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Organizagao do trabalho: sobre o que falamos?- eda Lea errena a sua resposta nao € simples porque depende do que se entende por ‘organizagao do trabalho e do que se entende por satide. Vocés me dirio: todo mundo sabe o que é satide € organizagao do trabalho. E vocés estdo certos. Mas seré que todos pensam a mesma coisa sobre o que ésatide e sobre o que é organizagao do trabalho? Com base em minha experiéncia eu afirmo que nao. Se tivéssemos mais tempo, eu pediria para que cada um escrevesse num papel o que é satide e 0 que é organ trabalho. Vocés veriam quantas respostas diferentes apareceriam. interessante mas muito di ica. Vou partir de um exemplo saido de rade do Vou comecar com uma afirmagio: todo trabalho consiste em transformar alguma coisa em outra. Vou chamar esta alguma coisa de coisa de “produto” Por exemplo, o trabalho do marceneiro transformaa madeira (matéria prima) em cadeia (produto). indo este processo de trabalho mais de perto, vamos ver que, para ele acontecer, so necessirias varias coisas: ria prima” ea outra 1- haver matéria prima, no caso, a madeira; 2- haver uma ideia clara do produto que se quer, no caso, fazer uma cadeira de determinadas dimensoes, e nao ‘uma mesa; 3- haver instrumentos de trabalho apropriados para © tipo de matéria prima (madeira) e para o tipo de produto (acadeira x); 4- haver um local de trabalho apropriado para trabalhar, isto 6, com boa iluminagao, espaco para se movimentar, ventilacdo, etc. Agora vejam: se me deem a melhor madeira para fazer uma cadeira, todas as dimensoes ¢ formas desta cadeira, 05 melhores instrumentos e um local de trabalho étimos, eu nao conseguiria fazer uma cadeira, Por qué? Porque nao sou marceneiro. Portanto, além das quatro condigdes que acabei de enumerar, para trabalhar preciso de mais outras coisas. 5- ter qualificagao, isto é conhecer a arte ou a ciéncia de transformas aquela matéria prima naquele produto. Isto se consegue através da experiéncia pritica efou de cursos formais e leva tempo Mas esta quinta condigéo também nao é sufi Para conseguir trabalhar, 0 ainda precisa de outras coisas: 6-tertemposuficiente:se fabricar uma cadeirademora ito horas e ele s6 tiver duas horas, nao vai conseguir; 7- ter colaboradores em mimero suficiente ¢ com a qualificagao necesséria. Ninguém trabalha sozinho. Neste nosso exemplo, alguém tem que comprar a madeira, nte arceneiro de nosso exemplo consertar os instrumentos, ete. se na hora de fazer a cadeira a cletricidade faltar, ele nao podera fazer 0 trabalho. 8 ter tranguilidade para se dedicar ao trabalho. Se 0 nosso marceneiro estiver pressionado pela chefia, ou sempre interrompido no que esté fazendo para exercer outras fungdes, ou com problemas de relagéo com os colegas, ele nao vai conseguir fazer a cadeira. E finalmente, uma titima condiga 9 ter uma remuneragio condizente com as suas necessidades. Se o salério recebido por ele nao for condizente ‘com as suas necessidades pessoas e familiares, e ele tiver que exercer outras atividades para supri-las, vai estar sempre insatisfeito, aborrecido, cansado e nao poderd fazer a cadeira. Seo marceneiro do exemplo - ou qualquer outro trabalhador - tiver todas as nove condigées jé mencionadas, poderd fazer um trabalho siti, bonito e bem feito e ser reconhecido como um bom trabalhador. Mesmo que tiver que trabalhar duro ¢ ficar cansado no fim da jornada, se sentir bem. Massealguma(s) destas condigdes faltarem,o que pode acontecer? Em primeiro lugar, comprometer o resultado do trabalho, 0 produto, por exemplo a cadeira pode ficar torta. Em segundo lugar, comprometer 0 proprio trabalhador, que pode ser punido pelo mau resultado de seu trabalho, ou, mesmo fazendo um trabalho bom, pode sofrer e até ficar doente. Por ‘exemplo, 0 nosso marceneiro pode ficar surdo se seu local de trabalho for muito barulhento, ou com LER se seu ritmo de