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Paulo Emilio Sales Gomes CINEMA: TRAJETORIA NO SUBDESENVOLVIMENTO 2° EDIGAO PAZE TERRA ‘Caleta Lis © Edivora Paz e Tera, 1996, Editar raposdvrsCiecne RBhing e Maia Elisa Cevasco ‘Elio de exe: Thais Nicolet: de Camargo Produ grfice: Katia Habe (Capa abel Carballo Dados Inernacionais de Ctalogacdo na Publiasto (CIP) \(Climara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gomes, Paulo Emilio Sales, 1916-1977. equeno cinema antigo! Paulo Emiio. — So Paulo : Paz e Tera, 1996. — (Colegdo Leivura) ISBN85-219-0217-4 1. Cinema — Brasil — Histria 2, Cinema — Hiseia 1. Tira. 96-2225 epp-791.450981, Indices paca catélogosistemiico 1. Brasil: Cinema Histéri791.430981 EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua do Trunfe, 177 (01212-010— Sio Paulo — SP ‘el.(011) 223.6522 Rus Dias Ferrers #417 — Lojt Pare 722431-050 — Rio de Janeio — RJ Comb dir Celso Furado Fernando Gasparan Roberto Schwarz Ross Freire D'Aguiae 2001 Imprciso no Brasil / Prine Bom . Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966: SUMARIO Pequeno cinema antigo .... pene] 19 1* Bpoca: 1896 a 1912... 2 Bpoca: 1912 a 1922. 3* Epoca: 1923 a 1933 .. 4+ Epoca: 1933 a 1949 5* Epoca: 1950 a 1966... . Cinema: trajetéria no subdesenvolvimento 85 PEQUENO CINEMA ANTIGO. (© Brasil se interessa pouco pelo préprio passado. Essa atitude saudével exprime a vontade de escapar a uma mal- digo de atraso e miséria. O descaso pelo que existiti ex- plica, nao s6 0 abandono em que se encontram os arquivos nacionais, mas até a impossibilidade de se criar uma cinemateca. Essa situagio dificulta o trabalho do historia- dor, particularmente 0 que se dedica a causas sem impor- ‘ncia como o cinema brasileiro Hi dez anos, apenas meia dizia de pessoas tinha curiosidade pelo passado de nosso cinema, No estrangei- 10, 0 tinico era Georges Sadoul, 0 que nao espanta pois 0 historiador francés procurava conhecer @ histéria do cine- ma de tados os paises. Hoje um grupo razoavel sente ne- cessidade de conhecer o que foi nosso cinema. As pesqui- sas obedecem a norma vélida para qualquer ramo do conhecimento: abordar criticamente 0 passado brasileiro com o espitito de servir o presente e 0 futuro, mas a0 mes- ‘mo tempo se impregnar de simpatia. Escrever sobre cine- ma brasileiro no é mais uma tarefa pioneira:jé se consti- ‘tuju no pais um pequeno pablico ledor familiarizado com 7 algumas dezenas de nomes de cineastas e tieulos de fil- mes. £ obvio que essa enumeragio nao teria qualquer po- der evocativo para o leitor estrangeito © aparecimento do cinema na Europa Ocidental e ‘na América do Norte na segunda década dos anos 90 foi 0 sinal de que a Primeira Revolugio Industrial estava na véspera de se estender ao campo do entretenimento. Esse fruto da aceleragio do progresso técnico e cientifico en- controu o Brasil estagnado no subdesenvolvimento, at- rastando-se sob a heranca penosa de um sistema econémi- co escravocrata € um regime politico monérquico que s6 haviam sido abolidos respectivamente em 1888 ¢ 1889. O atraso incrivel do Brasil, durante os Gileimos cingiienca anos do século passado e outro tanto deste, é um pano de fundo sem o qual se corna incompreenstvel qualquer ma- nifestacio da vida nacional, incluindo sua mais fina lice- rarura é com mais razio 0 tosco cinema, ‘Annovidade cinematogrifica chegou cedo a0 Brasil, 56 no chegou antes devido ao razoével pavor que causava aos Viajantes estrangeiros a febre amarela que os aguardava pon- tualmentea cada vero, Os aparelhos de projeco exibidos a0 pablico europeu e americano no inverno de 1895-1896 co- ‘megaram a chegar ao Rio de Janeiro em meio dese tileimo ano, durante o saudavel inverno tropical. No ano seguince, a novidade foi apresentada intimeras vezes nos centros de di- versio da capital, e em algumas outras cidades. Em 1898, foram realizadas as primeirasfilmagens no Brasil mrt B Durante dez anos, porém, 0 cinema vegetou, tanto como atividade comercial de exibigdo de fitas