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ANDO DA PALAVRA SE FAZ SILENCIO Marcia Sa Cavalcante Schuback Mai O homem € 0 ser-vivo que Possui linguagem. Em todos os seus modos de ser, o homem é desde a linguagem, pela linguagem, na linguagem. Por linguagem, entende-se, de imediato, a capaci- dade de falar ¢ dizer, criando significados, compreensdes ¢ incom- reensdcs. Para este homem cercado de palavras por todos os seus lados, 0 que seria 0 siléncio? A nossa questo € a seguinte: 0 que é osiléncio do homem? Pode o homem, esse ser de palavras, falar do siléncio? O que seria, entao, para o homem, falar do siléncio? Para encaminhar estas perguntas, seguiremos algumas indi- cagdes do sermfo 57 de Mestre Eckhart, que é, por sua vez, uma indicagao-interpretagao de uma passagem de um dos livros sapienciais, 0 livro da Sabedoria de Salomao. Nao faremos uma. exegese do sermao. Deixaremos apenas que ele repercuta em nés, guiando a nossa reflexao acerca do siléncio do homem. A passagem do livro da Sabedoria que motiva o sermhdo € a seguinte: ‘ “Enquanto um calmo siléncio envolvia todas as coisas € a noite chegava ao meio de seu curso, tua palavra onipotente, vinda do alto do céu, de seu trono real, atirou-se, como guerreiro impiedoso, em meio a terra condenada ao exterminio” (Sb 18, 14-16). Comega a palavra. Nao qualquer palavra. Comega a palavra de deus, aquela que tudo pode. A palavra que cumpre plenamente a vocagao de tudo dizer surge de um calmo siléncio, de um siléncio que envolve todas as coisas, de uma noite que alcangou 0 seu meio, que alcangou o seu elemento. O caminho de comego € do siléncio Para a palavra, para a palavra poderosa, na plenitude de toda a sua forga. Do siléncio para a palavra de’deus. Neste percurso, nada ainda se disse sobre 0 comego da pala- vra do homem. Ou melhor. O percurso do siléncio para a palavra de deus, “vinda do alto do céu, de seu trono real, etc...” apenas di- ey uma diferenga entre a palavra de deus ¢ a “terra oar 40 exterm{nio”, entre a palavra de deus € a palavra do a7 mem-terra, ele, sempre condenado ao exterminio. O comeco da palavra do homem nao € 0 mesmo que o come¢o da Palavra de deus. Nao é 0 mesmo, mas se abriga dentro deste Unico comeco. O comego da palavra do homem tem come¢o dentro do comeco da palavra de deus. Ter comego dentro do comeco €o que a tradicao crista chamou de ser “imagem”. O homem como imagem de deus, a palavra do homem como imagem da palavra de deus, 0 comego da palavra do homem como imagem do comego da palavra de deus. O comego da palavra de deus é “surgimento” no meio do siléncio, do siléncio da totalidade. Este “surgimento” nao é, porém, um mero rompimento do siléncio. Este “surgimento” nao abala ou desfaz o siléncio da totalidade. Ao contrario, a palavra de deus € a doagio do sil€ncio da totalidade. Como “imagem” da palavra de deus, a pala- vra do homem comega como uma recep¢ao, um recebimento, uma acolhida, e um agradecimento. Como “imagem” da palavra de deus, a palavra do homem € umaescuta. A escuta retine recep¢ao, recebi- mento, acolhida e agradecimento nao como sinonimia, mas como uma experiéncia de correspondéncia. A correspondéncia da ima- gem nio € correspondéncia entre duas “coisas”, homem ¢ deus, mas entre fala e escuta. Uma correspondéncia muito prépria por- que se trata de correspondéncia dentro de um mesmo come¢o: fa- lar ao escutar a fala. Isso significa pegar 0 tom do que j4 sempre soou, € afinar-se ao comeco. O comego da palavra do homem é escuta do que ja se disse. Esta é uma descrig&o suscinta do que se costuma chamar de mistica crista da palavra. E nao sé isso, é a des- crigdo de uma compreensao que, implicita ou explicitamente, de- terminou a relacao