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Colegéio Biblioteca Basica Brasileira INSTITUICOES POLITICAS BRASILEIRAS Oliveira Viana Introdugao OLIVEIRA VIANA E O PENSAMENTO AUTORITARIO NO BRASIL Antonio Paim O elemento mais caracteristico de nosso periodo republicano — que, dentro em breve, completard seu primeiro stculo — é, sem divida, ascensiio do autoritarismo politico. Durante largo periodo, trata-se apenas de pratica autoritdria. Nessa fase, elimina-se a representagao, mediante 0 expediente de promover o reconhecimento dos mandates parlamentares, a partir do Goverao Campo Sales, mas se mantendo intocada a Constituigao. Sucedem-se os desrespeitos ds liberdades con- sagradas pela Carta Magna, seguidos sempre da preocupagéo de sal- var as aparéncias desde que o Parlamento era instado a votar os estados de sitio. Talvex a historia politica brasileira na Repiblica Velha é que ienha inspirado a tese segundo a qual, no Brasil, a prética nada tem a ver com a teoria, De fato, ao longo das quatro primeiras décadas republicanas, tivemos um arcabougo constitucional Slagrantemente contrariado pela atuagdo dos governanies. Ai primeira expressio de autoritarismo doutrindrio coerente- mente elaborado seria o castilhismo(1). Inspirando-se em Comte, Julio de Castilhos (1860/1903) doton 0 Rio Grande do Sul de in- stituigdes aberta e francamente autoritérias. A pratica de trés decénios, sob a batuta ck Borges de Medeiros (1864/1961), permitin aprimori-las formar uma elite altamente qualificada, votando 0 mais solene desprezo pelo 12 Oliveira Viana liberalismo, certa de que a época dos governos representatives havia passado. Essa elite € que chegaria ao poder com a Revolugéio de 30..A ascendéncia de Getilio Vargas (1883/1954) durante os anos 30 ¢ a implantapao do Estado Novo correspondem a vitéria e @ consagragéio do castilhismo. Outras dontrinas autoritdrias tiveram curso no pais no mesmo periods. Em especial aquelas que resultaram do tradicionalismo popularizado por Jackson de Figueiredo (1891/1928) e que desem- bocaria no integralismmo ¢ na pregagao de homens como Francisco Campos (1887/1968) ou Azevedo Amaral (1881/1942); ou que deram curso ao cientificismo na versio positivo-marxista e que acabaria, em nossos dias, batendo todos os recordes de sincretismo ¢ incoeréncia ao empolgar segmentos importantes da Igreja Catélica. ‘Tais doutrinas obscurantistas, por mais rutdo e sucesso que provo- quem em determinados momentos hist6ricos, sdo 0 lado menos impor- tante da tradigao cultural luso-brasileira. Dentre as personalidades que soube atrair para sua brbita, Vargas contou com a colaboragiio de Oliveira Viana (1883/1951), que repre- senta fenomeno mais complexo e que cle mesmo procuraria identificar como uma linka de continuidade de determinada tradigéo. Trata-se da Sinha modernizadora, através do fortalecimento do Poder Central, que encontraria excpresséo acabada no Segundo Reinado. Tem algo a ver com 0 autoritarismo, mas a este nao se redux, Tal 6, em linhas gerais, a temdtica que desejartamos desenvolver. O astilhismo acha-se suficientemente caracterizado em edicées aparecidas recentemente, a saber: Constituigio Politica do Rio Grande do Sul. Comentério (1911), de Joaquim Luts Osério (1881/1949) ¢ O Rio Grande do Sul e suas instituigdes gover- namentais (1925), de Raimundo de Monte Arrais (1888/1965). As outras formas de autoritarismo eftmero e que nao chegarane a institucionali- ar-se no pais estao estndadas de modo amplo em textos como A Igreja na Instituigies Politicas Brasileiras 13 Republica, antologia omanizada por Ana Maria Moog Rodrigues; O Estado autoritario ¢ a realidade nacional (1938), de Azevedo Amaral, e coletéinea de tesctos de Francisco Campos. De sorte que, nesta oportunidade, cabe tao-somente apontar os antecedentes tedricos de Oliveira Viana e 0 papel que suas idéias chegaram a desempenhar em nossa contemporinea histiria politica. Antes de efetiva-lo, faremos uma breve apresentagio da vida ¢ obra do pensador. 1. Vida e obra de Oliveira Viana FRANCISCO JOSE OLIVEIRA VIANA nascen em 1883 na cidade de Saquarema, no interior do Estado do Rio de Janeiro, viveu ¢ educou-se na capital fluminense, concluinda 0 curso de Direito em 1905. Dedicon-se ao jornalismo ¢ ao magistério, in- gressando no Corpo Docente da Faculdade de Direito de Niteréi em 1916. Seu primeiro livro - Populagées Meridionais do Brasil - aparece em 1920, quando completa 37 anos. Nesse mesmo ano pub- fica O Idealismo da Constituigéo. Ao longo da década de vinte viria a adquirir grande nomeada. Depois da Revolugiio de 30 torna- se Consultor da Justi¢a do Trabalho, tendo desempenhado papel muito importante na ordenagdo do direito do trabalho brasileiro e na concepeao dos institutos a que den surgimento. Em 1940 passou a in- vegrar 0 Tribunal de Contas da Unido. As novas fungées de certa forma levam-no a interromper 0 sentido principal de sua obra, que é entretanto retomado apds a queda do Estado Novo. Falecen aos 68 anos de idade, em 1951, Pertencen @ Academia Brasileira de Letras. Em Populagées Meridionais do Brasil, Ofveira Viana distin. gre tres tipos caracteristicos na formagiio de nosso pats, contrariando a tradicao de considerar ao povo brasileiro como massa homogénea. De sua presenga atha que resultam trés sociedades diferentes: a dos sertoes, a das matas ¢ a dos pampas, com estes tipos especificos: 0 sertanejo, 0 matuto e © gaticho. Os principais centros de formagéo do matute séo as regives 14 Oliveira Viana montanhosas do Estado do Rio, 0 grande macigo continental de Minas e os platés agricolas de Sao Paulo. Exerce influéncia poderosa no curso historico seguido pelo pais. O objetivo de Oliveira Viana é chamar a atengéo para a realidade circundante auténtica ¢ denunciar 0 vexo de copiar instituigdes enropéias, que a seu ver comega com a Independencia. A esse propésito esoreve: "O. sentimenta das nossas realidades, tao sélido ¢ seguro nos velhos capitaes-generais, desaparecen com efeito, das nossas classes divigentes: bd um steulo vivemos politicamente em pleno sonho. Os métodos objetivos e priticos de administragio e legislagao desses estadistas coloniais foram inteiramente abandonados pelos que tim dirigido o pats depois da sua independéncia, O grande movimento democritico da revolugao francesa; as agitagbes parlamentares inglesas; 0 espirito hib- eral das instituigies que regem a Repiiblica Americana, indo isto ex- ercen e exerce sobre os nossos dirigentes, politicos, estadistas, Legis- ladores, publicistas, uma fascinagao magnética, que lhes daltoniza completamente a visio nacional dos nossos problemas. Sob esse fascinio inelutével, perdem a nogéo oljetiva do Brasil real e criam para uso deles um Brasil artificial, ¢ peregrine, um Brasil de manifesto aduaneiro, made in Europe ~ sorte do cosmorama extravagante, sobre cnjo fundo de florestas ¢ campos, ainda por descobrir e civilixar, passam e repassam cenas ¢ figuras tipicamente exropéias.” A linha a seguir esté desde logo esbocada neste primeiro livro: tor nar 0 Eistado um grande centro aglutinador de transformagéo social, apto a "tundir moralmente o povo na conscitncia perfeita e clara da sua uni- dade nacional ¢ no sentimento politico de um alto destino histirico". E prossegue: "Esse alto sentimento e essa clara ¢ perfeita consctinca 36 serao realizados pela agao lenta ¢ continua do Estado ~ um Estado so- berano, incontrastével, centralizado, unitério, capaz de impor-se a todo 0 pais pelo prestigio fascinante de uma grande missao nacional.” A meditagio que initia com Populagées Metidionais do Brasil ¢ com a deniincia do que entio denominon de “idealismo da Constituigao", em 1920, continuada em Enolacio do Povo Brasileiro (1923), coroa-se, Instituigbes Poltticas Brasileiras 15 nessa primeira fase, com o livro Problemas de Politica Objetiva, qpare- eido pponco antes da Revolugiio de 30, Neste, connenta e avalia as propostas de Al- Lento Tomes ¢ enxerga no pais um novo dima, favorivel a centralizagio. "Fé vinte anos passades", escreve, "as idéias politicas, nos centros intdectuais ¢ par- tidénios, néio sé locais como federais, diferiam muito das idéias atuais: tratam a concepgéo centrifuga do regime federative." Enxerga a emergéncia de "sensivel tendéncia centripeda, um répide movimento das forcas politicas locais na daregéia do poder central". Al mensagem de Oliveira Viana é clara e precisa: "Ha evidente- mente em tudo isto um grande equivoco, uma grande ilusdo, que perturba @ visto exata das realidades nacionais a todos esses descentristas ¢ autonomistas, que sao, afinal, aqui, todos os espiritos que se jactam de liberais e adiantados, Porque € preciso recordar, com Se eeley, que a Liber. dade ¢ a Democracia nio sdo os tnisos bens do mundo; que hé muitas outras causas dignas de serem defendidas em politica, além da Liberdade ~ como sojam a Civilixacao e a Nationalidade; ¢ que muitas vexes acon- tece que um governo néo liberal nem democrtico pode ser, néio obstante, muito mais favoravel ao progresso de um povo na diregio dagueles dois objetivos. Une regime de descentralixagao sistematica, de fuga a disciplina do centro, de localismo ou provincialismo preponderante, em vex de ser um agente de forga ¢ progressa, pode muito bem ser um fator de fraqueza ¢ aniquilamnento ¢, em vex de assegurar a liberdade ¢ a democracia, pode real- mente resultar na morte da liberdade e da democracia." Com a Revolugéio de 30, Oliveira Viana passa a ocupar-se de um segmento novo daquele Estado centralizado ¢ modernizador com que son- hava: 0 direito do trabalho. Dessa fase ficaram-nos trés livros: Proble- mas de Diteito Corporativo (1938); Problemas de Direito Sin- dical (1943) ¢ a coletdnea de estudos dispersos agrupados sob a denomi- nagao de Direito do Trabalho « Democracia Social, editada em 1957, Retoma a meditagéo anterior com Ynstituigdes Politicas Brasileiras (1949). Dessa fase deiscon vérios inéditos, alguns das quais seriam editados pos- 16 Oliveira Viana tumamente como Problemas de otganizagio e problemas de ditegio (publicade em 1952) € Introducio a histéria social da economia pré- capitalista no Brasil (publicado em 1958). 2, Antecedentes doutrinarios Duas séo as fontes doutrindrias de Oliveira Viana: 0 culturalismo sociolégico de Silvio Romero (1851/1914) ¢ a critica a tradigao liberal brasileira realizada por Alberto Torres (1865/1917). O culturalismo sociolégico de Silvio Romero corresponde a uma inflexto no culturalismo filosofico de Tobias Barreto (1839/1889). Este, para combater a hipstese comtiana da fisica social, indicon que 0 homem dirige-se por casas finais ¢ néo pode ser esgotado no plano das causas ficientes (ciéncia). Gragas a essa capacidade de formular-se objetivos ¢ de tracar os caminhos para aleangé-los, o homem erigin a cultura. Tobias Barreto tem em mira a idéia de arguétipo on protitipo qpontada por Kant, ao dizer que, sem 0 ideal da sociedade racional, nao averia como lutar pelo aperfeigoamento das instituighes sociais; on que "nds ndo temas, ‘para julear nossas agées, ontra regra sendo a conduta deste homem divino (isto 6, 0 sabio estbico) que conduzimos em nés ¢ ao qual nos compara- mos para nos julgar e também para nos corrigir, mas sem poder jamais alcancar a perfeigéo'”. Por isto mesmo, conchtiria Tobias Bar- reto, 10 seio da cultura o direito é 0 fio vermelbo ¢ a moral o fio de oure, explicitando que, nessa obra, os homens nao se inspiram na naturexa, a seat ver fonte tiltima de toda imoratidade. A investigagio era, pois, de cunho filoséfico. Conduin, mais tarde, 4 pergunta pela objetividade no dmbito das citncias humanas, isto é pela possibilidade de alcangd-la; suas peculiaridades em relagéo as ciéncias naturais, etc. Mais explicitamente: levon a uma investigagio de indole cpistemoligica para, em seguida, ressuscitar a inguirigio metafisica, em especial a pergunta pelo ser do homem. Instituigies Politicas Brasileiras 17 Silvio Romero iria eliminar a antitese entre cultura ¢ natureza para reduzir a primeira a tltima ¢ dar a investigagio cariter meramente cien- iifico. No Ensaio de Filosofia do Diteito (1895) escreveria: "O Direito é como a Arte, como a Educagio. Ora, cada uma destas é, nio bis nega-lo, produto da cultura, e forma-se segundo a indole dos povos; porém, a cultura é filha da natureza do homem, estimulada pela natureza exterior. Se néo fora assim, a cultura mesma seria im- possivel, irrealizdvel, incompreensivel. E, tao incongruente fantasiar um direito eterno, anterior ¢ superior aos povos, como o de imaginar uma cul- tura atrea, que nao repousasse na indole mesma natural do homem ¢ em a natural capacidade que ele tem de se desenvolver."" Lago adiante aponta nestes termos 0 cansino que deve trilbar a investi gegio: "Banidos os velhos métodos ontoligicas, que faziam a Citncia de cima para baixe, partindo de algum suposto principio geral, a que os fatos se de- veriam por forga acomodar, banidos os velbos processes, aquelas ciéncias tiveram, ao contrario, de se firmar nos fatos ¢ partir com eles em busca das eis que regem o desenvolvimento do individuo e da sociedade." O experimentalismo, exclama, deve-se interpor e acabar com as di- vagagoes a ptiori®”. Silvio Romero preferin, pois, 0 que a posteridade iria denominar de culturalismo socioligico. Na verdade, nunca chegou a tragar um proe- grama definitive da maneira pela qual deveria efetivar-se essa investi- Lagio sociolégica da cultura. Além do mais, como oportunamente desta- caria Miguel Reale, Silvio Romero estava pouco preocupado com a teoria keral. Sen empenbo consistia em buscar os instramentas capazes de com preender o Brasil e sna histéria®’. O calturalismo socioligico de Silvio Romero assume trés feigies mais ou menos diferenciadas. Em fins dos anos vitenta, na época da publicagio da Hist6ria da Literatura Brasileira (1888), é simples partidério de Spencer. Por volta dos comegos do século, sem renegar 0 evolucionismo 18 Oliveira Viana spenceriano, incorpora a idéia de luta de classes. Finalmente, na fase fi- nal, adere a Escola de Le Play. A incorporagao de elementos doutrindrios ao culturalismo sociolégico de Silvio Romero se faz apés comprovada a sua éfitdcia na espplitagio das particulares circunstancias brasileiras. A necessidade de aprofindd-la é que 0 move a buscar novos principios. Silvio Romero considera que, para compreender a evolugdo da so- ciedade brasileira e determinar, pressentir on averiguar os caminbos de seu desenvolvimento futuro, necessdrio se fax recusar as explicagbes simplistas ou meramente descritivas, submeter a critica daquelas teo- rias que isolam um ou outro fator ¢ a partir exclusivamente destes pretendem apresentar uma visdo global, ¢, finalmente, examinar em profundidade o conjunto de elementos constitucionais ¢ integrantes do contexto social. Antes de avangar na enumeragdo destes, convém acompanhd-lo na critica as teorias emt voga a respeito do Brasil. A primeira explicagao simplista, logo combatida por Silvio Romero, é aquela que atribni os feitos histéricos a um on outro heréi ou ainda ao conjunto das elites. Tomo como exemplo, para ilustrar suas idéias, 0 fenbmeno da Aboligéo, que se comemorava na proprio més em que a Histéria da Literatura Brasileira era ultimada para a entrega ao public, que vinha merecendo essa interpretagao. Entre as teorias puramente descritivas, coloca a doutrina etnografica de Martin, que indica os elementos constituintes do povo brasileiro, as ragas que contribuiram para a sua formagao, mas néo aponta "como estes elementos atuaram uns sobre os outros e produziram o resultado presente", "“falta-lhe 0 nexo causal ¢ isto seria o principal a esclarecer. Outra doutrina por ele considerada errinea é a do escritor portugues Tedfilo Braga, que pretende atribuir a mesma origem, asidtita, para as populagies da Europa Meridional e da América, com 0 que explicaria 0 finémeno do lirismo literario. Silvio Romero considera anticientifica essa hipdtese das migragies asiéticas e objeta: "Concedendo porém tudo, admitindo a Instituigies Politicas Brasileiras 19 identidade das origens do lirismo portugués ¢ tupinambd, como quer 0 escritor portugués, que dai se poderd inferir para a filosofia da historia brasileira? Nada, A tese do autor aporiano é puramente literdria e nao visa uma explicagao cientifica de nosso desenvolvimento social”. Oliveira Martins, em seu livra O Brasil e as Coldnias Por- tuguesas, "eaxerga todo 0 interesse dramdtico e filosifico da bistéria na- cional da luta entre os jesuitas e os indios, de um lado, e os colonos por- tugneses ¢ os negros, de outro". Para o critica sergipano tais fendmenos nao passam de fatos isolados, de pouca duragio, e néo podem "trazer em sex bojo, como um segredo de fada, toda a latitude da futura evolucio do Brasil, E um simples incidente de jornada, alado @ categoria de principio geral ¢ dirigente; é uma destas sinteses fitteis com que alguns novelistas da historia gostam de nos presentear de vex em quando". Quanto a teoria da patria brasileira, dos posttivistas, entender que nela"0 verdadeiro nao é novo, e 0 novo nao é verdadeiro". A esse tempo Silvio Romero considerava que a corrente dissidente, chefiada por Littré, fora estéril, ildgica e andrquica. Fxpie at a tese repetida no loro Doutrina contra Doutrina, escrito akuns anos depois, segundo a qual positivismwo anténtico € 0 de feigito religiosa, representado no Brasil por Teixeira Mendes ¢ Anibal Faleéo. Para estes 0 Brasil pertencia ao grupo das pitrias ocidentais e ao sair das guerras holandesas, reunia em si as condigées de uma patria (solo continuo, governo independente ¢ tradigées comuns). Nessa luta, a vitdria do elemento ibérico, representante da civilizacao latina, fex com que o Brasil escapasse da ago dissolvente da Reforma, estando portanto em melhores condigées que os Estados Unidos para aceitar a "doutrina regeneradora", isto é, a religiao da bu- manidade. Tal resultado corresponden a uma necessidade, desde que se deveriam reprodazir no Brasil as duas tendéncias opostas existentes na Europa. Para Silvio Romero essa teoria é demasiado simétrica para néo ser em grande parte "pura fantasia". F. exclama: "Era necessdrio para as patrias ocidentais que 0 portugués vencesse no Brasil o holandés pro- testante e que o inglés derrotasse nos Estados Unidos o 20 Oliveira Viana francés catdlicol... Ei muito cémods. E afinal, por que se ndo ha de dar o mesmo na Oceania ena geral ¢ notadamente na Austrdlia, onde 0 elemento germénito quase néo encontra 0 seu competidor? Sao