!

(ela muda seu tom de voz, toda aquela meiguice e ternura se


esvai de súbito. Ambos estão furiosos e ferozes. Ao ponto de
estarem prestes a menoscabarem-se. Aparentemente, isso ocorre
sem a menor explicação. Eles estão de pé, eretos, um defronte ao
outro.)

Uma mulher: Tem certeza que você não vai atender essa porra!!!

Um homem: Eu estou com vontade de ir ao banheiro!!! (Põe a


mão na barriga, passando pela bexiga).
Uma mulher: Você é um mijão mesmo! Tá com as coisas
frouxas, hein? (Ela gesticula num trejeito bem masculino).

Um homem: Deixa de besteira, sua marafaia!

Uma mulher: O que você me chamou, seu escroto?

Um homem: De hetaira.

Uma mulher: Não foi disso que você me chamou, não! O que foi
que você me chamou, seu caga-mole!

Um homem: E você!? Sua mocréia da moléstia!

Uma mulher: Cala a boca aí, seu bagre, seu beócio, seu sicofanta,
seu pusilânime! Seu borrabotas de merda!

Um homem: (suspirando com sarcasmo) Pequenas grandes


palavras...

Uma mulher: Vamos cessar com isso. . . (ela inicia assobiando


uma antiga canção da Dalva de Oliveira e depois canta de fato).
“Bandeira branca, amor/Não posso mais/Pela saudade que me
invade/Eu peço paz...” (Ela repete como se se fosse um
estribilho).

Um homem: (ele interrompe a cantoria da mulher de forma


desajeitada quase grosseira). Tá bom, mulher! É melhor ouvirmos
música.

Uma mulher: Ueh, que foi?! (Pausa) Não gostou da minha voz
de soprano médio?

Um homem: As mulheres meigas e delicadas cantam em soprano


e as mulheres ardentes e provocantes cantam em contralto.
Uma mulher: Que teoria é essa? (Pausa curta) Repete! (ela
vocifera).

(friamente, ele repete sua “teoria”).

Um homem: As mulheres meigas e delicadas cantam em soprano


e as mulheres ardentes e provocantes cantam em contralto.

Uma mulher: Poderia muito bem ser o inverso.

Um homem: É mesmo, é? (num tom frívolo)

Uma mulher: (firme) É!

Um homem: Diga-me!

Uma mulher: As mulheres meigas e delicadas cantam em


contralto e as mulheres ardentes e provocantes cantam em
soprano.

Um homem: Óquei! Eu me rendo. (irônico) Eu concordo contigo.

Uma mulher: Acho bom! (mantendo a firmeza na fala).

Um homem: hum. . .

Uma mulher: Pare de resmungar, homem! A lamúria não é uma


coisa masculina.

Um homem: Eu quero que você crave essas unhas negras na


minha carne! (Ele repete tonitruante, como se fora um bordão) Eu
quero que você crave essas unhas negras na minha carne! Eu
quero que você crave essas unhas negras na minha carne! Eu
quero que você crave essas unhas negras na minha carne! (com o
mínimo de fôlego prossegue exclamando.) Eu quero que você
crave essas unhas negras na minha carne! Eu quero que você
crave essas unhas negras na minha carne! Eu quero que você
crave essas unhas negras na minha carne! (ele extenua-se ofegante
e queda-se no sofá que subitamente surge no palco).

Uma mulher: Peraê . . . . (melíflua e frívola) Calma, calma que


tudo é nosso, meu filhinho......

Um homem: Caaaalma! (bastante exaltado).

Uma mulher: Eu também quero que você apalpe, tateie a minha


carne com a sua mão pesada de pedreiro.

Um homem: ...aaaahhhh como eu caio de cara no seu charme!


(excitado).

Uma mulher: A sua cara está amarela (Pequena pausa) cara


pálida!

Um homem: De jeito nenhum, a minha cara não é lívida como


você está mencionando. Eu sou neto de caboclo! Filho de pai
preto e mãe morena da cor de tamarindo como eu.

Uma mulher:. . . hhhuummm... balela, caô! Você é descendente


de português que eu sei, que eu saiba...

Um homem: E os seus olhos roxos?!

Uma mulher: Meus olhos roxos... (perplexa) ah e seus cotovelos


e joelhos cinzas! Quem manda não estudar, operário-padrão!

Um homem: aeh! E suas coxas verdes... (volta o tom de


excitação) Como eu pretendo beijar suas pernas.