ocidental com a linguagem. O comeco da palavra do homem € escuta, correspondéncia, “imagem” do comego da palavra de deus. A palavra de deus come- ¢a no meio do siléncio, tem por elemento o siléncio, no sentido de s6 se pronunciar na totalidade do siléncio (como o peixe s6 pode viver na Agua). Se o comego da palavra do homem é€ uma corres- pondéncia (imagem), ela mesma nao surge do siléncio. Surge da palavra que surge do siléncio, surge da palavra de deus. Surge da escuta deste primeiro surgimento. Como o comego da palavra do homem corresponde a este surgimento da palavra de deus desde 0 siléncio? Ou com outras palavras — onde esta o siléncio do ho- mem? O que no homem corresponde ao siléncio da totalidade? 28 Javea do homem € escuta da palavra de deus (escuta di A ce re se disse). Para escutar, € necessarja uma a que 8 ip pois se trata de uma atengiio que seleciona ¢ “silence” partic “9 muito, oS virios niveis de som. (A nota musical é nf os ee selegdo silenciadora de niveis de uma mesma ice Pot isso, nao basta apenas afirmar que a palavra do homemi ee correspondéncia (resposta) a palavra de deus. & Preciso ée ronde € 0 lugar em que se pronuncia a palavra ¢ onde o lugar sabe vrese escuta @ palavra. Na tradi¢do mistica, trata-se do mesmo - Pois o homem é de deus € todo 0 seu comego é um comego intro do comego de deus. Circulos concéntricos, rosécea no ar, rinha no Lago. O mesmo em sua repercussio. Para a mistica crista, isso significa @ diferenga entre homem e deus. No sermao 57, que € um comentério a esta passagem do Li- yro da Sabedoria, Mestre Eckhardt se pergunta pelo “lugar” deste acontecimento da palavra de deus que € o mesmo lugar da palavra- escuta do homem. “Senhor, onde esté o siléncio ¢ onde, onde o lugar em que se pronunciard esta palavra?” Este lugar, diz Mestre Eckhardt: “esté no que a alma tem de mais puro, de mais nobre, esté no fundo e no ser da alma, i. €, no mais escondido da alma: ai silencia o “meio”, pois af nunca pode entrar uma criatura ou imagem, nun- ca aalma conhece a¢ao ou conhecimento e nem mesmo sabe de alguma imagem, seja de si mesma ou de qualquer criatura” (p. 2, Artee Palavra). Mestre Eckhardt indica que, no homem, a “imagem” do si- léncio soberano, esse que é meio, elemento, que envolve todas as coisas, o siléncio da totalidade, € o “fundo da alma”. Mas o fundo da alma nao € bem um lugar, um enderego. Trata-se, a0 contrario, de uma atividade, de um exercicio de silenciar 0 “meio”. Para o homem, o siléncio é um silenciar do meio, das mediagoes, das agoes € conhecimentos, das imagens, das criaturas, das coisas, do singu- lar. No homem, a “imagem” do siléncio que € meio € fonte da pala- vra € 0 silenciar dos meios humanos. Os meios humanos ou facul- dades so todos eles extensdes da linguagem: em tudo 0 que 0 ho- ™em conhece,vé, sente, quer, sonha, “quer deseje conhecer uma Pedra, um cavalo, um homem ou qualquer outra coisa, 4 alma sem- Pte vai buscar a imagem que antes assimilou para, desse modo, po- 29 der unir-se com ela”, diz Mestre Eckhart no mesmo sermio. Esta imagem antes assimilada é linguagem. Em tudo o que conhece, 9 homem conhece como linguagem, pela linguagem, desde a lingua. gem. Para sera imagem de deus, para que a sua palavra-escuta Seja imagem da palavra:siléncio de deus, o homem deve silenciar 9 “meio”, deve silenciar todas as imagens, deve silenciara linguagem. Para falar do siléncio, o homem precisa silenciar a linguagem. Esta & a indicagio reflexiva do sermao de Mestre Eckhart. Para enten- der esta indicagdo, € preciso discutir um pouco o que é simples- mente falar de alguma coisa, falar sem silenciar a linguagem, ou ainda, o que é a linguagem assumida unicamente como “meio”. Deixemos, agora, um