lerras no- vas, habitadas por seluagens a desaparecerem a olbos vistos, que estéo sendo colonizados por europens, representantes da civilizagio ocidental, Por que nao se hd de repetir ai 0 dualismo salutar?" Na Histéria da Literatura Brasileira, Silvio Romero dedica-se ainda a critica dos pontos de vista do socidlogo inglés Buckle, em cuja obra ha pontos de vista sobre a evolugao do povo brasileiro. Henry Thomas Buckle (1823/1862) foi um bistoriador britinico profundamente influenciado por Comte, Stuart Mill, Quetelet ¢ ontros. Publicon, em 1857, trés volumes de uma introdugéo ao estudo da civili- xacdo na Inglaterra. Inicialmente, rejeita a exoplicagio dos fenémenos histéricos dada pelos metafisicos, notadamente a doutrina do livre-at- bitrio, como também a teoria da predestinagio dos teblogos. Pretende Buckle que as ages humanas podem ser excplicadas através dos métodos empregadas nas diénsias naturais desde que sao determinadas somente por seus antecedentes e produzem os mesmos resultados sob as mesmas circun- stancias, podendo ser perturbados pela ago do meio. Segundo ele, as leis que dirigem a histiria sao fisicas (clina, alimentagao e aspecto geral da natureza) ¢ mentais (intelectuais ¢ morais, das quais as primeiras se- rian mais importantes). Divide a civilizagao em dois grandes ramos: a da Exropa (predominio do esforgo do homem sobre a naturexa) ¢ 0 resto do mundo (predominia da naturexa ou das leis naturais). Silvio Romero, tendo em alta conta a critica que realizon das teorias denominadas de metafisicas ¢ teoligicas ¢ algumas de suas observagies sobre a influbncia dos elementos naturais, considera artificial a divistio indicada e aponta outros defeitos na doutrina, Buckle considera que o Brasil néo teve civilizacdo primitiva porque as condigées de vida nao eram fiiceis, como as vigentes nas peninsulas e ds margens dos grandes rios onde surgiram as civilizagies antigas, dat o seu inveterado barbarisma, Silvio Romero considera que é falsa a descrigéio Instituigies Politicas Brasileiras 21 que fax, do clima brasileiro. Na sua opinido, 0 autor, que nunca visiton 0 Brasil, foi vitima do maravilboso no inventdrio dos obstaculos que a natureza nos opie". Diz mais: "Buckle é verdadeira na pintura que fax de nosso atraso, nao na determinagio dos seus fatores."" Resumindo as observagies quanto as teorias enunciadas, Silvio Romero dird que a teoria de Buckle é em demasia cosmogrifica, a de Martius demasiado etnoldgica ¢ a dos discipulos de Comte € um esc tremo social. Compreendendo e proclamando que "a filosofia da historia de um povo qualquer é 0 mais temeroso problema que possa ocupar a inteligéncia humana", prefere adotar certos aspectos da doutrina de Spencer, "a que mais se aproxima do alvo, por mais lacunosa que ainda seja". A luz da crltica as doutrinas comentadas, Sileio Romero avanta a hipitese de que o estudo deve considerar 0 conjunto de elementos assim dlassificados: primérios (ou naturais); seoundérios (on énicos) e tercidrios (on morais). No primeiro plano as questoes mais importantes dizem re- speito ao cima e ao meio geogrifico. Aponta-os: "0 excessivo calor, Gudado pelas secas na maior parte do pais; as chuvas torrenciais no vale do Amazonas, além do intentissio calor, a falta de grandes vias fluviais entre 0 Sao Francisco ¢ 0 Paraiba; as febres de man caréter reinantes na costa". A isto acrescenta: "O mais notével dos secundérios é a incapacidade relativa das trés ragas que constituiram a populagio do pats. Os tltimos — os JSatores histéricos chamados politica, legislagdo, nsos, costumes, que sto efeitos que depois atuare também como causas." Em sintese, as diversas doutrinas acerca do Brasil chamaram a atengio para os aspectos isolados, que cabia in- wegrar num todo tinico. O destino do povo brasileiro, a exemple do que se dava em relagao a espécie humana, estaria tragado numa explicagio de cariter biossocioligica, como queria Spencer. Por volta dos comegos do século, Sihio Romero mantém o mesmo esquema geral, mas incorpora ume dado nove: a luta de classes. Assim, no ensaio "O direito brasileiro no séenlo XVI" (1899) afirmaria que "todo 0 processo de formagao da individualidade nacional 22 Oliveira Viana ndo pode deixar de ser um processo de diferenciagéo cada vex mais cres- cente entre o Brasil ¢ a antiga mae-pdtria . A diferenciagao brasileira", prossegue, "no intuito de formar um tipo novo, € reforgada por fatores mesoligicos e etnograficos, diversos dos da peninsula hispanica." A expli- cagéo preserva, como se vé, 0 caréter biossocioldgico. Contudo, entre os fa- tores terciérios destaca o seguinte: Desde o principio as gentes brasileiras se acharam divididas em: sesmeiros, proprietarios, senhores de engenbo, fazendeivos, nas xonas ruvais, mercantes nas cidades ¢ vilas, de um lado, 6, de outro, os agregados, os moradores, os trabalhadores bragais; os escra- vos negros, mulatos, indios e cafuzos, todos estes dependentes dos grandes proprietarios e negociantes ricagos. Bem cedo tivemos as lutas de classes, especialmente em Pernambuco, Maranhao, Sao Paulo ¢ Minas." Essa referéncia ndo chega a alterar substancialmente os procedimentos recomen- dados. Nos siltimos anos de vida, Silvio Romero incorpora as teses da Escola da Cikncia Social (Le Play, H. de Tourville, Edmond Demolins, P. Rousiers, A. De Preville, P. Bureau e outros). "Os processos da Fiscola de Le Play ~ escreve no Brasil Social (1908) — fizeram-me penetrar a fundo na trama interna das formagies sociais ¢ completar as observagies anteriores de ensino spenceriano." Faz algumas oljegies @ Escola - afirmando, entre outras coisas, "também nito Ibe aceito de todo a classificacéo dos fendmenos sociais, que me parece mais uma nomenclatura de problemas e questies' mas condui: "Como quer que seja, os méritos da Escola, a despeito desta e de outras divergéncias, se me antolham preciosissimos para quem quer conbecer a undo um pais qualquer e a gente que o habita.” No livro em aprego, que deixou inacabado, Silvio Romero resume e comenta os pontos de vista da Escola de Le Play. Essa escola destaca 25 grupos de fatos ¢ problemas sociais. Vale dizer: sitwa-se na linha antes preconizada por Silvio Romero que era a de pretender descrigies exausti- vas, comepletas e abrangentes. Como antes, atribui particular importincia @ atividade produtiva, escrevendo: "Sob 0 ponto de vista especifico do tra balbo, que vem a ser a grande mola que move ¢ aftigoa as sociedades hu- Instituigies Politicas Brasileiras 23 manas, cumpre nao perder de vista que vérias tém sido as fases passadas pela espécie... Cada um destes géneros de trabalho, cada unea destas oficinas de produsio, cada uma destas maneiras de agenciar os meios de excistincias, trazia e trax, conseqiténcias indeléveis, dificilimas de apagar, porque elas con- stituem o substratum intima das sociedades." A aplicacéo das teses de Le Play ao Brasil requeria 0 cumpri- mento deste programa: "Seria preciso estudar acuradamente, sob miltiplos aspectos, cada um dos povos que entraram na formacdo do Brasil atual; dividir o pais em zonas; em cada zona analisar uma a uma todas as classes da populagio e um a um todos os ramos da industria, todos os elementos da educagao, as tendéncias especiais, os costumes, 0 modo de viver das familias de diversas categorias, as con- digies de vizinhanga, de patronagem, de grupos, de partidos; apreciar especialmente o viver das povoagbes, vilas e cidades, as condigies do oper- ariado em cada uma delas, os recursos dos patrées, ¢ cem outros proble- mas, dos quais, nesta parte da América, a retérica politicamente dos partidos nunca ocorren cogitar."” Em que pese a tamanha amplitude, nao vacila em afirmar que a questao etnografica "é a base fundamental de toda a historia, de toda a politica, de toda a estrutura social, de toda a vida estética e moral das nagies". Ei a etnografia ensina que a familia 6 a "questio das questies". "Esta é a base de tudo na sociedade humana; porque, além da fungio natural de garantir a continuidade das geragées sucessivas, forma o grupo proprio para a pritica do modo de existéncia, 0 nitcleo legitimo da maneira normal de empregar os recursos criados pelos meios de viver.” Seriam estas as quatro modalidades tipicas de familias: patriarcal; quase patriarcal; tronco e instével. Estas familias, por sua vex, dao lugar a dois tipos de sociedade: 1) de formagio comunitaria e, 2) de formagao particularista. 24 Oliveira Viana O culturalismo socioldgico de Sthio Romero foi desenvolvido no plano doutrinério por outros integrantes da Escola do Recife. Contudo, 0 in- ventario da organizagao social brasileira, cuja oportunidade tanto enfatizon, seria obra de Oliveira Viana. Com a grande vantagem de que soube corre- lacioné-lo as instituigbes politicas nacionais, atento & ineficécia e ao utopismo de boa parte da nossa tradigéo liberal gragas a familiaridade que veio a adquirir com as idéias de Alberto Torres (1865/1917). O priprio Oliveira Viana reconbeceria sua divida para com Silvio Romero ao abordar o que de- nominon de metodologia do direito piiblico, em nstituigdes Politica Brasileiras. Teria, entao, oportunidade de afirmar: "Esta compreensio objetiva e cientifica das mossas coisas e dos nossos préprios problemas on a adguiri cede... Néo foi Torres, como geralmente se pensa, quem me dew a primeira orientacao neste sentido; foi Silio Romero." Alberto Torres era um jovem de vinte e poucos anos quando da Pro- clamagao da Repiiblica, mas assume desde logo uma posigao de lideranga no Estado do Rio de Janeiro, onde, em seguida ao golpe de Floriano, se- ria convocada uma segunda Assembltia Constituinte (cleita a 31 de ja- neiro de 1892) ¢ anulada a Carta promulgada no ano anterior, Alberto ‘Torres tem uma atuagao destacada na elaboragio da nova Carta, como deputado estadual ¢ membro da Constituinte. Em 1894 é eleito para a Camara Federal. Excercen 0 mandato de presidente do Estado do Rio de Janeiro nos excercisios de 1898 a 1900. Em abril de 1901 era indicado por Campos Sales para integrar 0 Supremo Tribunal Federal. Nos siltimos anos de vida, Alberto Torres mediton sobre algumas questoes da organizacao politica da sociedade, em geral, acabando por voltar-se preferentemente para a realidade brasileira. Publicon sucessi- vamente: Vets la Paix (1909); Le Probleme Mondiale (1973); A Organizagao Nacional e O Problema Nacional Brasileiro (1914); e As Fontes da Vida no Brasil (1915). Parte dos textos dedicados ao Brasil consistiriam de reelaboragao de artigos publicados na imprensa entre 1910 ¢ 1912. Instituigdes Politicas Brasileiras 25 Embora partiddrio do sistema representativo, como os integrantes da facgao liberal, Alberto Torres entendia que o principal deveria consis- tir no fortalecimento do Executive. A lideranga liberal estava mais pre- ocupada com a independéncia dos poderes, especialmente com a intangi- bilidade da Magistratura, na esperanca talvex de que esta acabasse por exercer uma espécie de magistério moral, impedindo que a luta politica descambasse para o arbitrio e a ilegalidade. Alberto Torres, em contra- parlida, escreveria em A Organizagi0 Nacional: "O espirito liberal enganou-se reduzindo a ado dos governos; a autoridade, isto 6 0 império, a majestade, 0 arbitria devem ser combati- dos; mas 0 governo, forte em seu papel de apoiar e desenvolver o individuo ¢ de coordenar a sociedade, num regime de inteira e ilimitada publicidade ¢ de ampla ¢ inequivoca discussdo, deve ser revigorads com outras atribuigies. A politica precisa reconquistar sua forga e sen presi{gio Saxendo reconhecer-se como érgdo central de todas as fungbes sociais, desti- nando a coordend-las ¢ harmonizd-las e regé-las, estendendo a sua agao sobre todas as esferas de atividade, como instrumento de protegao, de ; be (10) apoio, de equilibrio e de cultura, Num pais novo como o Brasil, 0 Estado néo pode dar-se ao luxo do absenteismo. Deve ser atuante ¢ intervencionista, No livro em apreca a naturexa desse intervencionismo, para promover o progresso ¢ a civilixagio, é inditado de modo preciso, sob a égide desta premissa: "Acima de tudo isso, cumipre, porém, ler em vista que, se as instituigGes politicas precisarem ser senapre subordinadas ds condigies peculiares a terra, ao povo ¢ a sociedade, a natureza especial desses elementos, no Brasil, ainda maior cnidado e atengéio ingpbe ao es- tudo de seus caracteres. Nosso pais, por sna sitnagéio geoarifica, pela naturexa de sua terra, por seu dima ¢ populagio, por todo 0 conjunta de seus canacteres fisicos ¢ socials, tem uma situagio singular em todo 0 globo. Nao hd outro paés soberano que Ihe sija comparével!" Com esse espirito iria Alberto Torres contemplar a refrma institucional do pais, Govemo forte e atnante, na sua plataforma pressupoe 0 aprimora- mento da representagiio. Neste aspecto, procuraria combinar a experiéncia 26 Oliveira Viana de outros paises com as peculiaridades nacionais, A Camara dos Deputados seria clita por sufragio direto, mas a metade de seus membros receberia 0 mandato dos distritos eleitorais; um quarto dos estados e 0 restante através de eleigiio nacional. Queria combinar 0 sistema proporcional, da preferéncia da maioria, com a eleigiio majoritéria, No caso do Senado, imagina completar a representagao obtida medi- ante 0 sufrdgio pela indicagao de mandatdrios das organizagies religiosas, instituighes cientificas, profissionais liberais, industriais, agricultores, op- erdrios urbanos e rurais, banqueiros e funcionalismo. Com esta advertie cia: "A representagao das classes ¢ das provincias ndo significa que estes senadores se devam considerar advogados exclusives dos grupos de elei- tores ¢ das provincias que representares, sendo seus Orgdos no conjunto e na continuidade da vida nacional." Pretende finalmente que 0 mandato do Presidente seja 0 dobro do vigente, passando a oito anos, procedendo-se a sua escolha por processo indé reto, através de calégio eleitoral integrado ndo apenas por parlamentares, mas igualmenie de mandatrios dos varios segmentos da sociedade, Alin do aprimoramento da representagao, pela diversidade de for- mas indicadas, 0 governo forte de Alberto Torres requer a garantia am- pla das liberdades individuais. No seu momento histérico, as idéias de Alberto Torres nao susci- taram maior interesse. Nos anos trinta, entretanto, passaram a ser es- tudadas com grande entusiasmo. Fi. desse pertodo os livros de Candido Mota Filho (Alberto Torres e 0 tema de nossa geracio, [if Ne Alcides Gentil (As idéias de Alberto Tortes, F ed., 1938, Ct D Jas- tamente Oliveira Viana destacaria este trago original: "Ao planejar wna reforma constitucional para o Brasil, Torres fex esta coisa inédita e sim- plissima: abriu calmamente este grande livro de direito piblico, que eram os vinte ¢ tantos anos de regime federativo nesta terra -- ¢ pés-se a lé-lo com a mesma atenio e seriedade com que, para o mesmo fim, Rui Bar- Instituigées Politicas Brasileiras 27 bosa iria ler a Repiiblica, de Bruce, e Teixeira Mendes a Politica po- sitiva, de Comte." 3. O conceito de autoritarismo instrumental Partindo da ligéo de Silvio Romero, que elaborou o roteiro para te- vantar-se 0 quadro de nossa organizaréo social, ¢ tendo presente, gracas as advertincias de Alberto Torres, que nossa tradigéo liberal minimizou o papel do E:stado devido sobretudo ao desconhecimento das condigées reais do pais, Oliveira Viana formulon uma proposta inteiramente origi- nal ¢ que de certa forma correspondia a uma grande sintese da tradigéio politica nacional, considerados os cinco séculos de sua existéncia e no ap- enas o tltimo deles, a partir da Independéncia, como veio a tornar-se praxe, A modernizagéo do pats deve abranger 0 plano das instituigées politicas, como pretenderam nossos liberais desde a Independéncia. Mas essa modemnizagao institucional, para deixar de ser um simples voto, exige transformagéio da sociedade que sé 0 Estado pode realizar. Assim, conceben una formula unitéria abrangendo tanto 0 projeto liberal-de- mocratico de Rui Barbosa, dando precedéncia ao primeiro. Para esse conjunto doutrindrio, Wanderley Guilherme dos Santos encontraria a JSeliz denominagao de autoritarismo instrumental. Vale dizer: 0 auto- ritarismo € um instrumento transitério a que cumpre recorrer a fine de in- stituir no pais uma sociedade diferenciada, capaz de dar suporte a insti- tigies liberais auténticas. Dessa forma reconhece-se a verdade do castil- hismo seme cair na armaditha da sociedade racional, que acaba por ser seu fundamento ultimo. E, ao mesmo tempo, apresenta de um éngulo novo, como veremos, 0 significado da mensagem de Rui Barbosa. A grande limitagao da proposta de Oliveira Viana residiria na identifi- cagao da experitncia brasileira do sistema representativo com a verdadeira natureza dese sistema, Contudo, antes de empreender esse tipo de avaliaciia, compete examinar, mais detidamente, como Wanderley Guilberme desen- volve a idéia de autoritarismo instrumental. 