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TUPIS, TAPUIAS E HISTORIADORES Estudos de Historia Indigena e do Indigenismo John M. Monteiro Departamento de Antropologia 1ECH-Unicamp _ Tese Apresentada para o Concurso de Livre Doeéncia Area de Etnologia, Subarea Historia Indigena e do Indigenismo Disciplinas HZ762 e HS119 Campinas, agosto de 2001 TMUNICAMP M7é4t-:* 1150053682/IFCH Intreducao Capitulo Capitulo 2 Capitulo 3 Capitulo 4 Capitulo 5 Capitulo 6 Capitulo 7 Capitulo 8 Capitulo 9 Capitulo 10 Referéncias Citada UNICAMP SUMARIO Redescobrindo os indios da América Portuguesa: Incursies pela Histéria Iudigena e do Indigenismo... As *Castas de Gentio” na América Portuguesa Quinhentista: Unidade, Diversidade e a Invengéo dos Indios no Brasil... ‘A Lingua Mais Usada na Costa do Bra Gramiticas, Vocabulérios e Catecismos em Linguas Nativas na América Portuguesa. Entre o Etnocidio ¢ a Etnogénes Hdentidades Indigenas Coloniais Bartolomeu Fernandes de Faria ¢ seus indios: Sal, Justica Social e Autoridade Régia Paulistas e Indios no Cédice Costa Matoso .. A Meméria das Aldeias de Sio Paul: Indios, Paulistas ¢ Portugueses em Arouche e Machado de Oliveira Entre o Gabinete ¢ 0 Sertao: Projetos Ctvilicatérios, Iuctusio e Exclusiv dos indios no Brasil Imperial As “Ragas” Indigenas no Pensamento Brasileiro do Império.. Tupis, Tapuias ¢ a Historia de Sao Paul Revisitando a Velha Questéo Guaiané... Ragas de Gigantes: | Mesticagem e Mitografia no Brasit e na India Portuguesa .. BWlioieca - PCH INTRODUCAO Redescobrindo os fndios da América Portuguesa Incursées pela Historia Indigena e do Indigenismo HA QUASE TRINTA ANOS, A HISTORIADORA NORTE-AMERICANA Karen Spalding chamou a atengio dos historiadores para um rico fildo praticamente inexplorado pelos estudiosos da ‘América espanhol2: 0 “indio colonial” (Spalding, 1972), Longe da figura obstinadamente conservadora, presa as amarras da tradi¢@o milenar, ¢ mais longe ainda do mero sobrevivente de uma cultura destrogada e empobrecida pela transformagao pés-conquista, este novo “indio colonial” passava a desempenhar um papel ativo e criativo diante dos desafios postos pelo avango dos espanhéis, Mesmo possuindo um horizonte cosmolégico arraigado de longa data, as comunidades nativas e suas liderangas politicas e espirituais dialogavam abertamente com os novos tempos, seja para assimilar ou para cejeitar algumas das suas caracteristicas Com seu artigo, Spalding idemtiticou um processo ja em curso na historiografia latino-americana ¢ latino-americanista da época, envolvendo 0 abrupto deslocamento dos holofotes dos colonizadores para os colonizados, De fato, segundo nos passos das obras pioneiras de Miguel Leon-Portilla © de Charles Gibson, toda uma geragdo buscou dimensionar, documentar e interpretar a experiéncia das populagdes nativas sob 0 dominio espanhol. Esta nova bibliografia, por seu turno, apoiava-se numa ampla tradigdo de estudos juridicos e institucionais, que tratava de forma densa ¢ sofisticada temas como ‘6 debate em tomo dos direitos dos espanhdis sobre terras, trabalhadores e almas indigenas, as formas especificas de exploragdo da mao-de-obra nativa e, vinculado a ‘esses problemas, a politica e legislagdo indigenistas de modo mais geral ' ' As obras pionsiras as quais me refiro so, obviamente, Miguet Leon-Portilla (1961) ¢ Charles Gibson (1964). Quanto 4 bibliografia sobre politica ¢ legislagao, destacam-se dois autores fundamentais: Silvio Zavala e Lewis Hanke Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 2 Outra caracteristica marcante dz nova historiografia voltada para a anélise da experiéneia indigena na América espanhola reside na exploragio de testemunhos nativos, abrangendo desde as crdnicas e as genealogias escritas por indios ¢ mestigos aos relatos mais prosaicos que figuram em registros territoriais, em documentos dos cabildos das comunidades indigenas, em testamentos, em processos da Inquisigao, em investigayoes criminais ¢ em litigios de todos os tipos, entre tantos outros. Uma quantidade impressionante de manuscritos em linguas nativas — nahuat!, quiché, quichua, aimaré mesmo guarani — permitiu aos historiadores atribufrem uma voz propria 20s indios.” Para além da eserita, as representagdes pictéricas elaboradas por artistas indigenas também tém alimentado uma interpretago mais compreensiva das maneiras pelas quais diferentes populagdes indigenas vivenciaram a conquista e seus dramaticos desdobramento: Imagens Cristalizadas Os estudos sobre a América portuguesa apresentamt um contraste radical com esse quadro. A ausénoia quase total de fontes textais © iconogrdficas produzidas por escritores e artistas indios por si so impde uma séria restrigdo aos historiadores. No entanto, o maior obsticulo impedindo o ingresso mais pleno de atores indigenas no paleo da historiogratia brasileira parece residir na resisténcia dos historiadores ao tema, considerado, desde hi muito, como algada exclusiva dos antropstogos. De fato, 0 isolamento dos indios no pensamento brasileiro, embora ja anunciado pelos primeiros escritores coloniais, comegou a ser construido de maneira mais definitiva a partir da elaboragdo inicial de uma historiografia nacional, em meados do século XIX. Uma primeira afirmagao nesse sentido foi impressa ha cerea de 150 anos pelo Visconde de Porto Seguro, Francisco Adolfo de Vamhagen, que escreveu a primeira Historia Geral do Brasil a partir de uma ampla e pioneira investigagdo em documentos do periodo colonial. Ao refletir sobre os indios, ditow Vambagen: “de tais povos na valor e 05 limites dos testemunhos indigenas coloniais na América do Sul slo esmiugados em Frank Salomon (1999). + A bibliografia relevance & demasiadamente extensa e especifica para wm detalhamento aqui. Uma pene considerivel (hoje com uma defasegem de 10 anos) é arrolada em John Monteiro ¢ Francisco Moscoso (1990). Vale @ pena destacar, no entanto, duas obras que considero fundamentals para ilustrar estas tendéacias. Serye Gruzinski (1988) e Jemes Lockhart (1992). : Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 3 infincia n&o ha historia: hd s6 etnografia” (Varnhagen, 1980 [1854], 1:30). Esta afirmado ecoava, sem divida, algumas visdes jé francamente em voga no Ocidente do século XIX, que desqualificavam os povos primitivos enquanto participantes de uma historia movida cada vez mais pelo avango da civilizagdo europtia ¢ os reduzia a meros objetos da ciéncia que, quando muito, podiam langar alguma luz sobre as origens da histéria da humanidade, como fosséis vivos de uma época muito remota, Varnhagen também tomava como ponto de partida a sugestiva, porém claramente pessimista, postura de Carl Friedrich Philippe von Martius que, poucos anos antes, havia vencido 0 concurso de “Como Escrever a Historia do Brasil’, patrocinado pelo recém-fundado Instituto Histérico © Geogrifico Brasileiro, Parcial as teorias sobre a decadéncia dos natives americanos, von Martius considerava os indios como populagdes que em breve deixariam de existir. © “atual indigena brasileiro”, segundo ele, “no € sento 0 residuo de uma muito antiga, posto que perdida historia” (Martius, 1982 [1845], 91-92). O pessimismo foi mais contundente num texto anterior, dé 1838, sobre “O Estado de Direito entre os ‘Autéctones dos Brasil”. Esereveu von Martius que “ndo ha divide: 0 americano esta prestes a desaparecer. Outros povos viverio quando aqueles infélizes do Novo Mundo jt dormirem 0 sono eterno” (Martius, 1982 {1838}. 70) Povos sem historia ¢ sem futuro; desta feita, instalava-se no bojo dos estudos praticamente fundadores da historia do pais, uma vertente pessimista com fortes desdobramentos na politica indigenista que se esbocava no Império, Cumpre lembrar, entretanto, que nio se tratava da dnica vertente, muito embora fosse tendéncia dominante. De fato, os indios foram objeto de um intenso debate que atravessou o século XIX, antepondo a postura de Vamhagen a uma vertente mais filantropico, inspireda sobretudo em José Bonificio, Se a tensio entre aqueles que promoviam a assimilagao os que patrocinavam a exclusio dos indios remetia aos conflites que brotaram enire agentes coloniais ja no século XVI, foi certamente aprofundada pelas mudangas institucionais introduzidas na década de 1840, com a implantagio das Diretorias Provinciais e com 0 apoio imperial a0 projeto missionario dos capuchinhos. Fosse nos elegantes recintos das academias e institutos ou no ambiente mais rude dos sertdes do Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 4 Império, tomnaram-se cada vez mais dcidas as disputas entre partidarios da “catequese & civilizagd0” e os defensores do afastamento € mesmo exterminio dos indios.* Mesmo assim, parecem prevalecer entre os historiadores brasileiros ainda hoje duas nogées fundamentais que foram estabelecidas pelos pioneiros da historiografia nacional. A primeira diz respeito & exclusto dos indios enquanto legitimos atores historicos: so, antes, do dominio da antropologia, mesmo porque # grande maioria dos historiadores considera que ndo possui as ferramentas analiticas para se chegar nesses povos Agrafos que, portanto, se mostram pouco visiveis enquanto sujeitos histéricos. A segunda nogdo é mais problematica ainda, por tratar os povos indigenas como populagdes em vias de desaparecimento, Alids, & uma abordagem minimamente compreensivel, diante do triste registro de guerras, epidemias, massacres ¢ assassinatos atinginda populacdes nativas ao longo dos ultimos 500 anos, Por estes motives, pelo menos até 2 década de 1980, a histéria dos indios no 1. Dois bons exemplos deste tipo Brasil resumia-se basicamente erdnica de sua extingd de abordagem, misturando um tom de dendincia com a pesquisa em fontes histéricas, s40 6s livros de John Hemming (sobretudo Red Gold, de 1978, que permanece a imica obra que busca apresentar de modo sistematico a experigncia de todas as sociedades indigenas da América portuguesa), ¢ de Carlos Moreira Neto (/nctios da Amazénia: de maioria a minoria). Vitimas da terrivel onda de destruigdo desencadcada pela expanso européia, sociedades antes vigorosas ¢ independentes foram radicalmente diminuidas ou simplesmente deixaram de existir ¢ seus rastros foram apagados. Um dos perigos destas abordagens € que investem numa imagem cristalizada — fossilizada, ditiam outros - dos indios, seja como habitantes de um passado longinquo ou de uma floresta distante. & esfera da sociabilidade nativa é aquela que esta totalmente externa a esfera colonial, em parte porque o recurso da “projegio etnografica” frequentemente isola a sociedade indigena no tempo ¢ no espago, mas também porque nas percepctes marcadas pela perspectiva de aculturagio, 0s indios assimilados ou + Ao comentar esta tensio persistente no pensamento brasileiro sobre a tematics indigena, Luis Casiro Faria (1995, 68-70), aponta para o interessante paralelo entre a célebre polémica Varnhagen-Jo20 Francisco Lisboa © os deseatendimentos posteriores entre proponentes do racismo cientifico © outras correntes, sobretudo a positivista. O contexto mais global destes debates e suas implicagdes para a Formulagio da politica e da legislagao indigenistas encontre-se esbogado em Manuela Carneiro da Cunha (19922, 133-154), Redescobrindo os indios da América Portuguesa 5 integrados sociedade que os envolve seriam, de alguma maneira, “menos” indios. Trata- se de um proceso paralelo & arqueologia brasileira que, por muitos anos, exaltava a antiga “Wadigao tupi-guarani”, porém desprezava a cerémica colonial como algo ‘empobrecide técnica e esteticamente pela mistura (Morales, 2000). De certo, a poderosa imagem dos indios como etemos prisioneiros de formagdes isoladas ¢ primitivas tem dificultado a compreenso dos mutiplos processos de transformagio émica que ajudatiam a explicar uma parte consideravel da historia social e cultural do pais. Novos Rumos Fste quadro vem mudando gragas ao esforgo crescente — sobretudo de antropélogos porém também de alguns historiadores, arquedlogos e linguistas — que tem surgido em anos recentes em elaborar aquilo que podemos chamar de uma “nova hist indigena”, Deve-se observar, de imediato, que 0 tema ndo € nada novo nem para a historiografia, que desde o século XIX enfocou o indio Tupi como matriz da nacionalidade, nem para a etnologia indigena. que construiu uma parte importante de sew edificio nos alicerces colocados por Alfred Métraux € por Florestan Fernandes, que se valeram das fontes escritas nos séculos XVI e XVII para elaborarem sofisticados modelos para as sociedades tupi-guaranis.° Mas as questdes postuladas a partir do final dos anos 1970 introduziram duas inovagdes importantes, uma prética ¢ outra, teérica. Surgiv, de fato, uma nova vertente de estudos que buscava unir as preocupagdes tedricas referentes & relagdo historia/antropologia com as demandas cada vez mais militantes de um emergente movimento indigena, que encontrava apoio em largos setores progressistas que renasciam numa frente ampla que encontrava cada vez mais espago frente a uma ditadura que lentamente se desmaterializava. ‘A reconfiguragao da nogio dos direitos indigenas enquanto direitos Aistdricoy ~ sobretudo territoriais - estimulou importantes estudos que buscavam nos documentos coloniais os fundamentos histéricos e juridicos das demandas atuais dos indios ou, pelo menos, dos seus defensores. De fato, figuram com certa proeminéncia entre os primeiros exemplos deste renovado interesse pela historia dos indios alguns dossiés e laudos 5 Uma breve discussto das obras antropoliyicas encontra-se em Viveiros de Castro (1984-85) Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 6 antropologicos que buscavam dar substncia as reivindicagdes de grupos tais como os Potiguara da Baia da Tmaigdo, os Xocd de Sergipe ¢ os Pataxé do sul da Bahia, entre outros. Neste sentido, o desenvolvimento de pesquisa nesta érea reproduzia um proceso similar desencadeado algumas décadas antes nos Estados Unidos, sobretudo a partir da promulgagao do indian Claims Act em 1946, quando muitos antropélogos comegaram a subsidiar reivindicagdes territoriais de grupos indigenas através de minuciosos levantamentos documentais (Faubion, 1993, 42-43). Cabe lembrar, ainda, que estes esforgos se desdobraram na fundagiio da revista Ethnohistory que, desde os anos 50, divuiga o lado académico dessa producio. Para varios antropélogos no Brasil, contuda, esta nova militincia politica do final dos anos 70 também proporcionou uma oportunidade para se repensar alguns pressupostes teoricos a respeito das sociedades indigenas. Marcada, de certo modo, pela divisdo entre uma tradigao americanista — na qual passou a predominar o estruturalismo sobretudo nos anos 70 — ¢ outra tradigdo, mais arraigada (desde os anos 50), voltada para ‘os estudos de contato interétnico®, a etnologia brasileira passava a integrar a seus repertérios as discussdes pos-estruturalistas de autores como Renato Rosaldo e Marshall Sahlins, entre outros, cujas abordagens davam um papel dindmico para a historia na discussdio das culturas, das identidades e das politicas indigenas.” Ao mesmo tempo, redescobria-se autores mais antizos, como Jan Vansina (1965), cujo uso de narrativas orais como fontes historicas mostrava-se um eaminho rico para se chegar as perspectivas nativas sobre o passado, Neste sentido, a utilizagao inovadora de documentos historicos & de teoria social, enriquecida por novas Jeituras de mito, ritual e narrativas orais como formas altemativas de discurso histérico, apresentava um roteiro bastante atraente para exploragdes em historias nativas, colocadas de forma instigante no plural. Ainda estamos cothendo 0s frutos deste esforgo coletivo, porém & possivel aferir alguns de seus pontos © Esta divisto, nem sempre muito clara, vem sendo explorada para demarcar posi¢des antag6nicas 1 anttopologia indigena contemporinea. Veja-se Oliveira (1998) € Viveiros de Castro (1995). 7 As obras mais significativas foram Rosaldo (1980) e Sahlins (1980 ¢ 1985) Uma coletinea muito interessante com exploragSes neste sentido com referéncia a sociedades sul-americanas € Jonathan Hil (1988). Redescobrindo os indios da América Portuguesa 7 mais fortes e algumas de suas limitagdes no nimero cada vez maior de publicagdes sobre a historia indigena.* A geragio de historiadores que vivenciou este mesmo periodo de mobilizagio politica de reorientagdo tedrica continuou a deixar de lado a temética indigena, talvez mais por resisténcia ao tema do que propriamente por falta de novos elementos, A principal tendéncia da historiografia brasileira na década de 1980 foi o progressivo abandono de marcos teéricos generalizantes, sobretudo de inspiragdo marxista, ¢ a crescente profissionatizagio do quadro de historiadores nas universidades, que fundamentavam seus trabalhos cada vez mais numa base mais sélida de pesquisa ‘empirica, Os estudos cotoniais, de tradigao antiga, tiveram uma espécie de renascimento neste periodo, com a exploragdo de arquivos antes inexplorados (como dos cartorios ¢ das dioceses) € com um nove aproveitamento dos ricos acervos portugueses, com certo destaque para os processos do Santo Oficio. O resultado foi uma verdadeira explosio de estudos sobre 0s escravos e a escravidio, sobre os cristios novos ¢ a Inquisigdo, sobre as mulheres, sobre 05 pobres, sobre os “desclassificados”, enfim sobre um vasto elenco de novas personagens que passaram a desfilar no palco da histéria brasileira, junto com novas perspectivas sobre a histéria social, demogréfica, econémica ¢ cultural. Mas se alguns esquecidos da histéria comegaram a saltar do siléneio dos arquivos para uma vida mais agitada nas novas monografias, os indios permaneceram basicamente esquecidos pelos historiadores, O indios entre a Histéria e a Antropologia Os estudos que compdem 0 corpo desta obra exploram uma ampla gama de temas ligados A historia dos indios no Brasil. Para comegar a discussio em torno dessa histéria, © primeiro texto volta para os inicios da colonizagio ou, pelo menos, quase ao inicio. Dividido em duas partes, © estudo aborda a obra de Gabriel Soares de Sousa em dois tempos, primciro no contexto da época em que foi eserita (final do século XVI) e, © A referéncia mais importante continua sendo Camiro da Cunha (1992), recentemente republicado con: algumas pequenas revis6es. Tembém hé de se destacar outras publicagées do Nucleo de Historia Indigena e do Indigenismo que apresentam discussdes muito ricas dentro desca vertente. entre ‘outros, Viveiros de Castro ¢ Cameiro da Cunka (1993) e Gallois (1993), este timo explorando diferentes _géneros narrativos dos indios Waidpi do Amapa de maueira muito inavadora Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 8 segundo, no contexto historiogréfico no qual apareceu a sua edigdo definitiva (meados do século XIX). Introduzido neste capitulo, um primeiro grande tema que perpassa o conjunto de estudos diz respeito a defasagem ¢ aos deslizamentos temporais que marcam as maneiras pelas quais 0 passado indigena tem sido pensado ao longo dos tltimos cinco séculos. O estudo sobre Gabriel Soares sugere que 0 panorama etnografico do Brasil no seu marco zero é produco de uma dupla refragdo: a defasagem entre 0 periodo do descobrimento e a produgdo de conhecimentos sisteméticos, por um lado e, por ouiro, uma segunda defasagem entre a produco de obras coloniais € sua efetiva publicagio ¢ circulagao, eventos muitas vezes separados por séculos Este movimento envolvendo a circulagao e a reapropriagdo de idéias e imagens em momentos muito distintos também marcou a trajetiria de um padro bipolar que condicionou as maneiras de perceber e interpretar passado indigena, constituindo um segundo grande tema que esta no centro de sarios capitulos. Inscrito inicialmente no bindmio TapwiaTupi, este padriio foi reciclado em virias conjunturas distintas, reaparecendo em outros pares de oposigiio, tais como bravio/manso, barbaro‘policiado ou selvagemeivilizado. Mas essas petvepches © interpretagdes ndo ficaram apenas nas divagagdes historiogrificas ou nos debates antropologicos em tomo da unidade € diversidade dos indios, pois tiveram um impacto profundo sobre a formulagdo de politicas que afetaram diretamente diferentes populagdes indigenas. Mais do que isso, também foram recicladas reapropriadas entre alguns segmentos indigenas, 0 que torna esta historia mais complicada ainda, © Capitulo 2, ao abordar as obras jesuiticas em linguas natives, aprofunda a nogao de que a construgio de modelos para compreender 0 universo indigena esta intrinsecamente ligada aos processos ¢ as experincias coloniais, bem como a interpretagdo desses processos ¢ experiéncias no periodo pés-colonial, O terceiro capitulo também avanga nessa direcdo, fornecendo alguns subsidios para caracterizar melhor os indios sob © dominio colonial, Este € 0 capitulo que mais se aproxima A “historia indigena” no sentido mais estrito da expresso, ao problematizar a produgdo das identidades nas manifestagles ¢ priticas sociais registradas na documentago colonial Mas o passado indigena também alimentou, de modo muito particular, a formagao de outras identidades coloniais ¢ as maneiras pelas quais se reconstituiu essas identidades Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 9 ‘em tempos posteriores. Os Capitulos 4, 5 e 6 exploram a construgio de uma identidade paulista em trés momentos diferentes. © estudo sobre o famoso régulo Bartolomeu Fernandes de Faria e seus capangas indigenas e mestigos permite adentrar 0 universo violento e ambiguo dos paulistas numa conjuntura de mudangas marcantes, diante de uma escravidao indigena que desmaterializava e de uma autoridade extema que se mostrava cada vez mais proxima. Em relagdo aos indios, os paulistas demarcavam a sua identidade pela dominagSo caracteristica do mando senhorial. Paradoxalmente, recoriam a marcadores indigenas para estabelecer a distinglo entre eles e os colonos de outras reeides e, sobretudo, dos portugueses: isso se manifestava no apenas por meio do uso da lingua geral, como também nos conteido simbdlicos dos ataques & autoridade da coroa e dos assassinatos praticados e apurados numa longa investigago criminal. Ja 0 Capitulo 5 enfoca esta mesma época do inicio do século XVIII através das lentes da meméria, comentando a extraordindria “Colegio das Noticias dos Primeiras Descobrimentos das Minas na América”, compitada pelo ouvidor-intelectual Caetano da Costa Matoso em 1752. Nesse documento, varios povoadores antigos rememoram os velhos bons tempos nos quais os paulistas se aventuravam pelos series e fornecem preciosos indicios para a compreensio dos jogos de identidade que orm distanciavam, ora aproximavam os paulistas de suas origens indigenas. No Capitulo 6, estas questées sao recontextualizadas nistas de José Arouche de Toledo Rendon ¢ José Joaquim por meio das obras indi Machado de Oliveira que, em suas respectivas propostas voltadas para a definigio de novas ditetrizes para a politica indigenista, langaram méo de uma analise historica, Este sexto capitulo, que estabelece uma ponte entre a Coldnia eo Império; introduz um outro conjunto de questdes que marcam os capitulos subsequentes. A mais importante destas diz respeito 4 relagdo entre as interpretagdes histéricas que genharam fOlego no decorter do século XIX ¢ as politicas referentes aos indios cnsaiadas nas diversas provineias da nova nagdo. Se 0 Capitulo 6 enfoca particularmente a Provincia de Sto Paulo, 0 Capitulo 7 expande essa perspectiva para varios outros casos, com uma certa anfase nas provincias de Minas Gerais ¢ Santa Catarina, Nesse capitulo, busca-se compreender o vai-vem de idéias ¢ experiéncias entre o gabinete ~ referénoia tanto a0 gabinete ciemtifico quanto ao politico ~ ¢ o sertdo, com 0 intuito esclarecer como as discussdes em torno dos indios durante 0 império no sé dialogavam explicitamente com Redescobrindo os Indios «a América Portuguesa 10 as experiéncias coloniais como