pouco de lado o “siléncio”, ¢ nos pergunte- mos o que é falar de alguma coisa. Sempre que se fala de alguma coisa, est em jogo 0 modo de falar. Ha muitos modos de falar. Estamos num encontro de filoso- fia, concentrados na questo do siléncio. Esperamos que se fale filosoficamente do siléncio. E assim esperamos porque, ao que pa- rece, também € possivel falar sociologicamente, antropologicamen- te, etc. do siléncio. Estes varios modos de falar possuem, no entan- to, algo em comum. Sao modos teéricos e cientificos de se falar. O modo teérico préprio das ciéncias e, assim, dos modelos de saber constitui uma fala sodre as coisas. Trata-se de uma sdbre-fala porque langa sobre a coisa a sua prépria perspectiva, os seus préprios pro- cedimentos, 0 seu préprio método. A sobre-fala constitui a raciona- lidade prdpria das-ciéncias. Para falar sobre as coisas, ou seja, para langar sobre as coisas a propria perspectiva, o saber teérico precisa estar a parte das coisas. Precisa j4 saber no seu modo préprio, antes ou independentemente das coisas. Esta é a condi¢ao para a sua objetividade e para a sua verdade. A sobre-fala do saber teérico sempre pressupée este distanciamento das coisas, esta imparciali- dade. CO distanciamento das coisas nao é, porém, um dado, nao é 0 primeiro. Primgiro, se est4 sempre no meio das coisas. O distancia- mento teérico das coisas € uma “objetividade segunda”, numa ex- pressao de Husserl. Estar em meio as coisas j4 € uma objetividade “primeira”, que é até, muitas vezes, primaria. Mas 0 problema nao é tanto a possivel diferenca entre uma visio ingénua das coisas ¢ outra cientffica, mas a apreensdo de que o saber é uma arte da pas- sagem. A passagem do que se recebe sem buscar para uma decisio, 30 B orientagao, um sentido de busca, Porque mesmo a visio ingé- ig é uma visio ¢, portanto, uma perspectiva, Se, num jogo de nua rel russas, buscdssemos a perspectiva da perspectiva da pers- Se j ‘mais encontrarfamos o Pe ea dos Primeiros, Encontra- Famos apenas que sempre ja rece! hemos 0 sentido de coisa, que re jd recebemos 0 fato da existéncia”, mesmo quando nao oe ‘os € sabemos disso. Encontrarfamos que j4 sempre “ha ser”, Sanne os termos de Heidegger. & preciso, Pportanto, estar ee as coisas para poder delas afastar-se ¢ constituir qualquer nivel de objetividade. Em outras palavras: é Preciso haver primciro realidade para que Se possa construir objetividade. Qualquer visto das coisas depende, portanto, da doagio pri- maria de que ha exist@ncia. Toda construgio, toda visdo, toda fala sempre parte, de algum modo, desta doagio. E a partir dela que se pode falar sobre alguma coisa. Esta doagdo tem um carter silenci- oso. Porque jamais se pode encontrar o fato da existéncia como encontramos as coisas no meio das quais sempre estamos. Tem um cariter silencioso porque nao se deixa dizer como costumamos di- zer as coisas. E isso porque nunca podemos nos langar sobre este fato como o que est4 “fora” de n6s, mesmo na maior proximidade. Nés é que estamos “dentro” deste fato e, de tal forma, que sé po- demos partir dele. Tudo o que podemos falar sobre alguma coisa j4 fala a partir deste fato. Nao hé, portanto, apenas um falar sobre as coisas, ha tam- bém um falar a partir da coisa. Falar a partir de €, por sua vez, um falar que precisa primeiro acolher, que precisa escutar, nas coisas, 0 fato da existéncia. O fato da existéncia nao se deixa saber “teorica- mente”, ou seja, segundo a exigéncia cientifica de objetividade. Nio se deixa saber objetivamente até porque nunca se deixa sepa- rar do modo de saber. E 0 que sempre est4 compreendido, co-apre- endido. Nao €, porém, o que ainda nao se determinou ou 0 ainda- nao determindvel, o que