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FILO Be ee ieee tee Dea knee ae Cee a ae eee ty reflexdo ética sobre a humanidade do outro, mesmo quando o outro busca aniquilar a Dee a eee eed CT ea cee td Ce eee cr Ce acre Dene ae ne ge etd ne Cem ac ae ee eC eee eee COT nea kee ok at eg Ce ae ene ned SE aN ce eee cee ee eee eed Ca elie kone eg ee eee eee eee Fein alee) Deere art ere: BUTLER Relatar a simesmo or Sofatle Maat) CCopyeaht © 2005 Fordham Univesity Pest Copyright © 2015 Autenta Edtra (Ceci Mins rose cco Diego Drosehi Dados mesma Catalogo ne Pbieach (CP) (Camara Braseira do Lino, 1. tka Flosefa moral 170 @ cave avrenrica Belo Horizonte flo de Janeiro ua Debret, 23, ala 401 ent . 20030080 Riode Janeiro. RI Tel (5521)3179 1975, Alberto Bittencourt (ob fata de “Andress Pusk = mipsitgoo.glCeriws) Sai Abvarenga Fonseca Sumario ra Agradecimentos Abreviagdes 1, Um relato de si 109. 173. 3. Responsabilidade 113. Laplanche e Lévinas: a primazia do Outro 131, Adorno sobre tomar-se humano 143. Relato critico de Foucault sobre si Posfacio Dos problemas de género a uma teo da despossessao necesséria: ética, e reconhecimento em Judith But Viadimir Safatie também numa versio resumida, como Kritile der Ethischen, pela Suhrkamp Verlag (2003), habilmente traduzido por Reiner Ansen, Partes do segundo capitulo foram publicadas como um artigo chamado “Giving an Account of Oneself” na revista Diacritis, v. 31, n. 4, p. 22-40, Estendo meus agradecimentos a diversas pessoas que colaboraram com varias ideias para o manuscrito do texto: Frances Bartkowski, Jay Bernstein, Wendy Brown, Michel Feher, Barbara Johnson, Debra Keates, Paola Marrati, Biddy Martin, Jeff Nunokawa, Denise Riley, Joan W. Scott, Annika ‘Thiem e Niza Yanay. Também agradeco aos alunos do meu seminario de literatura comparada realizado no segundo semestre de 2003, que leram comigo a maioria dos textos analisados aqui, contrariando meus pontos de vista e gerando uma discussio intensa sobre diversos assuntos. Agradeco a Jill Stauffer por me mostzar a importincia de Lévinas para o pensamento ético, ¢ a Colicen Pearl, Amy Jamgochian, Stuart Murray, James Salazar, Amy Huber e Annika Thiem pela assisténcia editorial ¢ pelas sugestes em diferentes ctapas. Pot firn, agradeco a Helen Tartar, que esti ansiosa para hutar com minhas palavras ¢ para quem, ao que parece, este livro retorna, Dedico-o 4 minha amiga ¢ interlocutora Barbara Johnson. 7 rus Abreviagdes As seguintes abreviagGes foram usadas no texto.” DF - LEVINAS, Emmanuel. Difficult Freedom: Essays on Judaism. Tradugio para o inglés de Sean Hand. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1990. EP ~ FOUCAULT, Michel. Structuralisme et posts- tructuralisme, In: Dits et érits, 1954-1988. Paris: Gallimard, 1904, ¢, 4: 1980-1988. p. 431-457. [Edic3o brasileira: Estru- turalismo e pés-estruturalismo. In: Ditos e escrits. Tradugio de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2008. v. 2. p. 307-324] FS—FOUCAULT, Michel. Fearless Speech. Organizagio de Joseph Pearson. Nova York: Semiotext(e), 2001 GM — NIETZSCHE, Friedrich. On the Genealogy of Morals. Traducio para o inglés de Walter Kaufmann. Nova ‘York: Random House, 1969. [Edigio brasileira: Genealogia da moral: uma polémica, Traducio de Panto César de Souza. Sio Paulo: Companhia das Letras, 1999] H- FOUCAULT, Michel, About the Beginning of the ‘Hermeneutics of the Self. Traducio para o inglés de Thomas Keenan ¢ Mark Blasius, In: Religion and Culture. Organizacio de Jeremy Carrette. Nova York: Routledge, 1999. p. 158-181 “As edigSes brasileiras indicadas entre colchetes foram usadas como referéncia para citagSes. Outras edigdes brasileiras que serviram como referéncia de leitura, mas cujas citagées nio foram usadas na tradugio, estio indicadas apropriadamente nas notas, (NT) "AULT, Michel. L’He ~ FOUCAULT, Michel suality, V 1985. [Edigio prazeres. Tradugio de Maria Thereza da Costa Albuquerque 13, ed. Rio de Janeiro: Edigées Gr: Neste livro, u: 1. Um relato de si fo & continuidade do conhecide, Adorno, Minima Moralia colocar a questo da filosofia moral — questo que tem a ver com conduta ¢, portanto, com o fazer — dentro de um referencial social contemporéneo. Colocar a questio nesse quad: admitir uma tese a priori, a saber, nao s6 que as questOes morais surgem no contexto das relagdes sociais, mas também que a forma dessas questées muda de acordo com o contexto —¢ até © contexto, em certo sentido, ¢ inerente A forma da questio. Em Problems of Moral Philosophy [Problemas da filosofia moral], série de conferéncias ministradas em meados de escreve: “Podemos provavelmente dizer que as quest&es morais sempre surgem quando as normas morais de comportamente leixam de ser autoevidentes ¢ indiscutiveis na vida de uma comunidade”' De certa forma, essa afirmagio parece descrever as condigdes de surgimento das questdes morais, mas Adorno depois especifica essa descrigao. Ele faz uma breve critica a Max Scheler, que lamenta a Zersetzung das ideias éticas. Para Scheler, Zersetzung significa a destruigo de um éthos ético ot. Problems of Moral Philosophy. Tradugio para ulés de Rodney Livingstone. Stanford: Stanford University Press, p. 16 Moralphilosophie. Frankfurt: Suhskan Doravante citade como PMP no texto, com a paginagi edigio em ing coletivo € comum. Adorno se recusa a Jamentar essa perda afirma que o éthos coletivo € invariavelmente conservador € postula uma falsa unidade que tenta suprimir a dificuldade ¢ a descontinuidade préprias de qualquer éthos contemporineo. Nao que antes existisse uma unidade que acabou se separando; © que havia antes era uma idealizagio, ou melhor, um nacio~ nalismo, que hoje no é mais aceitével nem deveria ser. Como resultado, Adorno faz um alerta contra o recurso 3 ética como uma espécie de repressio ¢ violencia, Escreve cle: nada é mais degenerado do que o tipo de ética ou moral que sobrevive na forma de ideias coletivas mesmo depois ‘que o Espirito do Mundo — usando a exptessio hegelia- na come atalho ~ cessou de nelas zesidit. Uma vez que © estado da consciéncia humana ¢ o estado das forcas sociais de produgio abandonatam essasideias coletivas, essas imesmas ideias adquirem qualidades repressoras ¢ violentas. O que obriga a filosofia a realizar este tipo de Teflexdo que expressamos aqui é 0 elemento de compul- sio que deve ser encontrado nos costumes tradicionais, @ essa violéncia ¢ esse mal que calocam os costumes [Sitter] em conflito com a moralidade [Sitdlickkei} ? eno 0 declinio dos principios morais como pranteado pelos teéricos da decadéncia (PMP, p. 17) Em primeiro lugar, Adorno afirma que as questOes mo- Tais surgem apenas quando o éthos coletivo deixa de imperar. Isso quer dizer que elas no tém de surgir na base de um éthos comumente aceito para serem qualificadas como morais; na verdade, parece haver uma tensdo entre éthos ¢ moral, tanto que 0 enfraquecimento daquele é a condigio para o aperfei- goamento desta. Em seguida, ele deixa claro que, embora o usa uma tradugio do texto de Adorno que verte 0 termo. lchket” para 0 inglés como “morality”. Neste caso, fizemos 488 a essa interpretagio a0 traduzi-to como “moralidade”, embora cm porcugués seja comum traduzirmos a palavea por “eticidade”. (NT) a rue dhos coletivo nao seja mais compartilhado ~ alids, justamente porque o “éthes coletivo”, que agora deve ser colocado entre aspas, no é compartilhado de maneira comum ~, cle 56 pode impor sua pretensio de comunidade por meios violentos. Nesse sentido, 0 éthos coletivo instrumentaliza a. violéncia para manter sua aparéncia de coletividade. Além disso, esse éthos 36 se torna violéncia uma ver que tenha se tornado um. anacronismo, © que hé de estranho em termos histéricos ~ ¢ temporais ~ nessa forma de violencia ética é que, embora 0 éthos coletivo tenha se tornado anacrénico, ele no se tornou passado: insiste em se impor no presente como anacrénico. O thos se recusa a se tornar pasado, ¢ a violencia é sua forma dese impor no presente. Com eftito, ele nao s6 se impée no presente como também busca ofiasca-lo — esse é precisamente um de seus efeitos violentos. Adorno usa 0 termo “violéncia” em selagio a ética no con texto de pretensdes de universalidade. Ele oferece ainda outra formulacio para o surgimento da moral, que é sempre o surgi- ‘mento de certos tipos de inquisigbes morais, de questionamentos morais: “o problema social da divergéncia entre o interesse universal ¢ © interesse particular, os interesses de individuos Particulares, é 0 que se dé 3 constituicio do problema da mo. ral” (PMP, p. 19). Quais io as condigGes em que acontece essa divergéncia? Adorno alude a uma situagio em que “o universal” deixa de concordar com o individual ou de inclui-lo, ea propria pretensio de universalidade ignora os “direitos” do individuo. Podemos imaginar, por exemplo, a imposigio de governos em paises estrangeiros em nome de prinefpios universais de demo- cracia, quando na verdade essa imposigo nega efetivamnente os direitos da populacio para eleger seus proprios representantes, Nesse sentido, podemos pensar na proposta do presidente Bush de uma Autoridade Palestina, ou em seus esforgos para substi- tuir 0 governo no Iraque. Nesses exemplos, usando as palavras de Adorno, “o universal [.] aparece como algo violento ¢ extrinseco, sem nenhuma realidade substancial para os seres humanos” (PMP, p. 19). Embora Adorno muitas vezes transite JUD BUTLER RELATER A I MESO 15 abruptamente entre ética e moral, ele prefere usar em sua obra 0 termo “moral”, refletido posteriormente em Minima Moral, ¢ insiste em que qualquer conjunto de maximas ou regras deve ser apropriavel por individuos “de maneira vital” (PMP, p. 15). Considerando que se possa reservar 0 termo “ética” para se referir aos amplos contornos dessas regras ¢ maximas, ou para a relagdo entre si-mesmos implicada por essas regras, Adorno insiste em que a norma ética que nfo oferece um modo de vida ou que se revela, dentro das condiges sociais existentes, como impossivel de ser apropriada tem de set submetida 4 revisio critica (PMP, p. 19), Se ela ignora as condigées sociais, que também sio as condigdes sob as quais toda ética deve ser apropriada, aquele éthos torna-se violento, No que se segue deste primeiro capitulo, quero mos- trar 0 que considero importante na concepcdo adorniana de violéacia ética, embora uma consideragao mais sistemitica do tema s6 seja feita no terceiro capitulo. Nesta se¢io intro dutéria, quero apenas salientar a importincia da formulacao de Adorno para as discussdes contemporaneas sobre niilismo moral e mostrar como as mudangas em seu quadro tedrico s30 exigidas pelo cariter histérico mutivel da investiga¢ao moral Em certo sentido, 0 proprio Adorno teria