também informariam de maneira significativa a modema politica indigenista a ser implantada ja no século XX. A relagdo entre o sertdo e o gabinete também se faz presente nos capitulos 8 e 9, 36 que introduzindo, para além da historia © dos historiadores, a antropologia © os antropélogos. © Capitulo 8 & construido em tomo da Exposigfio Antropologica de 1882, em certo sentido marcada pelo forte contraste entre o Tupi histérico © 0 Tapuia contemporineo, papel esse representado exemplarmente pelos Botocudos. No Capitulo 9, is da este mesmo contraste € estudado para o caso particular de Sdo Paulo nos anos ini Repiblica. Ao reinvocar 0 velho debate sobre se os Guaianas de Piratininga eram Tupis ou Tapuias, 0 estudo busca mostrar 0 complexo jogo entre a construgio de uma mitografia paulista ~ na qual os Tupi ocuparam um papel central ~ © a destruigdo dos Kaingang nos sertées que se tranformavam rapidamente em cafezais ¢ nas terras ue valorizavam da noite para o dia com a implantago das estradas de “desocupadas” ferro titimo capitulo aprofunda a questio das mitografias, confrontando dois autores que elaboraram numerosas obras sobre as remotas origens coloniais de dois conjuntos de populagdo “eugénicos”. Escrevendo na fronteira entre a histéria ¢ a antropologia ~ decerto no a mesma fronteira que s¢ reexplora hoje em dia - Alfredo Ellis Jr. em Sao Paulo e Alberto Cartos Germano da Silva Correia em Goa construiram duas “ragas de gigantes” a partir da incorporagio ou nao de elementos indigenas. Se a parte sobre Alfredo Ellis fecha um ciclo de estudos sobre historia ¢ identidade indigenas ¢ pautistas, a incurstio pela histéria da india portuguesa marca um novo rumo nas minhas pesquisas, que pretendem recuperar um eto perdido na histéria da expansdo portuguesa, trazendo questdes que muito podem nos ensinar sobre 0 passado brasileiro. Escritos em momentos diferentes e para finalidades distintas, alguns dos capitulos foram publicados em revistas e coleténeas especializadas no pais ¢ no exterior. O Capitulo 1 foi publicado apenas em inglés, ao paso que os capitulos 3, 6, 7 ¢ 10 siio inéditos. Capitulo 2 fez parte de um catalogo de exposigio publicado em Portugal. Os demais apareceram em revistas brasileiras, conforme se detalha no inicio de cada um deles. Todos eles sofreram revises, corregdes e acréscimos ~ sobretudo na forma de notas de rodapé — inclusive para garantir uma coeréncia maior entre eles. Também foi Redescobrindo os Indios da América Portuguesa 1 feita uma padronizagl0 estilistica ¢ formal, trazendo para o interior do texto as referencias bibliogréficas ¢ guardando as molas de rodapé para explicagdes complementares. Finalmente, no que diz respeito a questdes formais, cumpre esclarecer trés procedimentos hibridos que foram adotados. Primeiro, se as referencias a obras impressas remetem a uma bibliografia dnica compilada no final da obra, as informagdes sobre os manuscritos utilizados so. registradas em notas de rodapé. Segundo, a ortografia de nomes proprios e de citagdes de textos antigos — inclusive os impressos — foi atualizada, para facilitar a leitura, sempre levando em consideragio o risco de deturpar o sentido original dos textos. Em casos onde a ortografia antiga registrava alguma informagao que seria perdida ou deturpada na atualizagfio, como por exemplo em nomes étnicos, foi mantido o original. Terceiro, néo obedeci plenamente as normas vigentes para a grafia de nomes étnicos, até porque nado ha consenso em torno da grafia de etndnimos historicos. A referéncia a povos indigenas é feita no singular coletive com maiiiscula (os Tupi) ¢ as formas adjetivadas aparece com miniscula e acompanham 0 substantivo se € no plural (povo tupi, populagdes tupis) CAPITULO 1 As “Castas de Gentio” aa América Portuguesa Quinhentista Unidade, Diversidade e a Invengao dos Indios no Brasit’ (Os PORTUGUESES ALCANCARAM 0 LITORAL SUL-AMERICANO pela primeira vez em abril de 1500, porém foi apenas no iltimo quartel do século XVI que comegaram a produzir relatos sistematicos com o intuito de descrever e classificar as populagdes indigenas, Excetuande-se a suméria Histéria da provincia de Santa Cruz, de Pero Magalhdies Gandavo, impressa em Lisboa em 1576, € algumas cartas jesuiticas amplamente disseminadas na Europa em diversas linguas, 0s textos portugueses mais significativos permaneceram inéditos por séculos.* Tanto o rico tratado descritivo de Gabriel Soares de Sousa, considerado por muitos como o mais importante dos relatos quinhentistas, quanto os escritos do jesuita Fem’o Cardim circularam apenas em copias manuscritas ¢, provavelmente, s6 comecaram a ter um grande impacto a partir do século XIX. Ainda assim, 0 Tratado Descritivo ~ titulo posteriormente atribuido @ obra, na verdade constituida por dois textos distintos ~ de Soares de Sousa, bem como os Tratudos da Terra & Gente do Brasil, uma compilagdo da obra de Cardim, proporcionam claros indicios das percepgdes ¢ imagens acumuladas ao longo do século XVI pelos portugueses 2 Texto inédito ern portuguds, uma versdo anterior foi publicada na Hispanic American Historical Review, 80:4, nov. 2000, com o titulo “The Heathen Castes of Sixteenth-Century Portuguese America: Unity, Diversity, and the Invention of the Brazilian Indians". Trechos da primeira parte foram publicadas rng exo de divuigagio “A Descoberta dos indios”, D. O. Leirura, S20 Paulo, Ano 17, 00. 1, maio de 1999, suplemento 500 Anos de Brasil, pp. 6-T. Agradego a Manuela Carneiro da Cunha e Stuar: Schwartz, que comentaram a versio preliminar que Foi apresentada ma rcunido anual da Amiericas Historical Association, Janeiro de 2000, > Ao que consta, Géndavo era gramatico, tendo publicado um manual de ortografia en 1574, NBo se sabe muito sobre a sua estada no Brasil alguns autores duvidam que ele tenha mesmo colocado o pé ns “América. Sua Historia da Provincia de Santa Crus a que vilgarmente chamanos Brasil, impressa por ‘Antonio Gongalves com dedicaidria de Camdes, foi republicado junto com um manuscrito anterior, denominado “Tratado ¢e Tetra do Brasil” (Gandavo, 1980 (1576). Capitulo I: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 13 no que diz respeito a um universo indigena que se apresentava tio vasto ¢ variado quanto incompreensivel.? Este capitulo enfoca os escritos de Gabriel Soares de Sousa em dois momentos distintos: primeiro, dentro do contexto histérico do final do século XVI ¢, segundo, no contexto historiogrifico do século XEX, quando suas descrigées detalhadas e suas classificagdes esquematizadas foram absorvidas na qualidade de fatos etnograficos pelas primeiras geragdes de historiadores nacionais. Um dos problemas que isso apresenta reside na tendéncia dos historiadores projetarem para a data emblemdtica de 1500 — as vésperas do descobrimento ~ um retrato da diversidade indigena ¢ das relagées interétnicas que na verdade se consolidou mais tarde, j4 refletindo as profundas transformagdes que atingiram muitas das sociedades ao longo do fitoraf. Ainda assim, a semelhanga de outras tradigdes historiograficas nas Américas, tanto os relatos em si quanto a sua interpretago posterior pelos historiadores buscavam estabelecer uma imagem estética de sociedades pristinas, como se nfo tivessem sido atingidos pelo contate com os europeus. Ademais, esta abordagem tende a elidir 0 papel de atores e de unidades politicas indigenas em resposta 4 expansio européia, papel esse que foi de suma importancia para a articulagiio das configuragdes étnicas que na bibliografia convencional sempre aparecem como povos “originais”, atemporais e imutdveis, pelo menos até que o contato com os europeus levou a sua dilapidagdo e, em muitos casos , sua destruige por completo. Avangos recentes nos estudos etno-histérieos, no entanto, vém minando estas perspectivas arraigadas desde ha muito, introduzindo uma nova conjugagao entre pesquisa documenta! e perspectivas antropolégicas para produzir um renovado retrato das wvas dos atores indigenas que, apesar de todas as forgas contrarias, 2 4 obra do padre Cardim, Tratados da Terra e da Geme do Brasil, tuto esse atribuida no século XX, na verdade compreende tris textos distintos, Do Clima e Terra du Brasil e de afgumas coisas notdveis (que se avhumi na terra como nu mar (uma deserigao da flora ¢ fauna), Do Principio e Origem dos Indios a Brasil e de seus costumes, eloragdo e ceriménias (descrevendo os costumes ¢& diversidade dos indios), € a Narraiiva Fpistoler de na Viogem ¢ Missio Jesuitiea (am cevistro da prolengada viagem do visitador Jesuita Cristovao de Gouveia pelo Brasil entre 1583 e 1599). Os primeiros dois textos foram publicados em inglés por Samuel Purchas em 1625, porém a autoria foi atribuida erroneamente @ um: ouico jesuita. Sobre Cardi, ver a introduglo e notas de Ana Maria de Azevedo a edigdo mais recente (Cardim, 1997 (1583- ‘90)), bem como o excelente estudo de Charlotte de Castelnau-L'Estoite (2000) Capitulo 1; As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 14 conseguiram forjar espagos significatives na historia colonial, de modo que no é mais admissivel omiticlos do registro histérico.* Gabriel Soares de Sousa, Etnégrafo Em 1587, 0 senhor de engenho ¢ sertanista portugués Gabriel Soares de Sousa empreendeu a longa viagem de Salvador a Madri, com o intuito de granjear o apoio régio a seu projeto de devassar 0 vasto sertéo em busca de minas de prata. Para se credenciar junto & coroa, apresentou trés manuscritos ao Dom Cristovo de Moura, oferecendo informagdes preciosas e perspicazes sobre a terra, a gente ea historia das colénias portuguesas que brotavam na América.’ O primeiro texto, intitulado Roteiro Geral, com largus informagoes de toda a costa do Brasil, proporcionou uma descrigao sucinta do litoral desde a “terra dos Caribes”, a0 norte do rio Amazonas, até 0 estuario do Prata. O segundo € seguramente 0 mais imporinte texto € 0 Memorial ¢ Declaragdo das Grand uma desctigo pormenorizada da topografia, das plantas, da fauna e das populagdes sda Bahia de Todos os Santos, de sua fortilidudte e das notéveis partes que tent, nativas da Bahia, um texto to rico e evocativo em seus detalhes que € considerado por muitos como a maior obra sobre o Brasil escrita no século XVI." Finalmente, 0 terceiro texto constituiu-se muma pesada invectiva contra os jesuitas da Bahia, no qual se criticava ‘0 missionarios nao apenas pelas suas atividades supostamente gananciosas, mas também e sobretudo pela interferéneia dos padres no que tocava & mio-de-obra indigena, Bastante contrastante em relago aos outros textos, este alaque aos jesuitas proporciona uma visio mais clara dos contextos histérico ¢ politico nos quais Gabriel Soares de Sousa construiu ‘as suas impressées dos Tupinambé.” “ Uma étima discussdo desta questio com respeito ao Caribe encontra-se em Sued Batilo (1993). Vejase, também, Sider (1994), Boceara (1999) e Whitehead (1993a e 19830), todos enfocando o contexto de transformacio nas primeitas relagdes entre europeus ¢ indigenas em diferentes partes das Américas. Especificamente ao que diz respeito a0 Brasil, as novas erspectivas estto representadas em Carneiro da Cunka (1992p. 5 De acorde com Daurril Alden (19%, 87-88, 480}, D, Cristévao de Moura (1538-1613) eve um papel de relevo nesta fase inicial da Unite Ibérica, eomo “an ignoble Portugese quisiong in Philip's pay”. © por exemplo, Rodrigues (1979, 439) refere-se aos textos como “a enciclopédia do século XVI, 0 riaior livro que se eserevex sobre o Brasil dos quinhentos” 7 Serafim Leite, S.J, 0 mais importante historiador jesuita do Brasil, desenterrou uma copia deste documentos no arquivo da ordlem em Roma a publicou sob o titulo “Capisulos de Gabriet Soares de Sousa Capitulo I: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 15 Se 08 relatos de Soares de Sousa tém sido amplamente utilizados desde 0 século XIX na consolidago de uma tradigdéo de estudos tupis no Brasil, séo relativamente poucos os estudos sobre © autor propriamente dito ou sobre as condigdes nas quais ele conduziu as suas observagdes. A bem da verdade, pouco se sabe da vida do autor slém daquilo que se encontra em seus escritos, acrescidos do testamento que ele redigiu em 1584, posteriormente reproduzide por Francisco Adolfo de Varnhagen em sua edigdo critica do texto.’ Nascido em Portugal em data ignorada pelos historiadores, Gabriel Soares de Sousa partiu para o além-mar no inicio de 1569, possivelmente com destino as cobigadas minas de Monomotapa, na Africa Oriental, integrando a poderosa frota comandada por Francisco Barreto, antigo govemnador da india, que pretendia expulsar os mugulmanos daquela regio e tomar posse das minas.’ Nao se sabe exatamente porque resolveu desembarcar em Salvador quando a frota fez escala, 20 invés de seguir para o Estado da india, destino de outros escritores de talento contemporineos seus. Junto com seu info Jofo Coelho de Sousa, Gabriel Soares de Sousa se radicou no Brasil, estabelecendo um engenho no rio Jiquiriga, proximo a Jaguaripe, uma zona agucareira em franca expansdo ao sul do Recdncavo. Depois de receber algumas cartas geogrificas junto com amostras de pedras preciosas provenientes do sertio, objetos estes Iegados pelo seu falecido irmao, Gabriel Soares resolveu partir para a corte filipina em 1586 em busca de favores e mercés. Enquanto aguardava audiéncia, concluiu os textos sobre Brasil, os quais certamente ajudaram ele a atingir seu objetivo principal de assegurar concessies para procurar € eventualmente explorar minas de prata no sertdo, recebendo em 1590 a nomeagao de Capitio-mor ¢ Governador da Conquista © Descobrimento do Rio Sao Francisco. Ao assumir este novo cargo, voltou a América na urca flamenga Abrado, que buscava uma carga de agicar ¢ pau brasil. A embercagio naufragou na barra do rio contra os Padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil” (Soares de Sousa, 1940 [1587)}, seguindo ‘o conselho do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Leite, no entanto, editou este documento um pouco a ccontragosto, conforme se pode inferir do prefécio, onde ele rotula 0 texte como “o documento mais antijesuiticg” que se esereven sobre 0 Brasil. Deve-se observar, ainda, que 0 exemplar do Arquivo do Jesvitas no é o original, sendo uma copia alias enriquecida pelas respostas escritas por uma comissio de padres a cada “capitulo” ¢ intercaladas ao text. * Utliza aqui e edigao de 1971, com 0 texto estabelecide e anotado por Francisco Adolfo de ‘Varnhagen. Foi esta bascada na edicdo de 1851, considerada como a mais correta, Vale dizer que esta obra se ressente de uma nova edigio critica, algo na linha do bom trabalho executado por Ana Maria de Azevedo com os textos de Cardim. Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 16 ‘Vazabarris, no Sergipe, ¢ grande parte dos equipamentos foi perdida no desastre. Ao chegar em Salvador apés uma boa caminhada, Soares de Sousa reorganizou a expedicao gragas ao patrocinio do govemnador D. Francisco de Sousa e logo partiu para o sertao do Sio Francisco, Contudo, as minas que jé haviem se mostrado tdo inatingiveis para seu irméo e outros exploradores nao foram alcangadas. Gabriel Soares de Sousa faleceu pouco depois da partida da expedigdo, quando o grupo jé se encontraya fundo no sertio, junto as cabeceiras do rio Paraguagu. A sua ossada foi remetida a Salvador para ser enterrada na igreja beneditina sob uma ldpide que rezava “Aqui jaz um pecador”. ‘As verses relatando a morte de Soares de Sousa sho discrepantes, porém apontam para a converséncia entre fato ¢ fantasia, o que ajuda a entender © contexto que informava o texto que ele escreveu sobre os indios da Bahia. De acordo com o frei Vicente do Salvador, Soares de Sousa faleceu préximo ao lugar onde havia morrido seu irm&o, apés cair doente “por as Aguas serem tuins e os mantimentos piores, que eram cobras e lagattos” (Salvador, 1982 [1627], 262-263}. Outro eseritor, Pedro Barbosa Leal, fomeceu uma versio alternativa, sublinhando outros perigos do sertdo. Certa noite, ectodiu “uma grande pendéncia” entre o “gentio manso ¢ o do sertdio”, recém introduzido a0 acampamento, Procurando apaziguar as partes, Soares de Sousa “saiu de sua barraca e a golpes de espada, maltratou a uns € a outros”, 0 que redundou na fuga de todos os indios da expedigdo, deixando os exploradores sem eira nem beira no miolo daquele “deserto”. Todos teriam mortido, salvo um mineiro pritico, Marcos Ferreira, que contou a historia.” Sem entrar no mérito de sua veracidade, pode-se afirmar que este relato revela 0 sentido duplo da expedigdo, que aliava interesses mineradores ¢ escravizadores, o que iria permanecer como uma das principais caracteristicas das expedigdes para 0 sertéo por muitos anos." Assim, a economia acucareira, o sertanismo e a escravidio indigena proporcionaram o contexto para a elaboragio do Roleiro e do Memorial de Gabriel Soares de Sousa. Com certeza, estes textos refletem a longa convivéncia entre 0 autor e os indios, durante as suas experiéneias de senhor de engenho e de sertanista, atividades ° Sobce a expediglo de Barreto, ver Newitt (1995, 56-57), 2 Bas versbes sto resumidas em Franco (1954, 397-398) " Sobre estas expedigdes, ver Monteiro (1994a), sobretudo capitulo 2. Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 17 complementares nesta época em que a base do trabalho escravo era composta de indios egressos dos sertdes circunvizinhos.'* Gabriel Soares também conhecia os integrantes nativos dos aldeamentos do Recéncavo, que figuravam entre os auxiliares que acompanthavam este portugues em suas jomadas para o sertdo € que proporcionavam uma fonte de mo-de-obra na fain agucareira. Neste sentido, as informagdes historicas descritivas apresentadas neste relato foram produzidas neste contexto colonial, sendo que 0 proprios “informantes” do autor eram “indios coloniais”, por assim dizer. O autor tomou o cuidado de explicitar isto, baseando-se nas “informagdes que se tém tomado dos indios muito antigos...” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 299). Isto ¢ significative quando se considera que grande parte do relato sobre os indios Tupinambé foi escrito em tom de meméria, como se a integridade e a independéncia deste povo fossem algo j4 do passado, De fato, um dos principais objetivos discursives do autor foi exatamente o de justificar a dominagao portuguesa, colocando-a numa sequéncia histérica de ciclos de conquista, a comegar pela mais antiga “casta de gentio”, os Tapuia. Num passado remoto, os Tapuia “foram langados fora da terra da Bahia e da vizinhanga thamado Tupinaé, “que desceu do do mar por outro gentio seu contrério”, um grupo tu sertdo, A fama da fartura da terra ¢ mar desta provincia”. Apés muitas geragdes, “chegando a noticia dos tupinambas a grossura e fertilidade desta terra”, este novo grupo invadiu as terras dos Tupinaé, “destruindo-Ihes suas aldeias ¢ rogas, matando aos que lhe faziam rosto, sem perdoarem a ninguém, até que os langaram fora das vizinhangas do mar”. Ao concluit este capitulo do Memorial, Soares de Sousa observou: “[A}ssim foram [os tupinambés} possuidores desta provincia da Bahia muitos anos, fazendo guerra a seus contririos com muito esforgo, até a vinda dos portugueses a ela, dos quais tupinambés ¢ tupinads se tém tomado esta informagao, em cuja memoria andam estas historias de sgeragtio em geracdo” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 299-300). Derrotados, parecia restar 08 Tupinambés a meméria de sua antiga grandeza.'* "= © cootexto historico deste periodo vem muito bem detathado ¢ documentedo em Schwartz (0988, capituios 2 € 3). 'S pode-se dizer, é claro, que Gabriel Soares buscava apenas elaborar uma sequéncia historica de conquistas na qual 8 dominagSo portuguesa se encaixava de modo armonioso. Mas a ascensio dos ‘Tupinambé no litoral baiano na verdade proporciona um dos eventos mais significativos da historia pré- ‘colonial do Brasil, ao coincidir com a emergéncia de outros grupos tupis © guaranis ao longo do fitoral Capitulo 1: As “Castas de Gentio" da América Portuguesa 18 ‘Ao tratar dos indios em seu texto, a primeira tarefa que enfrentava Gabriel Soares de Sousa foi o de conferir algum sentido a intrigante sociodiversidade que tomiava 0 litoral brasileiro tfo dificil para deserever."’ A exemplo de varios outros autores quinhentistas, Soares de Sousa estabeleceu de inicio uma grande divisfo entre duas categorias maiores, a de Tupi e Tapuia. Se os Tupinamba da Bahia, descritos em detalhes por vezes sabotosos, proporcionaram o modelo bisico para a discussao da sociedade tupi, mostrava-se bem mais vaga 2 caracterizagio dos Tapuia. “Como os tapuias so tantos & estdo tao divididos em bandos, costumes e linguagem, para se poder dizer deles muito, era de propésito e devagar tomar grandes informagdes de suas divisdes, vida e costumes, mas, pois ao presente no possivel...” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 338). Fiando-se basicamente naquilo que seus informantes tupis Ihes passavam, escritores coloniais como Gabriel Soares costumavam projetar os grupos tapuias como a antitese da soviedade tupinamba, portanto descrevendo-os quase sempre em termos negativos. ‘Ainda assim, em sua descri¢to dos Aimoré no Roteiro geral, 0 autor introduziu uma variante interessante, sugerindo que as diferengas basicas na vida € nos costumes desses indios possuiam fundamentos historicos: Descendem estes aimorés de outras gentios a que chamam tapuias, dos quais nas tempos de atris se ausentaram certos casais, ¢ foram-se para umay serras mut dsperas, fugindo «wn desburare, em que ox puseram seus contrdrios, onde residirum muitos anos sent verem outra gente; ¢ 08 que destes descenderam, vierum a perder a inguagem e fizeram owtra nova que se nav enrende de nenhuma outra nagao do gentio de todo este Estado do Brasil (Soares de Sousa, 1971 [1587], 78-79). Se o autor foi bem sucedido ao montar uma descrigo bastante detalhada dos costumes barbaros dos Aimoré, Soares de Sousa reconhecia as limitagdes de sua apresentagio, inclusive deslizando préximo A classificago destes indios como nao allintico, Sobre a “expansio” ou “migragdo” tpi, debate ali antigo na eiologia ¢ arqueotogia brasileiras, vero anigo de Frareisco Noell (1996), com comentarios de Eduardo Viveiros de Castro © Greg Urban, 1 Este dilems foi compartithado pelo Gabriel Soares de Sousa com virios outros excrtores quinkentistes, que buscavam conciliar aquito cue de fato testemunharam com as imagens dos poves do Nova Mundo que cireulavam nos textos e gravuras da época. Veja-se a discusslo em Carneiro da Cunha (1990), oferecendo um estimulante contraste entre as visdes francesa e portuguesa Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 19 humanos, uma vez que “[cJomem estes selvagens came humana por mantimento, o que nao tem 0 outro gentio que a ndo com sendo por vinganga de suas brigas ¢ antiguidade de seus édios”, Concluindo, o autor sublinhava a diferenga desta “casta” das demais, por serem “tao esquivos inimigos de todo 0 género humano” (Soares de Sousa, 1971 [1587]. 