ainda precisa de tempo para encontrar as palavras. Eo que sempre silencia para que a fala de qualquer saber re Pronuncie. Com isso se diz: em toda fala, ha um siléncio. E o siléncio nao € um tema ou um objeto dentro outros. O siléncio € 0 Ptéprio fendmeno da fala. E o que na fala sempre confirma que eee? e imparcial ja sempre participa da sua perspecti- fncan de Bets a parcialidade da sua “ciéncia”. O siléncio € 0 fené- fala porque nao se deixa falar objetivamente. Neste reco- 31 que seria entio falar do siléncio? Seria falar a partir artir do siléncio s6 se pode falar assumindo, na fala, répria existéncia, A partir do siléncio, 86 se pode falar acolhendo ¢ escutando a condigio de nossa propria existén- cia. A partir do sil@ncio s6 se pode falar sendo aquilo que se fala, Ser o que se fala é falar correspondendo ao fundo da alma. 486 é posstvel conhecer aquilo que se ¢”. Estas palavras de Mcs- tre Eckhart exprimem um antigo princfpio de saber, que nada tem aver nem com o saber “tedrico” ¢ nem com o “pratico”. Bo prin- efpio que Empédocles enunciou como “o mesmo se conhece pelo mesmo” (fragmento 109). Trata-se de um princfpio de sabedoria nio de saber, Uma sabedoria que tem inclusive uma tradigao no Ocidente: a tradigio “mfstica”. Esta nada tem a ver com misticis- mo ou com irracionalidade. Mas com uma disposi¢ao de acolhi- mento ¢ de correspondéncia como comego de conhecimento e de sua fala. Assim entendido, este principio esté além do “mistico”, constituindo 0 pathos proprio da filosofia. Resgatar o pathos préprio da filosofia € a grande motivagao da fenomenologia. Chamamos aqui de fenomenologia nio sé a filosofia de Edmund Husserl e Heidegger, mas a de todos aqueles que pensaram sob a inspiragio do fenémeno. A fenomenologia tem o sentido amplo de uma busca nao s6 de fundamento, mas, essencialmente, de correspondéncia. Por isso, o /égos do fendmeno (fenomeno-logia, Cf. Ser e Tempo, para- grafo 7) é, no fundo, uma homologia do fendmeno. Se, na tradigio, costumou-se traduzir 0 nome filosofia por amor a sabedoria, a feno- menologia €, propriamente, 0 amor a correspondéncia. Sua ques- tao é mais saber-corresponder (homologia) do que saber. O carater “mistico” desta correspondéncia nada possui de esoterismo. Esta correspondéncia € mistica porque precisa apertar os olhos, como 0 miope, para ver a proximidade em que as nossas palavras se encon- tram do siléncio, se encontram do indizivel e¢ indeterminavel, ¢ nao confundir 0 perto com a distancia de uma diferenga absoluta entre fala e siléncio. A fenomenologia guarda, portanto, uma enor- me proximidade da tradigio mistica. Mesmo que se diga que a tra- digio mfstica é uma tradigao religiosa ¢ a fenomenologia um movi- mento filos6fico e que, segundo a tradicao, fé e conhecimento tém dificuldades de se misturar, a proximidade entre ambos nao dimi- nui. E porque a proximidade nao é de seus temas imediatos, mas a nhecimento, 0 do siléncio. A P: o fato da nossa Pp! 32 ; nosigdo mais humana de sempre deparar-se com o fato da ia em todos 0s ee he som as Coisas, sejam os mo- dade. Heidegger as » por exemplo, o pensamento de Eckarht como o lugar em que o pensamento aprende a pen- 1 (Cf. Zur Sache des Denkens). E no volume recém-publicado da i completa, vol. 60, intitu lado Phanomenologie des religiosen Lebens, Heideege? discute esta proximidade a0 investigar os fundamentos filoséficos da mfstica medieval. Estas provas bibliogréficas nao pro- vam muita coisa. Pois para perceber esta proximidade ou afinidade de esséncia, € preciso ser 0 que se percebe. Para descobrir 0 fundo da disposicao filos6fica € preciso descobrir ° “fundo da alma”, na expressio de Mestre Eckhart. Para descobrir 0 fundo silencioso da