Uma mulher: Beija meus pés! (altiva)

Um homem: (novamente exortado) Eu quero que você crave


essas unhas negras na minha carne!
Uma mulher: (novamente melíflua e frívola) Seus olhos são
azuis, filhinho?

Um homem: Meus olhos estão vermelhos.

Uma mulher: Não. Negativo. Seus olhos são castanhos como


pimenta-da-Jamaica.

Um homem: Não. Meus olhos estão vermelhos mesmo como


pimenta malagueta.

Uma mulher: tah! Que seja feita a vossa vontade!

Um homem: Acho bom! (convencido).

Uma mulher: ham. . .

Um homem: ooommm. . .

(De repente, algumas velas se apagam. Em seguida, um silêncio


prolongado. Silêncio. Silêncio. Silêncio extremo. Mas, a calmaria
que o silêncio acarreta neste instante da cena vai por água
abaixo quando o telefone toca. No entanto, há algo diferente no
toque do telefone).

Um homem: Não vai atender, não, ô!

Uma mulher: ué deixa tocar! (desleixada).

Um homem: aé comigo o negócio foi totalmente outro, né!


(O celular da mulher toca. Toca várias vezes. Ela atende.)

Uma mulher: Olá, flor do sol! Olá! (ela para pra ouvir a outra
pessoa falar). (Retoma a fala) Pois então, vamos tomar uns
chopps no shopping, é! Posso ir acompanhada, não tem problema.
(Pausa) Eh, você vai adorar ele! Elas vão adorar conhece-lo sim!
(Pausa) Ok. Tá combinado, tá fechado. Até mais ver, Flor do sol.
(termina a ligação).

(O celular do homem também toca inúmeras vezes. Ele atende).

Um homem: Olá, flor do sol! Olá! (ele para pra ouvir a outra
pessoa falar). (Retoma a fala) Pois então, vamos tomar uns
chopps no shopping, é! Posso ir acompanhado, não tem problema.
(Pausa) Eh, você vai adorar ela! Eles vão adorar conhece-la sim!
(Pausa) Ok. Tá combinado, tá fechado. Até mais ver, Flor do sol.
(termina a ligação).

Uma mulher: Macaco de imitação! (com tom infantil).

Um homem: Boboca, bobona! (outrossim, com tom infantil).

Uma mulher: Macaco de imitação ô! (ainda infantil).

Um homem: Você já falou isso, chorona! (infantil, porém, sem


nenhuma pureza).

(A mulher começa a chorar copiosamente, até ficar debulhada


num mar de lágrimas).
(Outra vez, o telefone central toca com outro toque diferente
interrompendo o choro caudaloso da mulher).

Uma mulher: O que houve?

Um homem: Você estava choramingando, filhota.

Uma mulher: Eu?

Um homem: Eu?

Uma mulher: hanrã.

Um homem: Há muito tempo eu não sei o que é chorar. (Pausa)


Eu gostaria de chorar um dia... Quem sabe...

Uma mulher: Por que não tenta? É gostoso.

Um homem: É um trabalho árduo. Só se eu fosse um eremita, um


ermitão, um monge meditabundo.

Uma mulher: Sabe o que eu desejo neste momento?

Um homem: O que tu desejas, ó honorável e bela mulher?

Uma mulher: Eu quero furunfar, furufunfar com você, pode?!

Um homem: Daqui a pouco.

Uma mulher: Mas aqui há pouco pra se fazer.

Um homem: Vamos retomar o colóquio.

Uma mulher: Que chato!


Um homem: aeh eu vou ser solipso, solícito e solidário comigo.
Vou ficar só no solilóquio. (pausa longa) Ocupado, ausente,
indisponível, invisível.

(A mulher sai de cena rapidamente pelo meio. Porém, com a


aparência confiante e decidida desencadeando uma contradição
quanto ao diálogo anterior).

(O homem principia o solilóquio.)

Um homem: Agora (ligeira pausa) eu pretendo falar o que penso.


Pretendo falar o que penso sem medo de lógica, sensaboria e
senso. (uns minutos de silêncio) 1, 2, 3, 4, 5. (célere pausa) Qual
será o dia que ela adora – segunda, terça, quarta, quinta, talvez
sexta? Não. Acho que é sábado. Ah! mas de nada vale. Quem não
gosta de sábado? (dirige-se à platéia) Todos gostam de sábado...
Será que é domingo? Domingo só é útil para dormir, acordar,
beber, comer, dormir e acordar na segunda-feira pra chafurdar-se
no poço-cotidiano. (mais uns minutos de silêncio) A, B, C, D, E.
Alfa, Beta, Gama, Delta, Teta. Alef, Beith, Veith, Guímel, Dalet.
(ligeira pausa). Quando irei decifrá-la? A E I O U! A E I O U! A
E I O U! Ela é a minha professa e eu sou seu aluno. (olha para trás
como se fosse procurá-la) Ela ensina, eu entendo. No entanto,
nenhum dos dois aprende. (célere pausa) Eu faço aniversário
todos os meses. Ela nasce todos os anos. Nós morremos vivendo.
Nós vivemos morrendo. (um minuto de silêncio) Só existiu um
ventre virgem que gerou a vida no mundo. Será que todos sabem
disso ainda? (longa pausa). Nossos signos são................................