79-80). ‘Ao estabelecer categorias bisicas para diferentes segmentos da populagdo indigena, Gabriel Soares buscou varias referéncias distintas. A principal abordagem residia no contraste com as instituigdes europeias, descrevendo as sociedades indigenas a partir daquilo que Ihes falteva, Langando mao de uma frase amplamente disseminada pelo gramético Pero de Magathiies Gandavo na década anterior, Gabriel Soares apresentava uma variants para o ditado sem /2, sem lei, sem rei, Apesar de impressionado pela “graga” da lingua tupi, 0 autor observou que “faitam-thes tés letras do ABC, que so F, L, R grande ou dobrado”. A primeira letra, “I, referia-se & f&, indicando que os Tupinamba néo possuiam religido alguma e, pior ainda, “nem os nascidos entre os cristios ¢ doutrinados pelos padres da Companhia tém fé em Deus Nosso Senhor” Continuando, Soares de Sousa explicou que eles no pronuneiavam a letra “I” porque “nfo tem lei alguma que guardar” e que “cada um faz lei @ seu modo e ao som da sua vontade”. Finalmente, a auséncia da letra “r° denotava a falta de um “rei que os reja” € que nao “obedecem a ninguém, nem ao pai o filho, nem o filho 20 pai” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 302). Oscilando entre a inconstincia e a insubordinagao, 0s indios de Gabriel Soares de Sousa mostravam-se pouco promissores enquanto siiditos, apesar de que, paradoxalmente, era nessa condigdo que a maioria dos indios que ele conheceu vivia. Para além do binémio Tupi-Tapuia, surgiram outros pares de oposigao com a fungdo de introduzir alguma ordem numa situagdo as vezes confusa e imprevisivel. O contexto colonial produziu outras distingdes importantes, como a oposigio entre povoado € sertio, 0 que representava mais do que uma referéncia espacial pois, na verdade, delimitava dois universos distintos, um ordenado pela lei ¢ pelo governo, o outro livre de tais constrangimentos — sem fé, nem lei, nem rei, enfim, Pode-se vislumbrar um bom 'S Uma ceinterpretagdo bastante criativa da Vinconstancie”, vista como muito mais do que uma simples projegio européla, encontra-se em Viveiras de Castro (1992), Capitulo 1; As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 20 exemplo desta diferenga na experiéncia dos sertanistas mamelucos, que transitavam entre ‘a ordem rigida do povoado colonial ¢ a liberdade desenfreada do sertio."® A distingo entre indios cristfos e gentios proporcionava uma outra divisto crucial, ainda que eivada de implicagdes ambiguas, Para além de suas origens biblicas, o termo gentio, com efeito, ganhou forga como uma categoria intermediaria no campo da diversidade religiosa que adquiria novos contomos com a expansio européia, Os portugueses quinhentistas usavam este termo tanto para descrever hinduistas no subcontinente asiatico, com suas elaboradas iradigdes religiosas, quanto para designar populagdes afticanas ¢ sul-americanas, consideradas como destituidas de qualquer religido. Apés um certo tempo, no entanto, 0 contesto seméntico passou a sublinhar « distingo entre natives convertidos para o calolicismo aqueles nao convertidos ~ gentios neste caso seriam convertides potenciais, por assim dizer. Em seu Roteiro geral, Gabriel Soares de Sousa expressou esta distingio, apesar de se mostrar umn tanto cético quanto a elicacia da converse, No capitulo sobre Garcia d’Avila, o autor fez mengio da aldeia jesuitica de Santo Antonio, habitada por ~indios forros tupinambas” que, a despeito da sua conversfo, “é este yentio tio barbaro que até hoje nio ha nenhum que viva como cristo” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 70). Esta observa¢do ganhou um reforgo mais agudo nos Capiinites contra os Padres Se os primeiros missionarios tiveram um éxito fenomenal na conversio, batizando “aos mithares cada dia, este éxito se mostrou ilusério, uma vez que “assim com facitidade se faziam cristdos, com ela mesma se tornavam a suas gentilidades, ¢ se foram todos para 0 sertio, fugindo da sua doutrina”(Soares de Sousa, 1940 [1587], 370). Embora no tenha feito mengao explicita no texto, € possivel que Gabriet Soares estivesse se referindo aos movimentos sociorreligiosos organizados por indios Tupinamba egressos das aldeias missiondrias ou fugidos dos empreendimentos coloniais, com destaque para a Santidade que grassava na época nos amredores de Jaguaripe, proxima portanto ao engenho do proprio Gabriel Soares.'” Mas 0 autor certamente também conhecia outras formas de resistencia — 0 que ele considerava uma propriedade natural dos indios © nao algo © Vejese, por exemplo, as declragSes do mameluco Tomacaiina perante 0 visitedor do Santo Oficio, em Vaintas (1997). O mesmo autor {raz uma abordagem bastante inovadora dos mamnelucos em cobia anterior (Vainfas, 1995, capitulo 6) Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 21 vineulado a condi¢do colonial — inclusive as migragSes em massa tais como aquela descrita por Anchieta na mesma década de 1580, registrada mediante a fala de um principal nao fugimos Vamo-nos, vamo-nos antes que venkum estes portugueses (. da Igreja nem de tua companhia porque, se tu quiseres ir conosco, viveremos contigo no meio desse mate ou sertéo ... Mas estes portugueses ndo nos deixam estar quietos, e se (u vés que to poucos que aqui andam entre nis tomam: nossos irmios, que podemos esperar, quando os mais vierem, sendo que ands, ¢ as mulheres ¢ filhos fardo escravos? (Carta de Anchieta apud Fernandes, 1948, 36). Se os Tupinamba representavam, até certo ponte, uma categoria unificadora do ponto de vista linguistica e cultural, coube aos escritores quinhentistas explicar as pronunciadas disputas entre diferentes segmentos dos Tupi. Ao inteoduzir os Potiguar no Roteiro geral, Gabriel Soares encontrou dificuldades em tragar alguma distingao entre eles e 08 Tupinambé: “Falam a lingua dos tupinambas e caetés; tém os mesmos costumes e gentilidades .. Cantam, bailam, comem e bebem pela ordem dos tupinambas” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 54-55). Mais adiante, ao diferenciar os Tupiniquim dos Tupinambé, o autor introduziu um interessante paralelo: “E ainda que sto contririos os tupiniquins dos tupinambés, no hé entre eles na lingua e costumes mais diferenca da que tam os moradores de Lisboa dos da Beira’ (Soares de Sousa, 1971 [1587], 88). 34 no ‘Memorial, a0 retomar a descrigo dos Tupinaé, Gabriel Soares acrescentou uma ligeira alteragdo no paralelo, declarando que a lingua deles era to diferente da dos Tupinamba quanto a diferenga entre Douro ¢ Minho Lisboa, ou seja, os Tupinamba falavam um dialeto mais polido. Ao aprofundar sua explicagdo deste paradoxo de afinidade e diferenga, 0 autor especulou que “pelo nome tdo semelhante destas duas castas de gentio se parece bem claro que antigamente foi esta genie toda uma, como dizem os indios antigos desta nag3o [Tupinambd]". © motivo da divisto é que “tém-se por to contrarios infas (1992) proporciona a anise mais penetrante deste movimento, que também & 0 objeto ‘de um ertigo recente (Metcalf, 1999), cujo objetiva € inserir a santidade tum contexto mais ample de ~ catolicismo folk messianico” Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 22 uns dos outros que se comem aos bocados, e no cansam de se matarem em guetras, que continuamente tem” (Soares de Sousa, 1971 [1587}, 332-333). Cabe um breve comentirio sobre 0 uso do termo “casta” para descrever os diferentes grupos indigenas. Varios textos quinhentistas classificavam as populagdes do litoral sul-americano como “castas” distintas, uma apropriagdo direta da terminologia. cempregada ao longo da costa sul-asiitica e amplamente disseminada através de relatos to antigos quanto os de Duarte Barbosa e Tomé Pires."* Ao que parece, esta literatura oriental no era estranha a Soares de Sousa, mesmo porque em certa altura ele estabelece entre 0 uso do fumo entre os amerindios e o habito de mascar uma comparagdo expli folhas de bétwla na india (Soares de Sousa, 1971 [1587], 317), Se varios escritores portugueses referiam-se explicitamente as varnas hindus 20 discutir a casta, 0 termo adquiria um sentido bem mais genérico, servindo para identificar sociedades ou segmentos sociais enquanto unidades discretas, cada qual possuindo marcadores culturais préprios, frequentemente enfeixados na nogdo de “usos ¢ costumes” * No interior do espaco colonial, contudo, os limites e as caracteristicas especificas dessas unidades distintas c, muitas vezes, endogdmicas enfrentaram 0 constante desafio da propria expansio européia, & medida que soldados, comerciantes, colonos e funciondrios do estado se envolveram cada vez mais com as sociedades nativas, seja através de aliangas ‘matrimoniais ou de arranjos menos formais. | Escrito numa conjuntura de transformagdes ripidas.e decisivas, as quais afetaram de modo particular as populagdes indigenas mais proximas aos estabelecimentos coloniais, 0 relato de Gabriel Soares de Sousa sobre os Tupinamba justapds imagens da grandeza pré-colonial com aquelas da decomposigdo pos-conquista.”” Estribadas nos 'S Sobre estas fontes, veja-se a obra erudita de Lach (1965) e 0 excelente ensaio de Curto (1997). 2% origem @ a variabilidade do termo “casta” constituem aspectos de um longo debate a antropologia e historiografia referemtes a india, Assim como os modemos, os antigos escrtores portugueses geralmente oscilavam entre duss concepcdes distinas para a organizac$o socal hinduista. O conceito de Yarna, estabelecido ema varios textos sagrados, divide a sociedade em quatro grandes grupos, ordenados fhierarquicamente’ brimanes (sacerdotes), Kshatriyas (guerreiros), vaishyas (comerciantes) e shudras (trabalhadores). © conceito de jati, por outro lado, refere-se & urupos de filiaeo, abrangendo um sem- inimero de “castas” (definidas por categorias de oficio, de grupos tribais e étnicos, entre outras) que, com o advento dos mugulmanos e dos euopeus se toraram cada vez mais fechadas e imoveis, Ver, entre outros, Bayly (1999), sobretudo capitules 1 € 3, e Perez (1997). ® Apresento uma discussio mais detathada destas transformagles em Monteiro (1999) Capttula }: As “Castas de Gentio" da América Portuguesa 23 relatos de indios aldeados, escravizados e cristianizados, as descrigées nos fornecem uma auto-imagem dos Tupinamba através da lente da situagio colonial que os oprimia e, lentamente, os destruia. Ainda assim, estabelecendo um exemplo que seria seguido por etndgrafos num futuro distante, texto do Memoria! buscava abstrair os Tupinamba deste contexto, como se 0s europeus nao os tivessem encontrado. Entretanto, 0 relato contém muitos elementos que sugerem que este “modo de ser® dos Tupinambé, apesar de reafirmar tradigdes e estruturas pré-coloniais, também tinha algo a ver com as condigdes concretas da expansto colonial, Assim, a deserisio da vida e dos costumes dos indios foi © produto de construgdes coloniais nao apenas dos portugueses como também dos Tupinamba. Em certo sentido, 0 Memorial destoava de outros relatos que buscavam tha projetar a situacio de primeiro contato, situagdo essa que, segundo Neil Whitehead, mais a ver com a “auto-representagdo dos ‘descobridores”” ou conquistadores do que com a efetiva interagdo envolvendo 0 autor-observador ¢ seus objetos nativos.”' Se ¢ verdade que Soares de Sousa se apresentava como descobridor de sertBes desconhécides ¢ da almejada riqueza mineral do mesmo interior, seus objetos natives configuravam, antes de tudo, indios que ja haviam experimentado 0 contato com os Europeus por um bom tempo, © proprio autor, visivelmente constrangido ao tratar da presenga de muitos mamelucos entre os Tupinamba, acabou reconhecendo que “ainda que parega fora de propésito 0 que se contém neste capitulo, pareceu decente eserever aqui o que nele se contém, para se melhor entender a natureza ¢ condigdo dos tupinambas... (Soares de Sousa, 1971 [1587], 331). Uma leitura mais atenta deste mesmo capitulo, no entanto, evoca um constante receio que 0s escritores coloniais cultivavam no que diz respeito mestigagem: Gabriel Soares parece ter se preocupado menos com o impacto que os brancos e seus deseendentes mesticos poderiam ter sobre os Tupinambé ¢ mais com a terrivel possibilidade de que os brancos também podiam tomar-se selvagens. ‘Ao buscar, deste modo, melhor entender a natureza ¢ condi¢ao dos Tupinam! Gabriel Soares implicitamente captou a necessidade de se reconhecer que as sociedades indigenas encontravam-se imbricadas numa trama hist6rica, na qual a determinagio de 2 Sobre a questi da representagdo destes “pristine contacts with wispoiled indigenes", ver Whitehead (1993, 53). E imeressente observar que este tipo de representag#o permaneceu como tema constante na iteratura e iconografia do contato nos séculos a seguir Capitulo 1; As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 24 identidades especificas se mostrava tho flexivel quanto variavel.”” Os Potiguar, Tupiniquim, Tememind e Tupinaé todos eram Tupinamba num certo sentido, porém no contexto colonial, nitidamente ndo o eram, Neste sentido, para se entender este “Brasil indigena”, € preciso antes rever a tendéncia seguida por sucessivas geragbes de historiadores e de antropdlogos que buscaram isolar, essencializar ¢ congelar populagdes, indigenas ema etnias fixas, como se 0 quadro de diferengas étnicas que se conhece hoje existisse antes do descobrimento — ou da invengdo — dos indios. Tao demorado quanto intrincado, o processo inicial de invengo de um Brasil indigena envolveu a criagio de um amplo repertorio de nomes étnicos ¢ de categorias sociais que buscava classificar tornar compreensivel 0 rico caleidoscépio de linguas culturas antes desconhecidas pelos europeus. Mais do que isso, 0 quadro produzido passou a condicionar as propcias relagdes politicas entre europeus ¢ nativos, nao apenas na medida em que fornecia a base para a elaboragdo de uma legislagao indigenista, mas também porque esbogava um conjunto de representagdes ¢ de expectativas sobre as quais se pautavam esias relagdes, Neste sentido, as novas denominagies espelhavam nfo apenas os desejos e as projeges dos europeus, como também os ajustes € as aspiragbes de diferentes populagdes nativas que buscavam lidar — cada qual @ sua maneira ~ com os novos desafios postos pelo avango do dominio colonial A Reinvengio dos Tupi: Gabriel Soares de Sousa no Século XIX Apesar do grande interesse que poderia ter suscitado na época em que foi elaborada, a obra de Gabriel Soares de Sousa permaneceu inédita por mais de duzentos anos. Ainda assim, a exemplo de tantos outras tratados deseritivos € histéricos escritos em portugués sobre 0 Brasil durante 0 periodo colonial, os textos de Soares de Sousa circularam em cépias manuscritas, sendo que diferentes trechos foram parafraseados ou mesmo plagiados por escritores que o sucederam. Ao preparar a edigdo definitiva desta obra no século XIX, Francisco Adolfo de Varnhagen chegou a identificar 17 cépias ® Sobre o contexto colonial para a formacio das identidades, ver 0 artige instigante de Sider 0994), Capitulo 1: As “Castas de Gentio" da América Portuguesa 25 distintas em varias bibliotecas e arquivos na Europa, em acervos piblicos e privados.* De fato, para além dos relatos publicados em varias linguas européias orientados para um piblico nao lusofono, a tnica obra sobre o Brasil a ser editada em portugués durante 0 sécuto XVI foi a Historia da provincia de Sama Cruz, de Pero Magalhies Gandavo, impressa em 1576, Esta auséncia de publicagdes destoava de outras situagdes coloniais, como a da América Espanhola ou mesmo a dos portugueses na Asia, que haviam disponibilizado aos leitores europeus uma quantidade consideravel de obras impressas, englobando narrativas de conquista e crénicas politicas, bem como descrigdes minuciosas dos povos ¢ costumes do Oriente. Relegada ao esquecimento, a obra de Soares de Sousa reapareceu nos primeiros anos do século XIX. inicialmente como parte da vasta ¢ eclética colegio de obras raras & inéditas, organizada pelo frei Veloso e impressa na famosa casa editorial do Arco do Cego em Lisboa. Incompleta, esta primeira edigao também deixou de atribuir a autoria a Gabriel Soares. A primeira edigao completa de uma cépia dos manuscritos existentes apareceu em 1825, publicada pela Real Academia das Ciéncias de Lisboa, como parte de seu projeto ambicioso de compilar narrativas de viagem ¢ outros relatos numa ampla coleg&o sobre as posses ultramarinas portuguesas, inclusive aquela recém separada da metrépole. Adotando o titulo de Noticias do Brasil, a edigao da Academia foi tio mal feita que moveu o entio jovem historiador paulista Francisco Adolfo de Varnhagen a escrever um longo e pioneiro exercicio de critica histérica, 0 que ndo apenas confirmou a autoria de Gabriel Soares como também apontou para a premente necessidade de uma nova edig&o critica e anotada, cotejando criteriosamente as diferentes copias manuscritas existentes.* CO interesse de Varnhagen pelos textos de Gabriel Soares foi muito além desse mero exercicio académico. Como membro de destaque do Instituto Historico ¢ Geogratico Brasileiro, fundado em 1838, ‘Varnhagen situava-se na linha de frente de uma geragdo de intelectuais e estadistas que enfrentava a tarefa de inaugurar uma tradigio 2 De acordo com Varnhagen, dentre os varios autores que wtilizaram partes do relato de Gabriel Soares para elaborar suas proprias obras, eneontram-se Pedro de Mariz, Frei Vicente do Salvador, Simio de ‘Vasconcelos, S.J. ¢ Frei Anténio Jaboatdo (Soares de Sousa, 1971 (1587, 13). Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 26 historica nacional, Como parte deste ambicioso projeto coletivo, a Revista Trimestral do Instituto trazia muitos relatos coloniais inéditos, com certa énfuse nas descrigdes de populagdes indigenas, sobretudo os Tupi da Costa. * Com certeza, um dos mais arduos desafios residia na descoberta, recuperagao € edigiio de textos que esbogavam um pano de fundo histérico ¢ etnogrifico para os primérdios da civilizagio brasileira, textos estes em sua maioria soterrados em baixo de camadas de papéis ¢ de poeira em instituigdes situadas na Europa, Com 0 intuito de reverter a pesada imagem de uma sociedade escravista atrasada, precariamente civilizada ¢ profundamente miscigenada, os membros do Instituto buscaram conciliar as origens ‘americanas com os principios civilizadores que guiavam os estados-nagio do século XIX Na falta de ruinas espetaculares de antigas civilizagSes — problema que foi debatido em algumas das reunides do Instituto ~ ¢ enfrentando um conflito acirrado com as populagdes indigenas contempordneas, a geragdo das clites que atingia a maroridade junto com 0 préprio Imperador comegot a esbogar uma mitografia nacional que colocava ‘os nobres, valentes ¢, sobretudo, extintos Tupi no centro do paleo. ‘A Revista do Instituto nao foi o Unico drgio impresso a empreender esta tarefa, pois muitos relatos copiados em arquivos e bibliotccas em Lisboa, Evora, Madri, Viena & Paris encontraram vazio nas varias revistas literdrias ¢ politicas que agitavam a vida intelectual da jovem naglo, Nesie mesmo periodo, o desenvolvimento de um conhecimento etnogrifico acompanhava uma emergente literatura voltada para temas fundacionais: assim, poetas e¢ romancistas ancoravam sua obra indianista numa familiaridade com a etnografia, 20 mesmo tempo em que ecoavam as percepgdes ¢ temas aprofundados por historiadores e outros estudiosos. A bem da verdade, varios escritores transitavam entre 0s diferentes géneros fiecionais e académicos; basta recordar que os principals poetas indianistas também se destacaram como historiadores ¢ eindgrafos, Esta ® Este exercicio pioneita foi publicado pela Academia de Cigncias de Lisboa em 1839 com 0 titulo de Reflerdes Criticas sobre o Escrito do Séeulo XIV fie. XVI] impresso com o titulo de Noticras do Brasil. Cf. Rodrigues (1979, 436) 2 Na verdade, alguns dos documentos “celonisis” consttuiram exemplos de forjicagdo escritos no proprio século XIX, como no caso do relsto supostamente elaborado por Miguel Ayres de Maldonado, esmascarado pelo trabalho detetivesco de José de Souza Martins (1996), Capitulo I: As “Castas de Gentio" da América Portuguesa 27 mesma preeupagio com uma base documental sélida tomava-se evidente na obra pioneira de Varnhagen, a Histérta Geral do Brasil, cuja edigiio em maltiplos volumes comegou em 1854.7 Se a Hist6ria Geral sepresentava o primeiro grande compéndio em portugués sobre a historia do pais, ela teve precedentes estrangeitos significativos, sobremdo a Hostory of Brasil de Robert Southey e as obras de Ferdinand Denis. Ambos esses autores utilizaram diferentes versoes manuscritas da descrigao que Gabriel Soares de Sousa Sobre este assunta, ver Capitulo 8, abaixo. O contexto gera para este debate ¢ suas implicagdes para a politica e legislagio indigenista esta minuciosamente exposto em Carneiro da Cunha (1992) Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 30 recebendo a extrema ungio de um padre capucho, antes de ser levado pelo mar para sempre. Os Tapuia, por seu tumo, situavam-se no pélo oposto, apesar das abundantes evidéncias histéricas que mostravam uma realidade mais ambigua, Retratados no mais das vezes como inimigos e nfo como aliados — dos portugueses, bem entendido — representavam 0 traigoeiro selvagem, obsticulo no caminho da civilizago, muito distinto do nobre guerreiro que acabou se submetendo ao dominio colonial. Se esta ultima opgdo teria custado os Tupi a sua existéncia enquanto povo, a resisténcia ¢ recusa dos Tapuia acabaram garantindo a sua sobrevivéncia em pleno século XIX, mesmo tendo enfrentado brutais politicas visando 0 seu exterminio, Vamhagen e outros historiadores traduziam as ligdes da historia num discurso que condenava os grupos indigenas contemporaneos, sobretudo os Botocudos no leste, os Kaingang no sul e varios grupos jé do Brasil central. Desta feita, estes grupos adquiriram um duplo estigma: primeiro, como o anti-Tupi nos textos historicos e, segundo, como obstaculos & civilizagao pelos padrdes da época Se a tendéncia predominante estabeleceu um nitido contraste entre o nobre Tupi, ancestrais primordiais dos moderns brasileiros, e 0s grupos ind{genas contempordneos, representados em termos negativos, Varnhagen destoava um pouco ao tragar semelhangas entre os guerreitos tupinambas, com suas caracteristicas traigoeiras ¢ vingativas, € sua contrapartida nfo-tupi do séoulo XIX. Pare tanto, sua leitura dos textos de Gabriel Soares de Sousa foi instrumental, como se pode perceber em seus “comentérios”, que transitavam livremente entre 0 século XVI o XIX, Pare Varnhagen, o relato de Gabriel Soares confirmava aquilo que considerava ser o cardter covarde de todos os povos indigenas, 0 que justificava as represélias violentas por parte de colonos e de autoridades, politica essa sancionada pelo histeriador em varias ocasides. Comprimindo as distancias no tempo e no espago, Varnhagen tomou o exemplo dos Tupinamba para lembrar aos Ieitores que “[é] 0 que ainda sucede com os dos nossos sertdes, Os bugres recebem presentes de ferrinhos que no ano seguinte enviam contra o benfeitor mui agugados, nas pontas de suas flechas; ou assassinam aqueles que, depois de Ihes fazer presentes, neles confiam” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 386, n. 246) Exibido pela primeira vez num salon parisiense em 1883, O Citimo Tamoio fax part da coleso permanente da Pinacoteca do Estado de Sto Paulo, Em sua andlise da literatura indianista, Graga (1998) Capitulo J: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 31 Em suas notas ao texto de Gabriel Soares, Vamhagen oscilava entre as observagibes sébrias ¢ neutras que se esperaria de um cientista da época e os comentirios tendenciosos de alguém buscando desqualificar os indios enquanto terriveis selvagens. Até certo ponto, esta oscilagiio refletia o proprio texto do autor quinhentista que, em sua minuciosa dissecgfio de todos os aspectos da sociedade tupinambé, também alternava centre uma profunda admiragiio e uma certa suspeigdo. Varnhagen tinha plena consciéncia da enorme contribuigio que 0 texto trazia para a etnologia de sua época ¢ chamou a atengdo cometamente para varias informagdes importantes, como aquelas constantes dos capitulos sobre as priticas de nominagio ¢ as relagdes de parentesco. Entretanto, 0 historiador dificilmente aceitava qualquer aspecto positive o virtuoso da cultura tupinamba, sempre apontando para os Ieitores 0 seu carater traigoeiro, sombrio ignorante, Por exemplo, ao comentar o capitulo que Soares de Sousa escreveu sobre a misica, acabou rebaixando mais uma vez os Tupinamba: “Tal & a magia da miisica ¢ da poesia que a apreciam até os povos sepultados na maior brutalidade” (Soares de Sousa, 1974 [1587], 385, n. 236) ‘Vamhagen afastou-se ainda mais de um padro cientifico em seus comentarios sobre a guerra ¢ o canibalismo tupinamba, certamente aspectos dos mais intrigantes que fascinavam todos os autores do século XVI, Ao invés de fazer uma reflexio sobre as informagdes etnograficas significativas que 0 texto de Gabriel Soares oferecia, Varnhagen optou por sublinhar a carga negativa do cenibalismo, deixando de lado a insisténcia do autor do Memorial em apontar 0 conteiido simbélico das praticas tupis que, como vimos, seriam distintos das préticas dos Aimoré, alids facilmente traduzidos em Botocudos do século XLX.