importadas, ‘quanto como fabricagio artesanal local. A explicacio, como sempre, esta no retardo do pats. No caso especifico, o que impedia 0 desenvolvimento do cinema no Rio, para no falar no resto do territ6rio ainda mais arcaico, era a insufi- ciéncia da energia elétrica. Nos poucos locais da capital da Repablica que dispunham dessa comodidade, o menor tem- poral ou ventania interrompia o fornecimento, como ainda hoje acontece em largas porgdes relativamente prosperas — pois possuem elecricidade — do interior brasileiro. S6 em 1907 houve no Rio energia elétrica produzida industrial- mente, e entdo o comércio cinematogréfico floresceu. A abercura continua de dezenas de salas no Rio, ¢ logo em Sao Paulo, animou a importagio de filmes estrangeiros, e foi seguido de perto por um promissor desenvolvimento de uma produgio cinematogréfica brasileira. Um niimeroabun- dante de curtas-metragens de atualidades abriu caminho ‘para numerosos filmes de ficgo cada vez mais longos. © quadro técnico, artistico e comercial do nascence cinema era constituido de estrangeiros, notadamente lianos cujo fluxo imigrat6rio foi considerével no final do século XIX e nos primérdios do XX. Em matéria de técni- ‘a, a incapacidade do brasileiro tornara-se tradicional. Essa situagao aflitiva provinha do tempo recente em que 0 ¢ra- balho com a mao era, quando mais simples, obrigagio de 9 escravo, ¢, quando mais complexo, funcio de estrangeiro. Tis atividades eram consideradas indignas de pessoa bem- nascida, isto é, qualquer brasileiro, a partic da segunda ge- ragdo, com a pele niio muito escura. Cinema era tido como dificil, e qualquer tarefa de filmagens, laborat6rio ou sim- plesmente projecio, foi de inicio executada exclusivamente por estrangeiros. Sé mais carde alguns brasileiros, vindos da profissio entio recente de for6grafo de jornal, aprende- ram a manejar uma cimara. No terreno mais propriamente arcistico, os encenadores ¢ intérpretes provinham de elen- cos dramiticos em fourné sul-americana ou de grupos aqui radicados onde predominava o elemento estrangeiro. Certa tradigo dramatica brasileira, outrora brilhante, havia fene- cido na obediéncia a uma das leis do subdesenvolvimento: as decadéncias prematuras. Os diretorese incérpretes brasi- leiros 56 tomaram-se mais numerosos quando o cinema se impregnou de géneros teatrais ligeiros, revistas e operetas. ~ Quanto aos homens que abordaram 0 cinema como negé- io, eles no pertenciam ao mundo comercial estabilizado e rotineiro dominado por porrugueses. Eram quase sempre italianos, freqiientemente aventureiros, em cujas vidas pi- torescas niio pesava muito o lastro da respeitabilidade. Es- ses empresétios argutos eram, ao mesmo tempo, produto- res, importadores e proprietarios de salas, situagio que condicionow ao cinema brasileiro um harmonioso desen- volvimento, pelo menos durante poucos anos. 10 Entre 1908 e 1911, 0 Rio conheceu a idade do ouro do cinema brasileiro, classificagio valida & sombra da cin- zenta frustragio das décadas seguintes. Os géneros dra- smiticos e cOmicos em voga eram bastante variados. Pre dominaram inicialmente os filmes que reconstitufam os crimes, crapulosos ou passionais, que impressionavam a imaginagio popular. No fim do ciclo o pablico era sobre- ‘tudo atraido pela adaptacio ao cinema do género de tevis- ‘tas musicais com temas de atualidade. Os artistas se pos- tavam atrés da tela, falando ou cantando os textos de maneira a coincidir com as imagens mudas projetadas. Foram igualmente filmados numerosos melodramas ¢ as- suntos com criticas aos costumes urbanos. Essa idade do ouro nio poderia durar, pois sua eclosio coincide com @ «cansformacio do cinema artesanal em importante indis- tria nos paises mais adiantados. Em troca do café que ex- portava, o Brasil importava até palito ¢ era normal que importasse também o entretenimento fabricado nos gran- des centros da Europa e da América do Norte. Em alguns _meses 0 cinema nacional eclipsou-se ¢ o mercado cinema- ogrfico brasileiro, em constante