trabalho for muito intenso, ou com ansiedade se nao der conta de responder a todas as outras tarefas que seu chefe Ihe passar, ete. ‘A primeira conclusdo que podemos tirar éa seguinte; quando analisamos 0 trabalho, conseguimos compreender 0 que neste trabalho é bom e faz bem aos trabalhadores € 0 que neste trabalho é ruim e pode fazer com que os trabalhadores sofram e até fiquem doentes, com doengas fisicas e mentais. Este esquema de anilise do trabalho pode ser aplicado a qualquer trabalho e por isso, vou usé-lo no caso de um estudo que ‘estamos desenvolvendo na FUNDACENTRO, com financiamento ‘Trata-se de um estudo sobre as repercussdes das condigoes de trabalho na satide dos professores da educacao Basica no Brasil e que tem basicamente duas partes: na primeira, pretendemos fazer um levantamento das publicagdes brasileiras sobre satide dos professores, Na segunda parte, estamos fazendo uma analise de como € 0 trabalho dos professores, utilizando um método que se chama Andlise Coletiva do Trabatho e que consiste em reunides com professores voluntarios, que descrevem e analisam seu trabalho em reunides de grupo. No final, pretendemos relacionar o trabalho com a satide e as doengas dos professores. Como este projeto esti em pleno desenvolvimento, 65 resultados que vou apresentar sdo preliminares. ;ndo 6 mesmo esquema que usei para falar do trabalho do marceneiro aos professores, o que teremos? No que consiste o trabalho do professor? O professor transforma alunos em alunos que sabem mais. Neste caso, a matéria prima é aluno e o resultado, aluno também, mas aluno que sabe mais. Do que o professor precisa para trabalhar? 1 ter alunos (a “matéria prima”) 2 term cia clara do que quer conseguir com seus, alunos (0 “produto”) 3- ter instrumentos de trabalho apropriados para seus alunos aprenderem (materiais didaticos para os professores, alunos) 4- ter um local de trabalho apropriado para ensinar (estamos falando de escolas e salas de aula) Como aconteceu com 0 marceneiro, estas quatro condigdes nao sao suficientes. Por exemplo, se me derem alunos par alfabetizar, mesmo com instrumentos e locais de trabalho apropriados eb ‘eu nao saberia fazé-lo porque nado sou professora de alfabetizagao. Portanto, para se rofessor ele ainda preci S- ter qualificagdo, conhecer a arte © a ci formar alunos e E como 0 marcen professor ainda pre tra } mesmo tendo estas para trabalhar: 6- ter tempo suficiente, para conhecer cada aluno, para acompanhar 0 desenvolvimento de cada aluno, para preparar as suas aulas, para fazer as suas avaliagbes; 7 ter colaboradores em niimero suficiente e com a ‘qualificagio necesséria. Numa escola, hd muitas outras profissdes ese clas faltam, o trabalho do professor no é 0 mesmo; & ter tranquilidade para se dedicar ao trabalho ¢ nao ser interrompido para fazer outras coisas, nem ser pressionado pelos pais e diretores; 9 ter uma remuneragdo condizente com suas necessidades, para nao ter que trabalhar em varios empregos. Em nossas reunides com os professores, eles falaram de tudo isto: de seus alunos, de materiais didaticos, de suas escolas ¢ salas de aula, de sua qualificacao, do seu emprego do seu tempo, dos pais, dos colegas de trabalho, dos diretores,¢ de seus baixos salérios. Mas falaram de tudo isto com énfases variadas. Na realidade, constatamos situagdes bastante diversificadas porque ouvimos tanto professores da zona rural, no interior do Brasil, que dao aulas em barracoes improvisados, quase sem nenhum material didatico, para alunos de varias séries e de virias idades numa mesma sala, varios deles s6 esperando pela merenda. E ouvimos também professores de escolas particulares, de alunos com alto poder aquisitivo, criangas de seis, sete anos que ja tem celulares sofisticados ¢ que ligam para seus pais quando nao gostam de alguma coisa quea professora fez; ela entao fica nervosa e com medo de perder 0 emprego porque pode ser