*' Ao desqualificar os Tupinamba - e, por extensdo, todos os outros indios — Vambhagen com efeito fornecia uma justificativa para a dominagao portuguesa, justificativa essa muito distante da narrativa de conquista tecida por Gabriel Soares. A “raga tipica”, em sua opinifo, estava tio fracionada no inicio do século XVI que, “a nio ter lugar a colonizago européia, a mesma raca devia perecer assassinada por suas proprias mos”. A ligo valia para o século XIX, pois arrematava Vamhagen: “como defende a idéia de que 0s poetas e romancistas desenvoiveram uma espécie de “postica do exterminio™ Sobre 0 contraste entre o canibalisme tupi ¢ aimoré, veja-se Carneiro da Cunha (1990, 108-109). Capitulo 1: As *Castas de Gentio" da América Portuguesa 32 quase vai sucedendo nestes mates virgens, em que temos indios bravos, fazendo-se uns aos outros crua guerra” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 382, n. 222), A idéia de que os indios estavam se matando nfo era, na verdade, muito original. Varios missiondrios e auloridades régias avangaram argumentos semelhantes. para ielectuais e politicos do Império ~ como justificar suas agdes e fazia parte da postura & ‘Vamhagen — que promoviam uma politica indigenista abertamente agressiva."* Mais uma vez em didlogo com 0 texto de Gabriel Soares, a historia ¢ a politica confluiram nos comentarios de Vamhagen, que vivamente recomendava a leitura do capitulo 160, sobre “algumas habilidades ¢ costumes dos tupinambés", aos que “sustentam o pouco préstimo lantropia’ estamos deixando nos matos tragando-se uns aos do nosso gentio, que por outros, e cagando os nossos afticanos (a que chamam de ‘macacos do cho” sé para os comer!” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 384, n. 235), Em sua leitura de Gabriel Soares, Varnhagen também contribui para 0 processo de classificagao de grupos indigenas em entidades fixas € atemporais, inclusive elidindo as interessantes explicagdes histéricas oferecidas pelo autor quinhentista no que diz, respeito as diferengas entre os grupos tupis. Um bom exemplo desta discrepsincia é 0 caso ‘Amoipira, um grupo tupi que habitava o rio Sao Francisco na segunda metade do século XVI, Gabriel Soares descreveu esse grupo como possuidor dos “mesmos costumes gentitidades” dos Tupinambé, bem como a mesma lingua, embora guardando algumas diferengas “em alguns nomes préprios”. Descendentes dos Tupinambé, esse grupo afastou-se para o interior frente ao avango de seus inimigos ¢ adotou © nome “por seu principal se chamar Amoipira” (Soares de Sousa, 197] [1587}, 334-335). Em seu comentario, Varnhagen discordou de Gabriel Soares, substituindo a credibilidade desse autor com uma outra espécie de autoridade etnografica que se tormou muito popular no decorrer do século XIX: a etimologia tupi-guarani, De acordo com Vambhagen, 20 desmembrar o termo em duas palavras constantes do Tesoro de la lengua guarani, do jesuita seiscentista Antonio Ruiz de Montoya, Amoipira teria o significado de “parentes crugis” (Soares de Sousa, 1971 [1587], 387, n. 254), 5 Finesse sentido que Melo Morsis atribuiy, na Revista da Expasicn Antropalogica de 1882, 2 “extingao dos indios” “guerras intestinas (...) fazendo estacionar ou extinguir lentamente as ragas indigenas do Basil” (Revista, 1882, 23-24) Capitulo 1: As “Castas de Gentio” da América Portuguesa 33 Seria um erro crasso, contudo, afirmar que este historiador do século XIX simplesmente ignorava a dimensio histérica do panorama etnogrifico que ele tragava para o Brasil do século XVI, Parcial aos postulados pessimistas de von Martius, que considerava os indios como os descendentes degradados de alguma antiga civilizagio, a leitura que Vamhagen fez da diversidade éinica entre os Tupi, embora baseada fundamentalmente no relato de Soares de Sousa, sugeria que o fracionamento étnico nao era mais do que outro indicio do declinio, desintegragdo e destruigéo dz um grande povo anterior, processo esse desencadeado bem antes da chegada dos portugueses. Varnhagen apenas arranhou esta hipétese em seus comentarios ao texto de Gabriel Soares, porém a desenvolveu mais plenamente na Histéria Geral e, de maneira mais contundente, num de seus iltimos estudos, L‘origine fourainienne des américains tupi-caribes et des ancien gyptiens, obra publicada em Viena em 1876, Um dos pontos mais controversos certamente foi aquele que dizia respeito as origens “estrangeiras” dos Tupi, 0 que distanciava este autor no apenas de Gabriel Soares de Sousa, como também de grande parte de seus contempordneos. Para a maioria dos escritores oitocentistas, os Tupi representavam os brasileiros mais auténticos ¢ originais, apesar da circulagio de teorias sobre migragdes intercontinentais que teriam ocorride num passado tio distante quanto nebuloso. Se Gabricl Soares mostrava-se um tanto impreciso quanto a esta questo, simplesmente afirmando que os Tupi iniciaram o seu movimento rumo ao litoral a partir de algum lugar no remoto serio, Varnhagen buscou as origens dos Tupi tora mesmo das, ‘Américas, chegando a caracierizé-los como um povo invasor, Levou esta idéia a seu ponto maximo em /.’origine (ourainienne. Exercicio meticuloso de fitologia e etnologia comparada, L.‘origine 1ourainienne busca semelhangas explicitas nas linguas ¢ na cultura material dos Tupi ¢ dos antigos egipcios, os quais teriam sido ambos influenciados por uma civilizago centro-asidtico anterior.” Ao invés de procurar, conforme alguns comentaristas tém sugerido, as origens arianas dos antigos Tupi ~ estratégia essa compantilhiada por outros escritores latino-americanos no século XEX ~ Vamhagen parece > Oliveira (2000, 90-100) apresenta uma analise bastante interessante desta obra. Odilia (1997, 198-103} também fornece uma discussio estimclante da abordagem comparativa do autor, enfocando mais especificamente sua Historia Geral. Capitulo 1: As “Castas de Gentio" da América Portuguesa 34 ter perseguido um propésito bem diferente.’ De fato, ao invés de “branquear” os Tupi, ‘Varnhagen procurou identificar uma remota civilizago ndo-ariana, a partir da quat os indios brasileiros teriam iniciado © seu declinio, num longo processo de decadéncia ¢ degeneragao. Poucos estudiosos parecem ter levado a sétio a tese turaniana no Brasil, porém a idéia de Varnhagen de rebaixar e excluir os indios da histéria patria permaneceu firme no pensamento histérico brasileiro por geragdes e geragdes, Ainda assim, vozes dissonantes surgiram to logo que saiu publicado a Histéria Geral do Brasil: por exemplo, 0 poeta indianista e historisdor Domingos José Gongalves de Magalhies reagiu de modo virulento num Iongo ensaio publicado na Revista Trimensal do Instituto, buscando “reabilitar 9 elemento indigena”, como elemento fundamental na composigio da populagdo brasileira (Magalhies, 1860, 3), Do mesmo modo, jé ¢ muito bem conhecida a polémica entre Varnhagen ¢ Jodo Francisco Lisboa, o liberal maranhense cuja defesa da liberdade ¢ dignidade dos indios estava assentada em seus préprios estudos histéricos (anotti, 1977 ¢ Carvalho, 1995). Mas para a maioria dos historiadores brasileiros, tomou-se corriqueiro 0 pressuposto de que o inicio da historia do Brasil significava o fim dos indios. Conelusio ‘Ao remodelar a descrigao feita por Gabriel Soares de Sousa dos Tupinamba para situila no contexto do século XIX, 0 historiador pioneiro Francisco Adolfo de Vamhagen afastou este grupo mais ainda do contexte historico que produziu o mesmo relato. Mais importante, Varnhagen praticamente consolidou 0 abismo que iria prevalecer nos estudos sobre as populagdes indigenas até um periodo bem recente, circunscrevendo 05 indios a uma distante ¢ nebulosa pré-histéria ou ao dominio exclusivo da antropologia. Os Tupinambé de Gabriel Soares aleangariam novamente um lugar de destaque no século XX, quando o eminente americanista Alfred Métraux os enfocou em seus estudos sobre 5° José Vieira Couto de Mayathies, cm seu capitulo sobre “As Linguas Arianas da América” (1975 [1876], 51-84), referese ao estudioso argentino Fidel Lopez, cujos estudos comparedos entre sanscrito € ‘quéchua foram publicados em Paris no decorrer dos anos de 1860. Couto de Magaihies também especulava sobre as possiveis afinidades entre o sinserito e algumas linguas indigenas no Brasil, sobretudo 0 guaicura De acordo com ese autor, os antepaseados centroasaticos dos povos americanos haviam se misturado com agama "raga arian” antes da migragdo para o novo continente. Capitulo 1: As “Castas de Gentio" da América Portuguesa 35 as migragées, os movimentos proféticos ¢ a religido tupi-guarani, juntando os antigos relatos com registros etnograficos modemos, sobretudo 0 importante estudo de Curt Nimuendaju sobre a escatologia dos Apapocuva-Guarani* No entanto foi Florestan Fernandes que transformou os Tupinamba numa referéneia central 4 etnologia brasileira, pois sua meticulosa reconstituigao ¢ anilise da organizag&o social ¢ do complexo da guerra-sacrificio-canibalismo entre os Tupinambé compée um dos mais sofisticados exemplos de antropologia funcionalista em qualquer lingua.” Mas os historiadores continuaram a evitar os indios, como se a sentenga de Vamhagen que condenava os indios 4 etnografia perpétua fosse ainda valida.” Com efeito, ainda hoje a maioria dos historiadores parece acreditar que a historia dos indios se resume a cronica de sua extinga0. Esta perspectiva guarda um fundo de verdade, é claro, quando se considera o triste registro de guerras, epidemias, massacres ¢ assassinatos que contribuiram para a dizimagao de populagées indigenas ao longo dos liltimos cinco séculos. Para além deste rol de iniquidades, contudo, mesmo uma rapida releitura de documentos coloniais como os de Gabriel Soares de Sousa pode revelar uma histéria muito mais complexa, interessante e significativa do que aquela proposta pela tradigdo inaugurada por Varnhagen. % Metraux (1927 © 1979 [1928]). O estudo de Nimuendaju (1987 [1914]) apareces iniciatmente em Berlim em 1914 na Zeitschrif far Ernologle, sendo Finalmente publicado em portugués em 1987, com uma introdugdo muito esclarecedore de Eduardo Viveiros de Castro » Fernandes (1948 € 1980 {1952]). Quando elaborave seus estudos sobre os Tupinambé, Florestan desenvolveu uma tabela compiexa que classificava os dados etnogrificos exiraidos das fortes dos séculos XVI e XVII Se é verdade que esse autor retirou muitas observagdes pomuals de seu contexto historico imais abrongente, Florestan nio ignoraya © valor ¢ as armadilhas presentes na critica das fontes, o que acabou sengo sacrificado em fungo de sua oppo metodoldgica (of, Fernandes, 1975 “© Meso na notivel Histérla Geral da Civilizagdo Brasileira, iniciada em 1960 sob @ coordenagio de Sérgio Buarque de Holanda, coube a Florestan Fernandes um capitulo preliminar sobre os fniecedentes indigenas, © capitulo, no entanto, reproduziu o importante estuco sobre 2 “reagio tupi & conquista” que, infelizmente, teve pouca repercussio nas discussdes posteriores sobre @ constituigdo da CAPITULO 2 A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil: Graméticas, Vocabulérios e Catecismos em Linguas Nativas na América Portuguesa’ “A MAIS PRINCIPAL CIENCIA PARA CA MAIS NECESSARIA”: Nébrega descreven o aprendizado da lingua tupi por parte dos missiondrios jesuitas, em meados do século XVI. De fato, desde a chegada da primeira comitiva de inacianos & costa sul-americana em 1549, os jesuitas defrontaram-se com a dificil tarefa de traduzir 0 foi assim que 0 padre Manuel da contetido e os sentidos da doutrina crista para um idioma que atingisse 0 maior numero possivel de novos catectimenos, Apesar da enorme diversidade linguistica que se descobria pouco a pouco, a medida que a expansiio portuguesa avangava para além das estreitas faixas litordneas, estabeleceu-se desde cedo uma politica linguistica que tomava ~a lingua mais usada na costa do Brasil” 0 seu principal instrumento. Baseada, na verdade, num conjunto de dialetos da familia linguistica tupi-guarani, a primeira “lingua geral” foi perdendo as suas inflexBes locais ¢ regionais em fungdo da sua adogao, sistematizac2o e expansdo enquanto idioma colonial Essa politica linguistica, esposada pelos jesuitas © encampada pelos colonos particulares e pelas autoridades régias, refletia estratégias similares que desabrochavam em outras frentes coloniais. As proprias Constituigdes da Companhia de Jesus, redigidas € revisadas por Inicio de Loyola, contemplavam o aprendizado das linguas extra- européias para reforgar a propagago da f&. No caso das missdes orientais, sobretudo na fadia, a “oiéncia” das linguas tornou-se rapidamente um dos focos das atividades dos missiondrios, alguns dos quais passaram anos a fio debrugados sobre vocabulérios, gramaticas e tradugdes de catecismos e manuais de confissdo. Esta extraordinaria | Publicado no catdlogo de exposigio Oy /ndios, Nés, org, Joaquim Pais de Brito, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia, 2000, pp. 36-43, este texto soffeu algumas pequenas modificagies, acréscimos e comrerdes na atual verséo, Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 37 produgfo de textos em tamil, malaialam, concani, portugués, latim castelhano ganhou um consideravel reforgo com a existéncia de uma imprensa em Goa a partir de 15567 Se, na india ¢ depois no Extremo Oriente, os jesuitas depararam-se com tradigdes literdrias © com a escrita em caracteres néo ocidentais, no Brasil tanto as linguas quanto as tradigdes narrativas eram basicamente orais ¢, portanto, cabia aos inacianos “reduzir” estas linguas ao alfabeto romano ¢ as regras gramaticais latinas. Neste sentido, o tupi dos jesuitas, mesmo sendo baseado coneretamente nas variantes da lingua fatada por indios e ‘mestigos sobretudo nas capitanias de Pernambuco, Bahia, Espirito Santo e Sdo Vicente, constitufa, antes de mais nada, um dialeto colonial, A exemplo de outras regides onde a evangelizagdo avangou de modo semelhante, a lingua geral da costa tornou-se um gil instrumento de tradugéio por meio de dois aparatos extemnos, isto é, a estrutura gramatical latina e os modelos de discurso utilizados nos catecismos ibéricos (Rafael, 1988, 27), No inicio, os jesuitas depositavam esperanga nos “mestigos da terra” — denominados mamelucos — para cumprir a fungio de intérpretes, segundo Anchieta, “para nos ajudar na conversio do gentio”, Nessa mesma época, o padre Ndbrega chegou a mandar dois desses mamelucos ao Colégio de Coimbra, na expectativa que eles se tomassem “proveitosos para nossa Companhia se deitarem boas raizes em virtudes”. Um detes, 0 irmio Cipriano, de fato foi admitido a Companhia de Jesus aos 16 anos. No entante, poucos anos depois, 0 mesmo Nébrega lamentaria que “fui avisado que néo mandasse mais”.” ‘Também foram recrutados portugueses com larga experiéncia entre 0s indios, embora alguns desses tenham se tomado inimigos dos jesuitas, come no caso de Joao Ramalho a Capitania de S4o Vicente, Na Bahia, Diogo Alvares Caramuru mostrou-se ais prestimoso, colocando seus atributos bilingues a servigo do projeto evangelizador Mas a aquisigao mais valiosa foi Pero Correia, um portugués que vivia no Brasil havia 16 anos € que possuia bastante experigncia entre as populagdes nativas. Admitido & Companhia por volta de 1550 como irmao, dedicou-se com afinco a conversio dos ? Sobre os textos jesuiticos em lingues sulasiéticas, ver Zupanoy (1998, 155-166) € 0 estudo classioo de Lach (1965, 427-467) > As citagties deste pardyrafo vém da carta de José de Anchieta a Inicio Loyola, julho de 1554 (Leite, 1986-60, 11:77); Manuel da Nébrega a Loyola, 25 de margo de 1555, I: 169, e Nobrega a Di Laynes, 12 de junho de 1561, IIL 363. Sobre a proibicao de mestigos na América e em outros continentes, ver Alden (1996, capitulo 11) Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 38 indios, valendo-se do conhecimento do tupi pois, segundo Manuel da Nobrega, tratava-se de um homem “virtuoso ¢ sabio ¢ 0 methor lingua do Brasil”. $6 ndo teve maior destaque porque a sua atuagio foi abreviada em 1554, devido a sua morte junto com outro jesuita entre os Carijés.* Reconhecendo a necessidade de dominar as linguas nativas, varios jesuitas recém chegados da Europa também se dedicaram ao aprendizado desde cedo, A exemplo dos pioneiros na {ndia ou na China, aprendiam rapidamente as linguas da terra — ndo apenas 0 tupi, diga-se de passagem — sobretudo através de situagdes de imerso total, quando se encontravam sozinhos ou em duplas no meio de multidées de indigenas por periodos prolongados. Para alguns deles, familiares com uma situago multilingue em suas terras de origem, nio se tratava de um desafio to considerivel. Este foi o caso de Juan de Azpilcueta Navarro que, de acordo com o padre Nébrega, “ja [em 1549] sabe a lingua de maneira que se entende com eles € a todos nds traz vantagem porque esta lingua parece muito @ biscaia”, Anchieta também trazia vantagem, por assim dizer, porque ele havia nascido na ifha de Tenerife, filho de pai basco, A despeito da facilidade que tinham em aprender linguas, ainda assim dependiam do auxilio de intérpretes. Azpilcueta teve a ajuda de “um homem de boas partes, antigo nesta terra [da Bahia], que tem o dom de escrever a lingua dos indios”. Este tradutor pioneiro ajudou os padres a verter “sermdes do Velho e Novo Tesiamento, mandamentos, pecados mortais e obras de misericérdia, com todos os artigos da fe”? Os missionarios precisavam aprender as linguas vernéculas por varios motivos. Um primeiro problema, frequentemente lembrado nos relatos jesuiticos, dizia respeito a confiss4o, posto que muitos padres com pouco conhecimento da lingua ouviam-na através de intérpretes. O bispo D. Pedro Fernandes Sardinha estranhou, em 1552, que os Jesuitas ouviar a confissio nao so de indios como também de mestigas por meio de intérpretes, “o que a mim me foi muito estranho, ¢ deu 0 que falar ¢ murmurar por ser uma coisa to nova € nunca usada na Igreja”.’ O problema se agravou, evidentemente, * Veja-se as informagdes biogrificas sobre Pero Correia em Leite (1938-50, 1236-241 ¢ VILL 175- 76), § Carta de Manuel da Nobrega ao Dr. Martin Azpilcueta Navarro, 10 de agosto de 1549 (Leite, 1986-60, 141); Juan de Azpilcveta Navarro aos Padres e Irmkos de Coimbra, agosto de 1551, 1:279, © D. Pedro Fernandes [Sardinhal, bispo, a Simao Rodrigues, julho de 1552 (Leite, 1956-60, 1361). Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 39 com 0 transcorrer do século, quando a desconfianga que os jesuftas tinham dos linguas mestigos e indigenas desautorizava 2 mediagio destes em matérias religiosas. Ainda assim, o padre Femao Cardim, em sua Narrativa Epistolar da década de 1580, procurow ser otimista diante dessas limitagdes: “Tive grande consolaggo em confessar muitos indios ¢ indias, por intérprete; so candidissimos, e vivem com muito menos pecados que os Portugueses. Dava-lhes sua peniténcia leve, porque no sao capazes de mais, ¢ depois da absolvigdo Ihes dizia, na lingua: xe rair tupd togé de hirunamo, sc. ‘filho, Deus v& contigo" (Cardim, 1997 [1583-90], 234). ‘Uma segunda questio refere-se aquilo que o historiador Vicente Rafael chama da “dimensfio oral da conversio” (Rafael, 1988, 39-42). Diferentemente das missdes orientais, onde a tradugdo da doutrina em linguas nativas permitia a sua leitura pelos conversos, no Brasil a escrita néo cumpria esta mesma fungio, antes colocando 4 disposig&io dos leitores missionérios as formulas € os didlogos a serem postos em ago no encontro entre abarés, ou padres, ¢ indios. A pratica da evangelizagdo, afinal de contas, repousava sobretudo na oralidade. Entre os indios das missdes, conforme se verifica nos relatos dos jesuitas, a palavra falada em voz alta predominava sobre a palavra escrita, muito embora os indios se mostrassem fascinados com o ato de escrever. De fato, os jesuitas prestavam atengdo as formas retéricas adotadas pelos “indios principais” e, em ‘muitos casos, até imitavam este estilo na pregagilo do Evangelho. Cardim descreveu com admiragio a maneira pela qual os indios principais “pregavam da vida do padre [visitador] a seu modo”: comegando na madrugada, “o pregar também ¢ pausado, freimético, e vagoroso; repetem muitas vezes as palavras por gravidade, contam nestas ptegagdes todos os trabalhos, tempestades, perigos de morte que 0 padre padeceria, vindo de to longe para os visitar...” (Cardim, 1997 [1583-90], 222-223). ‘Ao adotar estes métodos, no entanto, os missiondrios ficavam expostos a censuras, 4 semelhanga dos jesuitas no Oriente que se apropriaram de estilos nativos. Acusados pelo bispo D. Pedro Fernandes de assumirem 0 estilo dos gentios em suas 7 Vejanse, a respeito, Zupanov (1999), onde se discute 2 notavel stuayio do jesuita Roberto de Nobili na missio de Madurai, cujo estilo de evangelizacio, denominado accommadatio peles autoridades da lgroja. assimilava virias prétices nativas, para 0 desespero dos jesuitas em Gos, No caso do Brasil dquinhentista, esta questo € abordada em Toledo (2000, 97-118), O exemplo do jesuita Francisco Pinto € Aiscutido de mancira instigante em Carnoiro da Cunha (1996), Castelnau-L’Estoite (2000, 410-425), Pompa (2001, 150-164) Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 40 pregacdes, 0s jesuftas rebateram com a argumentagiio reveladora do padre Manuel da Nobrega: Se nés abracarmos com alguns costumes deste gentio, os quais no so contra nossa fé catdlica, nem sito ritos dedicados a idolos, como & edntar cantigas de Nosso Senhor em sua lingua pelo tom e tanger seus instrumentos de miisica que eles usam em suas festas quando matam contrérios e quando andam bébados; ¢ isto para os atrair a deixarem os outros costumes essenciats (..); & assim o pregar-Ihes a sex modo em certo tom andando passeando ¢ batendo nos peitos, como eles fazem quanalo querem persuadir alguma coisa ¢ dizé-la com muita eficdcia; ¢ ‘assim: tosyuiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, a seu modo. Porque semethanca & causa de amor. E outros costumes semelhantes estes® ‘A conversio através do amor e a persuasio pela semelhanga certamente constituiam estratégias importantes nos anos iniciais, porém foram sendo substituidas 20 longo da segunda metade do século XVI por métodos que se pautavam pelo uso da forca. ‘As tentativas de estabelecer missdes entre as comunidades nativas mostraram-se pouco viaveis ou frutiferas, ¢ os jesuitas frustravam-se cada vez mais com a “inconstancia” dos novos cristios € com a instabilidade das aldeias nativas, sobretudo nesses tempos de rapidas mudangas demograficas ¢ de frequentes deslocamentos espaciais. Eserevendo da Bahia em 1556, o irmao Antonio Blizquez ressaltava a necessidade da forga além da persuasdo na obra de conversio. Ao elogiar o esforgo do governador Duarte da Costa em teprimir algumas liderangas indigenas, tirou a seguinte conclusio: “Assim que por experigncia vemos que por amor & muito dificultosa a sua conversio, mas, como é gente servil, por medo fazem tudo; e, posto que nos grandes, por no concorrer sua livre vontade, presumimos que nio terdo f% no coragZo, os tilhos criados nisto ficarso firmes cristdos, porque & gente que, por costume € criagéo com sujeigéo, fario dela o que * Manuel da Nabrega a Simdo Rodrigues, 17 de setembro de 1552 (Leite, 1956-60, 1:407-408). Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 41 no quiserem, 0 que nfo seri possivel com razdes nem argumentos”,’ Esta ajuda do brago repressor do governo colonial se consagrou logo em seguida, com a chegada do governador Mem de Si, institucionalizando a complementaridade entre a ago militar dos soldados d’el-rei, que reduziam os indios a0 dominio colonial, ¢ dos sotdados de Cristo, que reduziam os mesmos nativos na f. Surgiram, neste contexto, as aldeias missionérias, que logo se tornaram os principais focos da interagio entre jesuitas ¢ indios, interago essa mediada pela lingua gerai."” Embora povoadas predominantemente por indios de origem tupi, as aldeias também abrigavam residentes provenientes de outras origens étnicas. Na Capitania de Sdo Vicente, por exemplo, 0s Tupi compartilhavam a experiéncia da missde com grupos guaiands e guarulhos, cujas linguas em nada se assemelhavam ao tupi. Por mais que os jjesuitas tentassem, como Manuel Viegas, que chegou a elaborar um yocabulério na lingua dos Marumimins, dominar todas as tinguas nativas, isto se mostrou impraticavel. A medida que se conhecia cada vez mais os sertées da América, a diversidade Linguistica & cultural se tomava mais palpavel: Cardim, por exemplo, nao se esforgou muito para arcolar 76 grupos distintos de “Tapuias” (nao Tupi) que habitavam interior das capitanias do nordeste. No interior da Companhia de Jesus, um corpo cada vez mais cespecializado de linguas atendia a essa demanda através da sistematizagio de uma lingua geral que, embora baseada no tupi falado, se mostrava cada vez menos voltada para a comunicag&o com grupos tupis, que se tomavam mais escassos em fungdo dos efeitos desastrosos do contato. Instrumentos para a Conversio A lingua geral dos jesuitas foi fruto de um longo processo de construgao, comegando com a chegada dos padres em 1549 ¢ culminando com a publicagao da Arte de Grammatica de José de Anchieta, em 1595, e do Catecismo na Lingua Brasilica, de Anténio de Araijo em 1618, Na primeira década das atividades inacianas no Brasil, os jesuitas Pero Correia, Juan de Azpilcucta Navarro e José de Anchieta deram os primeiros > Ambnio Blazquee, carta do primeiro quadrimestre do 1956, maio 1586, (Leite, 1956-60, 11271) Sobre as nogdes de “amos” e sujeigio™ nas missiva jsuiticas, veja-se Pécora (1998, 373-414) 1 Sobre este processo, veja-se o excelente estudo de Charlotte de Castelnau-L’Estoile (2000), soboretudo pp. 81-169. Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 42 passos decisivos em dirego A sistematizagio da lingua. Escrevendo de Sao Vicente em 1553, 0 irmao Pero Correia pediu ao Provincial Simao Rodrigues o envio de livros como subsidio a seus trabalhos em tupi, citando especificamente algumas obras do escritor castelhano Constantino Ponce de la Fuente, inctuindo Confestén de un Pecador, Doctrina Cristicna, Catecismo Cristiano, entre outras “de que pudesse tirar grandes exemplos com muita doutrina para estes gentios, os quais espero antes de morrer ver todos cristdos”. No mesmo ano, Azpilcueta Navarro informou aos padres e irmaos do Colégio de Coimbra que havia enviado “todas as oragdes na lingua do Brasil, com os mandamentos € pecados mortais etc., com uma confisstio geral, principio do mundo, encamago e do juizo, e fim do mundo ...” Nao conseguiy, no entanto, criar uma “arte”, isto é, manual de gramética Anchieta, por seu turno, achava precipitado elaborar uma gramética tupi nesses anos iniciais: “Quanto & lingua ... no a ponho em arte porque nfo hé quem aproveite, somente aproveito-me eu dela, ¢ aproveitar-se-do 05 que de Id vierem, que souberem gramatica” Contudo, no ano seguinie, o irmio AntOnio Blizquez relatou que “os meninos € os irmos da casa andam todos com grande fervor de saber a lingua .. {e] para aprendé-la 1tém uma Arte que trouxe 0 Padre Provincial”.'" ‘A despeito das davidas que Anchieta tinha quanto 90 seu uso, este primeiro manual de gramética tupi foi largamente aproveitado mesmo antes de sua impresséo em Coimbra na oficina de Anténio de Mariz em 1595. Quando o padre Luis da Gra, missionério com larga experiéncia na Capitania de Sao Vicente, chegou a Bahia no cargo de Provincial em 1560, uma das primeiras medidas que tomou foi a de obrigar todos, a comecar pelo Reitor, que “se lesse a arte da lingua brasilica, que compas o Irmio José [de Anchieta)”. Rui Pereira, padre no Colégio da Bahia, também registrou que Gra “ordenou em casa que houvesse cada dia uma hora de ligdo da lingua brasilica, que c& chamamnos grego”. Ja Anténio Pires foi mais candido: o padre Gra “dew ordem a que todos os inmios, se dessem a aprender a lingua, coisa que até ali ninguém havia feito, tirando alguns que andavam fora”. Supunha ele, ainda, que 0 novo Provincial assumira cle proprio as ligoes de tupi “para nos envergonhar e para nos fazer inveja, como na verdade a mim me " Cartas de Pero Correia, 10 de margo de 1553 (Leite, 1986-60, 1441-442), Juan de Azpileueta Navarro, 19 de setembro de 1553, 19, José de Anchieta, 20 de margo de 1555, 1:161, e AntBnio Blézquez, 4 de agostb de 1556, 11301 Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 43 envergomha, que hi 12 anos que ca ando e no sei nada. Agora comego pelos nominativos por a arte para poder aprender™.'? ‘Também é certo que o manual primitivo foi lapidado € retrabalhado ao longo das ‘quatro décadas entre a primeira noticia e versio final. Foi um periodo, aliés, de avangos notéveis no estudo e ensino da lingua geral da costa. Em 1565, 0 General dos Jesuitas sugeriu ao Provincial de Portugal, padre Ledo Henriques, que encomendasse vocabulirios ‘em linguas nativas para que os missiondrios pudessem estudar antes mesmo de sair da Furopa, Pouco depois, instituiu-se, no Colégio da Bahia, uma cadeira de “lingua brasilica”, cujo lente mais marcante foi o padre Leonardo do Vale, “principe dos lingua”, de acordo com © provincial Margal Beliarte, ao noticiar a morie do padre Leonardo em 1591. “Eloquentissimo como Tilio, (...) até 0s indios se admiravam do seu talento e graga singular, com a qual scrviu excelentemente a Deus e a Companhia”, escreveu Beliarte, Ao padre do Vale se atribui 0 famoso Vocabuldrio na Lingua Brasilica, copiado ¢ recopiado para o uso de aprendizes em todos 0s cantos da colénia e mesmo nos colégios inacianos da metrépole (Vale, 1952 [1622]). Segundo Beliarte, o padre Leonardo “compos 0 “Vocabulirio’ daquela lingua, étimo, abundante, € muito iil, com que é facil aprender; @ muitos sermées, a explicagao do catecismo, ¢ outros utilissimos avisos para a educago ¢ instrug’o dos indios”.'’ A despeito de sua popularidade entre os catequistas, o Vocabuldrio permaneceu inédito até a década de 1930. No entanto, quase foi 20 preto no final do século XVI, por iniciativa do mesmo provincial Beliarte, porém n&o chegou sequet a ser encaminhado aos censores, passo obrigatério para qualquer publicagao na época. Pode-se aventar a hipétese da falia de recursos, uma vez que cabia aos “padres do Brasil” os custos da edigo, conforme vern estampado no frontispicio do Catecismo do padre Anténio de Araijo. Com poucas propriedades rentaveis — estas desenvolver-se-iam mais plenamente no decorrer do século XVII ~ 0s colégios alegavam uma crénica falta de recursos. ‘Ao que tudo indica, 0 Vocabulério circulou em miltiplas cépias manuscritas, cada qual introduzindo novos vocdbulos e revisando as entradas originais. Obra continua, "2 Jodo de Melo a Gongato Vaz de Melo, 13 de setembro de 1560 (Leite, 1956-60, 111.283); Rui Pereira aos Padres e Irmfos de Coimbra, 15 de setemibro de 1560, IE:306; AntGnio Pires aos Padres € Irmdos de Coimbra, 22 de outubro de 1560, TH.310-311 Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 44 © aprendizado das linguas indigenas exigia tanto a paciéneia quanto o engenho dos religiosos, que buscavam sistematizar um conhecimento sempre incompleto. Constituia também uma obra coletiva, como esclareceu Anténio de Araujo no preficio de seu Catecismo na Lingua Brasilica: o trabalho era “composto a modo de Didilogos por Padres Doutos e bons linguas da Companhia de Jesus” (Araitjo, 1618). No final do século XVII, © padre Luis Mamiani descreveu a érdua tarefa de revisto de suas obras, um verdadeiro ‘tabalho artesanal: “Quanto ao Catecismo © Vocabulério da lingua dos bérbaros, a cuja impress benignamente anuiu Vossa Paternidade, ainda o nao pude enviar este ano para ‘Lisboa, por Ihe faltar a tltima demio; para isso veio muito a propésito a minha volta & Missio, pois fora dela dificilmente o poderia conctuir. Ando a limé-lo com a ajuda de Deus, para sua gloria e salvagdo das almas”. No que diz respeito ao processo de trabalho, contou com a ajuda de outros: “Além da experiéncia de doze anos de lingua entre os indios (...) conferi com os nossos Religiosos linguas mais antigos ¢ examinei indios de diversas aldeias e por derradeiro fui conferindo o presente Catccismo sentenga por sentenga com indios que tinham bastante capacidade para entender 0 meu significado para conhecer a frase cortespondente na sua lingua”."* Os instrumentos de tradugio também serviam para entender o significado de priticas e percepgdes indigenas, conhecimento necessario para a obra missiondria. Anténio de Araujo enxertou em seu Cafecismo Brasilico uma “Tabuada dos nomes do parentesco que hé na lingua Brasilica”, explicando que se tratava de uma “anotagdo sobre ‘os nomes do perentesco, para inteligéncia das circunstincias que podem ocorrer na Confissto” (Araujo, 1618, fls. 113-117), Outro exercicio de grande utilidade foi executado pelo jesuita sertanista Pero de Castilho, que em 1613 redigiu um extenso glossirio Tupi-Portugués e Portugués-Tupi das partes do corpo humano, Chamou a atengdo para as diferengas de abordagem, uma vez que os Tupi adotavam palavras diferentes de acordo com a primeira, segunda e tereeira pessoa, além de outras inflexdes particulares, como 0 vocdbulo canguera, traduzido como “osso que j& foi do corpo”, A exemplo da tabuada do padre Araiijo, este pequeno dicionério se declarava “muito Estas informagies constam das introdugdes de Serafim Leite & Mfonmmenta Brasiliae (Leite, 1956-60, 1:517-53* e HE90*), Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 45 necessdrio aos confessores que se ocupam no ministério de ouvir confissdes” (Castilho, 1937 (1613). Novas Searas Limando, repintando, aperfeigoando, os jesuitas dedicavam-se como verdadeiros artesdos em seu esforgo coletivo de desenvolver instrumentos para preparar novas geragdes de missiondrios que iriam dar sequéncia & obra da conversiio dos povos indigenas. No entanto, o balango que deste se podia fazer no alvorecer do século XVII nao figurava como muito promissor. Ao publicar seu extraordinario Catecismo na Lingua Brasilica, Antonio de Araijo mostrou-se um tanto ambivalente em sua avaliagZo do resultado de mais de meio séoulo de intensas relagées entre missiondrios © indios ao Jongo do litoral brasiteiro, da Paraiba a Capitania de Sao Vicente. Resultado misto, pois, se a “comunicago dos nossos com os naturais em todas as partes do mundo” foi importante na sistematizago © mesmo na conservagdo de linguas natives, no litoral brasileiro este proceso de construgio contrastava com 0 processo de destruigto da populago indigena, que softeu um dectinio vertiginoso neste mesmo periodo. Gragas aos esforcos dos padres, escreveu Araujo, “i néo so os linguas de todo acabades, como quase 0 so os Indios em as mais das Capitanias”. Por outro lado, o autor também se mostrava esperancaso porque, com “o novo descobrimento do Maranhao”, se abria uma nova seara, onde os missionérios iriam espalhar 0 Evangelho munides nao apenas da palavea de Deus, como também de uma lingua indigena e de uma larga experigncia de tradugo (Araijo, 1618, prologo) Em quase todas as frentes, foi a lingua geral que serviu para estabelecer um campo de mediagio entre indios das mais diversas origens étnicas e linguisticas e os missiondrios. A répida expansdo da lingua pela Amazénia nos séculos XVII ¢ XVIII constituiu um elemento crucial nos projetos coloniais portugueses, tanto na sua dimensio missiondria quanto nas atividades conduzidas por interesses particulares. Afinal de contas, durante este periodo houve 0 deslocamento macico de populagdes nativas através das tropas de resgate egressas de Sao Luis e Belém e dos “descimentos” organizados ™ Carta de Luis Mamiani a0 Padre Geral, 1695, citada no preficio de Rodolfo Garcia a Mamiani (1942 (1698). xix-xx), Este mesmo processo de lapidaglo dos textos acontecia no Oriente, conforme dsereve Lach (1965, 436-437). Capitula 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 46 pelos missionarios, reproduzindo o sistema de aldeias existente nas capitanias do Brasil ‘A exemplo do litoral brasileiro no século XVI, as primeiras missSes no Maranhio e Grio-Pard abrigavam populagdes tupis envolvidas no processo de conquista, porém o rapido declinio demografico, em razio de epidemias, fugas © espotiagao por parte dos colonos particulares, favoreceu o seu “ressarcimento” mediante a introdugao de grupos descidos de varias regiées na Bacia Amazénica. Conforme observou 0 jesuita Joao Daniel no século XVIII, 0s Tupinamba passaram a conviver com Nhengaiba (referencia & “fala mé, usada por indios de “lingua travada”, em oposigao a “fala boa”, ou Nhengatu) da Tiha do Marajé, aps 0 acordo de paz conduzide por Antonio Vieira na década de 1650, ¢ “com outras mui diversas nagdes”. O idioma das misses afastou-se cada vez mais da “lingua geral tupinamba” e ficou to “viciada ¢ corrupta que parece outra lingua diversa” (Daniel, 1976 (c. 1760])."° ‘A abertura das missies na Amazdnia estimulow a produgio ¢ publicagao de novos manuais e catecismos, a comegar pela Arte du Lingua Brasilica do padre Luis Figueira, impressa em Lisboa em 1621 ¢ reeditada em 1687. Neste mesmo periodo, o catecismo de Antonio de Araijo teve uma nova edigio, agora com o titulo Catecismo Brasilice da Doutrina Crista (1686), com acréscimos do padre Bartolomeu de Leao, ¢, no ano seguinte, foi publicado 0 Compéndio da Doutrina Cristi na Lingua Portuguesa ¢ Brasilica do experiente missionério Jodo Felipe Bettendorf que, apesar de buscar uma. proximidade com a lingua geral da costa, j4 contemplava a vulgarizacao dessa lingua em seu uso pelos indios e mestigos do Estado do Maranhao. De fato, uma outra vers3o manuscrita do Compéndiv, arquivada na Universidade de Coimbra, avisa no titulo que & doutrina crista encontra-se “traduzida em lingua irregular ¢ vulgar usada nestes tempos” (Edelweiss, 1969, 138-158), Houve, igualmente, importantes experiéncias de tradugdo em outras linguas nos séculos XVII e XVIII, sendo talvez a mais notavel a breve porém expressiva tentativa de transformar diversos grupos kariris em cristAos, sobretudo nas missdes espalhadas ao 6 longo do tio Sto Francisco."* Segundo o jesuita Luis Mamiani, autor de um notive! + Sobre as tropas de resgate e descimentos, ver Monteiro (1991, 137-168) ¢ Alden (1983) *© A envolvente historia destas missdes é um dos principas objetos do extraordinario estudo de Cristina Pomipa (2001), que traz uma pletora de novas informagdes e perspectivas sobre a dimensOes religiosa, linguistic, ritual e simbdlica das elagdes entre missionarios ¢ indios no sertdo nos séculos XVEl eXVILL Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 47 catecismo € de um vocabulério nessa lingua, os missionarios “nao satisfeitos do que tinham obrado com os indios maritimos da lingua geral, penetraram os sert&es interiores deste Brasil, para reduzir ao rebanho de Cristo também os indios bravos ¢ tapuias, os primeiros que tiveram essa sorte foram os da nagdo a que vulgarmente chamamos dos Kiriris” (Mamiani, 1942 [1698], preficio sem paginagdo), Este experimento produziu dois catecismos bilingues, 0 primeiro de um jesuita e o segundo de um capuchinho, ambos documentos preciosos para a avaliagdo das relagdes entre missionarios ¢ indios. Publicado em 1698 na oficina de Miguel Deslandes, 0 Catecismo de Mamiani destinava- se “para os missionirios novos serem ouvidos ¢ entendidos dos indios, que ¢ @ fim principal que se pretende, pois por falta dele ndo se declaram aos indios muitos mistérios € muitas coisas necessdrias a um Cristo”. Ja 0 Katecismo Indico da Lingua Kariri, de Bemardo de Nantes, editada pelo mesmo impressor em 1709, parece ter sido orientado para o beneficio dos proprios indios. Pelo menos ¢ 0 que se depreende da adverténcia ao leitor que prefacia a obra, quanto ele afirma que os indios, “jé filhos da Igreja, esto sem diivida a estas horas pedindo se thes parta o pio da Doutrina Cristé em sua lingua” (Bernardo de Nantes, 1709, preficio sem paginagao)."” Tanto 0 catecismo de Mamiani quanto o de Bernardo de Nantes tomaram por base as formulas ¢ © conteiido dos manuais ibgricos, que haviam passado por uma enorme difusio com a expansfio da imprensa. Permanecia 0 desafio, contudo, de adaptar os elementos da doutrina para os ouvintes nativos que, a despeito dos precedentes estabelecidos entre os Tupi do litoral, pareciam exigir cuidados especiais, sobretudo Ievando em conta dificuldades na pronincia. Nos trabalhos entre os Tupi, 08 didlogos escritos nos catecismos eram completados pelo didlogo direto entre missionérios ¢ indios, buscando definir os termos da mediag4o intercultural. O irmio José de Anchieta, escrevendo de Sao Vicente em 1563, relatou uma dessas trocas na conversio de um indio velho na vila de Itanhaém, no litoral sul da Capitania, “Dando-the, pois, a primeira ligto, de ser um Unico Deus todo poderose que criou todas as coisas etc., logo s¢ Ihe imprimiu na memoria, dizendo que cle rogava muitas vezes que oriasse os mantimentos para 0 sustento de todos, mas que pensava que os trovdes eram este Deus, embora agora que Receoso de ter sua obra considerada inittil, Bernardo chamou a atengéo no mesmo prefécio para adiferenga entre os Karris Daubucua e os Quipéia, cujas Linguas guardavam a mesma diferenca que existia. entre 0 portugues €0 castelhano, Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 48 sabia existir outro Deus verdadeiro sobre todas as coisas, que rogaria a ele chamando-lhe Deus Padre ¢ Deus Fitho, Porque dos nomes da Santa Trindade, estes dois somente pude tomar, porque se The podem dizer em sua lingua, mas o Espirito Santo, para este nunca achamos um vocébulo proprio nem circunléquio bastante, e apesar de que ndo o sabia nomear porém sabia crer..."* Os catecismos para 0s indios Kariri também eram salpicados de neologismos, néo 36 em portugués, como na propria lingua geral. Em sua explicagzo da proniincia, Mamiani chamava a atengdo para a introdugao de neologismos: “Advirto por ultimo, que por faltar nesta lingua vocébulos que expliquem com propriedade 0 significado de algumas palavras que se usam nas Oragdes, Mistérios da Fés ¢ outras matéries pertencentes a ela, usamos das mesmas yozes portuguesas ou latinas, como se introduziu nas outras linguas de Europa; pois da hebréia e grega passaram aos latinos, dos latinos passaram as outras nagdes da Europa como sto Ave, Salve, Sacramentos, Trindade, ete.” (Mamiani, 1942 [1698], prefacio sem paginagdo). Ademais, ao invés da adaptagdo de um temo provenienie da cosmologia kariri, optou-se pelo vocdbulo Tupi para designar 0 Deus cristo, anti para designar alma, duraé para designar branco, tapwinhua (de fapanhuno, na \ingua geral) para designar escravo africano, entre outros. Qutros termos faziam ligeiras adaptagdes do portugués para acomodar a proniincia nativa: € 0 caso de erucd (cruz), puct-i (pai ou padre), misse (missa) ¢ santicl (santos). Chama a atengio, ainda, algumas diferencas entre os catecismos jesuitico ¢ capuchinho que, apesar de muito semelbantes em seu respective contetida, fizeram opgées seménticas diferentes para alguns conceitos de fundamental importincia. Assim, ao passo que Mamiani optou por um vocabulo kariri para designar anjos (idserd), frei Bernardo preferiu usar 0 termo em portugués. Ambos os catecismos, contudo, tragaram equivaléncias nativas para © Paraiso (Ardkié) e 0 inferno (mhews) e, a exemplo da experiéncia com os Tupi, fizeram questo de nativizar 0 Deménio. Quanto ao modo de usar seu catecismo, Mamiani esclareceu que langou mao de didlogos, “por ser modo mais usado ¢ facil para ensinar a Doutrina Crista”. No entanto, “nao € necessério que 0s indios aprendam todas as respostas, pois no so capazes disso, mas somente as oragdes € as respostas das perguntas gerais da Doutrina...” Grande parte ™ Carta de José de Anchieta @ Diego Laynes, 16 de abril de 1563 (Leite, 1956-60, 11:561). Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 49 dos didlogos seguia 0 modelo ibérico, porém o autor incorporou varias adaptagdes interessantes para tornar o contetido mais palpavel para 0s indios, correndo 0 risco no entanto de estimular a emergéncia de cultos nativos com agenda propria, Por exemplo, num diélogo voltado para a explicago da crenga em Deus (itt? Typa), Mamiant buscava deixar claro a disting&o entre a adoragao do salvador e a adoragao de objetos: Mestre: E bom que adoreis a Cruz? Discipulo: Sina. ‘Mestre: A quem adorais? Por ventura a mesma cruz de pau? Discipulo: Néo. Vendo a Cruz lembramo-nos de JESU Cristo, que nela morreu por amor nosso, por isso adoramos nela a JESU Cristo (Mamiani, 1942 [1698}, 30). Esta censura da adoragao dos objetos tem base nas Eserituras, sem divida, porém guarda um significado especial no contexto das missdes americanas, nas quais cultos a paus e pedras surgiam @ contrapéto dos ensinamentos jesuiticos. Mamiani retomou esse lembrete nos didlogos, fazendo © cateciimeno afirmar que entendia o conteudo simbolico das imagens sacras: “N&o adoro 0 pau, a pedra, ou o barre; mas unicamente adoro aos Santos figurados naquelas imagens de pau, de pedra ¢ de barro” (Mamiani, 1942 {1698}, ai) Uma parte importante dos ensinamentos dos mistérios da fé detinha-se em didlogos mais abstratos trazcndo elementos da cosmogonia ¢ escatologia cristis, O didlogo sobre os mandamentos, no entanto, era bem mais explicito em sua repressio a0 modo de ser tradicional dos Kariri, mostrando que a conversio implicava nfo apenas na abertura para novo como também e sobretudo no abandono das priticas culturais precoloniais, Assim, quando 0 Mestre pede ao Discipulo uma explicagao do primei mandamento, nao fica satisfeito com uma simples resposta crista. Pede mais, recebendo a seguinte resposta: “Manda também que no demos crédito as observancias vas e abuses dos nossos avés porque havemos de crer em um s6 Deus”. Atigada 2 curiosidade do Mestre, 0 didlogo continua: Mestre: Contai-me algumas destas abusdes para guatdamo-nos delas. Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 50 Discipulo: Curat os doentes com assopro; Curar de palavra, ou com cantigas; Pintar 0 doente de genipapo, para que nao seja conhecido do diabo ¢ 0 nto mate; Espalhar cinza a roda da casa aonde esté um defunto, para que o diabo dai no passe a matar outros; Botar cinzas no caminho, quando se Jeva um doente, para que 0 diabo nao v4 atras dele; Esfregar uma crianga com porco do mato e lavé-la com Alod, para que, quando for grande, seja bom cagador e bom bebedor, Nao sair de casa de madrugada, para nfo se topar com a bexiga no caminho; Fazer vinho, derramé-lo no chao e varrer o adro da casa para correr com as bexigas (Mamiani, 1942 {1698}. 