(Os três telefones tocam estridentemente suspendendo


bruscamente o monólogo do homem. O Telefone fixo soa mais
estridente do que os móveis. A Mulher volta lépida - correndo,
espavorida. Todavia, os dois desdenham as chamadas. Em
seguida, encontram-se estáticos um defronte ao outro. A
princípio sem dizer uma só sílaba sequer).

Uma mulher: Olá!

Um homem: Qualé?

Uma mulher: E aí?

Um homem: E daí?

Uma mulher: Ei!

Um homem: Só. . .

Uma mulher: Me fale, você me falou seu nome. No entanto,


agora não me vem à memória. . . João, Antônio, Pedro, Bruno,
Luis, Cláudio, José, Francisco, Moisés, Renato, Roberto, Carlos!
(com ênfase) Felipe, é Felipe? Simão, Sebastião, Jorge. . .

Um homem: Quer que eu me chame Jorge?

Uma mulher: ...Pode ser. Tá válido!

Um homem: . . . Vem cá! e quantos nomes você tem?

Uma mulher: Bárbara, Flávia, Jane, Gabriela, Daniela, Amanda,


Sandra, Carolina, Cecília, Clara, Clarice, Alice, Madalena, Joana,
Hilda, Talita, Natália, Elisabete, Solange, Vivian, Viviane,
Vanessa, Valesca, Marta, Miriam, Ângela, Maria, Rosa! Hoje eu
me chamo Rosa. Rosa no nome, na cor, no aroma. Rosa do amor.
Rosa do amor.

Um homem: Como você é bela, Isabel, Isabela! Você é Graça!


cheia de Graça!
Uma mulher: Nome não é nada.

Um homem: A aura tem mais valor.

Uma mulher: Claro.

Um homem: E quanto ao amor? O amor. . .

Uma mulher: O amor? O amor. . .

(Surge uma grande cama redonda, dessas de quartos de motel. E


os dois se jogam na cama. Ou melhor: Mergulham na cama.
Como se fossem tomar um ensolarado banho de mar. Embora, a
cena é arrematada por um ímpeto visceral e descomedido. Deve
ser acompanhada também por um clima romântico e terno. Os
personagens deitam-se, rolam-se, tiram a roupa. O homem
apenas usa uma cueca branca e a mulher de calcinha e sutiã
brancos. Eles se abraçam, mas não conseguem se beijar, se
tocam, mas não chegam às vias de fato. Os dois se ajoelham.
Tentam ensaiar um simulacro de uma reza. Tremem. Levantam,
ficam de pé em cima da cama e agora estão face a face com as
mãos um no ombro do outro).

Uma mulher: O amor!!!!!

Um homem: Diga-me! Fale logo! (ligeira pausa) 1 2 3 e já!

Uma mulher: Lá vai!

Um homem: Cuspa.

Uma mulher: O amor é EGOísta.


Um homem: O amor é EGOísta.

Uma mulher: O amor é EGOísta.

Um homem: O amor é EGOísta.

Uma mulher: ...Então... Por isso...

Os dois injetam essa derradeira fala em sincronismo num tom


que vai crescendo aos poucos até chegar ao volume máximo
das suas vozes. A fala é repetida várias vezes até o
esgotamento. Depois, continua o sincronismo, porém, num
tom que vai decrescendo acarretando numa espécie de fade
out: Eu te amo não Eu te amo não Eu te amo não Eu te amo não
Eu te amo não Eu te amo não Eu te amo não Eu te amo não Eu te
amo não Eu te amo não Eu te amo não Eu te amo não Eu te amo
não Eu te amo não Eu te amo não Eu te amo não Eu te amo não
Eu te amo não Eu te amo não Eu te amo não Eu te amo não Eu te
amo não Eu te amo não Eu te amo não Eu te amo não ! ! ! . . . . . .

FECHA-SE A CORTINA LENTAMENTE

FIM

Todos os direitos desta obra são reservados ao autor.

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