repreendi pela direcio da escola, a partir das reclamagoes dos pais “clientes” Ouvimos professores em escolas piiblicas da cidade de Sao Paulo conviverem com alunos adolescentes que assistem as aulas armados. E professoras em cidades pequenas do interior do Brasil sem saber como lidar com o problema da prostituigao ¢ uso de drogas de seus alunos. ‘Num paistao grandee desigual como o nosso ha muitasdiferengas 0 professor é um trabalhador que sofre na pele estas diferengas porque, diferentemente do marceneiro, sua matéria prima € humana ¢ tudo 0 queéhumano the afeta diretamente. Masdentro detoda essa diversidade, mas caracteristicas gers Eu disse que o trabalho do professor consiste em transformar alunos em alunos que sabem mais. Disse também que uma das condigées para se trabalhar é ter clareza do que se espera com produto do trabalho. No caso dos professores, isto significa saber 0 que se espera dos alunos, Ai esta o primeiro grande problema, Nao ha uma resposta clara para esta pergunta, que preocupa muito os professores. O que € ser professor? O que é ensinar? (E como se 0 nosso marceneiro indo soubesse se, com aquela madeira, deveria fazer uma cadeira ou uma mesa). Disse também que 0 professor precisa de tempo suficiente para se dedicar a suaatividade. Pois bem, temos visto um quadro bastante preocupante neste sentido, Professores com muitos alunos, as vezes alunos com necessidades especiais, que nao tém tempo para se dedicar a cada ‘um deles e levam servigo para casa, onde acabam envolvendo toda a familia, E professores com cargas horérias elevadissimas, porque trabalham em varias escolas, piblicas e privadas, as vezes nos trés periodos, para ter uma remuneragao maior. Embora estejamos ainda no meio do estudo, jd podemos tirar algumas conclusdes preliminares. A primeira € bem Wvissareira, Temos visto muitos professores que sio verdadeiros herdis e que apesar de todas as adversidades, se desdobram para dar 0 melhor para seus alunos e tém uma enorme satisfagio em vé-los progredindo, Mas também temos visto outros professores com 0 comportamento oposto. Fles nao aguentam as adversidades © atribuem os problemas aos proprios alunos, aos pais, & sociedade, concluindo que nao podem faze nada, s6 0 minimo. No meio destes dois extremos, temos a grande maioria dos professores que continuam trabalhando € batalhando. mas sofrem, Porque? Porque no conseguem exercer bem a sta profissio (e todos nds queremos exercer bem a nossa profissao). Alguns se sentem dos, que também yue €um dos piores sentim. sofrimento, que sempre foi assim e nada se pode fazer). ANE ‘Mas estes sofrimentos também podem acabar em doengas, fisicas, como pressio alta, distiirbios gastrointestinais, problemas ‘osteomusculares, problemas de vor e/ou psiquicas, como insOnia, depressio, angistia, etc. Os pesquisadores que analisam distirbios e doengas dos professores tem mostrado que os problemas psicolégicos sao a principal causa de licengas médicas e afastamento dos professores. Assim, quandoanalisamos o trabalho conseguimos compreender 0 comportamento dos trabalhadores ¢ também, compreender porque eles podem adoecer. Volto agora ao comego de minha exposicio, sobre organizacao do trabalho, € pergunto a vocés: em tudo o que vyocé me ouviram falar de organizacao do trabalho? Nao, porque eu nao falei. E porque nao falei? Porque nao senti necessidade de usar esta expressio. Falar em organizacao do trabalho no é como falar em matéria prima, instrumentos, jornada, salério, madeira, cadeira, barulho, alunos, escolas.."Organizagao do trabalho” € uma expressio que tem miiltiplos ¢ variados sentidos, as vezes até contraditorios. O problema é que esta expressio esta muito na moda atualmente, mas raramente quem a utiliza explica do que esd falando, o que causa muitas confusoes. Vou dar apenas dois exemplos para iustrar 0 que estou falando. Atualmente, est na moda fazer avaliacdes individuais