84-85). interessante este didlogo porque denuncia um mundo em pleno rebuligo, onde a desordem instaurada pela presenga européia, com a introdugao de contégios ¢ de uma mortalidade exacerbada, colocava em confronto sistemas de cura e de erenga. Os detathes sobre as priticas rituais ligadas & doenga e 4 morte nio se referem, obviamente, a coisas do passado, superadas pela nova comunidade cristd que desabrochava nas aldeias missiondrias, Pelo contrario, constituiam tragos persistentes que mostram alguns dos limites do processo de conversio. © padre Mamiani também aproveitou outros mandamentos para comentar aspectos da transformago dos Kariri em indios, No caso do terceito mandamento, por exemplo, a explanaydo do discipulo mostra um esforgo em caracterizar atividades cotidianas em categorias de trabalho. “No Domingo ¢ dia santo nao se trabalha na roca; ndo se fevanta nem se cobre a casa; no se cortam paus no mato; ndo se cose; nao se fia; enfim se deixa todo o trabalho.” O que st faz nesses dias, em suma, é ouvir missa, rezar € escular @ pregagio do padre. “Tudo isso é melhor do que beberem vinho ¢ fazerem seus folguedos”. Contudo, a questo do trabalho era determinada nao apenas no ambito da missdo_mas no contexto mais amplo da colonizagio, como ensina o didlogo: diferentemente dos brancos, os indios nio “slo obrigados a deixar de trabathar todos os dias santos”, porque na primeira metade do século XVI 0 papa Paulo III “eoncedeu [uma bula} aos indios para que possam trabalhar em alguns dias santos”. A explicagiio do quinto mandamento & mais interessante ainda, proibindo que se mate “o nosso préximo ou com flecha, ou com faca, ou com pau, ou com pegonha” Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 51 Contudo, o castigo com a pena de morte nao é considerado pecado, lembrando aos indios que a autoridade divina tinha seus prepostos na justiga colonial: ‘Mestre: Pecam logo também os que governam, quando mandam enforcar ou cortar a cabega, ou por na cadeia os malfeitores? Discipulo: Nao pecam, porque os Governadores estio em lugar de Deus, 0 qual comunicou-lhes o poder para castigar os matfeitores. Assim também 05 pais ¢ mies podem castigar seus fillos ¢ é bem agoiti-los para largarem 0 ruins costumes. Conforme esse tltimos didlogos sugerem, a conversio podia significar, para os indios, muito mais que uma experiéncia religiosa: tratava-se da aquisigao de um idioma capaz de traduzir 0s sentidos © os limites da dominagao colonial. Assim, longe de um simples mecanismo de dominagdo, a converse estabelecia um campo de mediagao determinando nao apenas os contornos da submissie dos indios como também oferecendo instrumentos para a contestagao (Rafael, 1988, 7). Nao é por acaso que entre as principais liderancas de movimentos de subordinagao ¢ de insurreigdo varias tinham suas raizes numa experiéncia nas misses ¢ até mobilizaram um discurso profético cristo, E 0 caso da célebre “Santidade de Jaguaripe”, movimento profético que eclodiu no Recéncavo baiano nas iiltimas décadas do século XVI, liderado por um indio que havia sido eristianizado pelos jesuitas na aldeia de Tinharé, na Bahia, ou da revolta liderado por Amaro, oriundo de uma aldeia missiondria no Pernambuco, que incitou @ revolta dos chefes tupinambas através da simulagao da leitura de cartas escritos em portugués."” ‘Nas linhas € entrelinhas dos catecismos, € no dia a dia das missdes, vem a tona @ tensfio entre 0 projeto jesuitico de transformar os indios num rebanho inerme ¢ 0s projetos dos indios de manter elementos cruciais do sew modo de ser.”” No que diz respeito aos Tupi da costa e aos Kariri do sertéo, nenhum dos projetos parece ter vingado, mesmo porque 0 prognéstico lagubre de Anténio de Aradjo, de que a lingua tupi Sobre a santidade, ver Vainfas (1995). O incidente envolvendo Amaro ¢ narrado em Berredo (1989 [1749)) © para uma brilhante releitura desse embate nas missbes tupinambis no séeulo XVI, ver Viveiros de Castro (1992) Capitulo 2: A Lingua Mais Usada na Costa do Brasil 52 persistiria muito mais que os proprios indios do litoral, também se confirmava entre 05 Kariri, Mes a historia que estes registros contam ¢ mais rica © surpreendente. Instrumentos de tradugto, os catecismos, vocabulérios e artes de gramiitica traduziam mais que as palavras: traduziam tradigdes, algumas que deixaram de existir, outras que se alteraram de modo irreconhecivel ¢ outras ainda que até hoje merecem 0 nosso reconhecimento e respeito CAPITULO3 Entre o Etnocidio ea Etnogénese Identidades Indigenas Coloniais’ EM SUA HisTOnut Do BRASTL, ESCRITA EM 1627 porém impressa apenas no inicio do século XX, Frei Vicente do Salvador faz mengdo & obra de um certo D. Diego de Avalos, “yizinho de Chuquiabue no Peru”, que tragava as origens dos indios americanos a Peninsula Ibérica, mostrando as possibilidades © os limites das Fantasias que 0, descobrimento do Novo Mundo suscitava, Existia uma gente barbara, segundo D. Diego, integrada por comedores de came humana, que hebitavam uma regiio serrana da ‘Andaluzia, Dizimados pelos espanhdis em guerras, alguns poucos remanescentes deixaram aquela terra e “embarcaram para onde a fortuna os. guiasse”, passando primeiro pelas Canarias, depois Cabo Verde e, finalmente, Brasil. “Sairam dois irmos por cabos desta gente, um chamado Tupi e outro Guarani; este iltimo, deixando © Tupi povoando 0 Brasil, passou a Paraguai com sua gertie ¢ povoou Peru” (Salvador, 1982 [1627], M2 Frei Vicente nao deu menor crédito a este relato fantistico, mas aproveitou para afirmar que tinha a certeza de que os poves indigenas originaram de outro lugar que no a ‘América, “porém donde ndo se sabe, porque nem entre eles hi escrituras, nem houve algum autor antigo que deles escrevesse”. Ao localizar a origem dos indios er algum recanto remoto da Espanha, D. Diego talvez procurasse dizer alguma coisa a respeito da unidade da espécie humana, refletindo sobre a proximidade antiga entre os indios € os colonizadores. Ao mesmo tempo, no entanto, fornecia uma narrativa - de forma * Texto inédito, uma versZo muito diferente foi preparada para o Colaquio “Tempo indios”, realizado no Museu Nacional de Etnologiz em Lisboa emi 2000, Agradego © convite de Joaquim Pais de Brito que ocasionou a elaboraao deste trabatho 2 Nao consewui localizar outtas referéncias a este autor. Possivel erro do copista, Chuquiabue deve ser uma ceferéacia a Chuquisaca, no Alto Peru (Bolivia), local proximo ao Paragual: dai a referéncia aos Guarani. De qualquer mado, a mengdo pelo frei Vicente cetamente decorre do fluso de noticias que acompanhavam as mercadorias dos peruleiras, comerciantes pontugueses que frequentavam o Peru eo Alto Peru neste periodo (ef. Aleneastro, 2000, 110-112) Capitulo 3: Entre 0 Etnacidio e a Etnogénese 54 encapsulada ~ da conquista dos povos amerindios, mais precisamente dos ‘Tupi do Brasil ¢ dos Guarani do Paraguai, entre os quais 0 canibalismo, o despovoamento ¢ a migragdo foram elementos marcantes. De qualquer modo, a versio do colono espanhol é to interessante pelo seu conteiido especifico quanto pela sua explicagfio da origem dos nomes étnicos para os povos indigenas da América colonial. Perseguidos, dizimados, seus remanescentes afugentados, os povos que se recompuseram no Novo Mundo tomaram o nome de seus chefes como: autodenominagdo, Ademais, a composig&io especifica das etnias, no aval de D. Diego, havia sido fruto de um provesso historieo de contata e de conquista Na exata contramao desse registro europeu, surgiu um relato mais ou menos so’vo na Histéria da Missao dos Padres Capuchinhos, do francés Claude 4” Abbeville, reproduzindo 0 notével discurso de Momiboré-uacu, um ancido tupinamba na ilha de So Luis: Via chegadu dos poriugueses em Pernambuco ¢ Potitt (...) De inicio, os porlugueses nado fastam sendo traficar sem pretenderem fixar residéncia. Ness: época, dormiam livremente com as raparigas, 0 que os nossos companheiros de Pernambuco reputavam grandemente honroso. Mais tarde, disseram que nbs deviamos acostumar a eles @ que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, ¢ edificar cidades para morarem conosco, E assim parecia que desejavam que constituissemos uma sé yr gue no pecliam tomar as raporigas nagio. Depois, comegaram a diz sem mats aguela, que Deus somente thes permitia possut-las por meio do casamento ¢ que eles nao podiam casar sem que elas fossem batizadas. E para isso eram necessdrios pat [isto €, padres]. Mandaram vir os padres; ¢ estes ergueram cruses @ principiaram a instruir os nossos ¢ a batizé-los. Mais tarde afirmaram que nem eles nem os pat podiam viver sem escravos ‘para os servirem e por eles trabatharem. E, assim, se viram constrangides os nussos a fornecer-thos. Mas niio satisfetos com os escravos capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos ¢ acabaram +e com tal tirania e crueldade a trataram, que excravizando toda a nagéi Capitulo 3: Entre o Einocidio e a Etnogénese 55 os que ficaram livres foram, como nds, forcados a deixar a regido (Abbeville, 1975 {1614], 115, énfase minha). Do mesmo modo que o frei Vicente contestou a veracidade das afirmagdes de D, Diego, poder-se-ia duvidar da autenticidade do relato de Momboré-uagu: afinal de contas, segundo o historiador eapuchinho que transcreveu a narrative, o ancio era velho mesmo, contando nada menos que 180 anos de idade. Chama a atengdo, no entanto, @ maneira pela qual se reconstituia a conquista a partir de uma perspectiva indigena, “[PJarecia que desejavam que constituissemos uma s6 nagZo": esta foi a leitura que os Tupinamba fizeram nos primérdios do contato, quando 2s relagdes pareciam obedecer a légica da sociedade indigena. Nao contentes com isso, os novos aliados comegaram a subverter as expeciativas dos indios, interferindo diretamente nos dominios do parentesco, da guerra e, com a presenga cada vez maior dos padres, no do sagrado. A busca insaciavel por escravos ~ aqui, de maneira siznificativa, a missio jesuitica € apresentada como forma de escravidio - primeiro envolvia os indios como fornecedores de escravos através da guerra e depois submetia os membros do proprio grupo ao cativeiro. Para preservar a liberdade, restava-lhes apenas a opgdo de “deixar a regio”, Este mesmo tipo de andlise ja foi realizado, ha bastante tempo, por Florestan Femandes (1975a). Entretanto, prisioneiros das estruturas que 0 etnélogo construiu em seu meticuloso modelo funcionalista, os Tupinamba de Florestan s6 sobreviveriam ao impacto da conquista através da migragio, como haviam feito os grupos egressos de Pernambuco que teriam reconstituido a coeréncia tribal em lugares distantes da presenga européia, Nesse sentido, davam as costas 4 historia para ndo ser vitima dela. Mas ha outras leituras possiveis. Cresee, na bibliografia etnohistorica das ‘Américas, a idéia de que 0 impacto do contato, da conquista e da historia da expansio européia ndo se resume apenas na dizimagao de populagdes € na destruigao de sociedades indigenas. Esse conjunto de choques também produziu novas sociedades ¢ novos tipos de sociedade, como bem apontam Stuart Schwartz € Frank Salomon (1999, 2:43). De acordo com Guillaume Boccara (2000), “vém sendo amplamente reconhecidos 0 carater construido das formagdes sociais e das identidades, assim como 0 dinamismo das culturas ¢ ‘tradigdes’”, Desta feita, esse autor busca desmantelar a radical oposi¢ao entre “pureza origindria/contaminagio pés-contato”, bindmio que teima em resistir, sublinhando-se 0 Capitulo 3: Enire 0 Etnocidio e a Etnogénese 56 processo continuo de inovagdo cultural Langando mio de nogdes tais como “etnogénese”, “etnificagdo” © “mestigagem”, Bocarra fornece um roteito bastante instigante para se pensar os processos de transformago desencadeados pela conquista ov, melhor dizendo, pela expansio européia. Para outros autores, como Neil Whitehead (19930, 285), estes processos de transformagdo enfeixam fendmenos bem distintos, “abrangendo desde a total extingdo de certas formagdes étnicas, a persisténcia de outras, & invengo de outras ainda” Cada vez mais presente nestas abordagens, 0 termo “ctnogénese” ganha novos sentidos quando pensado enquanio articulagdo entre processos end6genos de transformagdo processos extemos introduzidos pela crescente intrusio de forgas Higadas 208 europeus, Na introdugdo de sua coletinea sobre a etnogénese, o antropdlogo Jonathan Hill (1996, 3) propde uma abordagem que vai além de uma definicdo tributiria da antropologia cultural norte-americana, na qual seria a “origem histérica de um povo que se auto-define a partir de seu patriménio sociocultural e linguistico”. Para Hill, trata-se também das estratégias culturais € politicas de atores nativos, buscando “criar {e renovar] identidades duradouras num contexto mais abrangente de descontinuidades ¢ de mudangas radicais”, Colocado de outra maneira, para apreender 0s processos culturais em jogo, nfo se pode tratar as sociedades indigenas como culturas locais em isolamento; no entanto, Hill, evidentemente em reagio a teses globalizantes que, apesar de datadas, se mostram ainda bastante resistentes, adverte que ndo se pode entender as formas especificas de etnogénese apenas a partir das relagdes entre sociedades subalternas ¢ as estruturas de dominagdo e de poder. Assim, escreve Hill, “{plara além das lutas de um povo para manter a sua existéncia diante de uma histéria caracterizada por mudangas radicais e, no mais das vezes, imposta de fora para dentro, a etnogénese também esta enraizada nos conffites internos ¢ entre povos indigenas ¢ afro-americanos”. ‘Acompanhando a abordagem de Boccara, que trabalha mais especificamente soviedades em situagdes de “fronteira”, Gary Clayton Anderson (1999, 4) enfatiza “a ado consciente [agency], a contestagio ¢ a criatividade cultural indigena” na resposta & presenga espanhola nas fronteiras setentrionais da coldnia, Segundo o autor, a etmogénese esti radicada no processo no qual “pequenos bandos transformaram as suas culturas para se unir a outros grupos, abandonando as suas linguas, suas priticas sociais e mesmo Capitulo 3: Entre 0 Emocidio e a Emogénese 57 Processos econdmicos para atender as demandas da nova ordem”. Tais processos envolviam a incorporagfo de elementos de outras etnias (no caso dos cativos, por exemplo) bem como a “reinvengio e incorporagdo” de priticas ¢ de tecnologias dos europeus, como 0 cavato e 0 comércio, O autor também ressalta de forma interessante a questo da “distribuigiio de recursos”, mostrando como as hierarquias sociais foram reorientadas na consolidagdio de poder © riqueza por certos segmentos, como entre os mais velhos, por exemplo, ou entre 05 caciques. Inovador, livro de Anderson mostra como se pode trabalhar com fontes “externas” para estabelecer algumas pistas sobre as posturas ¢ as transformacGes das sociedades nativas face ao avango dos europeus. Esta perspectiva é importante & medida que busca sublinhar a dindmica intema dos processos de “reaco a conquista”, porém se distanciando da abordagem de Florestan Fernandes que pressupunha 0 restabelecimento do “equilibrio do sistema organizatério tribal” como a chave da sobrevivéncia étnica plena (Fernandes, 1975a), No entanto, se as, novas perspectivas passam a enfatizar a ago consciente ¢ criativa de atores nativos, ago essa informada tanto por cosmologias arraigadas quanto por leituras da situagao colonial, ainda falta definir mais claramente quais so as unidades sociais relevantes, antes depois da chegada dos curopeus. Eduardo Viveiros de Castro (1993, 32), em sua ‘excelente critica ao livro Histdria dos Indios no Brasil, chama a atengio para esta problematica, observando que “{o] congelamento e o isolamento das etnias é um fendmeno socioldgico e cognitivo pés-colombiano™. Para Viveiros de Castro, a atribuigao de etnnimos era “fruto de uma incompreensio total da dindmica étnica e politica do socius amerindio”, incompreensio essa fundamentada num conceito “substantivista € “nacional-territorialista’”, longe da “natureza relativa e relacional das categorias étnicas, politicas e sociais indigenas”. Neste sentido, pelo menos para as terras baixas da América do Sul, 0 mosaico etno-histérico do mapa pés-contato contrasta com um panorama pré- colombiano que mais se essemelha a um caleidoscépio. ‘Mas, se a essencializagao das categorias étnicas foi fruto de um equivoco, este ‘equiveco trazia uma certa intencionalidade. Na verdade, a operago colonial de classificar 0s povos subordinados (ou potencialmente suibordindveis) em categorias io fundamental da dominago colonial, como bem naturalizadas ¢ estanques - condi Jembra Nicholas Dirks (“Foreword” i Cohn, 1996, xi) — remete aquilo que Baccara Capitulo 3: Entre 0 Etnocidio e a Etnogénese 58 chama de “etnificasZo” ou, para outros, “tribalizagdo”. Aspecto fundamental na formagao de aliangas e na determinagao das politicas coloniais ~ mesmo em dreas “centrais” como ‘no México ou no Peru, diga-se de passagem ~ a tendéncia de definir grupos étnicos em categorias fixas serviu no apenas como instrumento de dominagfe, como também de pardmetro para a sobrevivéncia étnica de grupos indigenas, balizando uma varedade de estratégias geralmente enfeixadas num dos polos do inadequado bindmio acomodagaoy resisténcia. Isto vem obrigando os estudiosos a tratar 0 cipoal de etnénimos com mais cautela ¢ rigor, sobretudo no que diz respeito & relago entre as formas sociais pré- coloniais ¢ as unidades sociais posteriores 4 instalago de populagdes europtias © africanas nas Américas. Neste sentido, hd uma relagio intrinseca entre a classificagaio étnico-social imposta pela ordem colonial e @ formagao de jdentidades étnicas. E importante lembrar, no entanto, que as identidades indigenas se pautavam nfo apenas em relagdo as origens pré-coloniais como também em relagdo a outras categorias ~ indigenas ou no ~ que gestaram no contexto colonial das Américas. Pode-se comegar pelos préprios europeus, to unos ¢ diversos: faz-se necessirio sublinhar nfo apenas os jogos identitérios que diferenciavam as poténcias européias no Novo Mundo (ef. Seed, 1995 Perrone-Moisés, 1997) como também as clivagens internas a cada unidade “nacional”. Na América Portuguesa ~ nfo diferente da América Espanhola ~ pesavam as distingdes definidas @ partir das origens religiosas (com a presenga importante de cristios novos), da nogio de purera de sangue ¢ da condigéo social. De mesmo modo, outro fenémeno pouco estudado de um ponto de vista antropolégico diz respeito as origens étnico-nacionais diversas entre 6s jesuttas que atuavam nas missdes, objeto de uma acirrada controvérsia no século XVIL ¢ condig&o subjacente a praticas de catequese distintas. > Finalmente, & preciso prestar mais ateng&o as novas categorias sociais que foram constituidas no bojo da sociedade colonial, sobretudo 05 marcadores étnicos genéricos, tais como “carijés", “tapuios” ou, no limite, “indios”, Se estes novos termos no mais das " No Brasil, esta diferenga se manifestava claramente nas aissdes entre os Karirt nos séculos XVI fe XVIII (Pompa, 2001), merece ser estudado em outros lugares, sobretudo aa Amaxénia da primeirs Inetade do sécalo XVIUL. A dispute entre missionérios portugueses ¢ “estrengeicos” também foi central & historia das misses orientals, nas quais alguns jesutas italianos chocavam a ortadoxia dos ponugueses com priticas “transculturais", isto €, adotando costumes nativos. Ver, entre outros, Alden (1996, esp, 267 22) Capitulo 3: Entre o Etnoctdio e a Etnogénese 59 vezes refletiam as estratégias coloniais de controle ¢ as politicas de assimilago que buscavam diluir a diversidade étnica, 20 mesmo tempo se tomaram referéncias importantes para a propria populag&o indigena, Assim, os indios coloniais buscavam forjar novas identidades que nio apenas se afastavam das origens pré-coloniais, como também procuravam se diferenciar dos emergentes grupos sociais que eram frutos do mesmo processo colonial, 0 que se intensificou com a ripida expansto do trifico transatlantico e o correspondente aumento de uma populagio africana e afrodescendente. Com o crescimento destes outros setores populacionais, parece ter havido uma crescente estigmatizagdo dos indies, separados de e opostos a outras categorias étnicas € fenotipicas, tais como brancos, mestigos, negros (Sider, 1994, 112), Seria precipitado, no entanto, chegar a uma conclusdo definitiva sobre este processo na América Portuguesa, mesmo porque ainda sabemos pouco sobre as relages tio ambiguas quanto complexas que existiam entre sociedades indigenas ¢ quilombos, por exemplo, ou entre escravos indios e escravos afrieanos,* Etnocidio Na poca em que Diego de Avalos, Momboré-uacu e frei Vicente do Salvador narraram as suas historias, 0 litoral brasileiro jé havia pasado por uma terrivel hecatombe. A exploraglo, coméreio e colonizagio dos europeus na América desencadearam transformagdes profundas nas sociedades indigenas através de diversos mecanismos, alguns implementados conscientemente, outros introduzidos sem 2 mesma intencionalidade. No Brasil, 0 triplice avango dos soldados d’el Rei, dos soldados de Cristo e, sobretudo, dos soldados microscépicos de uma invasto de patégenos afetou radicalmente a inimeras sociedades, sobretudo os diferentes grupos Tupi da Costa. Certamente o fator que mais atingiu as sociedades da orla maritima no decorrer do século XVI foi o alastramento de doengas antes desconhecidas nas Américas, manifestando-se de maneira mais brutal ¢ impiedosa nos repetides surtos epid&micos que ceifavam a vida de mithares de vitimas. * Embora nio tenka atingida o patamar dos estudos sobre o Caribe e as Guianas, este tema tem sido objeto de varios trabalhos interessantes recentemente, Ver, por exemplo, a coleténea organizads por Gomes (1999), No que diz respeito a aproximagio entre antropologia histéria no estudo de comunidades indigenas e de “remanescentes” de quilombos, veja-se 0 instigante artigo de Arruti (1897), Capitulo 3: Entre o Etnocidio ¢ a Etnogénese 60 Conforme lembra Neil Whitehead (1993b, 288-291), & preciso matizar as ondas destrutivas das doengas epidémicas em termos temporais ¢ espaciais. Segundo ele, os autores que enfatizam tio somente a dimensio trigica do despovoamento tendem @ imputar um carder demasiadamente uniforme ao alastramento das epidemias”, deixando de lado fatores importantes que ora intensificavam, ora amenizavam a transmissfio de patégenos, Dentre esses fatores, as diferengas ecol6gicas, os padrdes de alimentaglo e, cobretudo, as “respostas ativas” dos indigenas as epidemias podiam determinar diferengas significativas no desfecho dos contigios. Do mesmo modo, diferentes regimes de trabalho ou de missionagao condicionaram a ago ¢ impacto das doengas, produzindo escalas bastante diferenciadas de mortalidade (Newson, 1985). Um ponto crucial apontado por Whitehead diz, respeito 4 defasagem entte os primeiros contatos ¢ os principais episédios epidémicos que assolaram as populagdes do Titoral Ao mesmo tempo, porém, & admissivel supor que 0 inverso fosse verdadeiro também, isto é que algumas sociedades indigenas conheceram as doengas antes do contato direto com portadores europeus, mestigas ou afticanos. Seja como for, no litoral brasileiro do século XVI 0 contato direto ja havia atravessado cinco décadas antes da eclosio das primeiras pandemias. Longe de constituir um varidvel independente no despovoamento do litoral, a mortalidade provocada por doengas contagiosas atingiv seus pontos mais altos quando conjugada com outras mudangas importantes nas relagdes entre colonizadores e indios. Afinal de contas, foi na esteira das ofensivas bélicas promovidas pelo governador Mem de Sé'e do processo concomitante de deslocamento das populagdes indigenas para as aldeias missionérias que ocorreram as primeiras grandes epidemias, com destaque para o alastramento da variola pelo litoral de Pemambuco a Sao Vicente em 1562-63 (Dean, 1984; Alencastro, 2000, 127-133; e Monteiro, 1999, esp. 996-1009). ‘As doengas letais semearam a desordem entre a populag8o nativa, sobretudo naquela subordinada aos missionérios e aos colonos. Anchieta, rememorando este grande surto epidémico, escreveu em 1584: ‘No mesmo ano de 1562, por justos jutzos de Deus, sobreveio uma grande doenga avs Indivs e escravas dos Portugueses, & com isto grande fome, ‘em que morrent muita gente, e dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos Portugueses ¢ se fazer escravos, vendendo-se Capitulo 3: Entre 0 Etnoctdio ¢ a Etnogénese 61 por um prato de farinha, e outros diziam, que thes pusessem ferretes, que queriam ser escravos: foi tio grande a morte que dew neste gentio, que se dizia, que entre escravos e Indios forros morreriam 30.000 no espago de 2 ou 3 meses (Anchieta, 1988, 364). No mesmo relato, Anchieta buscou quantificar a dramética queda na populagdo da Bahia: A gente que de 20 anos a esta parte é gastada nesta Baia, parece coisa, que se nao poule erér; porque nunca ninguém cuidou, que tanta gente se gastasse mmca, quanto mais e tito pouco tempo: porque nas 14 igrejas, que os padres tiveram, se jumaram 40.000 almas, estas pur conta, ¢ ainde passaram delas com a gente, com que depois se forneceram, dus quais se agora as trés igrejas gue hd tiverem 3.500 almas serd miita (Anchista, 1988, 385) Infelizmente, sabemos relativamente pouco a respeito das respostas dos Tupi aos surtos epidémicos.