28 Oliveira Viana Eis como 0 caracteriza no brilbante ensaio "A ag Liberal no Brasil: propostas para reflexiio e pesquisa" (1974) ) "Em 1920, Oliveira Viana expressou pela primeira vex, tao clara e completamente quanto possivel, 0 dilema do liberalismo no Brasil. Nao existe um sistema politico liberal, dira ele, sem uma soctedade liberal. O Brasil, continua, ndo possui uma sociedade liberal mas, ao contrario, parental, clénica ¢ autoritéria. Em conseqiitneia, um sistema politico liberal no apresentara desempenho apropriado, produzindo resultados sempre opos- tos aos pretendidos pela doutrina, Além do mais, néo hé caminho natu- tal pelo qual a sociedade brasileira possa progredir do estdgio em que se encontra até tornar-se liberal. Assim, concluiria Olwveira Viana, 0 Brasil precisa de um sistema politico autoritério ayo programa econimito e politico seja capaz, de demolir as condigies que impedem o sistema social de se dransformar en liberal. Ex oniras palavras, seria nevessério um sistema politico autoritatio para que se pudesse construir uma sociedade liberal. Este diagnéstico das dificuldades do liberaliomo no Brasil, apresentado por Oliveira Viana, fornece um ponto de referéncia para a reconsideragiio de duas das mais importantes tradibes do pensamento politico brasileiro: a tradigéo do liberalismo doutrinério e a do autoritarisma instrumental." Wanderley Guilherme aponta estas particularidades distintivas dessa espécie de antoritarismo: "Em primeiro lugar, os autoritdrios instramentais, na designagao aqui adotada, créem que as sociedades nao apresentam uma forma natiral de desenvolvimento, segsindo antes os camiinhos definidos e ort entados pelos tomadores de decisito. Fi desta presungio deriva-se facilmente a inevitével intromissito do Estado nos assuntos da sociedade a fim de assegu- rar que as metas decididas pelos representantes desta soviedade sejam al- cancadas. Nesta medida, é legitimo e adequado que 0 Estado regule admin. istre amplamente a vida social — ponto que, desde lago, os distingue dos liberais. Em segundo lugar, afirmam que 0 exercicio autoritério do poder é a maneita mais rdpida de se conseguir edificar uma sociedade liberal, apds o que o caréter autoritério do Estado pode ser questionado ¢ abolido. A percepgao do autoritarismo, como um formato politico Institwides Poltticas Brasileiras 29 transitério, estabelece a linha diviséria entre 0 autoritarismo instrumental ¢ as outras propostas politicas nao-democraticas.” Wanderley Guilherme indica que & possivel Jocalizar sinais de auto- ritarismo instrumental desde a Independéncia. Neste sentido sugere que: "A idtia de que cabia ao Estado fixar as metas ‘pelas quais a sociedade de- veria lutar, porque a pripria soviedade nao seria capa, de fistéclas tendlo em vista a maximizagao do progresso nacional, 6 a base tanto do credo quanto da agéo politica da elite do Brasil do steulo XIX, até mesmo para os Driprios ‘iberais. Ademais, temia-se que interesses paroguiais prevalecessem sobre 0 objetivos a longo prazo, os quais deveriam ser os tinicos a orientar as decisis politivas, se é que se pretendia transformar 0 pais em uma grande nagao alewm dia. Andlise cxidadasa das sessies do Conselbo de Estado, a Principal forma de decisdo no sistema imperial, revelaria tanto as metas perseguidas pelas elites dominantes quanto as diretrizes operacionais que Secaram para altangé-las, O output real, por ontro lado, poderia fornecer segura avaliagio quanto ao gran em que a api seguin as idéias, 0 quanto tinham sido capazes de seguir na diregdo pretendida, quais foram os des- vi0s, @ por que tiveram que adotar estes desvios."” Al seu ver, contudo, Oliveira Viana € que daria formulagio acabada a essa espécie de doutrina, Transcreve-se a seguir a caracteri- zapiio que empreende deste pensamento: "E: na obra de Oliveira Viana, contndo, que o cardter instrumental da politica antoritéria, da maneira em que cle a concebex, aparece mais claramente. A colonizagéio brasileira, argumenta, ocarren sob condigies peculiares. O territério era vasto demais, em relacéo a qualquer imagindvel populagao da Europa do séeulo XVI, e sobretudo em relagiio é populagéia portuguesa da epoca, Indios extremamente baivcas de densidade populacional inpuseram uma Jorma de ocnpagiio territorial onde as tinicas limitagbes para o dominio individual era as regelamentagies coloniais. A rdpida expanséo de an ches latiftindios, nos primeiros dois stoulos da colonixagaa, estabelecen o padraia que seria seguido desde entio ~ grandes quantidades de terra feumiliarmente apropriadas, isoladas umas das outras e da vida urbana, que S6 existia nos 30 Oliveira Viana limites de dois ou trés pélos ao longo da orla litordnea. Os primitivos pro- prietérios de terras deviam contar consigo préprios ¢ depender 0 minimo possivel do mundo "externa! — isto 6, 0 mundo para além das fronteiras de suas propriedades. O desenvolvimento do complexo rural transformon os la- iifiindias em pequenos universos econdmicos, capares de produzir quase tudo que precisavam e sem 0 menor estinulo, estdvel e previsivel, a especialixagiio e divisio do trabalko. As oscilagies do mercado excterior os fizeram ainda mais desconfiados quanto aos beneficios da especializagdo, ¢ os levarane a tentar a maior antonomia possivel en relagéo ao mercado, Este padrio se reproduzin em todo o pais e a sociedade colonial brasileira se constituin como uma mul. tidao de estabelevinnentos econdmicos gangliondrios isolados, quase auto-sufi- cientes - "ola parental” -, sem comunicagbes entre si, sem interesses comuns € sen ligagies através do mercado. A vida urbana nao poderia desenvolver-se em tal contexto. Esta foi a primeira conseqiiénca negativa do modelo de ocupagdo econbmita e ter ritorial. As fazendas eram praticamente autérquitas ¢ constituiam 0 tinico mercado de trabalho da drea rural. Esta é uma segunda conseqiién- cia. A populagio rural néo-escrava ndo tinha alternativa ao trabalho oferecido nos latifindios. Os trabalbadores rurais "livres" dependiam to- talmente do proprietario de terras, que se tornava seu senbor em qualquer questao social, econémica e politica. Quando o Brasil se separow de Por tugal, portanio, a sociedade nacional apresentava baixissima inte- gragao através do mercado. A unidade econdmica e social basica era o cla parental, baseada na propriedade e capaz de obter a submissito de toda a miéo-de-obra "livre" que vivesse no interior on na periferia dos dominios. A experiéncia com a descentralizagao liberal, realizada nas primeiras décadas pos-Independéncia, resultou na captura das posicées de autoridade pelos membros do cla, agora transformado em cl eleitoral. Todos os "cidadaos" agora habilitados para escolher 0 prefeito, a autori- dade judicidria local ¢ 0 chefe de policia pertenciam a forga de trabalho nao-escrava, em tudo e por tudo dependente dos proprietarios da terra, Os le tifindios detinham 0 monopélio do mercado de trabalho e consegiientemente, Instituigies Poltticas Brasileiras 31 controlavam as vidas dos que deles dependiam. A oligarquizagao das estruturas polititas fot, portanto, produzida e legitimada pelos métodos Liberais impostos pelo governo central, Quando os conservadores reagiram e deram inicio d centralizagéo imperial, os perdedores teriam sido os proprietdrios de terra e néo os "ci- dadaos". O sistema republicano, continua Oliveira Viana, néo alteron 0 padrio bdsico das relagies sociais ¢ econdmicas. A sociedade brasileira ainda era basivamente oligdrquica, familistica e antoritéria. A inter- vengdo do Estado néo representava, portanto, uma ameaca para os “cidadaos", mas sim sua tnica esperanga, se é que havia alanma, de protecao contta os oligarcas. Qualquer medida de descentralizapao, en- quanto a sociedade continnasse a ser 0 que era, deixaria o poder cair nas miios dos oligarcas, ¢ a autoridade seria exercida mais para proteger os inter- esses privados dos oligarcas, do que para promover 0 bem piiblico. Em con- seqiiéncia, 0 liberalismo politico conduziria, na realidade, a oligarquizacao do sistema e a utilizagao dos recursos piiblicos para propdsitos privados. "O liberalismo politico seria impossivel na austncia de uma so- ciedade liberal ¢ a edificagéo de uma soviedade liberal requer um Eistado sificientemente forte para romper os elas da sociedade familistica, O auto- ritarismo seria assim instrumental para eriar as condigées sociais que tor nariam o liberalismo politico vicvel. Esta andlise foi aveita, ¢ seguida, por nimero relativamente grande de politicos e analistas que, depois da Revolugio de 1930, lutaram pelo estabelecimento de um governo forte como forma de destruir as bases da antiga sociedade niio liberal. nt Wanderley Guilherme aponta estas lacunas em seu pensamento: "Oliveira Viana deixcon, entretanto, muitas perguntas sem resposta, Por ee emplo: que agenda de reformas politicas, sociais ¢ econdnticas um Estado forte deveria cumprir para fazer da sociedade brasileira uma sociedade liberal? Aparentemente, Oliveira Viana sé mencionow uma vex a reforma agriria e, por volta de 1952, quando foi publicada a segunda edigéio de sew livro, Yn- stituig6es Politicas Brasileitas, ainda se referia ao Brasil como basi camente rural, sem aprender integralmente o significado das transformagies 32 Oliveira Viana industiais e urbanas oorridas desde a época em que visnalizon as origens dos males sociais brasileiro. E. apesar de haver colaborado na elaboragao do cbdigo trabalhista e na montagem de estrutura judicial, destinada a adninistrar os conflitos industriais, parece-me que nunca compreenden totalmente onde deveria procurar os atores politicos capazes de transformar a sociedade brasileira em uma comunidade liberak Sen pensamento estava sempre voltado para uma elite politica espectal, vinda néo se sabe de onde, e que transformaria a cultura polttica brasileira de tal forma aye 4 Sociedade se tomaria liberal mediante maci¢a conversdo cultural ©) E possivel venificar que as preocnpagies de Oliveira Viana seriam retomadas ainda na década de cingiienta, formulando-se como principal tema da agenda a implantagéo da soviedade industrial. A elite seria de carater eminentemente técnico, cabendo-lhe ocupar segmentos importantes do aparelho estatal, tal seria a opgéo que se formula e sedimenta a partir da Comisséo Mista Brasil-Estados Unidos. Ainda assim, restariam mui- tas perguntas, entre estas as seguintes: Em que ponto precisamente a Revolupiio de 1964 retomaria esse fio condutor? Alem do empenho de atnacio pritica, ocorreria paralelamente elaboragao tebrica? Ubiratan Macedo responde afirmativamente @ segunda pergunta e in- ica de modo eepresso: "A atnal doutrina da Fiscola Superior de Guerra repre- Senta a uegio do nacionalisno de Alberto Torres e do pensamento de Oliveira Viana,” 4, As idéias de Oliveira Viana e a nossa contemporanea histéria politica Com a queda do Estado Novo, em 1945, a elite liberal comporton- Se como se a tinica ameaga ao sistema democritico-constitucional proviesse de Getilio Vargas ¢ seus herdeiros politicos. Ignorou-se solenemente a pritica antoritéria da Republica Velha e a incapacidade do sistema repre- sentative, como 0 concebentos, em lograr a estabiliclade politica, conforme se verifi- cara nos anos trinta. De sorte que voltamos a repelir aquela experiéncia Instituigbes Politicas Brasileiras 33 malograda: sistema eleitoral proportional; partidos politicos formados em tomo de personalidades, desprovidos de programas ou doutrinas; ¢ pritica das aliangas de legenda, que permitia a formagao de algumas grandes bancadas, no Parlamento, ao arrepio dos resultados proclamados nas urnas. Surgia de novo a evidéncia de que o sistema democritico era uma flor exbtica, inadap- tavel ao nosso clima, Essa velha tese, contudo, aparece em feigdo renovada, muito provavelmente devido as idéias de Oliveira Viana on, mais ampla- mente, do que Wanderley Guilherme chamou de autoritarismo instrumental. Agora niio mais se exalta 0 autoritarismo contrapondo-o ao sistema repre- sentative. Trata-se do instramento adequado ds reformas econdmico-so- ciais, que daréo suporte ao pretendido sistema liberal. Foi o que se vin em velacéo @ Revolugao de 64. Ai Revolugiio de 1964 se fer, segundo a parcela mais representativa de sua lideranga, para impedir que o Presidente da Repsiblica em exer- cicio, Joao Goulart, fechasse 0 Congreso, postergasse as eleigies ¢ procla- masse 0 que entao se denominava de "repiblica sindicalista"', espécie de socialismo caboclo que misturava fraseologia esquerdista e corrupeao, A derrubada de Goulart facultaria a retomada do provesso de exorcizar 0 fantasma de Getilio Vargas da politica brasileira, mediante a consoli- dagiio da democracia. As eleigies de 1965 consagrariam a lideranga e a vitéria do entéio Governador da Guanabara, Carlos Lacerda, que acrescera a pregagéo udenista tradicional (fidelidade aos princfpios lib- erais, mas resumindo-os a fornmlas juridicas, desatenta a problemdtica da representagao) uma atuagéo governamental dindmica, A vitoria elei- ‘oral de Lacerda permitiria afinal que a UDWN chegasse ao poder com possibilidades efetivas de dar cumprimento ao seu programa, No ciclo an- terior, a presenca daquela agremiagao no poder, alim de efémera, se fizera através de liderangas néo plenamente identificadas com seu idedrio (Gov- erno Café Filho, da morte de Getilio Vargas em agosto de 1954 a novembro de 1955; ¢ eleigéo de Janio Quadros, que governou alguns me- ses de 1961, renunciando e provocando a crise que acabaria levando a derrubada de Goulart em marco de 1964). 34 Oliveira Viana Consumado 0 afastamento de Goulart, entretanto, a Revolugao de 1964 encontra dindmica prépria. Aos poneas assume como tarefa pri- mordial a modemizagio econdmica do pais, adiando para pertodo cada vex mais dilatado a pritica democrdtica. O primeiro periodo presidencial excercido em sen nome (Castelo Branca) acabou durando trés anos, isto é, nao se resumindo ao término do mandato de Jénio Quadros, transitoria- mente transferido a Goulart. As eleigtes de 1965 foram mantidas. Mas apenas para governos estaduais. A derrota governamental em dmportan- ves unidades da Federagéio seguiu-se a dissolucao dos partidos politicos. Promulgou-se nova Constituigén em 1967, virtualmente revogada pelo AIS (Alto Institucional mtmero cinco), deoretado em dexembro de 1968._A imprensa e os meios de comunicacio foram submetidos ao controle oficial. Consagra-se 0 principio da eleigito indireta dos mandatérios dos Executives Jederal ¢ estaduais. FE. assim emergin plenamente nova forma de antorita- rismo, insuspeitado quando da eclosiio do movimento, O novo surto autoritério néo era certamente da mesma indole do castilbismo. Esste, segundo se indicon, formulou-se na fase inicial da Reptiblica, implanton-se firmemente no Rio Grande do Sul ¢ acabaria transplantado ao plano nacional por Getilio Vargas, Vargas acresceria a0 castilbismo a dimensao modernizadora. De certa forma, a Revolugéia de 1964 incorpora essa dimensao moderizadora mas esté Jonge de pre- tender, como o castilhismo getulista, constitnir-se em alternativa para 0 sistema representative. A Revolugio de 1964 manteria 0 Parlamento, tolerando 0 crescimento da oposigéo. Ainda mais: assumindo o poder em 1974, 0 sew quarto mandatdrio, General Ernesta Geisel, que ocupara postos importantes no primeiro governo (Castelo Branca), proclama que o Projeto revoluciondrio ndo consiste apenas na modernizagao econdmica em curso, devendo completar-se pela consolidacao da demooracia. Ao fin de sen governo (1978) revoga-se 0 AI-5. O novo presidente (Jodo Figueiredo) realiza a anistia e di inicio @ reforma partiddria de 1980. Al liberdade de imprensa é restaurada ene sua plenitude Institnigies Politicas Brasileiras 35 Exmbora o ciclo de reecontro do movimento de 1964. com a bandeira da plena instauragéio democrdtica - e que, naquela época, ainda se enten- dia como a eliminagéo do getulismo ¢ a vitéria do udenismo - nao se vena concluido, parece evidente que 0 autoritarismo do pertodo 1964/1978 néo se identifica com as formas tradicionais do antorita- rismo brasileira, as mais importantes das quais sdo 0 conservadorismo (01 tradicionalismo) catélico ¢ 0 castilbismo. Ambos correspondem a uma recusa do sistema representative, além de que néio acalentavam nenhum projeto de modernization econdrnica, Na matéria, a proposta mais excpres- siva correspondia ao corporativismo, que nao deixava de ser uma recusa da saciedade industrial. O projeto de modernizagio econbmrica gestou-se no seio do F:stado Novo, foi retomado no segundo governo Vargas (sobretudo através da Comisso Mista BrasilFstados Unidos, de que resultaria a criagaio do BNDE ~ Branco Nacional de Desenvolvimento Econimito) e apropriado pelo governa Kubitschek. (1956/1960), contando com a mais Jerrenha opositao da UDN. Durante o pertodo Jénio Quadros - Jodo Goulart (1961/ margo de 1964), seria inteiramente abandonado, 0 que relira a pos- sibilidade de considerar-se que a Revolugio de 1964. a ele teria aderido por vuma questi de inéreia, jd que néio 0 encontrara em pleno curso. Tamponco Se pode sugerir que a nova lideranca militar chegando ao poder tivesse “descoberto” as verdades do getulismo — que, a ¢poca, eram muito mais do chamado "pessedismo!' que do brago trabalhista do mesmo getulismro, agora sob a lideranga de Goulart — e as limitagbes do udenismo, que era afinal sua verdadeira base de sustentagio politica. Os rumos seguidos pela Revolugio de 1964 séa reveladores da pre senga de forgas soviais poderosas, visceralmente empenbadas na criagito da sociedade industrial. O sucesso aleangado por esse projeto serve também para evidencid-le. Nesta oportunidade nao desejartamos encaminbar nossa investigagdo no sentido da identificagio de tais forpas sotiais — 0 que, de certa. formas vera sendo efétivado pelos estudiosos do Estado Pat- vimonial -, mas de sugerir que essa nova verséo do anioritarismo 36 Oliveira Viana tem antecedentes doutrindrios no pensamento politica brasileiro, repre- sentados, sobretudo, pela obra de Oliveira Viana. Oliveira Viana nunca formulon plataforma de industrializagéo do pais como instramento adequado a formagao do mercado nacional tinico ¢ de classes sociais diferenciadas, meio hdbil, portanto, para a consecugdo do seu projeto de liquidagéo da soviedade clanica tradicional, Essa plata- Jorma seria elaborada pela elite técnica, aglutinada em torno do Banco Nacional de Desenvolvimento Econémico nos anos cingtienta, que 0 gov- erno Jénio-Goulart nao conseguin extinguir, sendo ressuscitada pelo min istro Roberto Campos, no primeiro governo da Revolugao de 64. Con- tudo, a obra doutrindria de Oliveira Viana, retomada pela Escola Supe- rior de Guerra, dava foros tedricos @ convicgao sugerida pela pritica do sistema representativo apés 1945: nao é possivel realizar qualquer re- Jorma no pais se depender do Parlamento. Este guardara ciosamente em suas gavetas, naquele periodo, muitas leis consideradas essenciais. As- sim, a minimizagao do papel do Congreso tornava-se requisito essencial para o desencadeamento do processo modernizador. As doutrinas de Oliveira Viana tinham a vantagem adicional de que ndo se resumiam a considerar 0 antoritarismo como forma ideal per- manente, mas apenas expediente transitirie. A experitncia do Estado Novo comprovara que a manutengao por prazos indefinidos do governo antoritério tampouco assegura a estabilidade politica. As doutrinas de Oliveira Viana tinham entretanto um defeito capi- tal: a subestimagéio dos institutos do sistema representative, que no sen horizonte intelectual pareciam resumir-se a fracasada experiéneia brasileira. Por isto, do conjunto da pregacao de Rui Barbosa retiraria ap- enas 0 reconhecimento do papel do Poder Judicidrio na implantagéo ¢ con- solidapao das liberdades civis Instituigdes politicas brasileitas, Me- todologia do direito piiblico. Cap. XI). Escimin-se da tarefa de criticar 0 Liberalismo brasileiro do pertodo republicano a luz da propria doutrina liberal em sua evolugao. Instituigies Politicas Brasileiras 37 O que se perdeu na pratica liberal brasileira foi a doutrina da representacdo de interesses. Se os interesses so diferenciados, nao se trata de averiguar tecnocraticamente, de forma centralizada, que interes- ses (mais explicitamente: de que segmentos sociais) vamos erigir em in- teresse nacional. Isto sé é possivel mediante a livre disputa entre Sacéées. Aos partidos politicos compete circunsorever a massa de interesses a reduzido ntmero de vetores & em nome destes, disputar a preferéncia do eleitorado. No Brasil republicano, tudo se resume a Governo e Oposigao. A pretexto dessa dicotomia acredita-se mesmo, em nossos dias, justificar- se uma alianga entre liberais ¢ socialistas, sem que qualquer desses grupos esteja obrigado a formular as respectivas plataformas, formando-se o caldo de cultura da indeterminagdo em que viceja 0 autoritarismo. A missio da intelectualidade nao é certamente sobrepor-se a classe politica e alimentar ilusies quanto as virtualidades do iluminismo. O processo histérico tem sew curso qualquer que seja o vigor da intelectnali- dade respectiva. A circunstancia ndo nos desobriga do esforco de recuperar as tradigoes culturais do pais, buscando tornar inteligiveis as linhas segundo as quais se desenvolve o curso real. E, neste, a linhagem repre- sentada por Oliveira Viana volton certamente a ocupar lugar de primeira plano. Cumpre, assim, reconhecer que se trata de tradigao das mais fortes ¢ arraigadas, remontando ao Marques de Pombal. Corresponde, por- tanto, a uma das formas essenciais de nossa maneira de ser. Parecendo insuperavel, nosso voto seria no sentido de que 0 afa madernizador se completasse pela incorporagiio plena do idedrio do sistema representativo, desde que corresponde a maior realizagao da humanidade no plano da convivéncia social, Rio de Janeiro, janeiro de 1982 Segunda Parte Morfologia do Estado Capitulo V O Significado Sociolégico do Antiutbanismo Colonial (Génese do espitito insolidatista) ‘SuMARIO: — 1 Os ricleas urbanos no periodo colonial. Polttica urbanizadora da Metrépole. Objetivo da "fundagao de povoayties”. Centrifugisrmn da popwlato colonial. 