aprovado esse des- locamento para além dele mesmo, dado seu compromisso em considerar a moral dentro dos contextos sociais mutaveis, em que surge a necessidade da investigacio moral. © contexto nio é externo ao problema; ele condiciona a forma que problema vai assumir. Nesse sentido, as questées que carac- terizam a investigaco moral sio formuladas ou estilizadas pelas condigdes histéricas que as suscitam, Entendo que a critica de Adorno 4 universalidade abs~ trata como algo violento pode ser interpretada em relagio 4 critica de Hegel 20 tipo de universalidade caracteristica do Terror. Escrevi alhures sobre isso* e aqui quero apenas frisar > BUTLER, Judith; LACLAU, Ernesto; ZIZEK, Slavoj. Contingency, Hegemony, Universality. Landes: Verso, 2000, i6 ro. que o problema nao é com a universalidade como tal, mas com uma operacao da universalidade que deixa de responder & particularidade cultural ¢ nio reformula a si mesma em resposta as condigdes sociais ¢ culturais q) escopo de aplicacio. Quando, por razdes sociais, éimpossivel se apropriar de um preceito universal, ou quando ~ também Por razSes sociais ~ é preciso recusi-lo, cle mesmo se torna um terreno de disputa, tema ¢ objeto do debate democritico, Ou seja, o preceito universal perde seu status de precondicio do debate democratico; se funcionasse como precondi¢io, como um sine ua non da participagio, imporia sua violéncia na forma de forclusio excludente. Isso nio quer dizer que a universalidade seja violenta por definigio. Ela nio 0 & Mas ha condigdes em que pode exercer a violéncia. Adorno nos ajuda a entender que essa violéncia consiste em parte em sua indiferenga para com as condigdes sociais sob as quais uma apropriacio vital poderia se tornar possivel. Se uma apropriagio vital é impossivel, parece entio seguir-se que o Preceito s6 pode ser experimentado como uma coisa mortal, um softimento imposto, de um exterior indiferente, 4 custa da liberdade ¢ da particularidade. Adomo parece quase kierkegaardiano quando insiste no lugar e no significado do individuo existente e na tarefa necessi- tia de se apropriar da moral, bern como de se opor As diferentes formas de violéncia ética. No entanto, adverte contra o erto da Posigo oposta, quando 0 “eu™ se compreende separado de suas condigées sociais, quando € adotado como pura imediaticidade, arbitraria ou acidental, apartado de suas condigdes sociais ¢ historicas ~ as quais, afinal de contas, constituem as condigées gerais de seu proprio surgimento. Adorno é claro quando afirma que nio hé moral sem um “eu”, mas algumas perguntas criticas permanecem sem resposta: em que consiste esse “eu”? Em que inclui em seu * Para fins de esclarecimento terminolégico ¢ linearidade com o texto de Butler, traduzimos se por “si-mnesmo", I (substantivado) por “eu” ego por “Eu”, (NT) DITA BUTLER RELATAR @I MESMO v termos ele pode se apropriar da moral, ou melhor, dar um relato de si mesmo? Adorno escreve, por exemplo: “para vocés seri Sbvio que todas as ideias da moral ou do comportamento ético devem se relacionar a um ‘eu’ que age” (PMP, p. 28). Contudo, nao existe nenhum “eu” que possa se separar totalmente das condigSes sociais de seu surgimento, nenhum “eu” que nio esteja implicado em um conjunto de normas morais condicionadoras, que, por serem normas, rém um carter social que excede um significado puramente pessoal ou idiossincratico. © “eu” nio se separa da matriz prevalecente das nor- mas éticas ¢ dos referenciais morais conflituosos. Em um sentido importante, essa matriz também é a condigio para © surgimento do “eu”, mesmo que o “eu” no seja induzide or essas normas em termos causais, Nio podemos concluir que 0 “eu” seja simplesmente o efeito ou o instrumento de algum éthos prévio ou de algum campo de normas conflituosas ou descontinuas, Quando 0 “eu” busca fazer um relato de si mesmo, pode comegar consigo, mas descobriré que esse “si mesmo” ja esté implicado numa temporalidade social que excede suas préprias capacidades de narragio; na verdade, quando 0 “eu” busca fazer um relato de si mesmo sem deixar de incluir as condigdes de seu proprio surgimento, deve, por necessidade, tornar-se um tedrico social. A razio disso é que o “eu” no tem historia propria que nao seja também a historia de uma relag3o — ou conjunto de relagdes ~ para com um conjunto de normas. Ainda que muitos eriticos contemporineos sintam-se incomodados frente a possibilidade de isso significar que nio existe um conceito de sujeito que possa servir como fundamento para a acio moral a responsabilizagio moral, essa conclusio nio procede. Até certo ponto, as condigdes sociais de seu surgimento sempre desapossam 0 “eu”! Essa despossessio * Para uma anilise brilhante e envolvente da imerstio e da despossessio bem como de suas implicagdes canto do “eu” nas convengies social 18 ene nao significa que tenhamos perdido 0 fundamento subjetivo da ética. Ao comtrério, ela pode bem ser a condigio para 2 investigacio moral, a condigio de surgimento da prépria moral. Se 0 “eu” nio esti de acordo com as normas morais, isso quer dizer apenas que 0 sujeito deve deliberar sobre essas normas, e que parte da deliberago vai ocasionar uma compreensio critica de sua génese social ¢ de seu signifi- cado. Nesse sentido, a deliberagdo ética esta intimamente ligada a operagao da critica. E a critica comprova que nio pode seguir adiante sem considerar como se dita existéncia do sujeito deliberante © como ele pode de fato viver ou se apropriar de um conjunto de normas, Nio se trata apenas de 2 ética se encontrar envolvida na tarefa da teotia social, mas 3 teoria social, se tiver de produzir resultados nao violentos, deve encontrar um lugar de vida para esse “eu” O surgimento do “eu” a partir da matriz das instituigSes sociais pode ser explicado de diversas maneiras, e varias sio as formas de contextualizar a moral dentro de suas condigdes sociais. Adorno tende a considerar que existe uma dialética negativa em funcionamento quando as pretensdes de co- letividade resultam nao coletivas, quando as pretensdes de universalidade abstrata resultam ndo universais. A divergéncia é sempre entre 0 universal ¢ particular ¢ torna-se a con- dicdo do questionamento moral. © universal nio s6 diverge do particular; essa divergéncia é 0 que o individuo chega a experimentar, © que se tora para o individuo a experiéncia inaugural da moral. Nesse sentido, a teoria de Adorno tem uma ressondncia com a de Nietzsche, que destaca a violén- cia da “ma consciéncia”, a qual dé ongem ao “eu” como consequéncia de uma crucldade potencialmente aniquilan- te. O “eu” volta-se contra si mesmo, desencadeando contra si mesmo uma agressfio moralmente condenatéria, ¢, com ara 4 poesia lirica quanto para as solidatiedades sociais, ver RILEY, Denise. Words of Seives: Identification, Solidarity, Irony, Stanford. Stanfora University Press, 2000, JUDITH BUTLER RELATAR ASH MESO is isso, inaugura-se a reflexividade. Pelo menos essa a visio nieteschiana da mi consciéncia. Devo sugerit que Adorno alude a tal visio negativa da ma consciéncia quando sustenta gue a ética que nfo pode ser apropriada de “uma maneira vital” pelos individuos sob as condigdes sociais existentes “é a m4 consciéncia da consciéneia” (PMP, p. 15). ‘Temos de perguntar, no entanto, se 0 “eu” que deve se apropriar das normas morais de uma maneira vital ndo é, por sua vez, condicionado por essas mesmas normas que estabelecem a viabilidade do sujeito. Uma coisa é dizer que © sujeito deve ser capaz de se apropriar das normas; outra é dizer que deve haver normas que preparam um lugar para © sujeito dentro do campo ontolégico. No primeiro caso, as normas esto ai, a uma distincia exterior, ¢ a tarefa encontrar uma maneira de se apropriar delas, de assumi-las, de estabelecer com clas uma relagio vital. O quadzo cpiste- mol6gico pressupSe-se nesse encontro, em que o sujeito se depara com as normas morais ¢ deve descobrir uma forma de lidar com elas. Mas seri que Adorno acreditava que as normas tambéin decidem por antecipago quem sc tornari € quem nao se tornara sujeito? Considerava ele a operagio das normas na propria constitui¢ao do sujeito, na estilizagio de sua ontologia e no estabelecimento de um lugar legitimo no campo da ontologia social? Cenas de interpelagio Comeramos com uma resposta, uma pergunta que responde a um ruido, e 0 fazemos no escaro~ fazer seri exatamente saber, contentar-se com a fala Quem esté Id, ow aqui, ow quem se foi? ‘Thomas Keenan, Fables of Responsibility Por ora deixarci de lado a discussio sobre Adorno, mas retornarei 2 ele para falar nao da relagio do sujeito com a moral, mas de uma relagio anterior: a forga da moral na 20 rao Producio do sujeito. A primeira questio é crucial, ¢ a inves~ tigagio que se segue no a ignora, pois um sujeito produzido pela moral deve descobrir sua relagio com ela. Por mais que Se queira, ndo possivel se livrar dessa condigdo paradoxal da deliberacdo moral ¢ da tarefa de relatar a si mesmo, Mes- mo que a moral forneca um conjunto de regras que produz ‘um sujeito em sua inteligibilidade, ele nio deixa de ser um Conjunto de notmas ¢ regras que um sujeito deve negociat de maneira vital e reflexiva, Bm Genealagia da moral, Nietasche oferece um relato controverso de como é possivel nos tornarmos reflexivos sobre nossas ages ¢ de como nos colocamos em posigio de relatar o que temos feito. Observa que s6 tomamos consciéncia de nds mesmos depois que certos danos sio infligidos. Como conse- quéncia, uma pessoa softe, ¢ essa pessoa, ou melhor, alguém que age em sua defesa em um sistema de justica busca encontrar 2 causa do sofrimento ¢ nos pergunta se no poderiamos sé-la, Com 0 propésito de impor um castigo justo ao responsével pela acio injuriosa, a questio é posta, ¢ 0 sujeito em questio se interroga. “Castigo”, diz-nos Nietzsche, € a “criagio de uma meméria”® A pergunta p3e 0 si-mesmo como forca causativa ¢ também configura um modo especifico de responsabilidade, Ao perguntarmos se somos 05 causadores do sofrimento, uma autoridade estabelecida nos pede no s6 para admitir a exis- téncia de uma ligacio causal entre nossas agSes e 0 softimento resultante, mas também para assumir a responsabilidade por essas ages e seus efeitos. Nesse contexto, encontramo-nos na Posigio de termos de dar um relato de nés mesmos. * NIETZSCHE, Friedrich. On the Genealogy of Moras. Tradusio para 0 inglés de Walter Kaufmann. Nova Yerk: Random House, 1968. p. 80 Zur Genealogie der Moral. tn: Kritche Studenausgabe. Organizagio de Giorgio Colli ¢ Mazzino Montinaci. Berlin: de Gruyter, 1967-1977 ©: 5, p. 245-412, (Edigéo brasileira: Genealogia da moral: uma polémica Tradugdo de Paulo César de Souza, Sio Paulo: Coipanhis das Letras, 1999] Doravante citado no