fala é preciso descobrir o préprio fundo da alma. Ai comega a pala- yra. Af se pode ser 0 que se fala. A afinidade entre a fenomenologia ¢ a mistica se concentra no exercicio do fundo da alma, no exercfcio de reconduzir tudo o que é para o fundo de seu préprio ser. Esta reconducio s6 €, po- rém, possivel quando se percebe que tudo o que é, com suas deter- minagoes, singularidades, etc., precisa primeiro “ser” simplesmen- te. Esta recondugio sé € possivel quando se descobre, no fundo da alma, o fundo do ser, 0 “fato bruto da existéncia”, como dizia Schelling. Reconduzir todo 0 existente para o fato da existéncia nao é, contudo, tentar determinar algo que ainda no se determi- nou ou ainda nao determinavel. E encontrar-se com o indetermi- navel, 0 que nao se deixa jamais determinar, o que jamais se deixa dizer, o “Urgegenstand”. Neste encontro, silenciam todos os meios, as imagens, isto é, todo uso instrumental da linguagem. Silenciar 0 meio significa, porém, descobrir que toda palavra-imagem das coi- sas assinala em suas determinacdes o indetermindvel. E descobrir que, na diferenga com a palavra de deus, a palavra do homem, a Palavra-imagem surge nio do siléncio mas da escuta da palavra de deus, da palavra indeterminavel. Se a palavra-indeterminavel de deus esta diretamente ligada ao siléncio, a do homem est ligada a sta primeira palavra, numa escuta. Por isso, a palavra do homem €, cues escuta da diferenga entre homem € deus, éa a aescuta Ha limite, do fundo da alma. O siléncio do homem imite da sua palavra. 33 Foi como este encontro com 0 indizfvel em todo dizer do ho- mem que a mistica crista dimensionou a diferenga insuperavel en- tre homem e deus. O indizivel no dizfvel: deus no homem. O silenciamento da linguagem significa 0 encontro do indizivel no dizivel. Mas como se pode dizer a palavra “indizivel”? Nao haveria af uma impossibilidade? Nilo estarfamos cm aporia? A partir deste dimensionamento da palavra, coloca-se a quest4o movimentadora da tradic¢Ao mfstica crist’. Como 0 homem pode pronunciar 0 nome divino, se a palavra do homem comega na apreensio da diferenca incontornavel entre homem e deus? Como o homem pode pronun- ciar o nome “deus”, se deus é 0 indizivel —arreton? Esta mesma pergunta € que move um conto de Arthur Clark (0 autor do200/, uma Odisstia no espago) chamado os Nove milhoes de nomes de deus, onde, a cada vez que se pronuncia um dos nove milhdes dos nomes de deus, apaga-se uma das nove milhées de estrelas do firmamento. Mas o homem nfo pode nio tentar pronuncié-lo, pois o homem s6 pode ser o que ele mesmo é. O homem sé pode ser humanamente. E ser humanamente é ser na linguagem-limite, ou seja, dizer por nao poder dizer tudo. Pseudo-Dionisio Areopagita escreveu um tratado sobre os Nomes Divinos. Pseudo-Dionisio exerceu um papel paradigmati- co na tradigao mistica medieval. Neste tratado, ele discute 0 que é nomear 0 divino, o que € a palavra-limite do homem que precisa tentar dizer o indizivel, mesmo sabendo que, com isso, apaga, a cada vez, uma estrela do firmamento. O que o Tratado do Areopagita pretende é: “demonstrar a verdade das palavras divinas através de probabili- dades extrafdas da sabedoria humana, mas através da revelagdo desta forga que se apodéra dos tedlogos do espirito ¢ que nos faz aderir sem palavras ¢ sem saber As realidades indiziveis ¢ incognoscfveis, unindo-nos com elas para além dos nossos modos de raciocinar ¢ compreender”. ' Ocwvres de Pseudo-Denys, l’aréopagite, traduction, commentaires et notes pat Maurice de Gandillac, Bibliotheque Phiolosophique, ed. Aubier, Paris, 1989. “Les Nomes Divins”, p. 67 — “ne pas démontrer la vérité des paroles divines par des probabilités tirtes d’une sagesse humaine, mais bien par une révélation de cette puissance qui vient aux théologiens de l’Esprit et qui nous fait adhérer sans parole e sans savoir aux réalités qui ne se disent ni ne se savent, unis a elles a notre fagon au elit des puissances et des forces de la raison et de l'intelligence”. 