11. Tendéncias antiurbanizantes e sas cansas. Povoamento dispersivo da terra. Os lalifindias sesmeires. Instalaydes bumanas centrifigas, IIL. O aspecto dispersive da poprulagia do pertads colo- nial, Os espagos desertos ¢ 0 isolamento dos nsicleas humanos. IV. Formagao ecolfgica do "“morador". O homo colonials ¢ 0 sex complexe antiurbana. O pauista antigo ¢ 0 sea ruvalismo V. Distribuigio dispersiva das instalagies agrarias. Difiouldade de formagio de “comunidades de aldeia" ¢ de estruturas vilarejas. Uma observagio de Lynn Smith. O in- dividualismo do nosso bomem rurak VI. Das "aldeias agrérias! constituidas no Brasil: seu significado socaltgico. I ne sufi, poser comprendre es institutions sacale a aujourdl’bui, les observer. On ne aonnait pas la halite sociale si Von jgnare la substructure; i faut svnir comment ele set fail, cst-a-die, avoir suivi dans histoire la manive dont elle set pragrssivement composé DEPLOIGNE: I © perfodo colonial — para fora dos limites das grandes cidades ou vilas mercantis das zonas da costa, ou dos niicleos das 2onas 128 Oliveira Viana minetadoras, fervilhantes de populagio, adensada em torno das "catas” —o que vemos, como uma lei invarivel, é que os niicleos urbanos ou vilare- jos, porventura existentes nas regides um pouco mais penetradas do interior (Gertdes nordestinos, matas e pampas do Sul), cram resultantes da ago ur- banizadora das autoridades coloniais, ¢ nao criagSes espontineas da massa ~ como o foram a vila de Campos ou a vila de Parati, etigidas por movimen- tos tevolucionitios dos préprios moradotes locais. Estes casos de iniciativa popular, entretanto, so tio ratos ¢ excep- cionais que nio merecem ser computados, nem destroem a regra geral de que ~ fora dos centros metropolitanos das Capitanias, que eram tam- bém centros de comércio maritimo e de pequenas industrias artesanais — a formacio das vilas e cidades ¢ sempre um ato de iniciativa oficial, das autotidades da Metropole, governadores de Capitanias, governadores- gerais ou vice-teais — ¢ no da iniciativa do povo. Fundar povoacées ¢, depois, etigi-las em vilas era um titulo de bene- meréncia dos governadores coloniais, um servigo prestado ao Rei, tao re- comendivel aos olhos da Mettépole e da Coroa como o setvigo do po- voamento dos sertées ¢ 0 da civilizagio do gentio. Um dos mais operosos goveradores da Capitania de Sie Paulo, o Morgado de Mateus, fizera a sua gloria como "fundador de povoacées ¢ vilas", Foi um dos governadores ¢ capities-generais que mais concorreram para a urbanizago das nossas pope laces rurais. $6 no platé do Iguacu, no atual Parana, fundou, além de outras, as vilas de Guaratuba, Sio José de Arapira, Santo Antdnio do Registro (Lapa), Castro, Iguatemi, Sao Bento de Tibagi Conceigao do Caicanga, Porto da Vitétia, Tamandua e Vila Rica do Iwai”, O objetivo destas fundagdes era "reunir os moradores disper- sos" pelos latifiindios — 0 que equivalia a dar um centro religioso & administrativo e uma organizagio policial ¢ judiciéria aos moradores sitiados naquelas solidées, sempre ameacados nos seus bens e pessoas pelas conspiracées dos criminosos foragidos ou pelas conjuragées do aborigine amotinado, Foi o que ocorreu com a fundagio da vila de Lajes: - "Outta povoagio — dizia o Morgado, enumerando as po- voagées pot ele fundadas — outra povoacio nos campos das Lajes, cem léguas depois de Curitiba, no caminho que vai para Viamao para ver se se juntam os muitos moradores dispersos, que hé da parte de cima da Costa do Mar", Instituiies Politicas Brasileiras 129 No petiodo colonial, com efeito, afora as aglomeragées minera- doras € 08 centros mercantis da costa, a vivéncia urbana nascia da im- io € do castigo: — e eta o recrutamento que trazia a ela os mora- ~""Na catta répia de 22 de julho de 1766, por esta secretatia de Estado a0 Conde de Azambuja — telata D, Fernando José de Portugal num oficio a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, em 1799 — se ordenou por causa dos insultos que, nos sertes desta Capitania, cometiam os vadios € facinorosos, que todos os homens que neles se achassem vagabundos ou em sitios volantes, fossem logo obrigados a escolherem lugares acarsodados para viverem juntas, eon povoagdes civis, que, pelo menos, tenham 50 fogos pata cima, com juizes ordindtios, vereadores e procurador do Conselho"®) Todas as cemais povoagées e vilas fandacks tiveram 0 mesmo objetivo con- fessado, Isto queria dizer, pura c simplesmente, que se colocava ali um "capitio-mor te- gente”, com o seu compo de ordenangas eo seu poder incontrastivel. Qu um paulista antigo, com o seu pulso de ferro, Este "capitio-mor regente", em desempenho de sua missio, langava um bando ou fo, convocando os moradores dispersos a se reunirem para esta fun- cago, Bta 0 que se chamava "uma convocagio", Na fundagio da vila de Lajes, por exemplo, os "convocados" foram os catijis infixos e vagabundos, que eravam pela Capitania: ~".. E Ihe permito convoque pama o dito efeito todos 0s fottos catiés administradores que tiver noticia andem vadios e nfo tém casa, nem domicilio certo, nem sio titeis A Republica, ¢ os obrigue a povoar as ditas terras"™, "Convocados" — diz.a proviso, Em este 0 eufernismo do tempo; mas, os door mentos nos dizem o que realmente significava esta convocagio, Nelas eam empre- gados os mesmos processos ditistioos ¢ violentos das convocagées para as expedigces militares aos sertées "dos descobrimentos". Disto nos € exemplo o que ocorreu com a expedi¢ao ao Ivaf em 1766: ~ "Por se achat a ponto de pattit a expedigiio de Ivai, de que é co- mandante © guarda-mor Joiio Muniz Barros — dizia o Morgado de Mateus a0 capitiio de Sorocaba em 1766 ~ ordeno ao capitio-mor da vila de Soro- caba faga por prontos no seu distrito todos os homens que se acham alis- tados para a dita expedicao € os fara remeter ao porto da Araritaguaba, para dai se embarcarem e, antes disso, se lhe fazerem o pagamento, com que lhe assiste Fazenda Real; ¢, para que nesta nda ja peri pela fuga, que podem fazerem alguns soldados depois de receberem o pagamento, aos que forem menos 130 Oliveira Viana estébelecidos ¢ niio tenham quem fique responsvel por eles, se shes fard Jogo preniler os Pais on mulheres, se casadas, on parentes mais chegadas... e todos os que forem repugnantes para o referido embarque, ou depois dele de- sertarem, serdo logo presos donde quer que se acharem; e, quando nao aparecam os mesmos soldados, depois de fugirem, e constar a sua de- setgio, se prenderao Ingo da mesma forma os Pais, mulberes ou parentes mais chegados deles 4 minha otdem." E a um dos auxiliates imediatos do Mor- gado, 0 capitio Anténio Lopes de Azevedo, acrescentava, informando: —"A encomenda, que se fez a Anténio oe de Carvalho (de correntes, gril- hées, colares e algemas), ja aqui se acha” Note-se que esta tentativa dos governadotes ~ de agremiarem os "moradores dispersos" em povoages, sob a gestiio poderosa ¢ onipo- tente de um "“capitio-mor regente" — nem sempre resultava feliz. Grande néimero destas povoagées fracassavam ¢ extinguiam-se. Outras s6 subsistiam, enquanto estavam sob o pulso de ferro do "capitio-mor" regente; logo que esta se retirava da povoacio e a entregava a sim mesma, os "moradores", pouco inclinados a vivéncia urbana, iam evadindo- se, 208 poucos, em fuga formigueita, para os seus sitios e fazendas. Foi 0 que se deu com as duas povoagées fundadas na ilha de Cananéia a mando do mesmo Morgado: ~ "Da primeira — informa Toledo Rendon — nvio testa mais do que a capelinha; da segunda, s6 testa a igrejinha, com poucos sitios de pescadores. Subsistiram aquelas duas povoacdes enquanto durou a coacao (ci’) do Coronel Botelho; "depois «ada wor volton aos seus sitios), Atente-se nesta expressiio de Rendon: “enquanto durou a coacéo do coronel Afonso Botelho". Botelho era justamente o capitio-mor regente... O niicleo urbano, constitutivo da povoacio agregadora dos "moradores dispetsos", nfio vinha, como se vé, de um sincretismo partido do povo. Este, embora sentisse necessidade da povoagio, nao tinha modo, nem jeito de movet-se, espontaneamente, para ctié-la. Esta vinha de uma ordem da Metrdpole ao seu capitio-general ou ao seu governador, que a transmitia, por sua vez, 20 "capitio povoador e fundador", logo investido no governo dela, Pata obrigar estes moradores dispersos a residirem na "povoacio € a terem nela residéncia tanto quanto possivel, o governador ou o capitiio-mor cmpregava a cago ¢ a ameaca de castigos severos. Daf o fato da auséncia ow da setirada do capitio-fundador nestas microcidades improvisadas ser como o sinal de desergio e da volta aos seus sitios da parte dos moradores. Institaigies Politicas Brasileiras 131 Este absentefsmo utbano, aliés, estava na Iégica da nossa formacéo social. Nada realmente nos podia levar ao municipalismo do velho dire- ito foraleiro ~ dos "conselhos do povo" ¢ das "assembléias de aldeia", ja desaparecidas desde as Ordenagdes; nem as microcomunidades agrarias da Peninsula Ibética, que j4 descrevemos no capitulo TV; menos ainda ao "polismo" das populagdes helénicas. Muito 20 contratio, tudo, na nossa sociedade colonial, nos educava ¢ nos impelia pata este antiurban- ismo, para este centrifugismo 4 aglomeracio comunal — no que nos revelévamos inteiramente contrarios & tendéncia dos poyos peninsulares e mediterrineos, das regides da vide e do trigo, donde nos vinha o ele- mento povoador ptincipal, todos inclinados, em geral, 4 comunidade de aldeia e 4 vivéncia urbana ou semiurbana”), Esta concentragio urbana se operou, sem diivida, no periodo colo- nial; mas, s6 se verificou nas zonas mineradoras. Nestas, a situacdo era inteiramente outra: - ¢ a concentracgao era inevitavel. Resultava do regime da distribuicio da terra ali, inteira- mente oposto ao regime de distribuigio dominante nas zonas dos campos do extremo-sul, do planalto meridional ¢ dos sertées do norte. Porque, nestas zonas do ouro, "datas concedidas" nao tinham — como nas outra zonas ~ dimensdes latifundidrias; eram pequenfssimas exten- sdes, verdadeiros minifindios, que nZo iam além de seis bracas de testadas ou, em média, trés bracas de frente — "chios", como diziam, nas suas peticdes, os primeiros povoadores™, IL Excetuando este caso especial das zonas mineradoras ¢ alguns cen- tros portuarios ¢ mercantis da costa, o proprio sistema de povoamento e de distribuicao da terra, alias, nos tinha que levar naturalmente a esta in- clinagio antiurbanizante. Realmente, nfio se podia engenhat sistema mais intensivamente estimulador da dispersio da populagio, mais in- compativel com qualquer tendéncia centripeta dos moradores. Em primeiso lugar, eram as terras agticultdveis distribuidas em "sesmarias", cuja grandeza orcava, em regra, trés léguas em quadra — dat para cima. Os mais ambiciosos as pediam para si ¢ para a familia, 132 Oliveira Viana para os filhos parentes ¢ conseguiam extensGes equivalentes a mue nicipios: ~ "Familias ha inteiras ~ dizia o governador Paulo da Gama, da Capitania do Rio Grande do Sul - que estio possuindo 15 a 18 léguas de terta. Os pais conseguem 3 léguas e os filhos cada um outro tanto, Do mesmo modo se tem dado sesmarias de 3 léguas a itméos ¢ irmas, e cada um por cabeca, cedendo depois todos em beneficio de um sé"), O que acontecia no Rio Grande do Sul acontecia por toda parte ~ nas capitanias do Norte, como nas capitanias do Sul. Nio falo, é claro, das sesmarias iniciais, como as que foram concedidas a0 Norte, nas primeiras fases da colonizacao, Estas etam enormes como ptovincias — © 86 as de Garcia d’Avila, Domingos Afonso Maftense ¢ seus sécios de conquista dos sertdes nordestinos € sio-franciscanos contavam mais de uma dezena de léguas: — "doze léguas de tettas a cada um, situadas nas margens do tio Paraiba" — o que permitiu, s6 ao Mafrense deixar, por sua morte, 39 imensos latifiindios criadores de "gado grosso"), No Regiments dado a0 governadot Roque da Costa Batreto, D. Fernando José de Portugal alude a estes desmandos nas concessdes, reconhecendo "haver muitas tersas de sesmarias nas Capitanias da Patatba e Rio Grande do Norte, concedidas 2 muitas pessoas com notivel desproporcao nas datas, dando-se a uns quinze Iéguas ¢ a outros vinte e trinta “! No Sul, a tradicao destas prodigalidades sesmeiras nao eta menos cotrente. Ja Nobrega, em carta de 1557, a0 pedir a0 govemador Martim Afonso "uma sestnatia de sete ou oito léguas'”” para o Colégio de Piratininga, que ia fundar, confessava nfio Ihe patecer pedido decabido, pois "hd homens particulares cm Sao Vicente, a quem, se dé muito mais terra"), Este regime se prolongou por todo o perfodo colonial ¢, ao sul, em Minas, j4 em época mais préxima de nés, um dos povoadores da Mata Mineira, comendador Manuel José Monteito de Battos, fundador da gens numerosa dos Monteiros de Barros, que hoje se estende por Minas, Sio Paulo e Rio de Janeiro, “alcangou do governo um grande mimero de ses- matias para si ¢ pata todos os seus filhos que ja existiam, para uma filha que ainda no estava nascida e no sei se para todos os outros que estavam ainda pata nascer"“'), Este sistema de sesmatias individualistas ou particularistas preparava ¢ estimulava, assim, a dispersio da massa colonizadora. Neste ponto a colo- nizagio portuguesa fugia a0 método espanhol — da propriedade Instituigdes Politicas Brasileiras 133 comunitiria da terra ¢ da economia coletiva da produgio. Foi o que se deu no México e na regido andina, onde ainda hoje encontramos sobre- vivéncias no ayallé boliviano ¢ nos gides mexicanos, restos ou do antigo comunarismo indigena, ou da antiga aldeia jesuitica®), Na propria economia do agticar, que era a atividade principal, a nossa politica colonial metropolitana manteve o seu feitio estritamente individualista ¢ centrifugo. O "engenho real", descrito por Antonil, con stituia uma verdadeira autarquia econdmica ~ um sikes, como ditia Max Weber, possuindo uma organizacéo produtiva de perfeita auto-suficién- cia, Nada, nenhuma necessidade decorrente da lei ou da politica impelia estes "engenhos reais", ou as organizacSes menores, a aglomeracio, 3 as- sociacio, a convergéncia de esforgos para fins comuns. Basta notat que se tinha, por lei, que guardar a distincia minima de mil ¢ quinhentas bragas de engenho a engenho, ou de "meia légua", segundo prescrevia uma proviso régia de 1681". E claro que, dadas as condigdes dos transportes do tempo, esta distancia minima ctiava o isolamento da populagio destes nticleos agririos', Nas regides do sertio, na zona dos currais de gado, onde domi- fava o regime pastoril, esta dispersio da populagio colonial se fazia ainda mais acentuada: decortia do prdprio sistema de concessiio das ses- marias ali e das condigdes impostas 20 povoamento delas. Concediam- se quadras de 3 léguas, mas com uma intermediitia, dentro da qual era proibido construir motadias ou residéncias: — "De 3 léguas das sesmatias ~ diz 0 escritor andnimo do Ro‘eire do Maranbio a Goids ~ forma uma fazenda, deixando-se uma légua para a divisio de uma a outra fazenda: na dita légua entram jgualmente vizinhos & procuta dos seus gados, sem contndo poderem nela levantarem casas ¢ currais"'®), I Esta dispersio da massa colonial revela-se nas enormes distancias que 0s antigos viajores da nossa hinterlindia econhecem e assinalam que separam entre si os centros vilarcjos ¢ as fazendas, ranchos ¢ sitios. Bem o demonsitam os itinerérios de Saint-Hilaire, por exemplo, e de 134 Oliveira Viana que é exemplo o telativo a uma das regides mais povoadas do tempo, que era a que fica entre Ubd ¢ Sio Joao P’EL-Rei Do Alto da Serta a Sitio (fazenda) De Sitio & Fazenda das Laranjeiras. Da Fazenda das Laranjeiras 4 das Vertentes do Sardim. Da Fazenda do Sardim 4 de Chaves... Da Fazenda de Chaves ao Rancho do Rio das Mortes Pequeno. Kguas Do Rancho do rio das Mortes Pequeno... Lei /2 léguas 19.