texto como GM, com a paginaglo referin. do-se 4 edicio brasileira, AUDITH BUTLER RELATAR ASI MESO 2 Relatamos a nds mesmos simplesmente porque somos interpelados como seres que foram obrigados a fazer um relato de si mesmos por um sisterna de justica ¢ castigo. Esse sistema no existe desde sempre; é instituido com 0 tempo com um grande custo para os instintos humanos. Nietzsche escreve que, sob tais condigdes, 0s seres humanos sentiam-se canhestros para as fiangdes mais simples, neste novo mundo ndo mais possuiam os seus velhios guias, os impulsos reguladores e inconscientemente cortciros ~ estavamn reduzidos, os infelizes, a pensar, inferir, calcular, combinar causas e efeitos, reduzidos a sua “consciéncia”, a0 seu Srgio mais frigil ¢ mais falivel! (GM, p. 72-73). Se Nietzsche esté correto, comeco entio a fazer um relato de mim porque alguém me pediu, e esse alguém tem um poder delegado por um sistema de justica estabelecido. Alguém me interpelow, talvez até atribuiu um ato a mim, e determinada ameaga de castigo dé suporte a esse interroga- t6rio, Desse modo, nurma reario temerosa, oferego-me como um “eu” e tento reconstruit minhas agSes, mostrando que aquela atribufda a mim estava ou nao entre elas. Com isso cconfesso-me como causa de tal ago, qualificando minha con- tribuigdo causativa, ou defendo-me contra a atribuicao, talvez localizando a causa em outro lugar. £ dentro desses parimetros que o sujeito faz um relato de si mesmo. Para Nietzsche, a necessidade de fazer um relato de si s6 surge depois de uma acusagio, ou no minimo de uma alegagio, feita por alguém em posigao de aplicar um castigo se for possivel estabelecer a causalidade, Consequentemente, comegamos a refletir sobre 1n6s mesmos pelo medo pelo terror. Com efeito, sio 0 medo © 0 terror que nos tornam moralmente responsiveis. Consideremos, nao obstante, que o fato de sermos inter~ pelados pelo outro tenha outros valores além do medo. Pode muito bem haver um desejo de conhecer ¢ entender que no seja alimentado pelo desejo de punir, e um desejo de explicar ¢ 22 ru nartar que ndo seja propelido pelo terror da punigdo. Nietzsche acertou muito bem quando disse que s6 comegamos a contar uma hist6ria de nés mesinos frente a um “tu” que nos pede que o facamos. E somente frente a essa pergunta ou atribui- so do outro — “Foste tu?” — que fornecemos uma narrativa de nés mesmos ou descobrimos que, por razdes urgentes, devemos nos tornar seres autonarrativos. E sempre possivel, obviamente, permanecer calado diante de uma pergunta desse tipo; nesse caso, 0 siléncio articula uma resisténcia em relacid 4 pergunta: “Vocé nao tem direito de fazer uma pergunta desse po”, ou “Essa alegagio ndo € digna de resposta”, ou ainda “Mesmo que tivesse sido eu, nao caberia a vocé saber disso”. silencio, nesses exemplos, poe em questio a legitimidade da autoridade evocada pela questio e pelo questionador ou tenta circunscrever um dominio de autonomia que nio pode, ou nao deve, ser imposto pelo questionador. A recusa de narrar nao deixa de ser uma relago com a narrativa ¢ com a cena de interpelago. Como narrativa negada, cla recusa a relacio pressuposta pelo interrogador ou a modifica, de modo que 0 questionado rechaga 0 questionador. Contar uma historia sobre si ndo é 0 mesmo que dar um relato de si. Contudo, vemos no exemplo anterior que o tipo de narrativa exigido quando fazemos um relato de nos mesmios parte do pressuposto de que o si-mesmo tem uma relagio causal com 0 softimento dos outros (e, por fim, pela mé consciéncia, consigo mesma). Decerto, nem toda narra~ tiva assume essa forma, mas uma narrativa que responde alegacio deve, desde o inicio, admitir a possibilidade de que o si-mesmo tenha agéncia causal, mesmo que, em dada situacio, © si-mesmo nio tenha sido causa do softimento. © ato de relatar a si mesmo, portanto, adquire uma forma narrativa, que nio apenas depende da capacidade de transmitir uma série de eventos em sequéncia com transigdes plausiveis, mas também recorre 4 voz e a autoridade narrati- vas, direcionadas a um piiblico com o objetivo de persuadir. A natrativa, portanto, deve estabelecer se 0 si-mesmo foi ou JUDITH BUTLER RELATAR ASI MESO 23 indo foi a causa do softimento, e assim proporcionat um meio persuasivo em virtude do qual € possivel entender a ago cau~ sal do si-mesmo. A narrativa no surge posteriormente a essa agio causal, mas constitui o pré-requisito de qualquer relato que possamos dar da aco moral. Nesse sentido, a capacidade narrativa 6 a precondi¢ao para fazermos um relato de nds ‘mesmos ¢ assumirmos a responsabilidade por nossas agdes através dese meio, Claro, & possivel apenas “assentir com a cabega” ou usar outro gesto expressivo para reconhecer que se € o autor da agio de que se fala. O “assentir com a cabega” funciona como precondigio expressiva do reconhecimento. Um tipo de forca expressiva semelhante coloca-se em jogo quando nos mantemos em siléncio frente a pergunta “Voce tem algo a dizer em sua defesa?”. Nos dois exemplos, no en- tanto, o gesto de reconhecimento sé faz sentido em relacio a uma trama implicita: “Sim, eu ocupava a posigio de agente causal na sequéncia de eventos a que vocé se refere”” A concepcio de Nietzsche nao leva totalmente em conta a cena de interpelagio pela qual a responsabilidade € questionada € depois aceita ou negada. Ele assume que a indagagio é feita a partir de um quadro de referencia legal, em que se ameaga efetuar uma punicio que provoque uma injiria equivalente Aquela cometida em primeiro lugar. Mas nem todas as formas de interpelacao originam-se desse sistema € por essa razio. O sistema de punigio que ele descreve tem base na vinganga, mesmo quando valorizada como “justiga” Esse sistema no reconhece que a vida implica certo grau de sofrimento ¢ de injiéria que ndo podem ser totalmente explicados pelo recurso a0 sujeito como agente causal. Com efeito, para Nietzsche a agressio coexiste com a vida, de modo que se procurissemos proscrevé-la, estariamos efetivamente tentando proscrever a propria vida. Escreve ele: “na medida em que essencialmente, isto & em suas fungdes basicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, nto pode sequer ser concebida sem esse cardter” (GM, p. 65). “Os estados de direito”, continua ele logo depois, sio “restrigdes 24 rus. arciais da vontade de vida", uma vontade definida pela luta. O esforgo legal para acabar com a luta seria, em suas palavras, “um atentado ao futuro do homem” (GM, p. 65). Para Nietzsche, 0 que esti em jogo nio é apenas o predominio da ordem moral e legal 4 qual ele se opée, mas sim uma construcio forcada do “hemano” em oposi¢io 4 propria vida. Sua concepyio de vida, no entanto, supde que 4 agressio seja mais primal que a generosidade, e que o in~ teresse por justiga surja de uma ética da vinganga. Nietzsche no considera a cena interlocutdria na qual se pergunta 0 que fizemos, ow a situagio em que tentamos elucidar,para quem quer saber, 0 que fizemos e por qual razio. Para Nietzsche, o si-mesmo como “causa” de uma ago injuriosa é atribufdo sempre de maneira retroativa~o agente s6 se associa 3 agao tardiamente, Na verdade, cle se torna agente causal da aco apenas por meio de uma atribuicdo retroativa que busca ajustar-se a uma ontologia moral estipulada por um sistema legal, sistema que estabelece responsabilizagdes e ofen— sas puniveis localizando um si-mesmo relevante como fonte causal de sofrimento. Para Nietzsche, 0 sofrimento excede qualquer efeito causado por um ou outro si-mesmo, ¢ embora existam exemplos claros em que exteriorizamos a agressio contra outra pessoa, provocando injiiria ou destruigio, esse softimento tem algo de “justificével” na medida em que faz Parte da vida e constitui a “seducio" e a “vitalidade” da propria vida. Ha muitas razSes para discordar dessa explicacio, e nos Pardgrafos seguintes esbogarei algumas das minhas objecdes. E importante destacar que Nietzsche restringe seu en- tendimento de responsabilizagao a essa atribuicio juridica~ mente mediada ¢ tardia, Ao que parece, ele no compreende as outras condigSes de interlocugiio em que nos é solicitado fazer um relato de nés mesmos, concentrando-se, ao contra- rio, numa agressio origindria que, segundo ele, faz parte de todo ser humano e, com efeito, coexiste com a prépria vida Para Nietzsche, condenar essa agressio sob um sistema de Punigdes erradicaria essa verdade sobre a vida. A instieuigio AUDITH BUTLER RELATAR AI MESO 25 da lei obriga um ser humano originariamente agressivo a voltar essa agressio “para dentro”, a construir um mundo interno composto de uma consciéncia culpada e a expressat essa agressio contra si mesmo em nome da moral: “hé uma espécie de loucura da vontade, nessa crueldade psiquica, que é simplesmente sem igual: a vontade do homem de sentit-se cul- pado ¢ desprezivel, até ser impossivel a expiagio” (GM, p. 81) Essa agressio, que Nietzsche considera inerente a todo ser humano ¢ a propria vida, volta-se contra a vontade ¢ assu- me uma segunda vida, até que implode para construir uma consciéncia que gera a reflexividade seguindo 0 modelo de autocensura, Essa reflexividade é © precipitado do sujeito, entendido como ser reflexivo, um ser que pode tomar e toma asi mesmo como objeto de reflexio. Como mencionei anteriormente, Nietzsche no con- sidera outras dimensées linguisticas dessa situagio. Se sou responsabilizada por meio de um quadro de referéncias moral, esse quadro dirige-se primeiro a mim, comega a agir sobre mim, pela interpelagao ¢ pelo questionamento do outro. Na verdade, é somente dessa maneira que chego a conhecer esse quadro, Se dou um relato de mim mesma em resposta a tal questionamento, estou implicada numa relagio com 0 outro diante de quem falo e para quem falo. Desse modo, passo a existir como sujeito reflexivo no contexto da geracio de um relato narrativo de mim mesma quando alguém fala comigo € quando estou disposta a interpelar quem me interpela. Em The Psychic Life of Power [A vida psiquica do poder],? talvez eu tenha aceitado muito apressadamente essa cena punitiva de instauracio para o sujeito. De acordo com esse ponto de vista, a instituigio da puni¢Zo me vincula a0 meu ato, e quando sou punida por ter feito isto ou aquilo, apareco como sujeito dotado de consciéncia ¢, portanto, como sujeito que reflete sobre si mesmo de alguma maneira. A visio da ) BUTLER, Judith. The Psychic Life f Power. Stanford: Stanford University Press, 1997. i rus: formagio do sujeito depende do relato de um sujeito que in- teriotize a lei ou, no minimo, a corrente causal que o une ao feito pelo qual a instituigéo da punicio busca compensacio. Poderiamos-dizer que essa explicagio nietzschiana do castigo foi fundamental para a explicacio foucaultiana do