de desempenho, uma pratica que comesou nas empresas privadas € invadiu também os 6rgios piiblicos. (Aliés, considero que seria necessério fazer uma discussdo sobre estas avaliagdes porque, do jeito que estdo fetas, esto causando muitas injustigas e contribuindo para aumentar o softimento dos trabalhadores). Pois bem. Um dos itens de algumas destas avaliagoes se chama “organizacao do ‘acapacidade mento de sua agao, organizando-se trios que favoregant 0 qualidade dos servos Nesta acepgao, “organizagao do trabalho” é um a capacidade individual ¢ tem a ver com o sentido de arrumagao, disciplina ¢ cumprimento de ordens, Mas ha uma out organizagao do trabalho completamente diferente desta. Christophe Dejours, um pesquisador francés que tem virios livros traduzidos para 0 portugués rganizacao do trabalho”. Ble analisa o trabalho e, a partir dat, cria d para estabelecer as repercussdes deste trabalho na satide dos trabalhadores. O primeiro é 0 conceito que ele chama de “condigdes, de trabalho” e que envolve 0 ambiente fisico ai presenga de poeiras e substancias quimicas); o ambiente biol6gico (as bactérias, virus, parasitas) € 0 posto de trabalho (espago, condigdes das maquinas e equipamentos, etc.) O segundo conceito €0 de “organizagao do trabalho” que, para ele, vem a ser duas coisas: a divisdo das tarefas e a divisdo dos homens. A divisao de tarefas € tudo que é prescrito, ordenado pelos organizadores do trabalho, Diz ele: “quando se dividem as tarefas e quando se quer que os trabathadores respeitem 0 que foi decidido, é preciso que haja uma hierarquia, um controle. Dai o segundo elemento da organizagao do trabalho que éa divisao dos homens, ou sa, numa empresa as pessoas sao divididas pela organizagao do trabalho e as relacdes entre uns € ‘outros sao reguladas e controlad a uma outra interpretagao a conceitos A partir desta classificagdo, Dejours continua: “se as condigies de trabalho atingem 0 corpo dos trabalhadores, a organizagao do trabalho atinge seu funcionamento mentall...] Hé tipos de organizagao do trabalho que provocam sofrimento e até doengas mentaise fisicas. ‘Mas também hé organizagdes do trabalho que sao favordveis @ satide das pessoas. Em geral, isto acontece quando 0 trabalho oferece terreno privilegiado para que o trabathador concretize suas aspiragées, suas ideias, seus desejos ¢ respeite as necessidades de seu corpo e as variagdes de seu estado de espirito” Nessa acepgao de “organizagao do trabalho” de Dejours, aparece como um dos pri elementos da satide dos trabalhadores porque pode nao s6 causar muito bem como também, causar muito mal. Com estes dois concei s diferentes de organizagio do trabalho, acho que podemos comegar a responder a questo que coloquei no inicio desta exposi¢ao. O que a organizagio do trabalho tem a ver com a satide dos trabalhadores? ‘A reposta a ela é: depende do que queremos dizer com organizacao do trabalho. Se acharmos que “organizagao do trabalho” é alguma capacidade individual de cumprir ordens, acho que nao ha poucas relacdes com a satide. Mas se acharmos que “organizagao do trabalho” € um sistema em que pessoas decidem e lam o que outras pessoas devem fazer no seu trabalho, entao podemos dizer que a “organizagao do trabalho” tem relages com a satide e com as doengas dos trabalhadores. Para terminar, gostaria de dizer apenas mais uma coisa: ‘quando falamos de trabalho, estamos sempre falando de algo muito importante e muito complicado, que atinge diretamente cada um de nés, para o bem ¢ para o mal, para a satide e par a doenga, Por {sso, precisamos ficar muito atentos aos conselhos dos especialistas, questionar 0 que nao compreendemos, tomar cuidado com os termos usados, para nao sermos enganados. como é um conselho geral ele também vale para mim. Por isso, ndo se acanhem, perguntem, discutam. A palavra esta com vocés, Muito obrigada.

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