* As cartas dos jesuitas no inicio da colonizagao dizem algo sobre a percepgdo dos indios com relagao a origem das doengas, claramente associada & presenga dos padres. Pouco depois de chegar no Brasil, o padre Manuel da Nobrega se espantou nao apenas com a frequéncia das doengas entre a populagio batizada pelos jesuitas, mas também e sobretudo com a acusagao veiculada pelos “feiticeiros", ou xamis, de que os missionérios infligiam a doenga com a gua do batismo € causavam a morte com a doutrina. Um pouco mais tarde, de acordo com a descrig&o do padre Francisco Pires, os indios comegaram a tomar atitudes para evitar os missionarios de vez: “Fugiam os gentios [dos padres e irmaos] como da morte e despejavam as casas ¢ fugiam para os matos; outros queimavam pimenta por Thes n&o entrar a morte em casa. Levavam cruz alevantada a que haviam grande medo ¢ vinham alguns ao caminho a rogar aos Padres que Ihes no fizessem mal, que passassem de largo mostrando 0 caminho e, tremendo como a verga, niio queriam ouvir as pregagdes”. Uma dimenséo do terror que as + Um excepcional exercicio nesse sentido, enfocando as interpretagdes dos Ianamami referente as epidemias associadas dirctamente & ago e magia cos brancos, €0 texto de Albert (1992). Capitulo 3: Entre o Emocidio e a Etnogénese 62 epidemias traziam est inscrita na dramética palavra tupi para a varicela: catapora, 0 “fogo que salta” (cf. Alencastro, 2000, 129). Para além da agiio dos missionirios que, no affi de proteger os indios, semeavam as condigdes para a sua destruigdo, outras atividades coloniais também espalhavam os contagios pelos sertoes da América. Egressos de Sao Paulo, Salvador, Sao Luis ¢ Belém, 0 sertanistas que paimilharam o interior em busca de escravos ¢ de riquezas minerais constituiram os principais agentes do contato durante os primeiros séculos da colonizagio. Se 08 relatos coévos ¢ modemos tendem a realgar a violéncia das bandeiras € das tropas de resgate como fator de despovoamento, nfo se pode desprezar a ago das doencas nesses movimentos de grande envergadura. Muitas vezes foi depois de uma epidemia que se organizava as grandes expedig@es; do mesmo modo, a introdugo de elevados niimeros de cativos ou de cateciimenos doentios contribuia para a insalubridade piiblica nas unidades coloniais (Monteiro, 1991), Alguns autores, como Sérgio Buarque de Holanda, chegaram a sugerir que os paulistas colocavam os recém egressos do sertio numa espécie de quatentena, menos por precaugdo epidemiolégica do que para efeitos de controle social e de redistribuigdo posterior entre os cotonos (Holanda, 1990, 183). Resumindo, uma primeira tarefa que cabe a0 historiador dos indios diz respeito a reformulagdo do quadro de radical descontinuidade entre as dinimicas pré-coloniais ¢ pés-contato (ef, Sider, 1994). E preciso conhecer melhor os contornos e o impacto das epidemias, dos deslocamentos espaciais ¢ das mudangas na forma de guerrear, fatores estes que contribuiram para transformagées fundamentais nas sociedades indigenas. No entanto, ao invés de enfocar to somente a dilapidagao das sociedades nativas no proceso de conquista — termo este usado com maior frequéncia na historiografia, substituindo a inécua idéia de “colonizago” ~ torna-se interessante levar em conta o surgimento de diferentes ¢ divergentes formas de sociedades nativas apés a contato ou a conquista. Etmogéneses Dentre as novas configuragtes €tnicas e sociopoliticas que surgiram apés a conquista, destacam-se em primeiro lugar aquelas articuladas de algum modo com o projeto colonizador, seja como aliados, inimigos ou mesmo refugiados. O envolvimento Capitulo 3: Entre o Etnocidio e a Etnogénese 63 ‘em guerras coloniais, em rivalidades intra-curopéias ou no crescente trifico de cativos indigenas mostrou-se uma importante estratégia para varios grupos que buscaram resguardar a sua autonomia, paradoxalmente através desta “colaboragio”. Os fendmenos de “ethnic soldiering” (especializagio bélica de alguns grupos étnicos ou, ainda, a incorporagdo de determinadas etnias nas tropas coloniais), estudado por Neil Whitehead (1990), ou do comércio envolvendo intermediarios indigenas que forneciam cativos (Monteiro, 1994a; Farage, 1991) implicavam em muito mais que a mera manipulagto de rivalidades pré-coloniais; antes estes processos sinalizavam muitas vezes a emergéncia de novas unidades sociopoliticas, apesar de identificados pelos primeiros escritores coloniais em termos cada vez mais fixos e estiticos. Em seu interessante estudo sobre a einogénese mapuche no Chile, Guillaume Boccara traga a transformagdo da guerra de sua forma pré-colonial para a forma pés- contato da matoca, um empreendimento de pilhagem voltado para 2 aquisigzo de bens de origem européia ¢ para 0 fortalecimento dos caciques que exerciam um “novo tipo de poder” (Boocara, 1999, 442). Este desloeamento da atividade guerreira também se desdobrava em alaques constantes aos indios “amigos”, isto é, aliados aos espanhdis, que constituiam uma importante fonte de cavalos, Neste sentido, a exemplo de tantos outros ‘grupos em situagdes de Fronteira nas Américas, os Mapuche articulavam a sua identidade de modo algo paradoxal, valendo-se da imbricagdo com a esfera colonial para se manter efetivamente indeperdente dela Com referéneia ao Brasil, muito tem sido escrito sobve a guerra Tupinambé, porém praticamente nada sobre 2 sua transformagio, Florestan Fernandes chegou @ esbocar um plano de trabalho sobre a “fungdo social da guerra” na sociedade colonial, porém o seu engajamento no projeto da Unesco acabou adiando o trabalho que nunca chegou a ser concretizado plenamente* A documentagdo colonial de fato aponta para um processo de reorientacdo da guerra, qual seja através dos testemunhos que reclamavam da venda dos cativos de guerra — ai incluidas Momboré-uagu, como vimos acima — seja através da especializagao de certos grupos como fornecedores de eseravos, Ha também situagdes andloges ao caso dos Mapuche mencionado acima. Sio muito bem © Bstou desenvolvendo este tema num ensaio ainda inconeluso, com 0 titulo “O Livro que Florestan Femandes Nao Escreveu” Capitulo 3: Entre 0 Etnocidio e a Etnogénese 6+ documentados os exemplos Guaicuru e Paiagud no extremo oeste da América Portuguesa no final do século XVII e atravessando o século XVII (Vangelista, 1991), bem como de outros grupos de “corso” —0 melhor exemplo ¢ dos temiveis Muras, estudados por Marta Amoroso (1992) ¢ por Da os frequentes ataques aos portugueses ¢ seus aliados indigenas. Assim, grupos Sweet (1992) — que orientavam as priticas guerreiras para provavelmente pouco expressivos — ou mesmo inexistentes ~ no periodo pré-colonial atingiram uma proemingncia no contexto colonial (Whitehead, 19936, 297) Mesmo etnias que tiveram uma presenga destacada no panorama pré-conquista, passaram por mudangas significativas ao reformular a guerra diante do novo quadro de aliangas e inimizades, como no caso dos Tupinambé que se deslocaram para o Medio Amazonas, © holandés Mauricio de Heriarte, que acompanhou a grande expedi¢lo de Pedro Teixeira pelos rios Amazonas e Napo em 1637-38, descreveu os habitantes da Ilha ‘Tupinambaranas como descendentes dos Tupis do liter O principio destes indios Typinambaranas nd foi de naturais desse rio. Dizem que, no ano de 1600, sairam seus antepassados do Brasil em trés tropas, em busca «lo Paraiso Terreal (coisa de bérbaros) rompenclo ¢ conguistando terras, @ que havendo caminkado muito tempo ehegaram Aquele sitio, que acharam abundante e cheio de indios naturais; e por ser bono sitiaram e conguistaram os seus naturais, avassalandlo-os, ¢ com 0 tempo se easaram uns com os oulros, € se aparentaram; mas nao deixam de conhecer 0x nuturais @ superioridade que os Tupinumbarancs tm eles (apud 5. Fernandes, 1997, 136). Continuando, Heriarte fez uma outra observagdo preciosa: “So os mais belicosos indies destas partes, mui senhores ¢ liberais, bem dispostos, mas muito traidores, camiceiros, ¢ era a gente que mais came humana comia nesse rio, do que a comunicagdo dos Portugueses os tem tirado em muita parte”. Nesse caso especifico, a antropofagia foi lida pelo viajante holandés como uma expressao importante da identidade do grupo, tanto em referéncia ais demais etnias da ‘Amazénia quanto no que diz respeite aos descendentes dos antigos Tupinambé que ainda viviam no litoral. Nesse sentido, a reinstituigdo do canibalismo por um grupo que muito Capitulo 3: Entre 0 Etnocidio e a Etnogénese 65 provavelmente fora obrigado 2 abandoni-lo quando passou pelas misses de Pemamtbuco, talvez se assemelhasse aos casos estudados por Whitehead na Guiana (19936, 297), nos quais surgiram cultos canibais como expressiio de um radicalismo tnico que embasava « resisténcia e a autonomia desses povos. Os Tupinambé do litoral, sob 0 controle dos colonizadores, parecem ter seguide um eaminho diferente, como mostram de maneira convincente Eduardo Viveiros de Castro ¢ Manuela Cameiro da Cunha (1985). Ainda assim, ha algumas evidéncias para outros grupos que teriam langado mio do canibatismo para demarcar as relagdes com os brancos: este seria 0 caso dos Botocudos nos séculos XVIIT ¢ XIX (ver capitulo 7, abaixo) ou, de uma maneira curiosa, dos Cambeba no século XVIIL Em sua “Memoria sobre 0 gentio Cambeba que habitava as margens ¢ nas ilhas do rio Solimes”, Alexandie Rodrigues Ferreira registrou uma interessante observagao Ha diivida, se os Cambebas erans antropéfagos. Créem muitos que o eram @ sav ainda os que vivem no mato, Tados ox desta Nagdo, que examinei neste particular, me afirmaram que era falva semethante imputacdo, antes dizem ox que descendem das Cambebas, que eles usam do artifieio das suas cabegas para mostrarem que nao comem carne humana, podende assim escopar & escravidde, gue por igual delito ox submetiam os Europeus (Ferreira, 1974 [1783-92], 52). Nos séculos XVI e XVII, a0 longo do litoral, uma longa sequéncia de guerras contribuiu para a o estabelecimento e, por conseguinte, congelamento de grupos étnicos. 'A sequancia é longa: a guerra dos Tamoios, as guerras movidas por Mem de Sé na Bahia eno Rio de Janeiro, a conquista da Paraiba, a conquista do Maranhio e do Pari, a guerra luso-holandesa, © conjunto de conflitos conhecido na historiografia como a Guerra dos Barbaros, a destruigdo dos Palmares, para ficar apenas nos episodios mais marcantes. Guerreiros potiguares, inimigos duros na conquista do Rio Grande do Norte, mais tarde serviram aos portugueses contra os Aimoré de Porto Seguro ¢ Ihéus e chegaram mesmo * Para uma discusséo interessante dos pressupostos que eimbasavam es imagens produzidas pelo raturalista baiano, vejase Carvalho Jr. (2000) Capitulo 3: Entre 0 Emocidio e a Emogénese 66 a combater na outra margem do Attntico Sul, em guerras angolanas (cf. Alencastro, 2000) Se a bibliografia histérica costuma estabelecer um quadro estivel de aliangas inimizades que estava pautada pelos pares de grupos inimigas ~ como no édio imemorial entre Tupinambé e Tupiniquim, ou entre Potiguar e Caeté, ou entre Botocudo ¢ Puri ~ a documentacao revela abundantes exemplos de grupos que destizaram de uma alianga para outra de acordo com as condigdes que enfrentavam, A chamada “Paz de Iperoig”, na qual os refins jesuitas Nobrega ¢ Anchieta teriam persuadido 0s Tamoio a abandonarem a guerra, proporciona um primeiro exemplo de uma mudanga radical no quadro de aliangas (Monteiro, 1994, 39-40). Do mesmo modo, quase um século mais tarde, Antonio Vieira relatava a trajetoria algo volétil dos Tobajara da Serra de Ibiapaba, que até 1630 eram catectimenos dos jesuitas, depois se confederaram com os holandeses quando estes “se fizeram senhores da fortaleza do Ceari”, combatendo tanto os portugueses no Maranho quanto “os Tobajaras que 14 havia de sua propria ago. Insatisfeites com os aliados batavos, que os remuneravam apenas com a mortalidade exacerbada, estes Tobajaras “resolveram vingar neles {os holandeses) as vidas dos que naquela empresa tinham perdido, passando todos “A flecha e & espada” (Vieira, 1992 [1656]. 127-28) © que se nota nas fontes quinhentistas ¢ selscemtistas € precisamente a tensto entre a busca de uma unidade Tupi — afirmada no contraste com os Tapuia — ¢ a divisio fragmentaria dos povos do litoral num grande nimero de etndnimos especificos. Como ja vimos (ver capitulo 1), esta tens&o ganhou novos contornos no século XIX, através das releituras que os primeiros historiadores nacionais fizeram dessas mesmas fontes. No entanto, se parte do problema pode ser atribuida as tresleituras de observadores que pouco entendiam da organizacto social amerindia, esses relatos também deixam transparecer algo da percepso indigena do processo de “etnificagio”. Assim, por exemplo, segundo o jesuita Jacome Monteiro, escrevendo no inicio do século XVI, foram os herdis civilizadores que estabeleceram a distingdo entre Tupis © Tapuias: “Dizem mais que este Mafra Tupa dividiu entre eles as linguas para que tivessem guerra com os Tapuias, mas no sabem dar a razio delas” (qpud Leite, 1938-50, 8:408). Mas a divisio entre os grupos Tupis também foi tema de varias narrativas indigenas, teproduzidas pelos escritores coloniais. Ao explicar “de como os indios Capitulo 3: Entre o Etnocidio e a Etnogenese 67 tupinambés se fixaram na Ilha do Maranhao ¢ circunvizinhangas”, 0 capuchinho Claude Abbeville misturou 0 horizonte cristio do Paraiso Terresire com a perspectiva tupinamba sobre os desdobramentos da conquista, Os indios falavam de “um belo pais a que chamam Caeté, floresta grande”, localizado para o sul. Os Tupinambé, “os mais valentes © 08 maiores guerreiros”, habitaram estas terras até que 0s portugueses apoderaram-se detas; diante disso, os indios “preferiram abandonar 0 seu proprio pais @ se entregarem aos portugueses”. Andaram, andaram até chegar no mar ¢ estabeleceram-se ‘em varias aldcias. Outtos preferiram ficar na Serra de Ibiapaba (Abbeville, 1975 [1614], 208-209). ‘As narrativas dos Tupinambé do Maranh&o sobre estas grandes migragdes certamente refletiam os eventos da segunda metade do século XVI que caracterizaram a conquista nas capitanias de Bahia, Pernambuco ¢ Paraiba, O teemo Caete,aliés,referia-se a um dos grupos mais renitentes em sua oposigdo ao avango dos portugueses, sendo objetos de uma crue! declaragio de “guerra jusia” em 1562 ¢ de uma perseguicdo implacdvel por parte dos porlugueses e seus aliados. Mas se os Tupinambi passaram a “embrenhar-se nos matos ¢ nas mais reconditas florestas”, este refiigio servia ndo apenas para escapar dos portueueses como também proporcionava um espage para restabelecer divisbes antigas. O missionério francés explicava que estes Tupinambé estabeleceram varias aldeias, “espalhando-se por aie derivando seus nomes dos lugares de suas residéncias, mas conservando 0 nome de tupinamba que serve até hoje para qualifica- los", Segundo Abbeville, varios indios mais velhos ainda recordavam da chegada no Maranhao, quando realizaram uma grande festa de cauim. Segue a narrativa Aconteceu que, estando todos embriagados, uma mulher esbordoou um companhetro de festa, disso resultando grande motim que provocow a divisiio e a separacao do povo todo. Uns tomaram 0 partido do ofendido outros o da muther e de tal modo se desavieram que, de grandes amigos & aliados gue eram, se tornaram grandes inimigos; e desde entdo se ‘eoncontram em estado de guerra permanente, chamando-se uns aos ouros de tabujaras, 0 que quer dizer, grandes inimigos, ow melhor, segundo a etimologia da palavea: tu es 0 meu Inimigo e eu sou o ten (Abbeville, 1975 [1614], 209, énfase do autor). Capitulo 3: Entre o Etnacidio e a Etmogénese 68 Se o narrador capuchinho errou na etimotogia — tabajara quer dizer “aldeia vizinha” — ele acertou 0 sentido do termo. De fato, em varias partes do litoral brasileiro no século XVI, 0 significado atribuido ao termo tabajara — ou tobajara ~ oscilou entre aliado e inimigo, dependendo do ponto de vista do observador. Talvez o melhor exemplo do caréter relacional ¢ historicamente especifico dos nomes étnicos resida no par de inimigos Tamoio e Tememiné, este primeiro referindo-se a “avés” ou antepassados, o segundo “netos” ou “descendentes”. Ao que tudo indica, 0 termo Tamoio surgiu no bojo da revolta dos Tupinambés que ocupavam o litoral entre Sao Vicente ¢ a Baia de Guanabara no final da década de 1540. Este movimento ganhou falego com a chegada, na década seguinte, dos franceses que estabeleceram uma colénia no Rio de Janeiro. E curioso notar que no relato de Hans Staden, escrito na primeira fase do conflito, néo se menciona nem o temo Tamoio, nem Tememind. O artilheiro alemiio desoreveu 0 seu cativeiro entre os Tupinamb ¢, a0 se referir aos inimigos setentrionais destes, menciona 0s Maracajés. Gatos selvagens, este etndnimo cedeu lugar para Tememing, termo que se consotidou enquanto grupo étnico aliado dos portugueses na tomada de Guanabara e nos combates contra os Tamoio, sendo premiados com terras e honrarias, suas Tiderangas conservando pelo menos até o século XVIII os privilégios ‘outorgados a D. Martim Afonso de Souza Araribéia (M. R. Almeida, 2000). ‘A trajetéria de algumas liderancas potiguares também é ilustrativa dos processos de consolidagdo étnica no contexto das guerras coloniais. O proprio etndnimo suscita discussao: seriam Petiguares — povo do fumo ~ ou Potiguares — povo do camaro? Com 0 tempo, o segundo nome vingou, sendo inclusive aporuguesado na dinastia que se instalou. Mas até os anos finais do século XVI, constituiam 0 mais duro inimigo dos portugueses, ainda mais porque contavam com o apoio de alguns franceses que fomeceram chumbo ¢ pélvora como reforgo para os j& temiveis arcos desse povo. Duramente castigados pelos portugueses ¢ seus aliados tabajaras, acabaram acertando um acordo de paz em 1599. Aceitando © batismo ¢ a alianga com os portugueses ~ e, estranhamente, com os Tabajara ~ concordaram em reorientar os atributos belicos para a supressdo das rebeliges dos Aimoré em IIhéus e Porto Seguro. Sob o comando do chefe Zorobabé, embarcaram seis caravelas com 1300 guerteiros potiguares e tabajaras, que surpreendentemente conseguiram derrotar e escravizar varios grupos Aimoré. Capitulo 3: Entre o Einocidio e a Etogénese 69 Apés uma volta triunfal, Zorobabé foi mobilizado pelo govemnador para assolar um mocambo de “negros de Guing fugides (...) nos palmares do Rio Itapicuru”, varios dos quais ele capturou € vendeu para os brancos, para depois comprar uma “bandeira de campo, tambor, cavalo ¢ vestidos para entrar triunfante em a sua terra”. Chegou a pedir aos franciscanos que “The mandassem uma danga de curumins (...) ¢ lhe enramassem a igroja ¢ abrissem a porta, porque havia de entrar nela”. Mas se a pompa européia o atraia, Zorobabé também queria continuar a “tomar @ vinganga” de seus inimigos e preparou-se para “ir dar guerra ao Milho Verde, que era um principal do serio que lhe havia morto um sobrinho cristo”; mais provavelmente, também visava conseguir esctavos para os portugueses, O presidente da congregacio advertiu “que ja eram vassalos de el-tei e no podiam fazer guerra justa sem ordem sua e do seu govemador geral”. Figura prestigiada, recebia presentes ¢ vinhos dos brancos da Paraiba, “ou por seus interesses de indios por seus servigos e empreitadas, ou por temor que tinham da sua rebelido”, Este uiltimo temor era compertithado pelo governador, que acabou prendendo Zorobabé. Tentaram maté-lo diversas vezes dando-Ihe veneno, porém ele ndo morria, “porque dizem que receoso [da peconha] bebia de madrugada a sua propria cémara e que com esta triaga se preservava e defendia do veneno”, Cada vez mais perigoso, foi enviado para o Reino, primeiro a Lisboa mas, “por ser porto de mar do qual cada dia vém navios para o Brasil em que podia tomar-se”, seguiu para Evora onde faleceu (Salvador, 1982 [1627], 287-292). A trajetéria seguida pela familia Camaro demonstra um outro caminho para os Potiguar apés a conquista. Se a participagao de Antonio Felipe Camarao como fiel aliado dos portugueses na guerra contra a ocupagao holandesa € bem conhecida, é preciso contextuatizar esta figura num plano mais amplo, num mundo colonial onde a alianga, a vassalagem ¢ 0 privilégio constituiram elementos importantes na projegdo de liderangas indigenas, Filho de um poderoso chef potiguar que, no final do século XVI, lutou ao lado de aventureiros franceses contra a ¢xpansio dos interesses portugueses para 0 norte do rio Sao Francisco. Potiguagu - Camarao Grande — foi principal dos Potiguar da margem esquerda do Rio Potengi, no Rio Grande do Norte, ¢ acabou concordando com a paz firmada no Forte dos Reis Magos em 1599. Também admitiu a entrada de missionarios franciscanos entre a sua gente, sendo ele proprio batizado com o nome cristéo de Anténio Camarao em 1612. Estes acontecimentos nfo significaram, contudo, Capitulo 3: Entre 0 Etnocidio e a Etnogénese 70 ixariam de lado as armas, Muito pelo contririo, agora que estes guerreiros potiguares aliados aos portugueses que continuavam a marcha da conquista para 0 norte com o objetivo de tomar o Maranhfo, os potiguares do Potengi se mostraram indispensaveis para o éxito dos portugueses € [uso-brasileiros em varios conflitos que marcaram o conflagrado século XVII, Potiguagu seguiu para 0 Maranhio no comando de seus guerreiros por volta de 1614, porém parece ter morrido no caminko. Nascido por volta de 1601, Antonio Felipe Camaro foi despachado ainda crianga para a aldeia de parentes no’Pernambuco, provavelmente na companhia de outros Potiguares do Rio Grande que foram deslocados para missdes na esteira do acordo de paz de 1599, Foi franciscana de Sao Miguel, aprendendo a ler e escrever. A exemplo do pai, destacou-se riado e doutrinado” ~ nas palavras de um escritor jesufta — na misséo nas atividades bélicas no comando de guerreiros que residiam nas missdes, mobilizados para extirpar as ameagas & presenga portuguesa: franceses, holandeses, quilombolas ¢, sobretudo, inimigos indigenas, Estes diltimos incluiam outros grupos Potiguar, como o da Baia da Traicdo, na Paraiba, que auxiliou os holandeses quando estes tomaram a Bahia de Todos os Santos em 1625. Pelos servigos prestados, o rei Felipe If (IV da Espanha) agraciou este lider indigena com o Habito de Cristo com 40.000 réis de renda anual, além de outros 40,000 réis de soldo pelo patente de Capitio-Mér dos indios Potiguares. Fiel vassalo da coroa portuguesa, Antonio Felipe Camardo foi assim premiado com cargos, honras ¢ rendas em cardter nfo s6 vitalicio como também hereditario. Neste sentido, Francisco Pinheiro Camaro, Diogo Pinheiro Camardo, Sebastiéo Pinheiro Camario Anténio Domingos Camaro sucederam-no como Govemador dos indios de Pernambuco ¢ Capitanias Anexas, instaurando uma verdadeira dinastia nativa (Lopes, 1999). Em Busea do indio Colonial Se, na América Portuguesa, a presenga de dinastias indigenas com titulos de nobreza figurava como algo raro e geralmente ligado aos servigos militares prestados, esta, no entanto, permite vislumbrar um aspecto importante do papel desempenhado por atores indigenas no drama colonial. Com certeza, a insergdo de diferentes grupos indigenas no interior do espaco colonial — ou as margens dele — permanece um tema- chave a ser explorado de maneira mais assidua, até porque yrande parte da documentago Capitulo 3: Entre 0 Etocidio ea Etnogénese 71 inédita em arquivos brasileiros e estrangeiros lida com questdes relacionadas as missdes, terra e ao trabalho dos indios.