poder disciplinar na prisio. Com certeza foi, mas Foucault difere explicitamente de Nietzsche ao se recusar a generalizar a cena de castigo para explicar como se da o sujeito reflexivo, (O voltar-se contra si mesmo que tipifica o surgimento da mé consciéncia nietzschiana nao explica o surgimento da reflexi- vidade em Foucault. Em O uso dos prazeres, segundo volume de Histéria da sexuatidade,* Foucault examina as condigdes em ue o si-mesmo toma-se como objeto de reflexio e cultivacio, concentrando-se nas formacées pré-modernas do sujeito. En- quanto Nietzsche pensa que a ética pode derivar de uma cena aterrorizante de punicio, Foucault, afastando-se das reflexes finais de Genealagia da moral, concentra-se na criatividade peculiar na qual se envolve a moral ¢ como, em particular, a md consciéncia se torna um meio para a criagio de valores, Para Nietzsche, a moral surge como resposta aterrorizada 20 castigo. Mas esse terror resulta ser estranhamente fecundo; a moral e seus preceitos (alma, consciéncia, m4 consciéncia, consciéncia de si mesmo, autorreflexio ¢ razdo instrumental) esto impregnados na crueldade e na agressio voltadas contra si mesmas. A elaboragio de uma moral — um conjanto de regras ¢ equivaléncias ~ é 0 efeito sublimado (¢ invertido) dessa agressio primiria voltada contra nés mesmos, a conse~ quéncia idealizada de um ataque contra nossa destruicio ¢, para Nietzsche, contra nossos impulsos de vida, * FOUCAULT, Michel. The Use of Pleasure: The History of Sexuality, Volume Two, Nova York: Random House, 1985; Histoire dea sexualité 2 L’Usage des plasrs, Pare: Gallimard, 1984, [Edigio brasileira: Fistria da sexualdade 2:0 use dos prazeres. Tradugio de Maria Thereza da Costa Albuquerque 13. ed. Rio de Jancito: Edigdes Graal, 2009, Doravante citado no texto como UP, com a paginacio referindo-se 3 edie brasileira JWOITH BUTLER RFLATARA SI MESO 27 Na verdade, enquanto Nietzsche considera a forga do castigo como instrumental para a interiorizagio da raiva ea con sequente produgio da mé consciéncia (e outros preceitos morais), Foucault recorre cada vez mais a cédigos morais, entendidos como cédigos de conduta ~ e néo primordialmente cédigos de castigo —, para refletir sobre como os sujeitos se constituem em relagao a esses c6digos, 0 que nem sempre se baseia na violéncia da proibigio e seus efeitos interiorizadores. O relato magistral de Nietzsche em Genealogia da moral nos mostra como, por exemplo, a firia e a vontade espontiinea sio interiorizadas para produzir a esfera da “alma”, bem como a esfera da moral Esse processo de interiorizacio deve ser entendido como uma inversio, uma volta dos impulsos primariamente agressivos contra si préprios, a ago caracteristica da mA consciéncia. Para Foucault, a reflexividade surge quando se assume uma rela¢io com os cédigos morais, mas ela nfo se baseia em um relato da interiorizagio, ou, em termos mais gerais, da vida psiquica, tampouco em uma reducio da moral 4 m4 consciéncia Se interpretarmos a critica de Nietzsche 8 moral na mes- ma linha da avaliago freudiana da consciéncia em Mal-estar nna cultura, ow em sua descri¢ao da base agressiva da moral em Totem ¢ tabu, chegaremos a uma visio totalmente cinica da moral ¢ concluiremos que a conduts humana que busca seguir normas de valor prescritivo é mais motivada por um medo aterrorizado da punicio e de seus efeitos injuriosos do que por qualquer desejo de fazer 0 bem. Deixarei essa leitu- ra comparativa para outra ocasiio, Aqui parece importante notar 0 quanto Foucault queria se distanciar especificamente desse modelo ¢ dessa conclusio quando, no inicio da década de 1980, decidiu repensar a esfera da ética. Seu interesse foi desviado para uma consideracio de como certos cédigos pres- critivos historicamente estabelecidos determinavam certo tipo de formagao do sujeito. Por mais que, em sua obra anterior, ele trate 0 sujeito como um “efeito” do discurso, nos escritos posteriores ele matiza e aprimora sua posigao da seguinte maneira: sujeito se forma em relagio a um conjunto de 28 codigos, prescrigSes ou normas e o faz de manciras que no s6 @) revelam a constitui¢io de si como um tipo de poiesis, mas também (b) estabelecem a criagdo de si como parte de uma operacdo de critica mais ampla. Como argumentei alhures,? a realizagio ética de si mesmo em Foucault ndo € uma criago radical do si-mesmo ex nihilo, mas sim 0 que ele chama de “circunscrigio daquela parte de si que constititi o objeto dessa Pritica moral” (UP, p, 37). Esse trabalho sobre si mesmo, esse ato de circunscrigio, acontece no contexto de um conjunto denormas que precede ¢ excede o sujeito. Investidas de poder ¢ obstinagio, essas normas estabelecem os limites do que ser considerado uma formagio inteligivel do sujeito dentro de determinado esquema hist6rico das coisas, Nio ha criacio de si (poiesis) fora de um modo de subjetivacio (assujettisement) e, portanto, nao hé criagao de si fora das normas que orquestram as formas possiveis que o sujeito deve assumir. A pritica da critica, entio, expée os limites do esquema histérico das coi- 25, 0 horizonte epistemol6gico e ontolégico dentro do qual 9 sujeitos podem surgir. Criar-se de tal modo a expor esses, limites é precisamente se envolver numa estética do si-mesmo que mantém uma relagao critica com as normas existentes. Numa conferéncia de 1978 intitulada “What Is Critique?” [0 que €a Critica’, Foucault escreve: “A critica asseguraria © desassujeitamento no curso do que poderiamos chamar, em uma palavra, de politica da verdade”.” Na introdugao de O uso dos prazeres, Foucault especifica essa pratica da estilizacio de si mesmo em relagio 3s normas quando deixa claro que a conduta moral nao é uma questio * Ver BUTLER, Judith. O que € critica? Lim ensaio sobre a virtude em Foucault. Tradugio de Gustavo Hetsmann Dalaqua. Cademu: de Evca ¢ Filosofia Potitia. n. 22, p, 159-179, 2015, “FOUCAULT, Michel. What Is Critique?. In: The Political, p. 191-211, aqui p. 194. Esse ensaio fbi escrito como conferéncia proferida na So. iedade Francesa de Filosofia em 27 de maio de 1978 posteriormente publicado em Bulletin de la Sovité Francaise de la Philosophie, v. 84, n. 2, P. 35-63, 1990, sure suTué RevaTan ASI MESIO 29 de se conformar as prescricdes estabelecidas por determinado cédigo, tampouco de interiorizar uma proibigio ou interdi¢0 primérias. Escreve cle: ara ser dita “moral” uma aco nao deve se reduzir 4 um ato ou a uma série de atos conformes a uma regra, lei ou valor. E verdade que toda a¢io moral comporta uma relaco ao real em que se efetua [..], € também uma cetta relago a si; essa relagao nao simplesmente “consciéneia de si”, mas constitui¢ao de si enquanto “sujeito moral”, na qual o individuo circunscreve a parte dele mesmo que constitui 0 ob- Jeto dessa pritica moral, define sua posigio em rela~ ‘io ao preceito que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valer4 como realizagio moral dele mesmo; e, para tal, age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, pde-se 3 prova, apertfeigoa-se, transforma-se. Nio existe ago moral particular que ndo se refira 4 unidade de uma conduta moral; nem conduta moral que no implique a constituigio de si mesmo como sujeito moral; nem tampouce consti- tuiclo do sujeite moral sem “modos de subjetivacio”, sem uma “ascética”” ou sem “praticas de si" que as apoiem. A agio moral é indissocivel dessas formas de atividades sobre si (UP, 37). Para Foucault, tanto como para Nietzsche, a moral reorganiza um impulso criativo. Nietzsche lamenta que a intetiorizagdo da moral acontega pela debilitagio da vontade, mesmo que, para ele, essa interiorizagio constitua “o ventre de acontecimentos ideais ¢ imaginosos” (GM, p. 76), o que incluitia, presumivelmente, seus proprios esctitos filoséficos, inclusive essa mesma descri¢io. Para Foucault, a moral é inventiva, requer inventivi- dade, ¢ além disso, como veremos adiante, tem um custo, No entanto, 0 “si-mesmo” engendrado pela moral nio é concebido como agente psiquico de autocensura. Desde 0 30 Fue Principio, a relagio que 0 “eu” vai assumir consigo mesmo, como vai se engendrar em resposta a uma injungio, como vai se formar ¢ que trabalho vai realizar sobre si mesmo ~ tudo isso é um desafio, quiga uma pergunta em aberto. A injungi0 forgs o ato de ctiar a si mesmo ou engendrar a si mesmo, ou seja, ela ndo age de maneira unilateral ou deterministica sobre o sujeito, Ela prepara o ambiente para a autocriago do sujeito, que sempre acontece em relago a um conjunto de normas impostas, A norma nio produz o sujeito como seu efeito necessirio, tampouco o sujeito é totalmente livre para desprezar a norma que inaugura sua reflexividade; o sujeito Juta invariavebmente com condigdes de vida que no poderia ter escolhido. Se nessa luta a capacidade de agio, ou melhor, a liberdade, funciona de alguma maneira, é dentro de um campo facilitador e limitante de restrigdes. Essa ago ética ndo € totalmente determinada nem radicalmente livre. Sua luta ou dilema primario devem ser produzidos por um mundo, mesmo que tenhamos de produzi-lo de alguma maneira. Essa Jura com as condigdes nao escolhidas da vida — uma aco — também € possivel, paradoxalmente, gracas 4 persisténcia dessa condigio primiria de falta de liberdade. Embora muitos criticos tenham afirmado que 2 visio sobre 0 sujeito proferida por Foucault ~e por outros pés-es- truturalistas ~ solapa a capacidade de realizar deliberacées éticas ¢ de fundamentar a ago humana, em seus escritos éticos Foucault recorre a ago e a deliberagio, a partir de outtas perspectivas, © oferece uma reformulagio das duas que merece séria consideragio, No iiltimo capitulo, analisarei com mais detalhes sua tentativa de fazer um relato de si mes- mo. Por ora, gostaria de propor uma pergunta mais geral: a postulacao de um sujeito que no fanda a si mesmo, ou seja, cujas condicdes de surgimento jamais poderio ser totalmente explicadas, destréi a possibilidade de responsabilidade e, em. particular, de relatar a si mesmo? Se for de fato verdade que somos, por assim dizer, di~ vididos, infundados ou incoerentes desde 0 principio, sera JUDITH BUTLER RELATAR ASI MESH a1 impossivel encontrar fundamentos para uma nogio de res~ ponsabilidade pessoal ou social? Argumentarei 0 contririo, mostrando como uma teoria da formagio do sujeito, que re- conhece os limites do conhecimento de si, pode sustentar uma concepgio da ética ¢, na verdade, da responsabilidade, Se 0 sujeito € opaco para si mesmo, nfo totalmente transiiicido e conhecivel para si mesino, cle niio esté autorizado a fazer o que Quer ou a ignorar suas obrigagdes para com os outros. Decerto © contririo também é verdade, A opacidade do sujeito pode ser uma consequéncia do fato de se