¢ 1/2 léguas £ um exemplo apenas, tomado a esmo,. Em todas as viagens de Saint- Hilaire, estas distdncias e estes itineratios mosttam o isolamento dos centros da populacio (itios, fazendas, atraiais, vilares) ¢ a larga margem de terra in- teiramente deserta, que os separa. E o mesmo panorama que encontramos em Eschwege, em Martius, em Burton, em New-Wied, em Mawe, em Kos- ter, em Gardner, em Couto de Magalhaes. Na Desorigio do sertéa do Piaui, do Padre Miguel do Couto, em 1693, vemos que as fazendas ¢ curtais, nesta seglio nordestina, entio povoadas do gado grosso dos paulistas de Domin- gos Afonso Sertio, nunca estfio a menos de 2 para 4 léguas entre si ~"A primeira fazenda que se acha na cabeceira do Canindé se chama Cachoeita; nela mora Henrique Valente e Anténio Lopes; desta a de baixo se acham 5 léguas; "A segunda se chama o Boqueirio; est4 nela Manuel Alves com trés negros; dista da que se segue 6 léguas; "A tetceira se chama os Posos de Sio Miguel; esta nela 0 capitio Anténio Nunes; dista da que se segue 3 léguas." B assim por diante, sempre neste teor“”?, Na sua Resposta ao Procurador, jé Vieira assinalava esta enorme dis- perso dos ndicleas urbanos como um dos males da sociedade colonial: —"A este trabalho — dizia cle em 1656 — se acrescenta outro inconven- iente, também natural, que é 0 das distdndas, assim de uma povoago a outta, como dos fregueses @ jgreja ¢ dos moradores e casas entre si: porque muitas vezes vive um morador distante do outro oite « dex liguas, ¢ um fregués distante da sua paréquia quarenia, ¢ uma povoacio, cento e cingiienta, que tantas léguas ha do Maranhao ao Para, sem haver em meio mais que a chamada vila Gurupi, que no tem trinta vizinhos"?), Instituigies Politicas Brasileiras 135 O panorama dos tempos modetnos ¢ atuais njo mudou em nada. Esta mesma impressio de dispersio e deserto é a que colhemos ao per correr as paginas do Rottiro do Tocantins, de Lisias Rodrigues, ou da Viagem ao Tocantins, de JOlio Paternostro@, ‘Nao se diga que, neste caso, tratam-se de sertées muito penetrados €, portanto, naturalmente desertos. Esta imptessio é 2 mesma que nos salteia ainda hoje, quando percotremos mesmo zonas de intensa con- centracio humana, das mais povoadas ¢ trabalhadas do pais — como a de Minas, cortada pela Central do Brasil, ou a dos platés do Iguacu, atravessada pela Estrada de Ferro Sao Paulo-Rio Grande. WV Esta a estruturagao ecolégica, sob 2 qual evoluiu a nossa populacio colo- nial. Caracterizada pela rarefagio ¢ adelgagamento da massa povoadora, pela dispersio dos moradores por uma base tettitorial imensa e inculta, apenas per cortida aavante pede pelo povo-massa € carecente quase em absoluto de comu- nicagGes espitituais, tinha que acabat, como acabou, por enformat o homem, ctiando-lhe um tipo humano adequado a essa disposico dispersiva, individu- alista e atomistica. H criou 0 homo colonials, amante da solidio ¢ do deserto, ristico e antiurbano, fragueiro ¢ dentrdfilo, que evita a cidade ¢ tem o gosto do campo ¢ da floresta. Homem de que a expresstio mais acabada ¢ repre- sentativa € 0 panlisia do bandeiriono — teléxico, ecaptivo, abrupto, tal como 2s to- chas de goaisse ¢ manganés do meu habitat formador. Esta tendéncia a internagio sertaneja vem —note-se ~ desde os primei- ros dias coloniais ¢ encontra a sua génese no resguardo procurado pelos moradores da costa contra as incursées dos flibusteitos: — "Vivem os mora- dores dela tio atemorizados que estiio sempre com o fato entrouxado para se recolherem para o mato, como fazem com a vista de qualquer nau grande, tremendo-se serem corsarios" ~ diz Gabriel Soares‘ Depois, o atrativo dos engenhos, nuns, ou do ouro, noutros; ou da pteia ao indio, ainda em outros: — ¢ tudo acabou projetando definitivamente a populagio para o sertio, criando-the este "complexo sertanejo", este gosto do insulamento, que ainda permanece na sua psique, apesar de to- dos os amavios da vida urbana civilizada™), 136 Oliveira Viana Dentro do meio colonial, o paulista nos parece, realmente, como uma sintese ecoldgica desta formacao. O seu gosto de inter- nacio sertaneja, que ja chamei a sua "vocacio do deserto", bem exprime esta formagio social, esta tendéncia antiurbana. Dela ja nos falava, aliés, 0 Morgado de Mateus, quando procurou definir a psicologia dos paulistas antigos: - "Os paulistas — dizia ele — sio de animos ferozes, potque a criacdo que quase todos eles tém Ihes faz um habito de ferocidade; séo de génio 4spero e desconfiado, prontes a internar-se pelos matos"”*), Tsaco de psicologia coletiva que era a negacio de qualquer "complexo urbano" na sociedade paulista da época do bandeirismo, a0 contrario da tese de Cassiano Ricardo, que vé, na pequena “aldeia agriria", constituida excepcionalmente em Pitatininga, no século Il — © que apresenta todas 7 caracteristicas das "aldeias agrarias", descri- tas por Brunhes e Gras@® — uma "cidade", com uma populagio do- tada de "espirito urbano". Niio deixaria, em vetdade, de ser patadoxal a formacio, em pleno século I, de uma "cidade" naqueles desertées do planalto paulista —e numa época em que a lavra extensiva da terra era o tinico meio de vida possivel. Certo, os paulistas primitivos residiam numa vila; mas, nio se lhes pode dar, com rigor cientifico, o titulo de xrbanos. Exam puros agricultores aldeades, que deixavam as suas casas fechadas para irem aos seus campos lavtadios plantar as suas leiras, os seus trigos ou pas- toreat os seus rebanhos. Demais, os "indios administrados", que lhes eam os bragos trabak hadores, moravam fora da cidade — em "aldeias", como os de Amador Bueno”, Setia, porém, uma libetdade de imaginagio, uma imagem poética — e nfo julgamento de historiador ou de culturologista — falar destes lavradores levantadicos ¢ altivos, que 6 viviam dos produtos da sua tetra, das suas hortas, dos seus pomares, das suas plantagdes de milbo ou de linho, ou dos seus rebanhos (mesmo quando se faziam pre- adores), como se fossem "homens de cidade", homens wrbanas ~ tais como os cidadios de uma polis grega ou de uma comuna medieval. Menos ainda poderiamos considerar o movimento das bandeiras, plane- jado por estes aldcios ruricolas, como um movimento wrbano, um movimento determinado pelo espirito de aidade. Instituigbes Politicas Brasileiras 137 Consideremos que o niicleo de Piratininga, nos séculos I e Il ¢ mesmo no III, possufa uma populagéo escassissima, que nao ia a mais de 2,000 habitantes, se tanto. Como, de uma populacio tao reduzida, poderia sair 0 numetoso pessoal das bandeiras, otgando por centenas e, as vezes, milhares de pessoas? Como, seniio dos campos, dos indios deados’, dos "catijés" vagabundos, 4 maneita dos que, no III século, o Morgado de Mateus mandava convocar para a fundacio de Lajes? Ei verdade que nelas iam "mecanicos", um certo nimero de oficiais, ferrei- ros, cuteleiros, carpinteiros, Em pequeno mimero, porém ~e nao era de admirar que assim fosse, pois estes oficiais "mecanicos" costumavam figurar mesmo nas bandcitas de simples povoamento, como vemos na de Brito Peixoto, organizada para a fundacio de Laguna. Os cabos bandeirantes podcriam residir nesta aldeia — ¢ residiamy mas a bandeira era organizada ¢ concentrada naturalmente fora da cidade. O puto fato de residéncia vilareja dos chefes de alguns dos seus elementos no nos autoriza a negar que o movimento do bandeirismo é um movimento essencialmente rural, planejado e executado por homens do campo ~a niio ser que se queira considerar a modesta ¢ aguerrida a/- deia de Piratininga uma adade, tio desenvolvida como Olinda ou Salva- dor na mesma época —o que seria excessivo. Resumindo: — os movimentos bandeirantes foram grandes movimentos formados exclusivamente de rarais, cujos chefes, todos pu- ramente agricultotes, tesidiam na "aldeia agraria" respectiva. Nada teal- mente mais absurdo do que atribuit a uma pequena aldeia de rurfcolas, pouco povoada, embrionaria, sem comércio nem indiistria, a origem de um empreendimento de tao grande e formidavel envergadura — como o da expansio bandeirante dos séculos II ¢ III. Os que, por um excessso de imaginacio, véem na pequena "comu- nidade agrdria" de Piratininga uma "cidade" — com os catacteristicos de uma organizacio cultural de tipo urbana ~ deixam-se levat pot um jul gamento de aparéncias, tomando como critério julgador unicamente as similitudes e os catacteres externos, Incidem, destarte, no mesmo erro de método, que levou os culturologistas da velha escola etnografica a tantos equivocos, ¢ que, hoje, a nova escola funcionalista, mais pradente e mais segura, esta a desfazer, revclando-lhes a insubsisténcia, a inconsisténcia ou o ptecipitado das conclusdes®). 138 Oliveira Viana Vv De todas estas consideracdes resulta, em sintese, que, no interior dos sertées, fora da orilha maritima ou dos grandes nés de circulagio comer- cial do planalto ~ o regime municipalista, que a metrdpole pretendia reali zax ¢ instaurar na Colénia pela politica da fundagao de povoagtes e vilas, estava em antagonismo com a sua politica econémica ¢ povoadora ~ de dis sribuigio da terra em sesmarias, Pox um lado, procarava "reanir os moradores dispetsos", fundando povoacées ¢ vilas; mas, ao mesmo tempo, os forcava 4 dispersio € ao centrifugismo, instituindo o regime de sesmarias vastas e fomentando a constituigio autérquica dos "engenhos reais". No petiodo colonial, os "engenhos reais" ¢ as "fazendas de ctiagio", atrafam o homem, Pela enormidade da sua base fisica ¢ pela distincia dos centros utbanos, o prendiam dentro dos seus limites, o fixavam, como que © absorviam. Com isto, iam sugando, por assim dizer, de toda a sua seiva humana os atraiais, as povoacées, as vilas, as cidades. Dai veio que os pequenos centros urbanos, que se puderam ou vieram a constituir-se ali, nao eram, nem nunca foram, centros residenciais para lavradotes ¢ ctiadores ¢ apenas metos pontos de passagem, de pouso ou de aprovisionamento de utilidades e vitualhas. Efeito daquilo a que chamei em Papularies meridionais, "a funcio desintegradora dos grandes dominios"® Lynn Smith, comparando a nossa formag&o rural com a americana ¢ 2 hispano-americana, nota esta pecualiaridade da colonizacio brasileira. Para Smith, foros sempre — como o anglo-americano — 0 homem da colonizacio dapersa isoladd), a0 contratio do que se deu com o hispano-americano, o mexicano, 0 peruano, o boliviano, que conheceram, ¢ ainda conhecem, © coletivismo agratio, a organizagio comuniria da terra), Esta forma coletivista de propriedade ¢ da exploragio da terra nunca existiu, realmente, no Brasil para o colono branco, Em nossa for- magZo social, a obra do desbravamento ¢ aproveitamento da terra e da conquista e povoamento do vasto interior se fez sob o signo exclusivo da habitagio isolada e dispersa — como a dos velhos getmanos da Planicie Saxénia. Nosso processo de povoamento ¢ de colonizagio re- pelia a vivéncia em comunidade, o aglomerado de residéncias — a aldeia, em suma, to comum e generalizada no povoamento da Europa e tam- bém no povoamento da América pelos espanhéis. Instituigbes Politicas Brasileiras 139 O que os franceses chamam hamean ou riage — isto é, a "aldeia agréia" = niio se péde constituir no Brasil, salvo no caso excepcional de Piratininge. O colonizador se fixava e irradiava pela tetra barbara; mas, isolado e s6, in- stalando-se em residéncia dispersa. Nem o pastoreio, que era a forma primi- tiva de expansio do colono sem capitais, nem a agricultura, que tinha a sua ex ptessio mais alta no "engenho real", comportavam 0 Aameas ou a aldeia rural, de tipo europeu, "oficina de trabalho agricola - como a define Demangeon - onde tudo se estabelece e ordena em vista da exploragio da terra"? que a propriedade sesmeira é dispersiva — ¢ a instalagao agritia, na nossa forma primitiva de povoamento ¢ colonizagio, nfo exigia a concen- tragiio humana — como ocotre, por exemplo, nos platés da Picardia, cujas habi- tages se aglomeram, de acordo com aquela "Lei hidrolégica’, revelada por De- mangeon””. No nosso pais, ao contxiio disto, as aldeias rurais surgiram sob a forma de "povoacdes" ou "vilas" do Estado ou da Cotoa, ordenadas para fins: ou de adminicrazio, ou de regi, mas, no de wrabalo agylala, como na Europa. O trabalho agricola, em nosso pafs - 20 contririo do que aconteceu no mundo ‘europeu — sempre foi essencialmente particularista ¢ individualista; entrifugava o homem - € 0 impelia para o isolamento e para o sertio. Daf 0 fato da “comunidade de aldeia" ser, como traco etnolégico ou cultural, uma estrutura ou uma tradicfo inexistente no Brasil. Na zona dos canaviais — pela propria legislacio do tempo, os engenhos nao po- diam se distanciar menos de meia légua um do outro. No serto — os currais de gado, concedidos em sesmarias, tinham trés Iéguas de extensio com uma légua intermédia, em que era proibido construir ou levantar moradas. Na faixa costeira os engenhos, assim distanciados uns dos outros, constituiram-se logicamente em autarquias agrarias, funcionando em "economia de oikes' como diria Max Weber”’, de auto-suficiéncia e desta orientagao autarquica, ~ "Cada familia é uma repiblica" - conclufa Vieira, fixando, num trago, toda esta estruturacio dispersiva da sociedade colonial, o seu exttemado individualismo familiar ¢ pattiarcal: ~ "Em todo 0 Estado [do Maranhfo} nfo ha acougue, nem tibeira, nem horta, nem tenda, onde se vendam as cousas usuais para 0 comer ordindio, nem ainda um arritel de agticar, com que fazer na terra. E sendo que no Paré todos os caminhos so por 4gua, nio ha em toda a cidade um barco ou canoa de aluguel para nenhuma passagem. De que tudo se segue, ¢ vem a sor 0 estilo do viver ordindrio, que, para um 140 Oliveira Viana homem ter o pio da tetra, ha de ter roca; para comer carne, ha de ter cagador; para comer peixe, pescador; para vestit roupa lavada, lavadeira; € para pata ir 4 missa ou a qualquer patte, canoa e remeiros. E isto é 0 que precisamente tém os moradores mais pobres, tendo os de mais ca- bedal costureiras, fiandeiras, rendeiras, teares € outros instrumentos ¢ oficios de mais fabtica; com que cada famtlia vers a ser uma repiiblica"), Como, pois, no meio desta dispersio ~ que vem desde os primei- tos dias da colénia — as estruturas de solidariedade social ¢ os "com- plexos culturais" correspondentes poderiam ter ambiente pata se for- mar, € se desenvolver, e se cristalizar em asos, costumes e tradigies? E claro que os lagos de solidariedade social, os habitos de coop- eragio ¢ colaboracao destas familias na obra do bem puiblico local nfo podiam formar-se. Com mais razio, nao precisavam elas asso- ciat-se para a sua vida piblica, para organizarem — como as “comuni- dades agrarias" da Espanha, pot exemplo — os dtgiios da administragio da “tegiio", do “municipio, da "freguesia", do "distrito". Em conseqiiéncia, © espirito puiblico nfo podia encontrar leira, nem hémus para germinar ¢ flotescer como sradigéio ou cultura, Salvante a excecio de Piratininga, nunca conhecemos esta aldeia tural, de tipo e tradigo democratica, 4 maneira do "pueblo" espan- hol ou da "gemeinde" suica, em que a administracio € diretamente feita pelo povo dos aldefes, reunidos, ou a sombra de uma arvore sagtada, ou no adro da igreja, ou na casa do concelho. Nas povoagies, que fandamos no periodo colonial, como vimos, a administragio deste niicleo rudimentar era feita pot um delegado do Rei, ou do Vice-Rei, ou do Governador da Capitania: - 0 capitio-mor regente, ao mesmo tempo prefeite, delogado de pollcia, juix de paz e comandante da forca. © povo-massa ou mesmo 0 povo dos proprietétios (nobreza da tetra) no tinham intervengio no governo: —"Fago saber aos que esta minha Carta patente virem que — tendo respeito a Francisco ‘Tavares, Alferes de Infantaria da guamigio desta praca — dizia em 1709 o governador D. Anténio de Albuquerque, ao criar © capitanato de Pati do Alferes (Rio de Janeiro) ~ hei por bem clegé-lo, como por esta fago, para Cappm. dos moradores que assistem em suas Rogas no dito caminho desde a Setra da Boavista até Paraiba desta banda, Instituigies Politicas Brasileiras 141 com a obtigacio de ter muito cuidado com os ditos moradotes estejam prontos e com as suas armas pata tudo o que puder suceder"® Nio se poderia preparar condicdes mais desfavoraveis 4 génese dos grémios locais ¢ ao florescimento do espirito municipal. No ponto de vista culturalistico, 0 nosso povo 6, pot isso, sob 0 aspecto de solidatiedade social, absolutamente negative. Os pequenos tragos de soli- darismo local, que nele encontramos, sio tenuissimos, sem nenhuma signi- ficacio geral: praticas de "mutirao", "sodcio" —- e quase nada mais. Isto no que toca com as telacées sociais privadas >”) Politicamente ~ isto é no que toca com as relagdes dos moradores com os poderes piiblicos locais — nada se registta também de assinalavel. Conclusio: 0 brasileiro é fandamentalmente individualista; mais mesmo, muito mais do que os outros povos latino-americanos, Estes ainda tiveram, n0 inicio, uma cetta educagao comunititia de trabalho e de economia. E 0 que nos deixam ver as formas do coletivismo agtirio praticadas durante o seu petiodo colonial e que, ainda hoje, de certo modo, subsistem ali ~ como se observa nos gidas do México ou nos ayailis bolivianos. Nés, nfio. No Brasil, s6 0 individuo vale e, 0 que é pior, vale sem pre- cisat da sociedade ~ da commidade, Estude-se a historia da nossa fotmagio social ¢ econdmica e ver-se~A como tudo concorte para dispersar 0 homem, isolar 0 homem, desenvolver, no homem, o individua. O homem socializado, © homem solidarista, o homem dipendente de grupo ou colaborando com o grupo nio teve, aqui, clima para surgir, nem temperatura pata desenvolvet-se: — "De onde nasce que nenhum homem nesta terta é reptblico, nem vela ou trata do bem comum, senfio cada um do bem particular, Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outtas cousas piiblicas, é uma piedade, porque, atendo- se uns aos outros, nenhum as faz, ainda que bebam agua suja, ¢ se molhem ao passat os rios € se orvalhem ao passar os caminhos", jé dizia, ha 300 anos, 0 ctonista Simiio de Vasconcelos). Nestas poucas linhas o velho cronista fixou, com acuidade e preciso, a psicologia do brasileiro como “animal politico". Quero dizer: sob © aspecto que entende com o seu comportamento na vida politica, com as suas atitudes de cidadio, com os seus sentimentos de homem piiblico, especialmente como homem piiblico municipal - como “homem da tetra", como "terrantez". Esta a formagio social e econdmica do nosso povo. Como se vé, ela se prucesson denitra do mais exctremado individualism familiar. ¥. claro que de tado 142 Oliveira Viana isto outra cousa nao se poderia esperar sendo este trago cultural tio nosso, caractetizado pela despreocupagio do interesse coletivo, pela auséncia de espirito piblico, de espirito do bem comum, de sentimento de solidatiedade comunal e coletiva e pela caréncia de instituigdes cor- porativas em prol do interesse do "lugar", da "vila", da "cidade". O retrato