34 oder nao dizer o indizfvel ou ter de di NOP uma das nove milh& ¢ dizer mesmo que, a cada vez se apague I Ses de estrelas do firmamento «ada nao significa balbuciar, Baguejar ou falar com di ain ente. Trata-se de dizer a partir da condigaio ican de tod: mecant . dae qualquet fala do homem: 0 homem sempre fala, mas 0 homem s6 fala toda essa sua condigio de fala a partir de uma adesdo. A adesio sé toda a fala ¢, como adesio, € um dizer sem palavras, um saber semn conhecimentos. A dete significa ndo conhecimento, mas reconhe- iment do limite do homem. Por isso, 0 que esté em jogo nao é um “jrracionalismo”, mas uma apreensiio de que a razdo é, nela mes- ma, limite. Por isso, este ter de dizer 0 indizfvel significa, Propria- mente, reconhecer que diante do indizivel € preciso aderir, entre- garse a grandeza do imenso, acolher com grandeza o grande. E pre- ciso ser 0 que se diz. O indizivel € um imperativo, imperativo de uma aco — a ago de reconhecer o préprio limite e corresponder a este reconhecimento em todos os Ambitos da acao. Diante deste imperativo, tudo o que se pode “dizer” € que o dizer nao diz tudo. Na lingua grega do helenismo, o grego do cristianismo primi- tivo, podemos observar a aten¢o, ou melhor, o temor-tremor dian- te do limite do homem, da diferenga infinita entre deus e homem. Proliferam os alfa privativos e os prefixos de exceléncia como ¢pi € hyper : sempre a tensdo entre a agnosia € a hyperousia, 0 “sem” € 0 “tanto”. E que o tanto s6 consegue reverberar na sua propria in- tensidade (que € de muito e muitissimo) quanto mais vazia a caixa actstica, a caixa de ressonancia. Esta tensao possui uma simetria sonora — o tanto s6 reverbera no sem. Como 0 homem deve agir para corresponder a deus, para deixar soar a sua reverberagao? Deve entoar, dizer? Ou ser4 que deve, ao invés, “manter siléncio e dei- xar que, no repouso e na quietude, Deus mesmo fale ¢ aja, embora cle mesmo se entregue a obra de Deus em si?” (M. Eckhardt, p.5). Nao sio dois caminhos. Jé pudemos perceber que 0 homem nao Pode no dizer, no pode nao entoar. Pois ao manter siléncio ¢ dei- Xar que, no repouso e na quietude, Deus mesmo fale e aja, ele nao deixa de dizer, ao contrério, ele se concentra integralmente na fon- te humana do dizer, que € a adesdo, a entrega desde uma escuta, que € ter de ser o que se diz. S6 que o homem nunca esté sem nada, ° homem € estranhamente esse que sempre esta com algu- ™a coisa. Para manter siléncio é preciso um trabalho intenso, um ebilidade, 35 trabalho incansdvel de busca, de fazer-se na medida do imenso, na medido do tanto.’ A sua palavra éuma lavra de correspondéncia ao ( ida de seu limite. Teen terse lavrar, de palavrar. H4 uma teologia afirmativa, Sendo Deus um dos nove milhdes de nomes do indizfvel, pode-se afirmar de deus a sua unidade, a sua bondade, asua verdade, asua onicéncia, onipoténcia, oniesséncia. A teologia afirmativa parte sem- pre do mais alto. (Hyperousia, hiperesséncia, esséncia das essénci- as). Pseudo-Diontsio se coloca e responde a pergunta de por que partir do mais alto quando se trata de afirmar. Por que “para falar afirmativamente do que transcende toda afirmagdo € preciso bus- car apoio no alto, isto é, no que esté mais proximo Dele?” (p.182). O que esti mais préximo daquele que é 0 mais distante do homem € 0 que, no homem, constitui o mais distante dele mesmo, o mais dificil: a sua nobreza, o que depende de reunir