conceber como ser relacional, cujas relagées primeiras ¢ primérias nem sempre podem ser apreendidas pelo conhecimento consciente. Momentos de des conhecimento sobre si mesmo tendem a surgit no contexto das relagdes com os outros, sugerindo que essas relagdes apelam a formas primérias de relacionalidade que nem sempre podem ser z ta e reflexiva, Se somos formados no contexto de relagdes que para nés se tornam parcialmente irrecuperiveis, entio essa opacidade parece estar embutida na icia da nossa condigio de seres formados em relagdes de dependéncia. Essa postulacdo de uma opacidade primiria ao si-mesmo que decorre de relacSes formativas tem uma implicagio espe~ cifica para uma atitude ética para com 0 outro. Com efeito, se justamente em virtude das relages para com os outros, que o sujeito € opaco para si mesmo, e se essas relacées para com 0s outros sio 0 cenirio da responsabilidade ética do su Jecito, entio se pode deduzir que é justamente em virtude da opacidade do sujeito para consigo que ele contrai e sustenta alguns de seus vinculos éticos mais importantes. No que resta deste capitulo, examinazei a teoria do él- timo Foucault a respcito da formaco do sujeito ¢ considerarei as limitagdes encontradas quando se tenta usicla para pensar © outro. Depois passarei para um relato pés-hegeliano do re- conhecimento que busca estabelecer as bases sociais para o ato de relatar a si mesmo. Nesse contexto, considerarei a critica de um modelo hegeliano do reconhecimento proposta por 32 rus Adriana Cavarero, filésofa feminista que se baseia na obra de Lévinas ¢ Arendt." No capitulo 2, falarei da psicandlise ¢ dos limites que 0 inconsciente impoe na reconstrugao narrativa de uma vida. Embora sejamos forcados a dar um relato de nossos varios si-mesmos, as condigdes estruturais em que o fazemos acabario impossibilitando uma tarefa tio completa. O corpo singular a que se refere uma narrativa no pode ser capturado por uma narrativa completa, no s6 porque o corpo tem uma histéria formativa que ¢ irrecupersivel para a reflexio, mas tam- bém porque os modos em que se formam as relagdes primérias produzem uma opacidade necesséria no nosso entendimento de 6s mesmos. O sujeito sempre faz um relato de si mesmo para © outro, seja inventado, seja existente, ¢ 0 outro estabelece a cena de interpelagéo como uma relagio ética mais primAria do gue 0 esforro reflexivo que o sujeito faz para rclatara si mesmo, Além disso, os termos usados para darmos um relato de nds mesmos, para nos fazer inteligiveis para nds e para os outros, no sio criados por nés: eles tém caréter social e estabelecem normas sociais, um domfnio de falta de liberdade ¢ de substi- tuibilidade em que nossas histérias “singulares” sio contadas. Nessa investigaco, uso de maneira eclética varios fi I6sofos ¢ tedricos criticos. Nem todos seus pontos de vista so compativeis entre si, © nio pretendo sintetiza-los aqui. NCAVARERO, Adriana. Relating Narratives: Storytelling and Selfhood, ‘Teadugao para o inglés de Paul A. Koetman. Londres: Routledge, 2000, Tu che mi guard ‘mi raconti. Milio: Giagiacomo Feltrineli, 1997 Vale comparar 0 texto de Cavarero nto 26 com Word of Selves, de Riley, ‘mas também com Oneself as Another, de Paul Ricur (Teaduedo para © inglés de Kathleen Blamey. Chicago: University of Chicago Press, 1992}; Soi-méme comme un autre (Paris: sicmesmo como outro. So Paulo: WMP Martins Fe como Cavarero, defende tanto a tociabilidade const ‘quanto sua capacidade de se apres as osdoiso fazem de maneiras diferentes. Riley trata da poesia lirica e do uso da linguagem ordin referencialidade JUDITH BUTLER RELATAR AS HESMO 33 Por mais que a sintese no seja meu objetivo, devo dizer que cada teoria sugere algo de importancia ética que deriva dos limites que condicionam qualquer esforgo que se faga para dar um relato de si mesmo, Partindo desse pressuposto, acredito gue © que geralmente consideramos como uma “falha” ética possa muito bem ter uma importincia e um valor ético que rinda nao foram corretamente determinados por aqueles que equiparam, de maneira muito apressada, o pés-estruturalismo com o niilismo moral. No capitulo 3, considero os esforcos diacrénicos e sin crénicos de estabelecer o surgimento do sujeito, incluindo as implicagSes éticas dessas descricdes da formagio do sujeito. Também estudo a contribui¢io de Adorno para a teoria da responsabilidade que pode conciliar as chamadas dimensies humanas ¢ inumanas das disposigdes éticas, cxaminando como a politica critica relaciona-se com a ética e, com efeito, com a moral que por vezes exige que o sujeito faca um relato de si mesmo em primeira pessoa. Espero mostrar que a moral ndo € um sintoma de suas condigdes sociais, tampouco um lugar de transcendéncia dessas condigses, mas que é essencial para determinar a acio a possibilidade de esperanga. Com a ajuda da autoerftica de Foucault, talvez seja possivel mostrar que a questio da ética surge precisa mente nos limites de nossos esquemas de inteligibilidade, lugar onde nos perguntamos o que significaria continuar um didlogo em que nao se pode assumir nenhuma base comum, onde nos encontramos, por assim dizer, nos limites do que conhecemos, mas onde ainda nos é exigido dar ¢ receber reconhecimento: a alguém que esté ali para ser interpelado € cuja interpelacio deve ser acolhida. Sujeitos foucaultianos No relato foucaultiano da constituigao de si, questio central em sua obra na década de 1980, 0s termos que possi- bilitam o reconhecimento de si sfo dados por um regime de verdade. Esses termos esto fora do sujeito até certo ponto, 34 ru mas também sio apresentados como as normas disponiveis, elas quais 0 reconhecimento de si acontece, de modo que © que posso “ser”, de maneira bem literal, é limitado de an~ temao por um regime de verdade que decide quais formas de ser serao reconheciveis e nfo reconheciveis, Embora esse regime decida de anvemio qual forma o reconhecimento pode assuumir, ele nao a restringe, Na verdade, “decidit” talver seja uma palavra muito forte, pois o regime de verdade fornece uum quadro para a cena de reconhecimento, delineando quem seri classificado como sujeito de reconhecimento e oferecen- do normas disponiveis para 0 ato de reconhecimento. Para Foucault, sempre haveré uma rela¢ao com esse regime, um modo de engendramento de si que acontece no contexto das hormas em questio e, especificamente, clabora umia resposta Para a pergunta sobre quem seri o “eu” em relagao a essas normas, Nese cenirio, nossas decisdes nio sio determinadas pelas normas, embora as normas apresentem o quadro ¢ 0 ponto de referéncia para quaisquer decisées que venhatnos a tomar. Isso ndo significa que dado regime de verdade estabe- lega um quadro invaridvel para o reconhecimento; significa apenas que é em relagio 2 esse quadro que 0 reconhecimento acontece, ou que as normas que gavernam 0 reconhecimento so contestadas e transformadas No entanto, Foucault no defende apenas que exista uma rela¢io com essas normas, mas também que qualquer relacdo com o regime de verdade ser4 ao mesmo tempo uma relacio comigo mesms. Uma operagio critica no pode acon- tecer sem essa dimensio reflexiva. Pér em questo um regime de verdade, quando é o regime que governa a subjetivacio, € por em questio a verdade de mim mesma e, com efeito, minha capacidade de dizer a verdade sobre mim mesma, de fazer um relato de mim mesma. Desse modo, se questiono o regime de verdade, ques- Hono também o regime pelo qual se atribuem o ser ¢ minha propria condicio ontolégica. A critica nio diz respeito ape- has a uma pratica social determinada ou a certo horizonte JUDITH BUTLER RELATARASI MESO 35 de inteligibilidade em que surgem as préticas e instituiges; ela também significa que sou questionada por mim mesma. Para Foucault, 0 questionamento de si torna-se consequéncia ética da critica, como ele deixa claro em “O que é a Critica?”. ‘Também resulta que esse tipo de questionamento de si envoive colocar-se em risco, colocar em perigo a propria possibilidade de reconhecimento por parte dos outros, uma vez que ques- tionar as normas de reconhecimento que governam o que eu poderia ser, perguntar o que elas deixam de fora e 0 que poderiam ser forcadas a abrigar, € mesmo que, em relagio a0 regime atual, correr o risco de nao ser reconhecido como sujeito, ou pelo menos suscitar as perguntas sobre quem sou (ou posso ser) ou se sou ou no reconhecivel. Essas questées implicam pelo menos dois tipos de per- gunta para a filosofia ética. Primeiro, quais so essas normas as quais se entrega meu préprio ser, que tm o poder de me estabelecer ou, com efeito, desestabelecer-me como sujeito reconhecivel? Segundo, onde esti e quem esse outro? A no- slo de outro pode incluir quadro de referéncia ¢ 0 horizonte normative que sustentam e conférem meu potencial de me tornar sujeito reconhecfvel? Parece correto criticar Foucault por nao ter explicitamente dado mais espaco para © outro na sua consideragio sobre a ética, Talvez isso se deva a0 fato de a cena difdica do si-mesmo ¢ do outro no poder descrever adequadamente o funcionamento social da normatividade que condiciona tanto a producio do sujeito como a troca intersubje- tiva. Se concluirmos que o fato de Foucault nio pensar o outro € decisivo, provavelmente teremos negligenciado o fato de que © proprio ser do si-mesmo é dependente nao s6 da cxisténcia do outro em sua singularidade (como teria dito Lévinas), mas também da dimensio social da normatividade que governa a cena de reconhecimento.” Essa dimensio social da normativi- Ver LEVINAS, Eminanvel. Othenuis than Being, or beyond Essence, Tradugso para oinglés de Alphonso Lingis. Haia: Martinus Nijhoff, 1981; Autremenc 36 rus dade precede e condiciona qualquer troca diddica, mesmo que parega que fagamos contato com essa esfera da normatividade precisamente no contexto dessas trocas imediatas. As normas pelas quais eu reconheco 0 outro ou a mim mesma nio sio s6 minhas. Elas funcionam uma vez que sio sociais e excedem cada troca diidica que condicionam, Sua sociabilidade, no entanto, nio pode ser entendida como totalidade estruturalista, tampouco como invariabilidade transcendental ou quase-transcendental. Sem davida, alguns argumentariam que para o reconhecimento ser possivel as normas jé devem existir, ¢ de fato ha alguma verdade nessa afirmacio. Também é verdade que certas priticas de reco~ nhecimento, alids, certas falhas na pritica de reconhecimento, marcam um lugar de ruptura no horizonte da normatividade ¢ implicitamente pedem pela instituigio de novas normas, pondo em questio 0 caréter dado do horizonte normativo prevalecente, © horizonte normativo no qual eu vejo o outro €, com efeito, no qual o outro me vé, me escuta, me conhece © me reconhece também é alvo de uma abertura critica, Sera indtil, portanto, diluir a nogio do outro na socia~ bilidade das normas c afirmar que o outro esté implicitamente presente nas normas pelas quais se confere o reconhecimento. As vezes a propria falta de reconhecimento do outro Provoca uma crise nas normas que governam o reconhecimento. See quando, na tentativa de conceder ou receber um reconheci- mento que ¢ frustrado repetidas vezes, eu ponho em questio 0 horizonte normativo em que o reconhecimento acontece, esse questionamento faz parte do desejo de reconhecimento, desejo que pode nfo ser satisfeito e cuja insatisfabilidade cs- tabelece um ponto critico de partida para o questionamento das normas disponiveis. Na visio de Foucault, essa abertura poe em questi 05 limites dos regimes de verdade estabelecidos, ¢, com isso, ion aiodel de esence. Faia: Martinus Nijhoff, 1974: Doravantecitado 1o texto como OB, com 2 paginagio relerindo-se 4 edicio em ingles. 