de Simao de Vasconcelos, desenhado ha trezentos anos, est ainda petfeito, e os tragos descritos esto vivos ainda. Fazem parte da psi- cologia geral do nosso pov, esto nos seus costumes, usos, tradigdes ¢ mo- dos de ser: — e formam 0 nosso complexo cultural de vida piblica. © trabalho de fundagées de povoagées se perfez assim. Eira assim que, em regra, nasciam as "povoagées", sedes de futuras vilas e cidades. O urbanismo colonial nao era um movimento espontinco do povo; sur- gia em conseqiiéncia de uma politica: — a politica administrativa da Cotoa, que procurava estabelecer a otdem e a legalidade no meio da desordem ¢ da anarquia colonial. VI Excluidas as "fazendas de café" ¢ os "engenhos de agticar", que sio, sem diivida, "aldeias agrérias", mas de tipo senhotial, porque fun- dacées capitalistas®” ~ temos alguns exemplos, é cetto, de pseudo-"aldeias agririas", constituidas pelo povo-massa. Disto nos dio prova as nossas “corrutelas" do vale do ‘Tocantins-Araguaia, na atual regio da garim- pagem diamantifera ¢ a da mineracio do ouro™”). Ou as "palhogas" dos colhedotes de borracha, de babacu, de castanhas ou de poaia, tio freqiientes ao longo das margens dos rios da Amar6nia ou de Goiis), Ou as "colénias" das nossas fazendas cafeeitas do ceste paulista. Todas estas "aldeias", porém, carecem dos caracteres estruturais das européias: ou sio metas dependéncias do dominio faxendeiro (como as "colénias” de So Paulo); ou "aglomeracées" rudimentates de casas, sem nenhuma otganizacio administrativa, sem nenhum trago de estruturagio politica 04 conexio econdmica, religiosa ow eduativa, As vezes, em algumas, te- ponta apenas uma capelinha, gémula de uma rudimentar e intcrmitente or- ganizacio religiosa, Nada, entretanto, que se pateca com o que observamos Instituigées Politicas Brasileiras 143 Nos sestries saxOnicos; ou nos dorfi suicos, descritos por Brunhest?); ou nos pueblos bispinicos, desctitos por Joaquim Costa”), Definindo a "aldeia agritia", dentzo do padrio francés, diz De mangeon que é cla uma unidade social e econdmica organizada ¢ consti tuida para servit "ao trabalho agricola": - "Qualquet que seja a variedade das formas ¢ os contornos que diferenciam entre si todas estas aldeias como outros tantos individuos da mesma colénia, quaisquer que sejam as citcunstincias que desviem uma parte dos seus moradotes para ocu- PasGes industriais, 0 que os aproxima, o que faz, no fundo, o seu carter especifico € a ananimidade do trabalho agricola Esta fungio comum ctiou, na habitagio e na aldeia, verdadeitos organismos adaptados cultura da terra € As suas condicées locais,"4 Nao formamos, como bem se vé, “aldeias agrarias", a0 modo europeu, com sua administeagio propria ¢ eltiva, de tipo democratico. Nossas aldeias agtatias, ao contritio, nunca tiveram independéncia: €tam os "engenhos". Nao ha davida que 0 engenho de acticar e, princi palmente, 0 "engenho real", dis desctigdes de Antonil e Vilhena, erm verdadeiras aldeias agritias”), mas, de tipo inteiramente oposto 20 curopeu — porque de estrutura aristocritica, antidemocratica e depend- ente, como veremos“®), Capitulo VI O Povo-massa e a sua Posigao nas Pequenas Democracias do Periodo Colonial (Génese do apoliticismo da plebe) SUMARIO:~ I O caniter aristnitico do nunicipaliomo colonial. O jus sufcagii e o jus honorum ~ priviligios das classes ricas da Colinia. A nobreza dos "homens bons": conto se constite. Insignificéncia do povo-massa, como expressito politica, no pertodo colonial 11. O caréter honorifico dos cargos municipais. Inportincia social que pas suiam antes. Formagio da nobreza colonial, O grande dominio rural e a tiqueza comercial como bases do status de nobrexa. Eliminagao da interferéncia do povo- massa na vida administrativa da Colénia. III. O caso da Vila de Piratininga ¢ 0 suposto democracismo dos paulistas do bandeirismso. A aristocracia paulista do I e II séculos e seu caréter guerreiro. Consegiiéncia desta condigéo: 0 prestigio social néo vinha da tiqueza ¢ sim da bravura. Provas da eocisténcia do preconceito aris- Yownitico ali: testemunko de Martin Francisco. WV. Vitalidade das corporagies mu- nicipais no pertodo coloniak O papel ativo da "nobrexa da terra" como causa expli- cadora desta vitalidade, V. O caniter artificial ¢ excdtico do munisipalismo colonial: eram as cdmaras institwiies de transplant e nio orginicas, de orien exbgena e néo endégena. Nao sinha bases na "cultural" do pove. VI. Eiste seu caniter artificial deriva da auséncia da "aldeia agniria”, na nossa estrutura rural. Piratininga — nosso ‘inieo exemplo de "aldeia agréria!”. O canéter passivo do povo-massa nas abividades rue nicipais do periodo colonial e na fase do Império. O exengpla de Vassouras ¢ sa munici- palidade, VIL, Lata entre 0 municipalismo ¢ 0 grande dorrinia organizado, O grande dorrinio feudal ~ a verdadeira célula da nossa vide piibica 146 Oliveira Viana Jo Brasil, até 1822, em mais de trés séculos, nao tivemos outro regime senfio o do Estado-Impétio. Os governadores-gerais, os capities-generais ¢ os vice-reis — delegados imediatos do Rei de Portugal - acaudalando 0 luzido séquito do seu pessoal burocritico, do seu pessoal militar, dos seus comandantes de tropas, ¢ dos seus ouvidores-gerais ¢ de comarca, ¢ dos seus jutzes de fora, e todos os demais funciondtios da alta administtacio, mesmo local, no eram eleitos pelo povo da Col6nia e das suas localidades; mas, nomeados ¢ investidos pelo Rei ou em nome dele. Havia, certo, as cdmaras municipait, com os seus vistosos senados € vereadores, juizes ¢ procuradores; mas, estas corporagées, no period colonial, nio eram, nem nunca foram, organizagées de tipo democritico; exam corporagdes de tipo oligérquico © aristocratizado, no tendo 0 povo — como elemento de expressio da massa — nen- huma participacio nelas, Isto nos leva a um estudo mais profundo da verdadeira significagio politica ¢ histérica do nosso regime miunicipalista na Colénia. S6 assim é que podetemos saber, no seu exato sentido, o que — no Brasil colonial — significava Povo ¢ o papel que cle porventura exerceu como forga de mocritica e governante. Nao se pense, realmente, que as cimaras municipais eram eleitas pelo povo-massa e que da autoridade do povo municipal é que safam os seus almotacés, tesoureiros, escrivaes e demais funcionétios do governo municipal, 4 maneira das velhas comunidades européias ~ "de aldeia" ou "de cidade". Instituigées Polticas Brasileiras 147 Nio. O governo das nossas cimatas, no petfodo colonial, nfo eta democrético no sentido moderno da exptessio. O povo que elegia € que era eleito nessa época, 0 povo que gozava o direito de clegibili- dade ativa ¢ passiva, constitufa uma classe selecionada, uma no- breza — a nobreza dos "homens bons". Era uma verdadeira aris- tocracia, onde figuravam exclusivamente os nobres de linhagem aqui chegados ou aqui imigrados ¢ fixados, € os descendentes deles; os ti cos senhores-de-engenho; a alta burocracia civil e militar da Colénia, € os seus descendentes, Esta nobreza cra acrescida de elementos vin- dos de uma outra classe — a classe dos "homens novos", burgneses enxi- quecidos no comércia e que — pela sua conduta, estilo de vida ¢ fortuna € pelos servigos @ comunidade local ou & cidade — haviam penetrado 05 citculos sociais desta nobreza de linhagem ou de cargo. Estes "homens bons" tinham os seus nomes inscritos nos Livros da Nobreza, existentes nas Cimaras. Em conseqiigncia disto, s6 eles po- diam ser eleitos. O fato de estar inclufdo nos pelouros ~ de ter sido in- sctito no livro das Camaras como "homem bom" — era signo indicativo de nobreza. Constante das "cattas de linhagem", que se costumavam. passar a requerimento dos interessados, esta inscti¢&o era bastante para Ihes assegurar privilégios, isengdes e o exercicio daqueles cargos publi cos, entio reservados 86 A gente de qualificacio. Estes “homens bons" formavam uma pequenissima clite, uma mic noria insignificante em face da massa numerosa da populacio. Basta lembrar os termos de reptesentagio da Camara de vila de Paranagua, em 1766, quando forcada a contribuir para as obras da Fortaleza da Barra. Protestou ela contra a conttibuigio, a que havia sido obrigada, alegando “o estado miseravel da terra": — "A nao serem 60 ou 70 moradores com algum tratamento, os demais eram gente de pés descalfos." Esta minotia aristocritica era, normalmente, composta dos grandes pro- Prietiios mais, residentes nos dominios (engenhos ¢ fazendas), e dos comer ciantes ricos, residentes nas cidades. Reduzia-se, 4s vezes, mais ainda com a desaparicio deste segundo contingente formados, que era 0 conic om grossa fi 0 caso do proprio Rio, sede do Vice-Reinado, do qual, no século III, nos seus meadlos, disse 0 Conde de Cunha: ~ "Pelo que se vé esta Cidade, que, pela sua situagio € porte, deve ser a cabeca do Brasil e nela a assisténcia dos vice-teis, sem ter que possa senir de vereador, nem senir ea autorizads ¢ sé habitado de oficiais 148 Oliveira Viana ‘mecinicos’, pescadores, marinheitos, mulatos, pretos bocais ¢ nus ¢ alguns homens de negdcios, das quais nnito poucas poder ter este nome." Nas vilas do interior, a porgio mais luzida desta nobreza municipal vivia no campo e s6 vinha A cidade para as cetiménias religiosas ou pata os setvigos da vereanca: ~ "Durante os dias de trabalho — observa Saint-Hilaire, j4 no século IV —a maior parte das casas de AraxA ficam fechadas; scus proptictirios nao vém ali serio aos domingos, para ouvir missa, e passam 0 resto do tempo nas plantagdes (leia-se "fazendas"). Os que habitam a povoagio durante toda a semana sio artifices, dos quais alguns deles habilidosos, ¢ homens sem ocupacio, alguns mercadores e mulheres piiblicas. O que eu digo aqui pod se aplicar a quase tadas as povoagtes da provincia de Minas". Devo observar que esta situac&o, que Saint-Hilaire nos descreve em relacio a generalidade das vilas e cidades de Minas é a mesma que encon- tramos em todas as cidades ¢ vilas da nossa hinterlandia, tanto ao norte quanto ao sul, seja qual for a causa da sua formacao. E uma lei que se aplica a todos os nticleos urbanos do nosso povo, tenham a origem que tiverem: hajam nascido de uma "capela" inicial; de um "arraial” provisétio de feirantes; de um velha "fazenda" ou “engenho"; de uma “aldeia de indios", que se aculturaram; de um "pouso de tropeiros"; e um "ponto de travessia" de rio; ou de um "patriménio", marcado por uma reuniio esporidica de sitiantes ou posseiros que busquem atrair cura para os oficios religiosos essenciais — como ainda hoje vemos”, Em qualquer destas hipéteses — tanto na de povoacées nascidas, como na de povoagdcs fundadas — 0 quadro é sempre o mesmo: 0 aglomerado vilarejo € sempre mesquinho na sua estrutura e mesquinho na sua populagao. Os elementos da classe ditigente — a nobreza que governa ¢ ditige a comunidade, 0s membros da Camara, os juizes ordindrios, os juizes de drfios, os vereadores, os procuradores, a classe superior, em suma ~ s6 ali vém nos dias de gala, de festividades aldeas, ou nos dias da re- unio da Camara, para efeitos de deliberaco ou administragao. O mticleo ur- bano ou urbanizante é sempre centrifugo para as classes dominantes: nin- guém de posses ou fortuna mora nas vilas ou cidades do interior. Fi este um traco que encontramos assinalado em todos os viajores, sejam estrangeiros, scjam brasileitos, qua desde 0 perfodo colonia, vem, percorrendo 0 nosso interior, em qualquer regidio ¢ em qualquer tempo”). Instituigdes Politicas Brasileiras 149 Esta elite de "homens bons" — que tinha o monopélio dos cargos cletivos ¢ administrativos municipais — s6 crescia e se mostrava um, pouco mais numerosa ¢ luzida nas cidades mercantis da costa ou nas das egies mineradoras, sitaadas em zonas de intensa atividade comercial, onde existiam pequenat indisirias © um artesanato mais ou menos organizado”). Fora destes casos — aliés rarfssimos — as demais vilas da Colénia mode lavam-se pelo padtio da de Paranagué: a administeagio local cabia exclusi- vamente a uma minoria aristocratica — a uma oligarquia de fortuna ou de sangue. Os "pés descalgos" — que hoje, com o suftigio universal, formam a base do eleitorado nacional — nao tinham nenhuma patticipagio nela. It No periodo colonial ptincipalmente, 0 servico piiblico da vereanga era, com efeito, uma dignidade publica, um munus, uma hontati por nobte ou gente de qualificagio podia ser exercido. Os pardos ¢ os mesticos, mesmo qualificados, eram impugnados. Os servigais de qualquer geaduacéo, os empregados, quer do artesanato, quet do comér- cio, ¢ os domésticos, e os trabalhadores rurais salatiados, todos cles eram igualmente incapazes desta dignidade, s6 acessivel A gente mais im- portante, Esta importéncia era aferida pela descendéncia nobre ou de sangue (Jnhagem)) ou de catgo, ou entio de fortuna, como eta 0 caso dos comerciantes (com a condi¢ko de que vivessem "A lei da Nobreza", como entio se dizia, isto é, 4 moda dos antigos fidalgos peninsulares). Pelo menos, com cavalos de trato na estrebaria ¢, as vezes, com pajens € ctiados de setvir, exibindo a libré palaciana®, Nas vilas ¢ cidades de menor importincia do interior rural, 0 fato de possuir alguém 0 status de proptietitio de tertas, de senhor de grandes dominios pastoris ow acu- carciros — ¢ set "senhor-de-engenho" ou "fazendeiro" — constituia, de si mesmo, naquele tempo, uma presuncio de "vivéncia nobte" ou "ao modo dos nobres": ~, sob este apecto, tihamos muita semelhanga com a velha sociedade feudal européia®”, De qualquer maneira, as cimaras — a tinea forma de governo de origem popular existente na Colénia — no eram ex presses representativas do povo-massa ¢, sim, do povo-elite, da "no- breza da terra". O povo-massa nunca teve participacao, nem direfa, nem de direito, no governo destas comunas, no periodo colonial. Quando —esd 150 Oliveira Viana influfa, eta por intermédio dos procuradores do povo. Estes, porém, no pertenciam, pelo status ao povo-massa, embora lhe fossem os repre- sentantes ou delegados: era também gente da elite, da nobreza, homens de qualificagio. Nés nunca tivemos, nem conhecemos 0 governo direto do povo- massa; as assembléias populares do antigo direito foraleito j4 haviam desaparecido com as ptimeiras Ordenacdes. Quando fomos descobertos e colonizados, j4 dominava a aristocracia dos "homens bons” Bram eleitos pela nobreza local — ¢ nao pelo povo-massa, pela "gente mecanica" (artesfios, servigais, criados, jugadeitos, homens da lavoura, do atado, da enxada e da foice) E verdade que havia aqui as Juntas Gerais, que funcionavam ao lado do Vice-Rei ou do Governadotr, formadas pelas altas autotidades civis, militares ¢ religiosas (bispos, ouvidotes, cdmaras, etc.) — ¢ também pelo povo. Pelos regimentos dados aos governadores-gerais, estas Jun- tas, com efeito, deviam ser convocadas e ouvidas sobre os assuntos de interesse geral das capitanias ou governadores, ¢ nclas deviam figurar os trés estados — clero, nobrezae povo. Mas, em primeito lugar, é certo que estas juntas "constitufam metos conselhos consultativos e prevalecia ao seu, se lhe fosse con- tratio, o voto do Goyernadot": nao tinham, pois, poder deliberante ab- soluto — como se podetia presumir das aparéncias. Em segundo lugar, é também certo que, na pritica, os governadores sé convocavam para elas "funciondtios de certa categoria ¢ os principais cidadios, nio se fazendo mengio em tais fungdes que de edlesidsticos € nobrega" ~ diz-nos uma teste- munha do tempo; e acrescenta: "razio por que os povos se acham muitas ‘vezes mal contentes ¢ exasperados". Sao palavras de Barros Aranha, cronista do século IL, no seu Papel politia sobre o Estado do Maranhéa”). De uma forma ou de outra — onipotente na sua forca e prestigio, ou cortadas pelos governadores ou pela Metropole — as Cimaras foram sempre érgios das classes superiores, da "nobreza da terra" ~ ¢ néo do povo-massa: "Os membtos destas corporacées eram eleitos anualmente entre os "homens bons" da terra) — espécie de nobreza constituida em classe € muito ciosa dos seus privilégios, Quem nio fosse fidalgo nio podia exercet a-vereanga"', E verdade que este preconceito nem sempre exerceu a sua funco seletiva com o rigor exigido pelas ordenagdes. Muita gente entrelopa conseguiu ter 0 seu nome insctito nos pelouros e chegar a vereador, Instituigies Politicas Brasileiras 151 inclusive mesticos e gente vinda do povo e mesmo da plebe: — ¢ foi o que ocorreu em Minas na época do ouro, como se vé nos documentos do tempo. Tal fato sé aconteceu, porém, em conseqiiéncia da corrupcio da propria "nobreza da terra", que, de rigotosa pureza de sangue no inicio, foi, com o tempo, incorporando elementos populares sem lin- hagem, que ascendiam até ela pot forca, ou da tiqueza, ou do valor pes- soal (valor militar) nas guetras contra o francés, ou contra o flamengo. ~ "Soldados, ctiados de servir, mercadores, degredados, cristios novos — diz 0 autor da Histéria do Maranhdo — uns simplesmente inabeis, outros até infames pela lei, achavam maneira de introduzir seus nomes nos pelouros, obtendo assim, por uma parte, as qualificagdes da nobreza © 0 exercicio dos cargos da governanca; por outra, a isenco do servic militar na infantaria paga e nas otdenangas." ~"O govetno ~ continua ainda JoZo Francisco Lisboa — procurou, por vezes, reprimir, estes diversos abusos; e, para modificar, em parte a0 menos, uma das causas que para eles concorriam, ctiaram-se Compan- hias chamadas "da Nobreza", em que as pessoas qualificadas cram obrigadas a servir. Ainda existem, no arquivo da Camara de Sao Luis, alguns livros, onde se lancavam, por Companhias separadas, os nomes dos nobres ¢ as das seus filhos, servindo jé depois, por seu tutno, os mes- mos tegistros de prova de nobreza."1 Deste testemunho de Jodo Francisco Lisboa o que se conclui é que — para que os elementos do povo-massa chegassem as Cématas ¢ 20s cargos locais de qualificagiio — era preciso que eles adquirissem antes a condisio de nobreza, mesmo que esta nobreza fosse simulada ou falsifi- cada. Nas Camaras, eles entravam, portanto, como representantes desta classe aristocratica de "homens bons" — ¢ no como representantes da " das cidades ou do povo-massa dos campos. © exer- cicio de cargo eletivo ou de nomeagio, importando numa dignidade, de- spojava conseqiientemente o ocupante de sua condigio de plebeu ou de elemento do povo-massa - 0 que prova que esta classe que governava efa uma afistocracia. classe "mecAnic: © povo, no sentido moderno que damos a esta palavra - 0 povo do suftagio universal, a massa que hoje vemos afluir a0s com{cios elei- torais — nada disto tinha significagio naquela época, endeusada pelo litismo dos nossos historiadores ¢ publicistas libcrais. Do cleitorado 152 Oliveira Viana daquele tempo, como ja acentuamos, estavam afastados os negociantes "de vara e cévado" e os taverneiros (os que mantinham "logea aberta), bem como os scus empregados; os que praticavam “artes mecénicas) (que trabalhavam em "oficios” manuais)" ¢ os pardos, e os mulatos, e os mesticos de todo género; ¢ os trabalhadores do campo, massa enorme que forma hoje a quase totalidade do nosso eleitorado. Este grupo de "gente mecinica" e de "baixa mao", como entio se dizia, nfo tinha dire- ito a ser incluido nos peloures, Ninguém nela votava; ninguém dela po- dia ser eleito para as cAmaras ou gpsisquer outros cargos piblicos: ~ e seria escandalo enorme se o fosse' Em suma, os elementos da populagio das vilas, termos e comarcas, que chamamos, realmente, hoje pov estavam excluidos praticamente ~ € também legalmente ~ da incumbéncia de concorrer para a constituigio dos poderes piblicos municipais — como elatores, ¢ também do proprio exercicio destes poderes — como representantes. Durante cerca de 300 anos, nfo colaboraram portanto, nem podiam colaborar, na adminis- trago local - nem como eeitores (jus syfragii), nem como titulares qualifi cados (jus honorum). Tit E verdade que 2 nossa histétia assinala uma aparente exceco a esta regra ao Sul — na vila Pitatininga. Historiadores ou socidlogos hé que procuram sustentar que, nesta vila do Planalto, o povo influiu e ex- erceu, como plebe, as fungdes reservadas em outras paragens do mundo colonial a nobreza de sangue © & nobrexa da terra ~& nobzeza dos pelouros. Em Piratininga ~ dizem — vemos a "gente mecénica" figurar na vereanca e compor o senado da Camara e a governanga da vila. E impossivel negar os fatos. Na Vila de Piratininga, é certo que en- contramos — 20 quadro dos vereadores e jutzes € nos altos cargos da govethanca — gente do povo-massa. Freqitentemente, 0 povo-massa, a plebe citadina, aparece com os seus Procutadores, reclamando, protes- tando, ameagando, reivindicando dircitos ou pedindo providéncias de interesse local“!