desenvolvimento, ficou inteiramente & disposigdo do filme estrangeiro. Inteira- ‘mente margem e quase ignorado pelo piblico, subsisciu contudo um debilissimo cinema brasileiro. Do grande ntimero de pessoas ativas até 1911, perseve- rraram apenas os cinegrafistas. Ao lado dos curtas-metragens de atualidade, que Ihes asseguravam a subsisténcia, esses pio- ret neiros teimosos se aventuraram ocasionalmente a realizar um filme dramético. De 1912 em diante, durante dez anos, fo- ram produzidos anualmente apenas cerca de seis filmes de enredo, nem todos com tempo de projegio superior a uma hora. Os novos recrutas da profissio, técnicos, artistas ou encenadores, so ainda predominantemente italianos, mas jé apontam alguns brasileiros anto no Rio como em Sio Paulo, Cidade cuja importincia crescia e onde se verificava uma ati- vidade cinematogrifica paralela & da capital da Repéblica. Paralela é a expressio exaca pois os cineastas de uma ¢ outra nunca se encontravam, mais do que isso, se igoravam quase totalmente. Entre os filmes desse tempo, destacam-se os cal- cados em obras célebres da literatura brasileira, principal- mente as do perfodo romantico. Anote-se igualmente a comicidadé involuntéria dos assuntos que tomaram como pretexto a participacio puramente simbélica do Brasil na Primeira Guerra Mundial. A linguagem desse cinema mar- sginalizado permanecera extremamente primitiva. O filme brasileiro se estiolava dentro de uma estrucura draméticari- gidamente compartimentada, na qual a definigio dos caracteres e situagées, assim como o desenvolvimento do en- redo, fcavam na inteira dependéncia dos letreiros explicativos. Essa sieuagdo mediocre vigorou até os primérdios da década de vinte. Daf por diante, sucedem-se 0s sinais de vitalidade, [Nessa ocasifo, as brasileiros j so maioria no quadro do ci- nema nacional, mas os tnicos técnicos razodveis ainda serio, durante algum tempo, os italianos, 12 ‘Aproximadamente a partir de 1925, dobra a média de produgio anual, ¢ ha progresso na qualidade, Além do Rio de Janeiro e de Sio Paulo, produzem também as capi- tais de Pernambuco, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Nesta iitima provincia surgem movimentos e per- sonalidades promissoras até em pequenas cidades do inte- rior. Paulatinamente esses diversos grupos estabelecem contatos através de jornalistas do Rio e de Sao Paulo que se interessam de forma militante pelos nossos filmes, de- lineando-se assim, pela primeira vez, uma consciéncia ci- nematogrifica nacional. Um ou outro diretor consegue trabalhar com certa continuidade. Hé uma progressio or- ginica de filme para filme e surgem obras que atestam inconteseavel dominio de linguagem e expressio esti- Liscica. Em tomo de 1930, nasceram os clissicos do cine- ma mudo brasileiro e houve uma incutséo valida na van- guarda mais ou menos hermética, Era tarde, porém. Quan- do 0 nosso cinema mudo alcanga essa relativa plenitude, o filme falado jé esté vitorioso em toda parte. 1, Plenitude apenas ariscica. Comercialmente o cinema nacional pet- manecia marginalizado, A exibigio dos filmes brasileirs era mais do que preciria e dependia inteiramente da boa vontade de um ou outro dono de sala. $6 foram realmence vistas pelo pblicoalgumas ras obras _que, por um motivo qualquer, as distribuidoras estrangeiras inclufam ‘ocasionslmente em seus circuits de sala. 13, ‘A hist6ria do cinema falado brasileiro abre-se com um longo e penoso reinicio. Durante as décadas de 1930¢ 1940, a produgio se limica praticamente ao Rio, onde se criam esttidios mais ou menos aparethados. Algumas leis paternalistas de amparo asseguram 0 prolongamento dos péssimos jornais cinematograficos ¢, numa fase posterior, obrigam as salas a exibir uma pequena percentagem de fi mes brasileiros de enredo. Alguns comerciantes de cinema importado dispdem-se a produzir filmes afim de beneficia- rem-se a si proprios com o cumprimento da lei. Dessa ma- ncira, restabeleceu-se, pela primeira vez desde 1911, certa solidariedade de