2UDIT BUTLER RELATAR ASI MESO 37 por em risco o si-mesmo torns-se sinal de virtude.” O que ele nao diz € que, algumas vezes, pér em questio o regime de verdade pelo qual se estabelece minha propria verdade é um ato motivado pelo desejo de reconhecer 0 outro ou de ser reconhecido pelo outro. A impossibilidade de fazé-lo de acordo com as normas disponiveis me obriga a adotar uma relagao critica com essas normas. Para Foucault, o regime de verdade € posto em questo porque “ew” nio posso ou nao vou me reconhecer nos termos que me sio disponiveis. Em _um esforco para evitar ou superar os termos pelos quais a subjetivagio acontece, minha luta com as normas é minha propria luta, Com efeito, a pergunta de Foucault continua sendo “Quem eu posso ser, dado o regime de verdade que determina qual é minha ontologia?”. Ele nao perganta “Quem és tu?” nem traca um caminho no qual se poderia elaborar uma perspectiva critica sobre as normas partindo de uma dessas questdes. Antes de considerarmos as consequéncias dessa oclusio, quero propor uma questio final sobre Foucault, ainda que mais adiante eu retorne a ele, Ao fazera pergunta ética “Como devo tratar 0 outro?", prendo-me imediatamente em um campo de normatividade social, uma vez que 0 outro s6 aparece para mim, sé funciona para mim como outro, se hé um quadro de referéncia dentro do qual eu posso vé-lo ¢ apreendé-lo em sua separabilidade ¢ exterioridade. Desse modo, ainda que eu pense na rela~ sao ética como diadica ou pré-social, fico presa na esfera da normatividade ¢ na problemitica do poder quando coloco a questo ética em sua objetividade e simplicidade: “Como devo tratar-te?”. Se 0 “eu” © o “tu” devem existir previamente, € se é necessério um quadro normativo para esse surgimento ¢ encontro, entio a fingio das normes nio é s6 direcionar mi- nha conduta, mas também condicionar o possivel surgimento de um encontro entre mim mesmo ¢ outro. FOUCAULT. What Is Critique?, p. 192. 38 mus incase A perspectiva de primeira pessoa assumida pela questo ética, bem como a interpelagio direta a um “tu”, é desorientada por essa dependéncia fundamental da esfera ética a respeita do social. Quer 0 outro seja ou nao singular, ele é reconhecido © oferece reconhecimento através de um conjunto de normas que governam a reconhecibilidade. Portanto, considerando que 0 outro pode ser singular, alvez até radicalmente pessoal, as normas sio, até certo ponto, impessoais ¢ indiferentes, ¢ introduzem uma desorientagio de perspectiva para o sujeito no meio do reconhecimento como encontro. Se entendo que estou te conferindo reconhecimento, por exemplo, tomo com seriedade 0 fato de que esse reconhecimento vem de mim. Mas no momento em que percebo que os termos pelos quais confiro reconhecimento nao sio s6 meus, que nio fui eu quem os crion ou os arquitetou sozinha, sou, por assim dizer, despossuida pela Tinguagem que ofereco. Em certo sentido, submeto-mne a uma norma de reconhecimento quando te oferego reconhecimento, ou seja, o “eu” nio oferece 0 reconhecimento por conta propria Na verdade, parece que o “eu” est sujeito & norma no momento fem que faz a oferta, de modo que se torna instrumento da acio daquela norma. Assim, o “eu” parece invariavelmente usado pela norms na medida em que tenta usi-ta. Embora eu pense que estivesse tendo uma relagdo com o “tu”, descubro que estou Presa em uma luta com as normas. Mas poderia também ser verdade que eu nao estaria envolvida numa luta com as normas se nio fosse pelo desejo de oferecer reconhecimento a um tu? Como entendetnos esse desejo? Questdes pés-hegelianas ‘Sé posso reconhecer a mim mesmo reconhecido pelo outro ‘uma vez que 0 reconhecimento do outro me altera: esse desejo, ¢ ele que vibra no deseo. Jean-Luc Nancy, The Relentlessness of the Negative Talvez © exemplo que acabei de considerar seja equi- vocado, porque, como teria dito Hegel, o reconhecimento JUDITH BUTLER RELATAR A'S MESO 39 nao pode ser dado de mancira unilateral. No momento em que reconheco, sou potencialmente reconhecido, e a forma em que ofereco o reconhecimento é potencialmente dada para mim, Essa reciprocidade implicita aparece na Fenome- nologia do espirito quando, na secio intitulada “Dominagio e escravidio”, uma consciéncia de si percebe que nio pode ter um efeito unilateral sobre outra consciéncia de si. Como slo estruturalmente semelhantes, a agio de uma implica a ago da outra, A consciéncia de si aprende essa ligio primeiro no contexto da agressio para com o outro, num esforco vio para destruir a similaridade estructural entre as duas e recolocar-se em posi¢io soberana: “esse agir de uma tem 0 duplo sentido de ser tanto o sew agir como 0 agir da outa. {...] Cada uma vé a outra fazer 0 que ela faz; cada uma faz o que da outra exige ~ portanto faz somente 0 que faz enquanto a outra faz o mesm: De maneira semelhante, quando o reconhecimento torna-se possivel entre esses dois sujeitos competidores, ele jamais pode se esquivar da condicio estrutural da recipro cidade implicita. Podetfamos dizer, portanto, que nunca ofereco reconhecimento no sentido hegeliano como pura oferta, pois sou também reconhecida, pelo menos em termos potenciais ¢ estruturais, no momento no ato da oferta. Po- deriamos perguntar, como certamente o fez Lévinas acerca da posigio hegeliana, que tipo de didiva é essa que retorna ‘to rapido para mim, que nunca realmente sai das minhas mios, O reconhecimento, como argumenta Hegel, consiste em um ato reciproco pelo qual reconhego que o outro tem 42 mesma estrurura que eu? Reconheco que o outro também reconhece ou pode reconhecer essa mesmidade? Ou sera que aqui existe outro encontro com 2 alteridade que ¢ irredutivel “HEGEL, G. W. F. The Phenomenolegy of Spirit. Traduso para oinglés de A.V. Miller, Oxford: Oxford University Press, 1977. p. 111-112; Werke fn zwanzig Banden. Prankturt; Suhrkamp, 1980. v, 3 (Edigio brasileira: Fenomenologia do esprito. Tragucao de Paulo Meneses. 8. ed. Petrépolis: Vozes, 2013. p. 127] 40 uo & mesmidade? Se for este 0 caso, como devemos compreender essa alteridade? outro hegeliano esta sempre fora; pelo menos, ele € primeiro encontrado fora e s6 depois reconhecido como constitutive do sujeito, Isso levou alguns criticos de Hegel a concluir que o sujeito hegeliano efetua uma assimilagio completa do que ¢ exterior em um conjunto de caracteristi~ ‘as internas 20 si-mesmo, que seu gesto caracteristico & 0 da apropriacio, e seu estilo € o do imperialismo. Outras leituras de Hegel, no entanto, afirmam que a relagio com o outro & extitica," que 0 “eu” se encontra repetidamente fora de si mesmo € que nada pode pér um fim no surto repetido dessa exterioridade que, paradoxalmente, é minha exteriorida- de. Sempre sou, por assim dizer, outro para mim mesma, ¢ nao h4 um momento final em que aconteca meu retorno a mim mesma. Na verdade, se seguirmos a Fenomenologia do espirito, sow invariavelmente transformada pelos encontros que vivencio; 0 reconhecimento se torna o processo pelo qual eu me torno outro diferente de que fii e assim deixo de ser capaz de retornar ao que eu era, Desse modo, hi uma perda constitutiva no processo de reconhecimento, uma vez que 0 “eu” é transformado pelo ato de reconhecimento, Nem todo seu passado é apreendido ¢ conhecido no ato de reconhecimento} o ato altera a organizagao do passado € seu significado a0 mesmo tempo que transforma o presente de quem é reconhecido. © reconhecimento € um ato em que o “retorno a si mesmo” torna-se impossivel também por outra razio. O encontro com o outro realiza uma transformagio do si-mesino da qual nao hi retorno. No decorrer dessa troca “Ver ROTENSTREICH, Nathan. On the Eestatic Sources of the Concept of Alienation. In: Review of Metaphysics, 1963; NANCY, Jean-Luc. Hegel: The Restlessnes ofthe Negative. Tradugao para o ingles de Jason Smith e Steven Milles. Minneapolis: University of Minnesota Pres, 2002, em francés: Hegel: Linguiétde du négati. Paris: Hachewwe Littératures, 1997; MALABOU, Catherine, L’Avenir de Hegel: Plasticié, temporatité,dialectque, Paris: J. Vein, 1996, JUOITH BUTLER RELATAR ASI EMO a reconhece-se que 0 si-mesmo € 0 tipo de ser para o qual a permanéncia dentro de si prova-se impossivel. O si-mesmo obrigado a se comportar fora de si mesmo; descobre que a tinica maneira de se conhecer é pela mediagio que acontece fora de si, exterior a si, erm virtude de uma convengio ou norma que ele nio criow, na qual ndo pode discernir-se como autor ‘ou agente de sua propria construgio. Nesse sentido, entio, para o sujeito hegeliano do reconhecimento, a hesitacio entre perda ¢ éxtase € inevitdvel. A possibilidade do “eu”, de falar do “eu” € conhect-lo, reside numa perspectiva que desloca a erspectiva de primeira pessoa que ela condiciona, A perspectiva que tanto me condiciona como me de~ sorienta, partindo da mera possibilidade de minha propria perspectiva, nfo é redutivel 4 perspectiva do outro, pois esta também governa a possibilidade de eu reconhecer 0 outro e de 0 outro me reconhecer. No somos simples diades inde- pendentes, uma vez que nossa troca é condicionadae mediada pela linguagem, pelas convengées, pela sedimentacio das normas que sio de cardter social e que excedem a perspectiva daqueles envolvidos na troca. Entio como devemos entender a perspectiva impessoal pela qual nosso encontro pessoal é ocasionado desorientado? Embora Hegel seja acusado algumas vezes de entender © reconhecimento como uma estrutura diédice, percebemos que, na Fenomenologia, a lata por reconhecimento aio é a altima palavra. £ importante notar que essa luta, conforme representada na Fenomenologia, revela a impropriedade da diade como quadro de referéneia para entender a vida social. Afinal, o que resulta dessa cena é um sistema de costumes (Sittlichkeit), ¢ disso