* Ligado a isso emerge, pouco a pouco, um retrato das liderangas politicas e espirituais que atuaram nas fimbrias do sistema colonial, ganhando um lugar mais seguro como agentes histéricos. Este retrato se contrape, é claro, a abordagem mais consagrada da resisténcia indigena, considerado no mais das vezes como utna reagdo coletiva naturalmente em defesa das tradigdes milenares. Alguns trabathos recentes tém sublinhado a necessidace de revisio de temas to diversos quanto a chamada conquista espiritual, a escrevid’o dos indios, o trabalho nas misses ¢ as comunidades sob o regime pombalina® As aldeias missiondrias proporeionaram um espaco importante para a reconfiguragio das identidades indigenas 20 longo do periodo colonial (M. R. Almeida, 2000). Apesar do esforgo de mostrar 0 quanto os novos cristios haviam se afastado do seu passado pagao, os relatos dos missionérios abundam em detalhes sobre nao apenas as permanéncias como também as reformulagdes do universo social ¢ simbélico, abalado que foi pelas epidemias, pelos deslocamentos espaciais ¢ pela imposigae da cosmologia cristi (Pompa, 2001). Um exemplo sugestivo vem da “Narrativa Epistolar” do jesuita Ferniio Cardim que, como secretirio do visitador Gouveia durante a sua inspegio das misses @ colégios entre 1583 € 1590, fomeceu descrigdes muito ricas em detathes reveladores da maneira pela qual os Tupinamba das missdes conviviam com os novos tempos (Castelnau-L’Estoile, 2000). De imediato, dois aspectos se destacam: a meméria da guerra e 0 apego aos rituais. Quanto 4 guerra, os jesuitas causavam certa estranheza, de acordo com um pequeno episédio contado por Cardim: “um menino, perpassando em uma canoa pelo padre visitador, Ihe disse em sua lingua: Puy, marapé guaranime nande popegoari?, (isto 6], em tempo de guerra ¢ cerco como estis desarmado?” (Cardim, 1997 [1583-90], 259) Mas os padres achavam que andavam muito bem armados: com a palavra de Deus. Eram, afinal, os soldados de Cristo ¢ esta equivaléncia militar no deixou de ser notado pelos indios, Alguns anos antes, por exemplo, na carta enviada pelos Meninos Orfaos em 1552 * Um roteiro minima das fontes em arquivos no pais encontra-se em Monteiro (1994b) ? Sobse estes temas, ver Schwartz ¢ Salomon (1999), Monteiro (19a); Vainfas (1993), Fernandes (1997}, Domingues (2000); Sommer (2000), Almeida (2000); Pompa (2001), ¢ Sampaio (200i). Capitulo 3: Enure 0 Etnocidio ¢ a Etnogénese 72 — provavelmente escrita pelo jesuita Francisco Pires ¢ assinado por “Diego Topinamba Peribira Mongeta Quatia” — relatava-se “uma peregrinagdo por terra adentro, armando- nos contra eles com a cruz de Cristo e suas palavras” (Leite, 1956-60, 1:378), Os padres também se safam bem nos elaborados rituais que preparavam, sobretudo na forma de festas de santos ou da encenago de teatro, A festa das endoencas na aldeia do Espirito Santo foi conduzido nas duas linguas: “tiveram mandato em portugués por haver muitos brancos que ali se acharam, e paixfo na lingua [geral], que causou muita devogao ¢ lagrimas nos indios” (Cardim, 1997 [1583-90], 247). Mas se 0 ‘Tupi constituia a lingua principal dos autos de devogdo, no tinha exclusividade, pois os jesuitas ensinavam o portugués, 0 latim ¢ mesmo 0 castelhano aos meninos. Numa festa realizada na aldeia de Espirito Santo, na Bahia, “debaixo [de uma fresta] ramada se representou pelos indios um didtogo, em lingua brasilica, portuguesa ¢ castelhana, ¢ tém eles muita graga em falar linguas peregrinas, maxime a castethana” (Cardim, 1997 [1583- 90], 232). As festas organizadas para receber o visitador também mesclavam elementos cristdos e tradigdes nativas, tais como a limpeza do caminho ¢ a saudagdo facrimosa. Ao chegar a aldeia de Espirito Santo, préximo a Salvador, a comitiva do visitador Gouveia foi saudada por flautistas ¢ © jantar “debaixo de um arvoredo de aroeira” também foi acompanhada por musicos tupis. “Os meninos indios, escondidos em um fresco bosque, cantavam varias cantigas devotas enquanto comemos, que causavam devogdo, no meio daqueles matos, principalmente uma pastoril feita de novo para o recebimento do padre visitador seu novo pastor” (Cardim, 1997 [1583-90], 221). Fica claro, no entanto, que os indios das aldeias mobilizavam os tituais de encontro com os padres ¢ outras autoridades de modo a afirmar a sua devogao sem abrir mao das tradigdes que ganhavam novas feigdes a cada encenagao. Cardim comentou esse aparente paradoxo em sua descrigdo da recepgio oferecida pelos indios da aldeia de Espirito Samto: “Tudo causava devocao debaixo de tais bosques, em terras estranhas, e muito mais por ndo se esperarem tais festas de gentes tio barbaras” (Cardim, 1997 [1583-90], 222). De fato, a Narrativa Espistolar, celata episédios que denunciavam o cardter hibrido dos festejos, nos quais havia um certo esforgo em pautar as atividades religiosas novas pelas tradiges pré- cristas. “Os cunumis, sc. meninos, com muitos mothos de frechas Ievantadas para cima, Capitulo 3: Entre 0 Etnocidio e a Etnogénese 73 faziam seu motim de guerra e dava a sua grita, ¢ pintados de varias cores, nuzinhos, vinham com as mis levantadas receber a béngéio do padre, dizendo em portugués, ‘Jouvado seja Jesus Cristo"? (Cardim, 1997 [1583-90], 222). O diabo, ao que parece, também era figura indispensdvel nas festas realizadas no teatro representado nas aldeias crists, Numa festa descrita por Cardim, “nem faltou um anhangd, [isto €}, diabo, que saiu do mato; este era o indio Ambrésio Pires, que a Lisboa foi com o padre Rodrigo de Freitas. A esta figura fazem os Indios muita festa por causa de sua formosura, gatimanhos € trejeitos que faz; em todas as suas festas metem algum diabo, para ser deles bem celebrada” (Cardim, 1997 [1583-90], 222) Assim, a miisica sacra, os didlogos da f& ¢ os rituais cuidadosamente encenados pelos jesuitas marcavam a vida dos indios aldeados. No entanto, de acordo com o padre Cardim ¢ para o desgosto de muitos padres, isto nao significava o fim dos cantos ¢ ritos ‘que eles tanto queriam extirpar. Apés uma festa descrita na Narrativa Epistolar, os indios deram continuidade aos festejos a moda gentilica, movidos “ao som de um cabago cheio de pedrinhas (como os pandeirinhos dos meninos em Portugal)” ¢ coordenados “por tal ‘compasso que nde erram ponte com os pés, ¢ calcam 0 cho de maneira que fazem tremer a terra” (Cardim, 1997 [1583-90], 234-35). Nao obstante a sua tentativa de relativizar a cena com comparagées metropolitanas, Cardim com efeito estava diante de um ritual ao som do maracd, relembrando as glérias da guerra intertribal ¢ da vinganga, “Nao se Ihes entende 0 que cantam, mas disseram-me os padres que cantavam em trova quantas faganhas ¢ mortes tinham feito seus antepassados” (Cardim, 1997 [1583-90], 235), Em outra ocasifo, “a procissdo foi devotissima com muitos fachos e fogos, disciplinando-se a maior parte dos indios, que dio em si cruelmente, e tém isto ndo somente por virtude, ‘mas também por valentia, tirarem sangue de si ¢ serem abaeré, sc. valentes” (Cardim, 1997 [1583-90], 247). Exatos dois séculos depois, nas vilas pombalinas visitadas por Alexandre Rodrigues Ferreira, o misto entre o pré-colonial ¢ o novo apareceu para 0 desgosto do naturalista. A “Meméria sobre as cuias que fazem as indias de Monte Alegre e de Santarém” € sumamente interessante pois descreve as técnicas a produgéo em detalhes, A produgao anual era de 5 a 6000 cuias, do fabrico das quais “é que se vestem a maior parte das indias de Monte-Alegre”. Cada cuia alcangava de 100 a 120 réis, “conforme o Capitulo 3: Entre 0 Etmocidio e a Emogénese 74 tamanho, a pintura, a qualidade, s ¢ lisa ou de gomos”. A produgo destinava-se aos brancos: “as indias que sabem que os brancos as compram, tratam de as trabalhar € aperieigoar”. Porém Alexandre Rodrigues se deteve num detalhe muito importante: as indias reservavam uma parte da produgao para fins préprios, com implicagdes nao apenas materiais como também simbolicas. As cuias sao os pratos, os copos ¢ toda a baixela dos indios. Cada um tem em sua casa uma delas reservada para da a beber, ou dgua ou ox seus vinhos ao Principal, quando o visita, ou casuatmente, ou em algum dia de convite. Consiste 0 distintivo dela, em ser ornada de algum bizio, seguro por uma bola de cera, toda cravada de micunga, @ sua muiraquitd, em cima, que Ihe serve de asa em gue pega o Principal. Oferece-se ao dito, em cima de wna salva que é feita de ponteiros de pataui... Por mais diligéncia que fiz por comprar uma destas, & senisfagdo da sua dona, nio foi posstvel, tanto € 0 aprego que fazem da taga por onde bebe o seu Principal (Ferreira, 1974 [1783-92}, 36-39, grifo do autor) Construindo a Prépria Histéria Assim como a teflexto de Momboré-uagu serviu, antes de tudo, para instruir as relagdes que se desenrolavam entre 05 indios de Sao Luis ¢ a nova leva de europeus, muitas outras tiderangas € outros pensadores indigenas mobilizavam os seus conhecimentos para se posicionar diante da histéria. Num outro trecho bastante conhecido da mesma Histéria das Misses Capuchinhas no Maranhdo, o lider tupinamba Japiagu narrava as origens da radical separagdo entre indios e brancos: Eramos uma 86 nacao, nés e vis; mas Deus, tempos apés 0 diltivio, enviou seus profetas ce barbs para instruir-nos na lei de Deus. Apresentaram esses profetas ao nosso pai, do qual descendemos, duas espadas, uma de madeira e outra de {ferro e the permitiram escolher. Ele achou que a espuda de ferro era pesadla demats ¢ preferiu a de pau Diante disso 0 pai de quem descendestes, mais arguto, tomou a de ferro, Desde enido fomos mixerdveis, pois ox profetas vendo que os de nossa nagdo ndo queriam acreditar neles, subiram para o céu, Capitulo 3: Entre o Etnocidio e a Etnogénese 75 deixando as marcas dos seus pés cravadas com cruzes no rochedo préximo de Potitt (Abbeville, 1975 [1614], 60-61). Este interessante discurso dé margem pata diversas interpretagSes. A primeira vista, trata-se da transformagdo da tragica histéria do contato em mito, fomecendo uma explicag’o nativa - dentro de um género discursivo indigena - da situagio de subordinagao de inferioridade na qual os Tupinambé do Maranhio se encontravam no inicio do século XVII. Mas o aspecto mais importante disso reside no deslocamento do sujeito, onde é a ago do fndio que determina a marcha da historia, Para Manucla Cameiro da Cunha, comentando este ¢ outros exemplos de mitologias que tematizam a génese do homem branco, o que deve ser salientado “é que a opgao, no mito, foi oferecida aos indios, que nfo s4o vitimas de uma fatalidade mas agentes de seu destino “Talvez escolheram mal. Mas fica salva a dignidade de terem moldado a propria historia” (Cameiro da Cunha, 1992, 19). , certamente, um avango para a historiografia brasileira reconhecer as liderangas indigenas enquanto sujeitos capazes de tragar a sua propria historia. No entanto, ¢ necessirio considerar que as escothas pés-contato sempre foram condicionadas por uma série de fatores postos em marcha com a chegada e expansao dos europeus em terras americanas, A catastrofe demogrifica que se abateu sobre as sociedades nativas, estreitamente ligada as estratégias militares, evangelizadoras ¢ econdmicas dos europeus, deixou um quadro desesperador de sociedades fragmentadas, imbricadas numa trama colonial cada vez mais envolvente, Diante de condigées crescentemente desfavoraveis, as liderangas nativas esbogavam respostas das mais variadas, frequentemente langando mao de instrumentos introduzidos pelos colonizadores. A resisténcia, neste sentido, nao se limitava ao apego ferrenho és tradigdes pré-coloniais mas, antes, ganhava forga ¢ sentido com a abertura para a inovacéo. Esta caracteristica da politica dos indios nem sempre foi percebida pelos observadores europeus, que tendiam a retratar os indios recalcitrantes como verdadeiros selvagens, que hostilizavam os brancos em fungdo da sua natureza bruta, O reverso desta imagem residia no indio que colaborava com os projetos coloniais. Um curioso documento de meados do século XVIII, provavelmente escrito por um jesuita, elencou 25 exemplos de “indios Famosos em Armas que neste Estado do Brasil concorreram para Capitule 3: Entre o Etnacidio e a Emogénese 76 sua conquista temporal e espiritual”. Encabegada pelo inesquecivel Dom Felipe Camario, 2 lista inclui diversos lideres que, para o autor, permitem rebater certas nogdes sobre a incapacidade total dos indios de agir politicamente, “Destes e outros casos semethantes”, escreveu ele, “claramente se infere que mio so os indios da nossa América Lusitana tio apoucados, rudes, ¢ indisciplinaveis como ordinariamente se pinta, tratando-os mais como a feras e brutos irracionais, do que como a homens capazes de razio”,"" Entre outros, destacaram-se “Pindobugu indio magnanimo intrépido ¢ guerreiro ‘com uma espada de pau na mio ameaga aos seus por conservar a paz com os portugueses ¢ favorecer aos padres da Companhia”, ou, ainda, “Garcia de Sa outro indio famoso pregador da fé, com espirito semelhante ao Apéstolo das Genes”; ¢ mais um indio celebrado Tacaranha muito amante dos padres vestido de uma roupeta pregador: comprida azul com uma cruz vermetha de tafeté no peito”, Além dessa atividade auxiliar 4 catequese, 0 autor também apontava para a participagdo dos indios em outras atividades, coloniais, como a do sertanismo, que deslocava populagdes de remotos sertdes para as vilas e aldeamentos coloniais. Por exemplo, “O famoso indio Arco Grande tao zeloso da £8 que entrou pelo sertio 400 léguas em busca de seus parentes para o reduzir é lgreja e companhia dos padres, sem temor os seus inimigos dos quais triunfou, pondo-os em fugida, e matando a muitos” © autor anénimo sublinhava, € claro, o papel de colaboragdo destes indios. No entanto, & possivel entrever que estas atividades envolviam mais do que a mera manipulagdo das liderangas nativas por interesses coloniais, Tratava-se da apropriagio, por algumas destas liderangas, dos simbolos e dos discursos dos brancos para buscar um espago proprio no Novo Mundo que pouco a pouco se esbogava, Esta mesma linguagem se encontrava também nos movimentos rebeldes que se opunham a presenga dos colonizadores. Os Tupinamba do Maranho, por exempio, além das suas espadas de madeira, também Iangavam mao da palasta escrita no levante articulado por um lider chamado Amaro, que teria sido “criado” pelos jesuitas em Pemambuco. De posse de algumas cartas dos portugueses, Amaro teria dissimulado a leitura dessas na frente de uma grande comitiva de chefes, afirmando “que 0 assunto "© “Indios Famosos em Armas que neste Estado do Brasil concorreram pare sua conquisia temporal e espiritual”, manuscrito, Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Capitulo 3: Entre 0 Emocidio e a Etnogénese 77 delas se reduzia a que todos os Tupinambés fossem escravos”, De acordo com o eronista Bemardo Pereira de Berredo, “foi tio diabdtica esta sugestiio, que penctrando logo a brutalidade de tantos bérbaros, assentaram uniformemente em que se matassem todos os brancos” (Berredo, 1989 [1749]}, padre Anténio Vieira, em sua “Relago da Missio da Serra de Ibiapaba”, também notou o uso da palavra escrita por indios rebeldes, que agora buscavam negociar com 0s jesuitas que penetravam essa “Genebra dos sertdes”, Um “indio principal” chamado Francisco, que “apresentou aos padres as cartas que tazia de todos os principais, metidas, como costumam, em uns cabagos tapados com cera, para que nos rios que passam a nado se no mothassem”. Ademais, “admiraram-se os padres de ver as cartas escritas em papel de Veneza, ¢ fechadas com lacre da india” (Vieira, 1992 [1656]. 139). Esse fascinio pela escrita também foi registrado pelo padre Joto Felipe Bettendorf. A falta de meios no impedia os jesuitas em seu esforgo de ensinar os indios a ler ¢ escrever. Missionério no Maranhio, 0 padre Bettendorf recordava suas primeiras atividades na aldeia de Mortigura, no inicio dos anos de 1660: E por que, por falta de livros, tinta e papel nav detxassem de aprender, Thes mandei fazer tinta de carvan e sumo de algumas ervas e com ela escreviam em as folhas grandes de pacobeiras; ¢ para thes facilitar tudo, hes pus um pauzinky na mdo por pena ¢ ox ensinet a formar ¢ conhecer ‘as letras, assim grandes como pequenas, no pé e na areia das praias, com gue gostaram tanto, que enchiam a aldeia e as praias de letras (Bettendorf, 1990 [1699]. 156). ‘Ao encher a praia de letras, a escrita apresentava-se como outra escolha para estas liderangas, assim como a espada de pau. Se 0 pequeno relato com o qual iniciamos parece jogar para um passedo remoto a agdo crucial que havia decidido a sorte do grupo, o contetido deste mito mostra um didlogo explicito com a atualidade que os Tupinamba viviam. Japiagu sabia muito bem quem eram seus interlocutores. Os profetas de barbas, afinal de contas, estavam de volta, apresentando novas escothas tio dificeis quanto aquela oferecida ao pai ancestral. E nesta encruzilhada, ponto de encontro entre a tradigio ¢ a Capitulo 3: Entre 0 Btnocidio e a Etnogénese 78 inovagdio, que se esbogava ~ e se esbosa hoje ~ a historia dos indios diente da pesada realidede da dominagdo colonial Conelusio ‘A medida que a pocira da agitada ¢ confusa comemoragdo/anticomemoragao do quinto centenario cabralino se, assenta, podemos afirmar que permanece um enorme desafio encarar a historia de uma perspective a partir da qual as populagdes nativas tm um papel to critico quanto crucial, Diferentemente de muitos paises nas Américas, onde 1 prosenga indigens se mantém forte na articulago das identidades nacionais, o lugar dos indios no Brasil continua sendo conjugado, no mais das vezes, no tempo passado. Hoje uma minoria absoluta, a populacio indigena atual mal chega a 0.20% da populagdo do pais como um todo de acordo com 2 estatistica oficial, que ainda a trata como “jemanescente”, Ainda assim, por tris desta ciffa infima floresce um rico painel de diversidade — mais de 200 grupos étnicos que conservam mais de 170 linguas distintas ~ ¢ um legado histérico de qual o pais ainda nao se deu conta. Apesar de fundamentada em algumas verdades, a cronica da destruigdo e do despovoamento j nao € mais aceitavel para explicar a trajetéria dos povos indigenas nestas terras. O que se omite com tal abordagem sio as miltiplas experiéneias de elaborago e reformulagdo de identidades que se apresentaram como respostas criativas &s pesadas situagdes historicaments novas de contato, contagio ¢ subordinagio. © caminho ainda € longo e bastante incerto, mas varios antropdlogos ¢ historiadores jé vim dando passos na diregao certa CAPITULO 4 Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Indios Sal, Justiga Social e Autoridade Régia no Inicio do Século XVHT' No FINAL DE OUTUBRO DE 1710, 0 poderoso proprietério de terras e de escravos Bartolomeu Fernandes de Faria saiu da sua fazenda Angola, préximo a Jacarei, e desceua Serra do Mar, acompanhado por cerca de 200 indios administrados e escravos africanos, fortemente armados. Ao chegar na vila de Santos, este paulista mandow arrombar os locais onde 0 sal do monopélio estava armazenado, levando este valioso género de volta para a Sera Acima, onde teria sido repartido entre os consumidores t80 carentes do produto, Rapido e fulminante, o assalto ndo encontrou nenhuma resisténcia, apesar do recente reforgo da guarnigao local que, paradoxalmente, estava sendo custeado por um imposto sobre a venda do sal, Se a guarnigdi tinha a tarefa especifica de defender a praga contra eventuais visitas de corsérios ¢ outros aventureiros estrangeiros ~ pesadelo que se coneretizou, breverente, na invaso do Rio de Janeiro comandado por Duguay-Trouin — © invasor interno mostrava-se uma ameaga muito mais perigosa. Diante daquele trogo amnado e agressivo, com a sua caética ¢ variada composigao de todos os tipos étnicos que ‘a mestigagem foi capaz de produzir, os defensores da praga, prudentes, s6 esbogaram uma fraca reagio quando os invasores haviam se retirado para as matas da Serra do Mar. Ocorrida justamente num momento em que a coroa buscava impor a sua autoridade nas capitanias do sul, a agdo acabou desencadeando uma das maiores perseguigdes levadas a cabo durante © periodo colonial, culminando, oito anos mais tarde, na prisio © morte de " Publicado na revista Tempo, Niteri, vol. 8, 1999, pp. 23-40, este texto sofreu aleumas pequenas tmoditicagdes ¢ correrdes na alval versio. Uma versio muito preliminar deste trabalho ~ na verdade, algumas notas esparsas ~ fbi apresentada na IX Reunido da Sociedade Brasileira de Pesquisa Historica, Rio de Janeiro, em 1989. A pesquisa original eve apoio do Center for Latin American Studies da University of Chicago e da Comissao Fulbright-Hiayes. A versio publicada na revista, corrigida e acrescids a partir de sugestées de Mary Karasch, foi apresentada no XX} Congresso Internacional da LASA, Chicago, 1998. 0 autor também agradece ao parecerista andnimo da revista Tempo pelas abservagdes perspicazes, que foram ° levadas em conia para a revisto final Capitulo 4: Bartolomeu Fernandes de Faria e seus Indios 80 Bartolomeu Fernandes ¢ de seus principais capangas ¢ na transferéncia dos seus subordinados indigenas para os aldeamentos da regiao. No folclore histérico paulista, o episédio do sal ocupa, sem divida, um lugar de desiaque, merecendo uma mengdo detalhada por genealogistas, memorialistas € historiadores, atingindo o seu ponto méximo no romance histérico de Afonso Schmidt, O Assalto. Todos estes autores, obviamente parciais no que diz respeito a assuntos paulistas, tomaram 0 evento como exemplo emblematico do cardter dos paulistas da época colonial: independentes, auto-suficientes e, sobrenudo, resistentes 4 autoridade externa. Esta figura herdica, tipificada no destemido bandeirante, contracena com os detestados arrematantes do contrato do sal que, segundo o historiador paulista Antonio de Toledo Piza, “em regra, eram homens ambiciosos, desalmados ¢ crucis, que faziam tal monopdlio do sal que 0 seu prego se tomava excessivo, ficando este género de primeira necessidade acima do alcance da massa geral da populagao”.” Nesta luz, o assalto de 1710 se caracteriza enquanto caso de justiga social, onde os colonos oprimidos apelavam para a violéncia coletiva para reverter uma situago abusiva e nitidamente injusta, © que se pretende, neste texto, ¢ reavaliar este episédio & luz de uma documentagao inédita, com destaque para a devassa criminal feita em 1717-18 na vila de Iguape, no litoral sul da Capitania de Sao Paulo, quando a justiga metropolitana apertou 0 cerco e prendeu Bartolomeu Fernandes de Faria por ser 0 mandante do brutal assassinato de dois homens.’ Bastante extenso © detalhado, o documento infelizmente sequer menciona o assalto de 1710. Em compensagio, proporciona uma rarissima janela para 0 mundo ambicioso, desalinado e cruel dos paulistas no inicio do século XVIII, periodo marcado pelo intenso conflito entre um poder local, de cardter privado, assentado numa tradigao de conquista e de mando sobre a populacdo indigena e mestiga, e um poder régio que buscava subordinar esta “La Rochelle do Brasil” a autoridade da administragtio colonial. * Documentos Imeressames para a Histéria e Costumes de Sto Paulo (doravaate Docnmentos Interessantes), vols. 3, 1895, p. 69, nota de A. Toledo Piza Arquivo do Estado de So Paulo, Autos Civeis (doravante AESP-AC), caixa 6, documento 98, Trata-se, na verdade, de duas devassas, uma primeira tirada para investigar as mortes de José Preto e Jo%0 da Cunka Lobo, a segunda contra o proprio Bartolomeu Fernandes de Faria. * Sobre a tradigao de conguista, ver Monteiro (19948, cap. 4).

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