>), Instituighes Politicas Brasileiras 153 E indiscutivel o fato. O que é discutivel, porém, é a interpretacio dada a este fato, interpretacio que nao cotresponde a sua verdadeira sig- nificagiio. O caso de Piratininga é uma excecio. Os prdptios textos in- vocados pata justificar a tese da democratizagio prova o carater excep. cional do fato, Excepcional ¢ transitério. Os chefes bandeirantes viviam sempre fora da vila, nas suas fainas er- radias de "sertanistas" - ¢ isto por longo tempo, meses, anos, as vezes. Os postos da governanca —- quando para eles haviam sido porventura eleitos — nao conseguiam reté-los na vila, onde residiam. Vezes havia em que nela sé ficavam velhos, criancas ¢ enfermos: todos os demais homens vilidos se haviam "ido ao sertéo". Por ocasiao da bandeira de Nicolau Barreto, houve tamanha desercio dos elementos validos, que a vila de Siio Paulo ficou "de- setta © patalisada"; a Camara nfo se péde reunir "por todos os eleitos estarem bandeirando” -- diz um documento coevo. Compreende-se: era entio a nobreza paulistana, antes de tudo, uma nobteza guerreina — ¢ no de rigueza, como passou a ser nos séculos I ¢ IV com 0 pastoreio, com as minas e com o café. Os homens de entiio (séculos Te TD, langavam-se ao sertio para procurar "remédio as suas necessidades", remédio obtido a golpes de langa ¢ a tiros de bacamarte. Nobreza guerteita, portanto: o valor dos homens era dado pela bravura, Os titulos da nobili- tagao estavam nos feitos do sertanista ~ ¢ nfo nas rigvezas acurnuladas. Estes tudes pobretdes (como a moderna critica quer sejam os velhos bandeiran- tes) eram nobres porque braves - ¢ nio porque rims. Atistocracia de guemeiros ~ ¢ nfio de plutocratas, os caudilhos do sertio tinham, justamente por isto, a preferéncia, reservada sempte a toda ¢ qualquer nobreza, para os cargos da governanga. Inscreviam-se nos "livros de S. Majestade", exibindo os seus grandes feitos no sertio, as suas mais notaveis gestas de bandeirantes: um maior namero de indios acaudilhados, ou uma copia maior de "pecas" apresadas, ou de malocas devastadas, ou de castelhanos desbaratados. O fato de serem pobres ou ticos pouco importava para isto. Estes ctitérios de capilarizacio ¢ nobilitagdo impeliam a populacao paulistana para os sertdes. Na vanguarda dos migradores, punham-se logicamente os mais ardegos ¢ os mais ambiciosos. Estes, ou j4 eram 154 Oliveira Viana homens da "nobreza dos pelouros", ou eram homens que pretendiam penetrar nesta nobreza, capilarizando-se até ela pela bravura, que era o ctitério do prestigio social naquela época. Desertada a vila, esta ficou ao desamparo, acéfala a sua adminis- tracio, vazios os cargos da governanga. Deu-se entio 0 que niio podia deixar de dar-se: a classe imediatamente inferior & nobreza — a "gente mecanica” (pois a classe mais baixa era a classe gperdria, entio informe € rudimentar, representada pela plebe infixa e desclassificada dos mamelucos canijés vagabundos" ~ teve que ascender para ocupar 0 quadto governa- mental entio vazio. Fato, como se vé, inteiramente ocasional, tran- sitétio, excepcional, imposto pela forca das citcunstancias. Cumprte compreender bem este aspecto do bandeirismo ¢ da so- ciedade paulista do século I ¢ do século IL. © que ocorreu ali é perfei- tamente idéntico ao que ocotreu nesta primeira fase do petiodo medie- val, que os historiadores modernos, como Pirenne e de Coulanges, chamam "a alta Idade Média". Na Idade Média, nos seus primeiros sécu- los, sabemos que 0 valor social dos homens entio era dado pela bravua, isto & pelo merecimento guerreiro, Este mexecimento era 0 primeiro titulo da nobreza — e nao o sangue e a riqueza. O ingtesso na camada da aris- tocracia provinha dai, resultava disto: do ere preciso ser-se rico, — "Souvent est un comte carlovingien, un bénéficier du roi, Ie hardi proprietaire dune des derniéres terres franches — escteve Taine, explicando a génese da nobteza feudal -;ici, c'est un évoque guettier, un vaillant abbé; ailleurs, un paien converti, un bandit devenu sédentaire, un aventutier que a prospéré, un rude chasseur qui est nourri longtemps de sa chasse et de fruits sauvages. En tout cas, /e nobre alors c’est le brave, Phomme fort et expert aux atmes, qui, ala téte dune troupe, au lieu de s’en fuir et payer rangon, présente sa poittine, tient ferme et protége par Pépée un coin du sol. Pour faite cet office, il n’a pas besoin d’ancétres, il ne lui faut que du coeur, il est lui-méme un encétre 4), Era esta exatamente a situa¢ao da nobreza paulista do Quinhentos € do Seiscentos. O critétio do valor social era pessoal era o merecimento guerreiro, xa "o poder em atcos” ~ e no exclusivamente a tiqueza lati furdiéria, como ocorreu depois. Neste ponto, os paulistas antecipavam de dois séculos a rude aristoctacia militar dos pampas — do século IV, que tanto surpreendeu a Saint-Hilaire ¢ a Alencar Araripe®), Instituigées Politicas Brasileiras 155 Esta "nobreza de espada", se podemos assim chamé-la, é que dominava os primeitos tempos da sociedade do bandeirismo; esta é que aparecia inscrita "nos livros de S. Majestade"; esta é que era eleita para os cargos da governanga. Nao 0 era a "gente mecnica”, nio 0 eratn os alfaiates, os fetreiros, os carpinteitos, os pintores, os pedreitos, como tais € antes de passarem pela purificacdo aristocratizante das armas. Como tais — como "mecinicos" ~ podiam ter figurado nos cargos da governanga, nos postos da Cémata; mas, por motivo de forca maior, ocasionalmente, transitoriamente, acéfala como se achava esta pela de- serciio dos eleitos ("por os eleitos terem ido ao sertio"), que eram gente nobre, porque consagrada e atistocratizada pelo valor guerreiro, O preconceito aristocritico subsistia na sociedade bandeirante, tanto subsistia, que o préprio Procurador do Povo, em certa ocasiao, verbera o abuso de deixarem entrar na reptblica "homens oficiais mecanicos e gente baix: Ora, esta verberacao, na boca de um Procurador do Povo, bem mostra: Primeiro — que o pteconceito aristocratico, trazido pelo peninsular, estava ainda vivo nesta sociedade suspostamente democratizada; segundo ~ que este Procurador do Povo, ou era um homem da no- breza, ou tinha, apesar do cargo que ocupava, os sentimentos de um nobre. Do contrario, no se poderia compreender que ele receasse ¢ temesse 0 excesso de imigrantes da classe attesanal e a qualificasse de "gente baixa"... O povo-massa poderia ter organizado algumas bandeiras com gente sua; mas, isto no quer dizer que os quadros da aobreza paulista se houvessem desmantelado. Prova disto que um dos caudilhos popu- lares, organizadores destas bandeiras, confessava: ~ "Os elementos que reuni nesta bandeira nao sio daqueles que esto inscritos nos livros de Vossa Majestade." Confissio que nos leva a concluir que havia livros, onde se inserevia a gente qualificada, cleitora ¢ também elegivel... Esses nomes, insctitos nos "livros de S. Majestade", eram os que formavam o "pafs legal" daquela comunidade belicosa ¢ atis- tocratica. O equivoco, em que incidem os defensores da tese contraria, resulta do fato de nao levarem em conta o processo de formagio e selecio do "prestigio social" daquele tempo ¢ daquela sociedade. Como eram po- 156 Oliveira Viana bretdes, acham cles que aquela sociedade néo podia possuir uma aritoeracia de privilégio ~ como se uma nobreza ou uma aristoctacia s6 se consti- tuissem pela riqueza... E tio falsa a tese de democratizagio da sociedade paulista na época do bandeitismo que, onde quet que ~ nas suas emigragdes ¢ conquistas — os paulistas se fixassem, pata logo reviviam e procutavam testaurat os Preconceitos da nobreza ¢ fidalguia, que cultivavam no pagus de origem ®, Foi © que ocorreu nos "descobertos" ¢ povoagées das Minas Gerais, onde os preconceitos de cor e contra a "gente mecinica" re- comecaram a funcionat, embota clatamente insuscetiveis de podetem pte- valecer numa sociedade desordenada, sem quadtos regulates e sem hierar quias reconhecidas — como era a sociedade heterogénea e subvertida, saida das exploragdes do ouro ¢ da loteria dos "achatamentos Demais, tio insitos e latentes estavam estes preconceitos de no- breza ¢ linhagem na psique do paulista do I e II século que, em 1808, Martim Francisco Ribeiro de Andrada ainda ali o encontrou mesmo en- tre a "gente mecanica" de Itu — gente, segundo ele, "quase toda fidalga", Esta reivindicagio de fidalguia da parte dos exercentes dos pequenos “oficios" manuais 0 encheu de surptesa, pois, pelas leis do reino, o exer- cicio de qualquer oficio ou trabalho manual desclassificava o nobre: “Tenho feito uma observagio quase getal — diz Martim Francisco — e-vem a ser que todos os moradores desta vila (Itu) sio, pelo menos, no- bres, ndo obstante muitos deles exercitarem oficios mecdnicas, pois que, pelas leis do Reino, derrogam a nobreza; tanto é verdade que o homem ama ¢ am- biciona a grandeza ¢ a considetagao ¢ o poder.""9) Estes fidalgos decaidos — assim tio abundantes na sociedade ituana do comego do século TV — deviam naturalmente ter saido da pequena nobreza lusitana. Foi justamente esta pequena nobreza que mais elementos nobres forneceu 4 nobreza brasileira. Era gente de pequenos meios ¢ mesmo empobrecida, que para aqui imigrava para “tentar a América", na esperanca de remediat-se da situacio opres- siva, em que vivia na Peninsula — fato que ja se manifestava ali desde um século antes da descoberta, como nos informa Costa Lobo), Era natural que acontecesse o mesmo na sociedade bandeirante. Como nfo haviam perdido a nobteza — apesar de artesias e de estarem entre a "gente mecénica” — estes nobres "défroqués" colocavam-se Instituigoes Politicas Brasileiras 157 na possibilidade de serem chamados, sem nenhuma derrogagito das leis, 208 cargos da governanga, se a rarefacio ou a auséncia da classe nobre e in- scrita lhes criasse uma situacio de oportunidade — como ctiou. Tudo me parece indicat que foi isto 0 que ocorreu na sociedade revolta do ban- deirismo ¢ na aristocracia de Piratininga, na época invocada, Demais, nio conhecemos bem a anamnese pessoal destes plebeus. Pelo menos num ponto — neste ponto: embora chamados 4 governanga, teriam voltado eles, depois de exercerem os cargos, & sua condi¢io de “mecdnicos"?™ S6 assim setia aceitavel a tese de uma evolucio realmente de- moctitica daquela sociedade exclusivista e belicosa. Esta democracia piratiningana existiu, sem divida; mas, sem que impottasse numa modificacio dos padtdes de valores, no sentido de uma esttuturagao denoerética daquela sociedade. Era uma situagio toda provisotia, ocasional, que, pela sua pouca duraco relativa no plano da histéria c do tempo, nfo teve tempo de cristalizar-se em costumes - num "complexo cultural democritico". Estas "cristalizagdes culturais" s6 se- riam obra do tempo — e © tempo nfo as deixou consolidarem, porque cedo dissolvidas, como foram, com o advento da fase mineradora ¢ da fase dos engenhos e fazendas de ctiacio, que vieram logo depois e que trouxeram a diferenciagio ¢ hierarquizacio social, criando ali aristocracia de fortuna (ou latifundidria), em substituigio da anterior, que era uma aris~ tocracia de mérito guerreiro, como ja vimos. N&o importa a pobreza dos caudilhos bandeirantes; nao importa a auséncia do luxo: Jedas as aristocracias guerreivas sempre foram desdenbosas da ri- queza ¢ do luca, Foi assim a atistocracia grega da eta homérica””), Boi as- sim a aristocracia romana da era republicana”). Foi assim a aristocracia feudal da Idade Média”, Foi assim a aristocracia peninsular da era da Reconquista”), Foi assim, entre nds, a atistocracia guerreira do "ciclo das guerras platinas", no extremo-sul>), Nio podia deixar de ser assim a atistocracia guerrcira da era do ban- deirismo®, No planalto de Piratininga ¢ naquela época, Bartolomeu Bueno, antigo acougueiro, ou Pais Leme, antigo carpinteiro™”, nao exibiam — como prova da sua nobreza — as arcas topetadas de dobrdes ou os la- tifindios pejados de atmentio. O prestigio que cles exerciam sobre a massa, na Agora ristica do Anhangabati, os titulos de nobreza, que 158 Oliveira Viana lhes justificavam a fascinagio sobre aquela plebe alde’, estavam no seu bacamarte de preador, erguido no pulso encardido pelas fraguas do setto, e na indiaria escravizada ao poder da sua langa. Prova disto é 0 requerimento de Diogo Unhates, de Santos, pedindo ao Ouvidor Pedto Cubas que lhe concedesse, em 1614, sesmatia ao sul: —"Diz Diogo de Unhates, morador na Vila de Santos, escrivio da ouvidoria da Fazenda dessa Capitania que, ha perto de quarenta anos, é morador nesta Capitania, em cujo tempo tem servido a S, Ma- jestade com muita fidelidade e verdade em tudo quanto a ela tem sido posstvel, ¢ assim ao Governador e capitao da terra, ajndando-o a defendé- Ja dos inimigos ingleses e holandeses, que a vieram saquear e destruir, ¢ assim também dos indios rebelados contra os motadores dela ¢ de que, nas recon- tros e batathas que com eles tivera, muitas vezes lhe deram muitas frechadas em sex corpo e uma no brago direito, de que ficou aleijado, e porque tem muitos filhos vatdes e seis fémeas de legitimo matriménio, ¢ como quem € os havia de sustentar e amparar, e nio tem tettas onde fazer suas rogas € mantimentos onde possa trazer seus gados ¢ criagdes, pede uma data de terras e sesmarias na parte que se chama Paranagua..." Era assim que eles justificavam a concessio de sesmatias vast exibindo os gilvazes da luta, as mutilagées do soldado, o corpo cortado pela espada do normando, do bretio ou do flamengo, ou atravessado pela flecha do bugre. Com isto, eles ingressavam na posse da ferra — 0 que era a principal nobreza, ou nos cargos piiblices, que também davam no. breza. De qualquer forma, era a bravura militar que dignificava entio o in- dividuo —e assegurava-lhe titulos 4 nobreza e @ atistocracia. O fundamento da petic¢ao de Unhates bem mostra que havia uma ati tocracia entre vicentistas ou bandeirantes — tal como a dos gregos de Hesiodo ou a dos romanos de Numa, isto ¢, fundada inicialmente no ménito militar — € x0 na forma. O mote dominante naquela época no eta o das nossas aristocracias do outo ¢ do café, que surgitam mais tarde: "€ mais no- bre quem é mais rico" - como, na Europa, as aristocracias burguesas da era mercantilista; ¢, sim: "é mais nobre quem é mais bravo". Isto é: ~ quem penetrou o sertio; quem lutou com a indiada; quem destruiu mais malocas; quem trouxe nos "descimentos" maior mamero de pecas escravizadas. O critétio da aristocracia, na sociedade paulistana dos séculos I, IT e comegos do IIT, era esse. O ctitério da riqueza Instituigies Politicas Brasileiras 159 territorial s6 ali chegou depois, no século IV — com o advento dos la tifindios pastoris, dos engenhos de agiicat ¢, por fim, das fazendas de café, Estas mesmas jé nos fins do IV século e comecos do V. Nos outtos lugares, por eles conquistados e povoados ~ em que nio houve necessidade de bandeitar, nem de prear ¢ a "nobreza da tetta" permaneceu in loco ~ nestes lugares, esta nobreza nunca cedeu o seu privilégio aristocrdtico seniio aos mercadores ricos nobilitados pela pmpriedade urbana ou pelo acimulo de disponibilidades monetérias, nunca, porém, i plebe, nunca ao povo-massa, Este, é certo, durante 0 petiodo colonial, figurava nas Juntas Gerais das Capitanias; mas, apenas in romine ou sem fungao decisiva, como ja vimos. Embora representado, ainda assim, pela sua camada superior de artifices independentes (""mecinicos"), sé tinha alguma significacio nas cidades metropolitanas da costa, onde havia mer- cadores ricos e um artesanato abundante, ou na zona mineradora, onde a "gente mecinica” (ourives, ferteiros, alfaiates, etc.) era nu- merosa ¢ de certa qualificacio. E também certo que, nestas cidades, este povo-massa ctiou a insti- tuicao do procurador do pov, mas, este mesmo nao era um homem do povo. O préptio exetcicio da fungdo dava ao seu ocupante eventual a nobilitacio, que a investidura de todo cargo da governanca emprestava, naquele tempo, aos seus dignitirios, Equivale dizer que este "procura- dor" — ainda que fosse inicialmente homem do povo ~ ingressava, por _forga mesmo do cargo, na categoria aristocratica da nobreza —e deixava, s0- cial e legalmente, de ser homem do povo”), Iv No se veja, nem se alegue - como prova da presenca do