um relato social das normas pelas quais 0 reconhecimento reciproce pode ser sustentado de maneiras, mais estiveis do que suporia a luta de vida ou de morte ou 0 sistema de servidio. A troca diddica refere-se a um conjunto de normas que excede as perspectivas daqueles envolvidos na Inta pelo Teconhecimento. Quando perguntamos o que torna possivel 0 a rus ‘ser reconhecimento, descobrimos que nio pode ser simplesmente © outro capaz de me conhecer e me reconhecer como dotada de um talento ou uma capacidade especial, pois esse outro também teri de se basear em certos critérios, ainda que apenas implicitamente, para estabelecer 0 que serd ¢ nio seré reconhe- civel sobre o si-mesmo para todos, um quadro de referencia também para me ver ¢ julgar quem sou. Nesse sentido, 0 outro confére reconhecimento ~ ¢ resta-nos saber precisamente no gue isso consiste ~ primariamente em virtude de capacidades internas especiais para discernir quem eu posso ser, para ler meu rosto, Se meu rosto é de fato legivel, s6 chega a sé-lo porque entra em um quadro visual que condiciona sua legi~ bilidade. Se alguém € capaz de me “ler” enquanto outros nao conseguem, sera apenas porque aqueles tém talentos internos que faltam nestes? Ou seré que determinada pritica de leitura torna-se possivel em relagio a certos quadros e imagens que, com 0 tempo, produzem o que chamamos de “capacidade’ Por exemplo, se tivermos de responder eticamente a um rosto humano, primeiro tem de haver um quadro de referéncias para © humano que possa inclair qualquer némero de variagdes como instincias disponiveis. Mas, tendo em vista 0 quanto a Tepresentacao visual do “humano” é discutida, talvez pareca que nossa capacidade de responder a um rosto como rosto humano seja condicionada e mediada por quadros de referéncia variavelmente humanizadores e desumanizadores. A possibilidade de uma resposta ética 20 rosto, portanto, Tequer a normatividade do campo visual: ja existe no sé um guadro epistemoldgico dentro do qual 0 rosto aparece, mas também uma operacio de poder, uma ver que somente em virtude de certos tipos de disposigdes antropolégicas e quadros culturais determinado rosto pareceré ser um rosto humano para qualquer um de n6s."° Afinal, sob quais condigdes alguns “Para outta reflexio sobre 0 assunto, ver “Precarious Life", dime ca itulo do meu fiveo Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence, Londres: Verso, 2004. JUDITH BUTLER RELATAR A I MESO 43 individuos adquirem um rosto legivel e visivel, ¢ outros no? Ha uma linguagem que enguadra 0 encontro, e embutido nessa linguagem esti um conjunto de normas referentes a0 ‘que constituird ¢ ndo constiuird a reconhecibilidade. Esse © argumento de Foucault ¢, de certo modo, seu complemento 2 Hegel quando pergunta “O que posso me tornar, dada a ordem contemporanea do ser?”, Em “O que é a Critica?”, Foucault escreve: “O que ‘eu’ sou, ento, eu que pertenco a essa humanidade, talvez um fragmento dela, nesse momento, nesse instante de humanidade que esté sujeita a0 poder da verdade em geral e das verdades etn particular?”.” Ele entende que essa “ordem!” condiciona a possibilidade de seu devir, ¢ que um regime de verdade, em suas palavras, determina o que constituiré e nao constituird a verdade de seu si-mesmo, a verdade que ele oferece sobre si mesmo, a verdade pela qual ele poderia ser conhecido e tornar-se reconhecidamente humano, 0 relato que poderia dar de si mesmo. “Quem és?” Ti nido me conheces, insiste 0 anonimato. E agora? Leigh Gilmore, The Limits of Autobiography Embora a teoria social do reconhecimento insista no Papel das normas quando se trata de construir a inteligibilidade do sujeito, nés entramos em contato com elas principalmente Por meio de trocas imediatds ¢ vitais, nos modos pelos quais nos interpelam e nos pedem para responder a pergunta sobre quem somos ¢ qual deveria scr nossa relagio com os outros, Dado que essas normas agem sobre nés no contexto da inter- pelacio, o problema da singularidade pode servir como ponto de partida para entender as ocasides especificas de interpelagio pelas quais nos apropriamos dessas normas numa moral viva. ‘Numa linha de raciocinio levinasiana ~ embora talvez mais BOUCAULT, What ls Critique?, p. 191, 48 run decididamente arendtiana -, Adriana Cavarero argumenta que a pergunta a se fazer no é “o que” somos, como se a tarefa fosse apenas preencher o conteiido de nossa personalidade, A pergunta nao é primariamente reflexiva, uma pergunta que fazemos a nés mesmnos, como é para Foucault quando pergunta “O que posso me tornar?”. Para Cavarero, a propria estratura de interpelacdo pela qual a pergunta é feita nos da uma pista Para entender seu significado. A pergunta mais central para © reconhecimento € direta e voltada para 0 outro: “Quem és tu?” Essa pergunta pressupde que diante de nés existe um outro que no conhecemos e nao podemos aprender totalmente, alguém cujas unicidade ¢ nao substituibilidade impéem um limite ao modelo de reconhecimento reciproco oferecido no esquema hegeliano e, em termos mais gerais, possibilidade de conhecer 0 outro, Cavarero salienta o tipo de agio realizado por esse ato de fala e fandamenta sua opiniéo numa concepgio arendtiana do social, explorada por sua importincia ética. Para isso, ela cita A condigao humana, de Arendt: “A agio ¢ 0 discurso si0 ‘Go intimamente relacionados porque o ato primordial e espe~ cificamente humano deve conter, a0 mesmo tempo, resposta & pergunta que se faz a todo recém-chegado: ‘Quem és?" Bm Relating Narratives, Cavarero oferece uma aborda- gem radicalmente antinietzschiana a ética na qual, diz cla, a pergunta sobre “quem” abre a possibilidade do altruismo. Quando fala da “pergunta sobre quem”, ela nao se refere 3 pergunta “Quem fez isso a quem?”, ou seja, a pergunta da responsabilizagio moral estrita. Ao contrario, trata-se de uma pergunta que afitma que existe um outro que nio me é totalmente conhecido ou conhecivel. No capitulo 2 de seu “ARENDT, Hannah. The Human Condiion, Chicago: University of Chi- ago Press, 1958. p. 183. [Edigao brasileira: A condigao humana. Traducio de Roberto Raposo. 11. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2010. p. 223}, Citado parcialmente em CAVARERO. Relating Nanatives, . 20, As proximas referéncias 20 livro de Cavarero serio indicadas com © mimero das piginas disetamente no rexto. SIDI BUTLER RELATAR AS! MESO 45 livro, Cavarero argumenta que Arendt concentra-se numa politica do “quem” para estabelecer uma politica relacional, em que a exposisio ¢ a vulnerabilidade do outro criam para mim ums reivindicagio ética (p. 20-29). Em nitido contraste com a visio nietzschiana de que a vida esti essencialmente ligada a destruigéo ao softimento, Cavarero argumenta que somos seres que, por necessidade, tém sua vulnerabilidade e singularidade expestas aos outros, ¢ que nossa situacio politica consiste parcialmente em aprender a melhor maneira de manejar — ¢ honzat ~ essa exposic¢io constante ¢ necessiria. Em certo sentido, essa teoria do “fora” do sujeito radicaliza a tendéncia extitica da posigao hegeliana. Segundo Cavarero, cu. ndo sou, por assim dizer, um sujeito interior, fechado em si mesmo, solipsista, que poe questSes apenas para si mesmo. Bu existo em um sentido importante Para o tu ¢ em virtude do tu, Se perco as condigdes de in- terpelagio é porque no tenho um “cu” a quem interpelar, € assim também perco “eu mesma”, Para cla, s6 se pode contar uma autobiografia para o outro, ¢ 56 se pode fazer referéncia a um “eu” em relagio a um “tu”: sem o “tu”, minha propria narrativa torna-se impossivel, Para Cavarero, essa posi¢ao implica uma critica aos modos convencionais de entender a sociabilidade, ¢ nesse sentido ela inverte o progresso que vimos em Hegel. Enquanto a Fenomenologia do esplrito passa do cenazio da diade para a teoria social do ceconhecimento, para Cavarero € necessirio fandamentar 0 social no encontro diddico, Escreve ela: “tu” vem antes do nds, antes do plural vs e antes, de eles, Sintomaticamente, “tu” é um termo que nao figura muito bem nos desenvolvimento modernos € contemporineos da ética ¢ da politica, O “tu” é ignorado pelas doutrinas individualistas, pteocupadas demais em elogiar os direitos do eu, 0 “tu” é enco- berto por uma forma kantiana de ética que s6 é capaz de representar o eu que interpela a si mesmo como um “tu” conhecido. © “tu” também ndo encontra 46 uo +-shiorenieranomteeemei espaco nas escolas de pensamento as quais se opde 0 individualismo ~ na maioria das vezes, essas escolas mostram-se afetadas por um vicio moralista que, para evitar incorrer na decadéncia do eu, esquiva-se da con- tingéncia do t ¢ privilegia pronomes coletivos plu- ais. Com efeito, muitos movimentos revolucionsrios (que variam do comunismo tradicional 20 feminismo da irmandade) parecen compartilhar de um cédigo linguistico curioso baseado na moral intrinseca dos Pronomes. O nés é sempre positivo, o v6; € um aliado possivel, o eles tem o rosto de um antagonista, 0 eu 6 impréprio, ¢ 0 1 é, obviamente, supérfiuo (p. 90-91). Para Cavarero, 0 “eu” encontra nfo s6 este ou aque le atributo do outro, mas também 0 fato de esse outro ser fundamentalmente exposto, visivel, percebido, existente de mancira corporal ¢ necesséria no dominio da aparéncia. De certo modo, essa exposigo que eu sou constitu minha sin- gularidade, Por mais que eu queira, ndo posso me livrar dela, pois € uma caracteristica da minha corporalidade e, nesse sentido, da minha vida. Nio obstante, nio é algo que posso controlar. Poderiamos recorrer ao linguajar heideggeriano para explicar a visio de Cavarero e dizer que ninguém pode Ser exposto em meu lugar, ¢ por isso sou insubstituivel. Masa teoria social derivada de Hegel, na sua insisténcia em relagio a perspectiva impessoal da norma, contradiz isso ao estabelecer minha substituibilidade? Em relagio 4 norma, sou substituivel? No entanto, Cavarero argumenta que, como ser constituido corporalmente na esfera pablica, sou um ser exposto e singu- lar, ¢ isso faz parte da minha publicidade, talver até da minha sociabilidade, tanto quanto o faz a forma pela qual me tomno reconhecivel por obra da operagio das normas. © argumento de Cavarero tanto enfraquece a expli- cago nietzschiana da agressio ¢ da punicio como limita as reivindicagées que a sociabilidade hegeliana exerce sobre nos; ele também da um direcionamento para uma diferente AUDIT BUTLER RELATAR ASI HESMO a7 teoria do reconhecimento, & preciso fazer pelo menos duas cobservagdes aqui, A primeira tem a ver com nossa dependéncia fundamental do outro, o fato de que nio podemos existir sem interpelar 0 outro e sem sermos interpelados por ele, e que é impossivel nos livrarmos da nossa sociabilidade fundamental, por