todos os seus esfor- gos, abandonando todas as suas pretensdes de saber e controlar, incluisve a pretensio de impedir que se apague uma das nove mi- Ihdes de estrelas; a transparéncia do fundo da sua alma, onde fun- do e superficie sio um s6, onde o homem silenciou os meios, € tornou-se caixa de ressonancia, escuta-abertura. ‘Trata-se de um redimensionamento das coisas desde a 6tica do alto. ‘Tudo o que é —o mundo das imagens, figuras, palavras, determinagées contrai- se numa concisao, contrai-se para uma medida mais precisa, onde cada coisa é devolvida para o teor de sua prépria precisdo (limite). Se do alto as coisas parecem menores € porque, na totalidade de uma vida, cada episédio deixa de confundir-se com o todo, sendo devolvido ao episédico, ao epocal. HA igualmente uma teologia negativa. “Para falar negativa- mente daquele que ultrapassa toda negacao, come¢amos necessa- riamente a negar nele o que € dele o mais distante.”(p.182). A teo- logia negativa € caminho de retorno. Reditus (a afirmativa, um exitus). Reparte do epis6édico, do singular j4 dimensionado afirmativamen- te pelo mais alto, reparte do conciso para retornar ao imenso. O que 2 “Minha alma se desfez toda quando o amado falou” Céntico dos Canticos 5.6¢ as demais citagdes feitas por M. Eckhardt no sermao 57, Mc 10, 29, Mt 16,24 19,29; jo 12, 26; SI 84,9; Jo 1, 5,11,12- Mt 10, 37/38: “quem nfo se negar @ si mesmo ¢ nio abandonar pai ¢ mic ¢ tudo que estiver fora, nao seré digno de mim”. 36 - concisto propicia esha eee ae ital do excessivo. £ Preci- goainda perdera vontade le aoe izivel (apropriar-se) por meio Sra concisdo. “Agora (...) nao i trata nem mais de concisdo, mas deum jnteiro cessar da palavra 4 Jo pensamento, La (na afirmagao) onde nosso discurso descia do superior para o inferior, a medida que se distanciava das alcuras, 0 seu volume aumentava. Agora que re- tomamos a subida do inferior para o superior, 4 medida que nos apro- ximamos do cimo, 0 volume de nossas palavras se apaga. No final da ultima subida, estaremos inteiramente em siléncio ¢ unidos ao inefavel” (p- 182). Ap6s a concisao, s6 0 esvaziamento. Esvaziamento que se confunde com a morte,’ com um deixar de ser, com a possi- bilidade “der schlechthinnigen Daseinsunméglichkeit” (&50Sein und Zeit] Derrida Post-scriptum), deixar de ser para deixar-ser 0 imenso, 0 comego. Aqui, 0 sil@ncio parece retomar 0 uso comum na sua lingua latina: silentium, silente para dizer o morto. Mas nao o morto como 0 que se consumiu, mas como o que se consumou, re- alizou plenamente todo o seu ser. Si/entium que, também no étimo indo-europeu, fala da quietude do mar, apés a tempestade, apdés a agitacao das ondas. Mas por que niio basta dizer com concisao, por que nao basta dizer afirmativamente: o indizivel é tudo, por exemplo? Por que € preciso ainda conduzir a palavra para o siléncio? Qual o cardter for- mal dessa afirmagao, desses nomes positivos do indizivel? O nome positivo diz: deus é uno, deus € oniciente, deus é onipotente, etc... Apesar da aparéncia, nao se trata, porém, de uma proposi¢ao predicativa. Ao se dizer Deus € uno (ou tudo é um de Heraclito) afirma-se, nomeia-se deus € a unidade, mas no modo de uma auto- evidenciacio. Do ponto de vista formal, toda afirmagao divina é apofantica (Cf. Derrida, Post-scriptum), ou seja, auto-evidenciadora, de-monstrativa, no sentido de “deixar e fazer ver 0 ente a partir dele mesmo e por si mesmo” (§33 Ser ¢ Tempo, p. 212). Se tomar- mos os trés sentidos de proposigao discutidos por Heidegger no $33 de Ser ¢ Tempo — A proposi¢ao como modo derivado da inter- Pretagio — quais sejam: demonstragao, predicaco, comunicagao, poderemos perceber o teor proprio destas afirmagdes apofanticas. Mase ea ae eee en wore ey ee 3 a 5 confunde-se porque a morte é, para nés, sempre o Unico desconhecido Mozart, trés meses antes de morter, dizia que “o desconhecido tem falado comigo.” 