povo- massa € da sua influéncia nestas corporacées municipais do periodo colonial — a vida agitada, as vezes, que estas corpotagées tevelavam, a importincia que adquitiram e o papel que exercetam ou preten- deram exercer naquele tempo. Esta vivacidade — observavel através das Atas de todas estas Cémaras do norte do sul - no podia provir do povo-massa, que, como acabamos de ver, nelas nio tinha participagio; 160 Oliveira Viana mas, da nobreza da tetra, desta atistocracia privilegiada, inscrita "nos livros de S, Majestade". Na verdade, estas corporacées municipais, com os grandes poderes administrativos legislativos, judiciais e mesmo militares que possuiam, serviam apenas aos grandes senhores-de-engenhos ¢ gtossas escravarias (a chamada “nobreza da terra", que figurava nos pelouros), nio propria mente pata administrarem 0 intetesse coletivo local; mas, para fazerem a sua politica personalista de potentados. Como demonstratei adiante, eles haviam organizado os seus das foudais € parentais, que etam criacdes ecolégicas, impostas pelo meio: ~ e as camaras municipais, com os seus cargos cletivos, os seus postos remunerados ¢ 0 seu poder executivo, legislativo, tributirio e repressivo, eram uma arma a mais — e formidavel (porque tocada da mistica da onipoténcia da lei) — que a Coroa de Portu- gal, supondo servir ao espitito da autonomia dos seus stiditos coloniais, hes havia posto imprudentemente nas mios. Representavam as cimatas um actéscimo de forca para eles, que, alias, jA se achavam tremenda- mente armados, por sua iniciativa propria, de indios frecheiros, de ne- gros de trabalho, de arcabuzes, bacamattes, espingardas de boca-de-sino, espadas ¢ faces — e toda uma copiosa multidio de homens "mora- dores", prontos a agirem ao primeiro chamado (v. caps. IX ¢ X). Com estas novas armas ~ que eram os poderes estatais das Camaras, eas sangdes da lei, e as faculdades discriciondrias da autoridade publica, e 0 arbitrio dos seus almotactis, juizes de vintena ¢ esctivaes — estes gran- des senhores se tornaram, realmente, invenciveis! Que bela escola ¢ que fecundo viveiro de caudilhos, de régulos, de mandées, de onipotentes so- beranozinhos da aldeial Vede og Pires ¢ os Camargos, em Sao Paulo, Vede os Montes ¢ Feitosas no Ceara‘ Formados nos grandes dominios, opulentos senhores de terras ¢ de escravos, estes caudilhos € que davam vitalidade as cdmaras do periodo colonial, como foram eles que deram animacio as do periodo imperial. Nao 0 povo-massa. Este, ou nfo partilhava, como no perfodo colonial, da administragio, nem do governo das camaras; ou, quando partilhava (como no petiodo imperial), ali comparecia sempre como caudatatio apenas destes grandes potentados. Nunca como entidade autdnoma ¢ independente — como forya democrdtica organixada, Sintetizemos. — O que houve, durante o periodo colonial, foi autonomia das administracdcs municipais. De modo nenhum, democracia, no sentido modemo da expressio. Instituigies Politicas Brasileiras 161 Vv Nao eram uma democracia, porque, como vimos no capitulo anterior, estas pequenas comunidades autdnomas Camara’) no sutgiam do povo- massa — como um produto das exigéncias da estrutura econdmica, social ou geogrifica da populacio; etam criagdes gfiais, ordenadas mediante cattas tégias ou portarias do Governador. Da "povoacio" assim fandada — como de uma crisilida — surgi, mais tarde, conforme 0 progresso da populacio, a "vila", com todo o seu aparelhamento politico ¢ administrative: o seu pelourinho; a sua cadela ptiblica; a sua casa da cimara; o seu corpo de magistrados (0 judges ardindrios; os vereadores, 0 procurador) c a buatoctacia de al- aides, almotacéis, escrivées, tesoureins, e © seu corpo eleitoral de homens bons, in- sctitos nos Livros da Nobreza, de acordo com as Ordenacées. Os elementos ativos destas corpotacées, a forca que as agitava e in- spitava, nfo estavam, porém, na cidade ou na vila, onde elas funcionavam; estavam no campo, onde residia a "nobreza da tetra", os grandes senho- res de escravos, de gados e de canaviais. Na generalidade dos casos — salvo os centros da costa, de tipo mercantil, onde dominava o grande comércio — as cidades do periodo colonial nao tinham importncia como expresso do esptrite piblico. O espitito ptiblico local, bem como o do interesse coletive comunal haviam-se deslocado para a tegifio agearia — para as fazendas © engenbos. No mundo europeu, como vimos, este espitito coletivo ¢ este in- teresse local se realizava através da aldeia, do mir, da polis, da gemeinde, me- diante pequenos 6rgios deliberativos, de que eram modalidade os "con- celhos de aldeia" peninsulares, da época foraleira, Em nosso pais, porém, haviam-se retraido pata o interior ~ para os campos: e, real- mente, se localizaram nas fazendas ¢ nos engenhos de agticar, com os seus latifiindios sesmeiros, as suas vastas escravarias e a sua economia oniprodutiva e auto-suficiente —de ikos. Os nossos "concelhos" ou "camaras" dos vilarejos municipais nao tinham, assim, realmente — na economia administrativa colonial ~ sentido fisioldgico, organico, estrutural. Eram drgios expletivos ou artificiais, pata aqui trazidos e aqui armados como cousas impor- tadas, sem correspondéncia orgdnica com a estrutura da sociedade co- lonial — que nfo os exigia. O que esta pedia — como centro de autoti- 162 Oliveira Viana dade e ordem — era o capitio-mor regente, senhor todo-poderoso das “vilas" e "povoagées". Este, sim, era a entidade viva, telirica, radicado, como uma aryore, a realidade da sociedade colonial. De forais e cémaras lustrosas — 4 maneira do que ocorrera nos vivazes agrupamentos peninsulares primi- tivos, com os seus mercadores, seus artifices, sua vida intrincada, timida de sciva coletiva ~ no tinhamos nés aqui necessidade naquela época; tal a tenuidade da rede dos interesses coletivos locais, reduzida ao minimo pela dispersio profunda da sociedade colonial. Espontaneamente, nao teriamos otganizado Camaras; pot si mesma, a nossa sociedade nfo se teria feito sur- git do seu ventre — das suas mattizes sociais e administrativas: eis a verdade. Vivendo a nossa vida de pequenos agrupamentos humanos disper- sos, verdadeiros nédulos demograficos ou populacionais, nunca tivemos, durante o longo ciclo colonial, durante mais de 300 anos, ne- cessidade de organizar nada disto. O grande domfnio — com a sua auto- suficiéncia, o potentado feudal dirigindo, do alto da sua casa fazendeira, tmdo ¢ tudo organizando ~ nos dispensou disto. Conseqiientemente: ab- sotveu e esterilizou todas as possiveis gémulas destas mindsculas e rudimen- tares estruturas politico-administrativas, que vimos surgir no mundo europeu. Os nossos famosos "concelhos" municipais ou "senados de cima- ras", de que tanto falam os nossos historiadores politicos, nada tinham, pois, destas velhas organizacées peninsulares, salvo a aparéncia; aqui, nfo passavam de exotismos criados pelo Rei ou seus delegados. Pela profunda dispersio das nossas instalagées econdmicas na terra aptopriada, pelo insulamento em que viviam os homens, nem sequer a aldeia primitiva (pueblo) — de tipo agrario ou pastoril, & maneira ibética — se pode for- mar. Menos ainda o espirite piblico municipal, isto é, a consciéncia, por parte de cada um dos motadores e municipes, de constituirem sm agri pamento possuindo interesses comuns e solidarios, em cuja satisfagao todos te- iam empenho e para a qual todos estariam prontos a cooperar. Estas instituigdes sempre funcionaram aqui como um trago cul- tural exdtico, um "empréstimo", um "transplante”, que nunca pode aclimar-se bem, como ja deixei demonstrado em outro livro. Nas zonas dominantemente agrarizadas, nunca tivetam ou puderam ter carhter democréticn, menos ainda os seus municipes aquela mentalidade Instituigbes Politicas Brasileiras 163 de "tepiblico", de que nos falava Simio de Vasconcelos: ~ "Donde nasce que nenhum homem nesta terta é reptiblico, etc."°!) VI E que sempte nos faltou, 4 nossa populacio rutal, essa aglomeracio inicial, essa nucleacio humana primitiva - a aldeia agréria, que, na Europa, foi a gémula e a escola da vida municipal e do espitito democritico. Neste ponto, o que ocotreu com a vila de Piratininga é expressivo. Piratininga, como sabemos, foi uma povoagio, 4 maneira das outras, “fundada" — ¢ nao "surgida" ecologicamente, com esta espontaneidade que preside a formacio daquelas "densidades", de que fala La Blache. Deu-se, entretanto, com esta fundagio — ¢ sé com ela—0 que nao se deu com as outras fundacdes, a que nos referimos. Os seus motadotes nao se aglomeraram em "vila" pela agio coercitiva da autoridade publica; mas, por circunstincias inteiramente excepcionais e anicas: — pelo fato da conjuragdo da massa aborigine levantada em guerra, disposta a mas- sacté-los ou expulsé-los do Planalto. Situagio inicial, que determinou o destino, também excepcional, do pequeno aldeamento € que o tornou uma singularidade em nossa histéria: porque esta concentragio forcada dos seus moradares em face do inimigo é que 0 transformon numa aldeia agrévia tipica, talvex a tinica que tivemos em toda a nossa bistiria, Uma aldeia agtatia, andloga, por varios aspectos, as que en- contramos no Oriente Préximo (Asia Menor, Siria, Mesopotimia); ou, na Europa, nas regides montanhosas e zonas do pastoreio; ou nas planicies da vinha, do trigo e do linho, de que nos dio exemplo os atuais ebos hispanicos, descritos pot Joaquim Costa gu os villages e hameans da Picardia, descritos por Demangeon e Roupnel.) Veja-se, por exemplo, a reconstitui¢io em gesso que da primitiva vila de Piratininga existe no Museu Paulista, com a localizaciio dos seus pequenos sitios horticolas ¢ a sua longa palicada defensiva: — e ter-se-4 logo, nitida, a impressiio de que estamos diante de uma "aldeia agraria", com todos 95, caracteristicos das que aparecem nos esquemas de Gras e Lynn Smith.©# Concentrados no seu recinto paligado, estes tudes agricultores — Javrando as suas terras sempre com o inimigo a vista ¢ vivendo sob temor per- 164 Oliveira Viana manente de uma investida improvisada - exibiam, sem duivida, uma sensfvel consciéncia do seu bem comum e do seu interesse coletivo: — e basta a lei- tura das Avas para nos convencer disto. Este espitito civico ¢ comunal, en- tretanto, nfo era apenas uma conseqiiéncia da natureza especial da posicio destes moradores em face da barbarie; mas, também uma prolacio, quase autommatica, das suas tradigdes foraleiras e municipalistas, que eles para aqui haviam trazido (cimaras, corpotagées de oficios, tabelas de pregos, etc), € que tepresentavam "complexos politicos" peninsulares, ainda niio desinte- grados intciramente — como o foram logo depois, sob a agio do movimento centrifugo do sertanismo. O vivo espitito local, que os seus moradotes de- monstram € que transparece através das Aras, é, no fundo, uma sobrevivén- cia da tradicao lusa, aqui exasperada pelo petigo iminente do indio e do fli- busteiro. Logo que este perigo se esvaneceu, esse intetesse dos moradores pela vida da sua comunidade se foi também atenuando e — como nas outras povoagées "fundadas" — os seus moradores se foram encaminhando pata 0 sertéo, a se internarem pelos matos, instalando-se no interior — fora do perimetro da paligada defensiva, Ou, nas expresses de uma das Atas — terem-se no serto e matos, fazendo novas produgées e domicilios". © que pfova que o que havia, naquela época, de puramente paulista era o "com- plexo do sertio" — a tendéncia antiurbana, que logo cedo se comegou a for- mar e a tevelar-se, primeiro, no "movimento do sertanismo" (nirudas ¢ preia a0 india) ¢, depois, no "movimento do outo" (busca de minas ¢ descobrimentai) Fis ai. Podemos dizer que, em nossa hist6tia, 6 uma povoagio fundada — a vila de Piratininga — nos deu um belo exemplo de "aldeia agréria" em funcionamento ~ tal como hoje ainda vemos nos pueblos hispanicos, nas gemeinden da Suica ou nas tovnships anglo-saxnias do novo € do velho continente. Foi este um caso tinico em nossa histéria e, assim mesmo, de duragao transitétia. O povo paulistano teve, no seu inicio, nesta aldeia agriria, precintada de palicada — como os primitivos "burgos" saxdes da fase pré-normanda — uma escola de educagio democritica, de formacio da sua consciéncia péblica e do seu sentimento politico, Normalmente, porém, esta escola nio se constituiu em nossa terra, nem a0 sul, nem ao nore), Nunca — pela singulatidade do processo do nosso povoamento ¢ da nossa colonizagio — tivemos a dita de pos- suir estes centros de preparaciio do povo-massa para a vida comunal e municipal — como os tiveram, por milénios, as populagdes do mundo nstituigies Politicas Brasileiras 165 eutopeu, Se porventuta alguma vez houvéssemos constituido, em nosso povo, estas escolas de democracia, elas s6 tetiam ensinado, durante toda a nossa histdria colonial, a aristocracia dos latifiindios, das fazendas ¢ dos engen- hos e & burguesia rica das cidades importantes; nfo, porém, a0 povo-massa. Este s6 comegou a figurar, como elemento computivel nas nossas comunidades locais, depois da nossa independéncia politica. $6 entio - de um golpe, com a Lei de 1821 — inauguramos entre nds o regime de- moeratico (cap. XI), que, naquela época, comecava a avassalat 0 mundo europeu””), Note-se, entretanto, que, embora este regime ficasse estabelecido no nosso direito-lei por influéncia politicas ¢ ideolégicas, que estudare- mos adiante (cap. XI), 0 nosso povo-massa — a gente "mecanica" e 2 plebe urbana ¢ rural, ptincipalmente nas vilas ¢ cidades do interior regides dos latifiindios pastoris, agucareitos € cafeeiros — niio possuia, nem nos seus modes costumeiras de vivéncia politica, nem nas suas tradig6es sociais — na sua audtura, digamos — nenhum traco, absolu- tamente nenhum, comparavel ao que constatamos entre os camponeses das gemeinden suicas, ou das ‘owns inglesas, ou das comunidades de aldeia da Espanha. Nada, absolutamente nada que pudesse ser fixado pelo et- ndgtafo, pelo antropologista social ou pelo culturologista, Daf a reacdo profundamente divergente entre a nobrexa e 0 povo-massa quando ~ nos primeitos dias do Império, logo a0 comeco da nossa ex- periéncia de governo independente ¢ constitucional — deu-se a incidéncia do regime democtitico sobre o nosso povo. Experiéncia da qual © nosso grande Joao Francisco Lisboa nos da noticias no seu Jornal de Timon. Conforme nos natra Lisboa, sobre a elite ~ a “nobreza da terra" — 0 novo regime incidia como um excitante. Desenfreou-se nela uma emulacéo politica, que acabou absorvendo todos os espiritos tornando-se mesmo uma psicose nacional. Sobre a massa, entretanto, a reagio foi diferente, inteita- mente oposta: - e tudo acabou num enorme abstencionismo: o povo-massa s6 acortia 4s urnas tangido - como um rebanho de ovelhas - pelos grandes senhotes de clis parentais, pelos poderosos latifundiarios do café e do acticar, associados aos ricos magnatas que faziam, nas cidades, o prande comércio®, Tangido € 0 termo. Todo 0 aparente espfrito eleitoral que o povo- massa revelata — as suas agitacGes, os seus tumultos, as suas violéncias e destespeitos a autoridade ~ nfo partiam propriamente desta massa, 166 Oliveira Viana nio eram iniciativa dela ~ ¢, sim, da nobreza, sempre apaixonada, dos senhores rurais, que a incitavam e induziam a luta, Era a elite dos grandes proprietirios de engenhos — cafezistas ao sul ¢ bangiiezeiros ao norte — que animavam com o seu interesse € a vi- vacidade do seu espitito faccioso (cla), estas cimaras municipais, que aos observadores tendenciosos parecem exemplos da vitalidade civiea ¢ do espitito de independéncia do povo-massa. Leia-se, por exemplo, a histéria do municipio de Vassouras (Rio de Ja- neito), com a sua larga € constante atuacio nas lutas regenciais, € as suas tepre- sentagdes famosas contra projetos de lei na Camara dos Deputados. Leia-se vet-se-4 que todos estes "movimentos", ditos democriticos ou liberais, exam exclusivamente provocados pela aristoctacia dos grandes cafezistas da terra fluminense, da "nobreza" daqucla localidade préspera ¢ vibriti: os Campos Belos, os Pati de Alferes, os Ubd, os Duas Barras, os Comreia ¢ Castro, os Teixeita Leite, os Rocha Wemeck, os Leite Ribeiro ~ gente de prol, grandes senhores feudais, que entravam no cenitio politico sempre assistidos de con- sideraveis parentelas e de uma coorte de homens acontiados). No periodo colonial, o nosso povo - com excegio de alguns senhores de engenho (0s “lavradotes aparatosos", de Vilhena) — formava uma "con- gtegacao de pobres' ¢ nio tinha organizaco alguma, como ainda nfo tem hoje, Como disse Vilhena, com seguta visio de sociélogo: — "Todo 0 mais povo ~ com excegio de alguns lavradores aparatosos, como os senhores de engenho — é uma congregacio de pobres; pois que, além de serem muito Poucas as artes mecinicas © fibricas em que possam empregar-se, nelas mesmas 0 nfo fazer, por dcio que professam: © a consegiéncia que dagul pode tirar-se é que infalivelmente hao de ser pobrissimos"*), Era este 0 "povo" do perfodo colonial. Isto na propria e opulenta Bahia dos fins do século III. Nas capitanias do Sul, esta "congregacio de pobres", de Vilhena, se transfotmou numa congregacio de "pés des- calgos", como vimos. Havia, sem divida, no Rio, em Sio Paulo e em algu- mas cidades de Minas, uma massa de "gente mecénica", com uma organi zacio, aids meramente aparente, de "oficios"; mas, ainda assim, nada po- dia fazer contra a poderosa organizacio da classe dos senhores de terra € dos grandes comerciantes entiquecidos. Em sintese: ¢ falter d verdade histbrica falar-se em democracia no periodo colonial Instituigies Politicas Brasileiras 167 Vo O Brasil em 1822 — ao criar 0 Império (Estado-Nagio, de tipo de- moctatico) — nao comportava, realmente, a otganizagio triplice que este tipo de Estado pressupée ¢ exige para o seu regular funcionamento. Era, entio, na sua morfologia social, como ditia Halbwachs, de condigao muito rudimentat: nfo passava de uma multiplicidade de feudos auténo- mos ~ cujo modelo nos era dado, pode-se dizer, ao sul, pela Fazenda de Sio Bento, dos padres jesuitas, ¢, a0 norte, pelos “engenhos reais", tais como no-los havia descrito Antonil, nos comecos do século III. Tin- hamos entio, mais ou menos, uma estrutura social anéloga 4 do mundo europeu, quando no apogeu do regime feudal, tal como nos mostram Pitenne ¢ Tourvlle, ou como © povo suss0, na fase anterior ao advento dos grandes principados, como no-lo descreve Pokrowski”)

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