mais que queiramos. (Mesmo que Cavarero seja contra o uso do plural “nds”, veja que aqui recorro a ele precisamente porque no estou convencida de que devemos abandoné-lo.) A segunda observagio limita a primeira. Por mais que cada um de nds deseje o reconhecimento ¢ o exija, nds nio somos como © outro, ¢, da mesma maneira, nem tudo vale como reconhecimento. Embora eu tenha argumentado que ninguém pode reconhecer o outro apenas em virtude de habilidades ctiticas ou psicolégicas especiais e que as normas condicio- nam a possibilidade de reconhecimento, acontece que, na verdade, n6s nos sentimos mais reconhecidos de maneira apropriada por uns do que por outros. E essa diferenga nio pode ser explicada somente com 0 recurso a nocio de que @ norma funciona de maneira varidvel. Cavarero defende a irredutibilidade de cada um dos nossos seres, irredutibilidade que fica clara nas histérias distintas que temos de contar, de modo que qualquer tentativa de nos identificarmos totalmente com um “n6s" coletivo ser necessariamente um fracasso. Nas palavras de Cavarero: © que chamamos de ética altruista da relagio nfo dé suporte a empatia, Xidentificaglo ou a confusdes. Ao contririo, essa ética deseja um tu que seja verdadei- ramente um outro, na sua unicidade ¢ distingio. Por mais que tu sejas semelhante e consoante, diz essa ética, tua historia jamais ser minha histéria. Por mais, que nossas hist6rias de vida tenham peculiaridades semelhantes, eu continuo nao me reconhecendo em tie ainda menos no nd; coletivo (p. 92) Auunicidade do outro é exposta para mim, mas minha também é exposta para 0 outro, Isso no significa que sejamos 48, ro: © mesmno, mas apenas que estamos ligados um ao outro por aquilo que nos diferencia, a saber, nossa singularidade. A nogio de singulatidade costuma estar ligada a0 romantis- mo existencial e com uma pretensio de autenticidade, mas acredito que, precisamente por no ter contetido, minha singularidade tenha algumas propriedades em comum com a do outro ¢ por isso, em certa medida, seja um termo subs~ ‘ituivel. Em outras palavras, mesmo que Cavarero argumente que a singularidade estabelece um limite a substituibilidade, ela também argumenta que a singularidade no tem con- tetido definidor além da irredutibilidade da exposigio, de ser este corpo exposto a uma publicidade que é, varidvel ¢ alternadamente, intima ¢ andnima, Hegel analisa o “este” na Fenomenologia, apontando que ele nunca especifica sem generalizar, que 0 termo, em sua propria substituibilidade, destréi a especificidade que busca mostrar: “Quando digo: uma coisa singular, eu a enuncio antes como de todo uni- versal, pois uma coisa singular todas so; e igualmente, esta coisa ¢ tudo que se quiser. Determinando mais exatamente, como este pedazo de papel, nesse caso, todo e cada papel & um este pedago de papel, ¢ o que eu disse foi sempre e somente © universal”.” Uma vez que “este” fato de singularizar a exposi¢ao, que deriva da existéncia corporal, pode ser rei- terado continuamente, ele constitui uma condicio coletiva, caracterizando todos nés de maneira igual, no s6 restabe- lecendo o “nds”, mas também estabelecendo uma estrutura de substituibilidade no néicleo da singularidade, Seria possivel pensar que essa conclusio é muito alegre~ mente hegeliana, mas eu gostaria de questiond-la um pouco mais, pois acredito que ela tem consequéncias éticas para o problema de fazer um relato de si mesmo para o outro. Essa exposicio, por exemplo, nio pode ser narrada. Nao posso relaté-la, mesmo que ela esttuture qualquer relato que eu possa dar. As normas pelas quais busco me tornar reconhecivel nao "HEGEL, Fenomenologia de espiio, p. 91-92 JUDITH BUTLER RELATAR 8S ESMO 49 sio totalmente minhas: clas no nascem comigo; a tempora~ lidade de seu surgimento nao coincide com a temporalidade da minha vida. Entio, ao viver minha vida como um ser reconhecivel, vivo um vetor de temporalidades, uma das quais tem minha morte como término, mas a outra consiste na temporalidade social ¢ histérica das normas pelas quais 6 estabelecida e mantida minha reconhecibilidade. De certo modo, essas normas sio indiferentes para mim, para minha vida ¢ para minha morte. Como as normas surgem, transfor~ mamrse ¢ subsistem de acorde com uma temporalidade que nGo € a mesma da minha vida, e como, em virios aspectos, clas sustentam minha vida em sua inteligibilidade, a tem poralidade das normas interrompe © tempo da minha vida, Paradoxalmente, € essa interrupgo, essa desorientagio da perspectiva da minha vida, essa instincia de uma indiferenga na sociabilidade, que sustenta meu viver Foucault toca dramaticamente no assunto ema seu ensaio “Politics and the Study of Discourse”, quando escreve: “Sei tanto quanto qualquer pessoa como essa pesquisa pode ser ‘in grata’, como é irritante abordar discursos no por intermédio da consciéncia gentil, silenciosa ¢ intima que se expressa por eles, mas por intermédio de um conjunto obscuro de regras andnimas”. E prossegue: “Devo supor que, em meu discurso, © que est4 em jogo nao é minha prépria sobrevivencia? E que, ao falar, ndo exorcizo minha morte, mas a estabeleco; ou melhor, que reprimo toda interioridade ¢ concedo minha clocugao a um exterior que'é tio indiferente para minha vida, to neutro, que nio sabe da diferenca entre minha vida e minha morte?” Essas questdes retéricas assinalam uma sensagio de inevitabilidade frente ao fato de que a propria vida no pode ser redimida ou estendida pelo discurso (ainda que elogiem tacitamente o discurso como aquilo que, no fim, tem uma vida mais robusta que a nossa). Para aqueles que acreditam que a linguagem abriga uma subjetividade intima, cuja morte € superada também na linguagem, Foucault escreve: “no podem suportar — e € possivel compreendé-los. um pouco 50 rus harms — que Ibe digam: o discurso nio é a vida; 0 tempo dele nio € 0 nosso”. Desse modo, 0 relato que dou de mim mesma no dis- curso nunca expressa ou carrega totalmente esse si-mesmo vivente, Minhas palavras so levadas enquanto as digo, in- terrompidas pelo tempo de um discurso que nio é o mesmo tempo da minha vida. Essa “interrupeo” recusa a ideia de que 0 relato que dou é fandamentado apenas em mim, pois as estruturas indiferentes que permitem meu viver pertencem a uma sociabilidade que me excede. Com efeito, essa interrupgdo © essa despossessio da minha perspectiva como minha pode acontecer de diferentes maneiras. Hé uma norma cm atuagdo, invariavelmente so- cial, que condiciona o que sera ¢ 0 que no seré um relato reconhecivel, exemplificada no fato de que sou usada pela norma precisamente na medida em que a uso. E nao é possivel fazer nenhum relato de mim mesma que, em certa medida, no se conforme as normas que governam o humanamente reconhecivel ou negocie esses termos de alguma maneira, ‘com varios riscos originando-se dessa negociaco. Mas, como tentarei explicar adiante, também acontece que dow um relato de mim mesma para alguém, ¢ 0 destinatatio desse relato, real ou imaginério, também interrompe a sensagio de que esse relato € de fato meu. Se dou um relato de mim mesma para alguém, sou obrigada a revelé-lo, cedé-lo, dispor-me dele no momento em que o estabelego como meu. E impossivel fazer um relato de si mesmo fora da estrutura de interpe- lag3o, mesmo que o interpelado continue implicito e sem nome, anénimo, indefinido. A interpelagio é que define o relato que se faz de si mesmo, € este s6 se completa quando € efetivamente extraido ¢ expropriado do dominio daquilo FOUCAULT, Michel, Politics and the Study of Discourse. In: The Fou- Mas seo reconhecimento atwa para capturar ou prender o desejo, 0 Gue acontecen entio com 0 desejo de ser ¢ persistit no proprio ser? Espinosa assinala para nés o desejo de viver, de persistir, sobre 0 qual se constréi qualquer teoria do reconhecimen- to. E como os termos mediante os quais 0 reconhecimento fanciona podem parecer nos fixar e nos capturar, cles correm © risco de deter o descjo e pér fim a vida. Como resultado, € importante que a filosofia ética considere que qualquer teoria do reconhecimento tera de explicar 0 desejo de reco~ nhecimento, lembrando que o desejo estabelece os limites ¢ 2s condigGes para a operagio do reconhecimento em si, Na verdade, poderiamos dizer que, consoante Espinosa, o desejo livre 7: a ice da pscanatise. Tradugdo de Antonio Quinet. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 375] * Volto a falar dessa questio em “The Desire co Live: Spinoea’s Eihits under em KAHN, Victoria; SACCAMANO, Neil; COLL, Daniela (Org). Passions and Politics. Princeton: Prineeton University Press, 2006, 62 rus & de persistir atesta o reconhecimento, de modo que as formas de reconhecimento, ou melhor, as formas de juizo que bus- cam rechagar ou destruir esse desejo, o desejo pela prépria vida, solapam as proprias precondigées do reconhecimento. Limites do juizo Nio posso me impedir de pensar numa ertica que no tentaria julgar, mas procuraria fazer existir obra, unt livro, uma frase, uma ideta. {..) Wipticaria nto jutzos, mas sinais de vida. Michel Foucault, “O fildsof mascarado” O reconhecimento nao pode ser reduzido & formulagio € i emissio de juizos sobre os outros. Indiscutivelmente, ha situagdes éticas ¢ legais em que esses juizos devem ser feitos. No entanto, nao deverfamos concluir que a determinagio Jegal da culpa ou da inocéncia seja o mesmo que reconheci- mento social. Na verdade, 0 reconhecimento muitas vezes nos obriga a suspender 0 juizo para podermos aprender o outro. Muitas vezes nos baseamos ei jufzos de culpa ou inocéncia para resumir a vida do outro, confundindo postura ética com aquele que julga.* Em que medida a cena de reconhecimento é * Gilles Deleuze defende esse argumento de forma um pouco diferente fem seus esforgos para distinguir a moral (que tern a ver com 0 juiz0) da ética. Ele escreve, por exemple: “A moral é o sistema do jnizo. Do duplo juizo: julga-se e ¢ julgado, Quem tem afeigdo 3 moral tera afeigio 40 juizo. Julgar sempre implica uma autoridade superior a0 Ser, sempre implica ago superior 2 uma ontologia, Sempre iraplica algo mais que 0 Ser, o Bem que faz 0 Ser e 2 aco & o Bem superior ao Ser, 0 Uno. O valor expressa uma autoridade superior ao Ser. Portanto, os valores si0 © elemento fundamental do sistema de jufzo. Desse modo, sempre not referimos a uma autoridade superior ao Ser quando jalgamos. “Naética é totalmente diferente, nio julgamos. De certo modo, dizemos: fagamos o que fizermos, nunca teremos 0 que merecemos. Alguém diz ‘ou far alguma coisa e nJo a relacionamos com os valores, Perguntamos comp iss0 possivel? Como € possivel de maneita interna? Em outras JUDITH BUTLER RELATARA SI MESMO 63

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