37 CON RRRE ae e eae See ivas, auto-evidenciadoras. Nio sio, | Sao afirmagoes eo rém fung3o de comunicagio. Pe j rém, pred ee Nao falam para deus. Nao falam para dizer algo falam? jd’ sempre sabe 0 que cle mesmo €. Também nig ¢ tornar presente deus ieee ioe i € toda U tornar préximo o que est distante, nem ee ak Pinexplicivel ou indefinivel. No primeirg sme das Gonfissies, Santo Agostinho se pergunta pelo sentido - suas palavras. Pergunta-se para que falar para deus se deus jg sabe tudo o que ele vai dizer, por que falar se a palavra dele nao diz tudo? Por que nao ficar calado? Mas é preciso dizer para fazer apa- recer que 0 dizer no pode dizer nada de deus ou a deus, nio pode nada explicar ¢ nem sequer preencher. Todo o dizer da teologia afirmativa é apofantico nao porque deixa ¢ faz ver 0 ente a partir dele mesmo, mas porque deixa ¢ faz ver que 0 dizer mais afirmati- vo, mais conciso e cristalino do homem nao consegue reproduzir a imensidao de deus. As negages da teologia negativa, por sua vez, sio do, tipo: deus nem € isso, nem aquilo ou ainda as que reinem numa unidade simples o sim ¢ 0 nao como a clara evidéncia do j quem elas deus porque deus falam para apresentar mesmo. Tanto na afirmaco como na negacio, a palavra-limite do homem, em lugar de determinar ¢ responder, nada mais faz do que aclarar a posig¢ao de onde se fala. O homem fala numa médi¢ao sem fim com 0 préprio limite. Assim € que o homem € 0 que ele fala. Através destas referéncias 4 mistica medieval, ao pathos da fenomenologia, tentamos responder a questio do siléncio do ho- mem. A histé6ria jamais falou tanto como agora. E hora de nos per- guntarmos quando da palavra se faz siléncio. Esta indicagio €, para nés, vital porque se coloca desde a nossa propria indigéncia, desde a nossa propria preciso (no sentido nordestinodesta palavra). Nés, | os homens sem deuses. Isso no significa, porém, como se costuma acreditar, que o homem contemporineo nao mais acredita em deu- | ses, que perdeu sua fé e mesmo um nivel de encantamento. Nés, os homens sem deuses, somos os homens desatentos ao que € 0 homem. Os homens que acreditam excessivamente que nioé mais Preciso perguntar-se pelo que sao. Esta desatengio nao € tampouco mera distracao, no sentido de que bastaria simplesmente gritat, T digir um manifesto ¢ clamar pelo homem. Esta desatengio nad2 | mais € do que a certeza que acompanha o homem contemporine? 38 cle pode tudo. E isso inclui a certeza de que a palavra do de ae ‘ode tudo dizer. Mesmo quando falamos, hoje, omen’ equentia, sobre 0 limite da linguagem — fepetindo que muita nao se pode falar, deve-se calar”, achamos que nao € bem m que nao pode dizer tudo, mas que ela se deve calar “¢ cer dito tudo, OU ent&o que € melhor nfo falar se no se pode por ja lat Ambas as alternativas s6 admitem o nome, o dizer e a i ea oque nada tem aver com o siléncio. O nome Parece, ‘im, a propria garantia de que a realidade nao tem siléncio, de Se kaclo 6 pode ser uma falta nossa, uma imprecisao. Mas nes- a © que se passa a desconhecer, de modo soberano, é a bit da palavra. Para busca-la mais uma vez, talvez seja revela- dora uma via semelhante a via negativa, um negar até mesmo da concisao, j4 que a concisdo esté sempre ainda no risco de tornar-se estilo ¢ ret6rica, de ser apenas uma forma de discurso, um esvazia- mento da gravidade da existéncia. Da palavra para o siléncio. A questao do siléncio do homem € a questao de ser 0 que se diz. até com 39

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