interesses entre 0 comércio de exibigéo € a fabricagio nacional. O resultado mais evidente foi a prolife- ragio de um género de filmes — a comédia popularesca, vulgar e freqiientemente musical — que desolou mais de ‘uma geragio de eriticos. Uma visio mais aguda permiciria vislumbrar nessas fitas — destinadas aos setores mais mo- destos da sociedade brasileira — algumas virtualidades que ‘mereceriam estudo ¢ desenvolvimento. Durante vinte anos esse género — que s6 decaiu no cinema quando foi absorvi- do pela televisio — registrou e exprimiu alguns aspectos aspiragoes do panorama humano do Rio de Janeiro. As ten- rativas de um cinema melhor nao sfo freqlientes. Pouguis- simos diretores do cinema mudo permanecem na profissio € conseguem, eventualmente, conciliar a voga das cangoes ‘com temas de realidade social. A critica de costumes, fildo 4 que nio s6 0 cinema mas também 0 magro teatro brasileiro sempre abordaram com proveito, aponta aqui e ali, de for- ‘ma despretensiosa mas eficaz. Acontecimentos como uma rebelido militar de inspiragio comunista ou a instauragio no pafs de um regime fascista ni deixaram tracos em nosso cinema. Nossa participagio modesta na Segunda Guerra ‘Mundial suscitou trés filmes de circunstincia, duas comé- dias € um drama. Também nao foram felizes as adaptacoes de romances brasileiros célebres, antigos ou modernos. Es- tas Gltimas anunciavam a preocupagio social — que jé in- vadira a literatura do pais — e que mais tarde se tornatia ‘Go aguda no panorama cinematogtéfico brasileiro. ‘A década de 1950, tiltima que nos cabe tratar, se abre em Sio Paulo, onde um imaginoso manager italiano venta implancar a indistria cinematogréfica logo apés ter pro- movido um importante movimento teatral. Revelou-se ‘enganosa a semelhanga entre os dois tipos de empreendi- mento. O ato de produzir e representar uma pega é um s6, ao passo que realizar ¢ exibir um filme séo duas operacdes diversas. Os filmes relativamente custosos de Séo Paulo foram entregues a firmas distribuidoras estrangeiras pou- co interessadas na audaciosa tentativa industrial, cuja vida foi efémera. O saldo mais positivo consistiu na melhoria ‘técnica gracas a vinda de experimentados especialistas in- gleses. Da Iedlia vieram encenadores e cendgrafos — que serviam igualmente aos propésitos teatrais'em curso —e 15 até roteitistas. O resultado final foi uma diizia de filmes razodveis com acentuado ressaibo de cosmopolitismo im- provisado e jé meio fora de moda. O maior éxito comercial e cultural derivou de uma incursio na temética do ban tismo rural brasileiro. ‘© malogro industrial nao ceve conséqiléncias fatas. Durante a década de 1950, a produgdo, com o Rio nova- mente & frente, nfo cessou de aumentar, chegando a esta- bilizar-se em corno de trinta filmes anuais. O principal beneficiério da heranga do esforgo cosmopolita foi um pe- ‘queno grupo paulista que adquiriu fisionomia prépria e ccuja influgncia se manifesta fortemente no cinema oficial de nossos dias. Justifica-se, pois, que se defina a ideologia do grupo apesar da pobreza de sua contribuigao & cultura nacional. Essa definigio facilitaré, alids, a compreensio de ‘um taco curioso no fenémeno do subdesenvolvimento: a onalidade especial que pode assumir 0 anseio de ascensio individual no status quo da sociedade. A afirmagio dos as- pectos exteriores da riqueza e do poder, isto é, oarrivismo, pode coexistir ou ser totalmente substirufda pela vivencia de sentimentos fantasiosos atribuidos a elite, nostalgia, pessimismo e gosto pela decadéncia, enfocados na mais total auséncia de senso critico e de humor. Os arrivistas do espirito desejam atingir verdades universais e perma- nentes do ser humano, acima de qualquer conjuntura so- cial definida. As intengGes sublimes nio se separam, po- 16 rém, — e aqui o grupo entra realmente em comunhéo com a camada social 2 qual aspira —, de um conservan- tismo que pode eventualmente descambar na delagao. Esse tipo de artivista é recrutado nas camadas modestas de uma pequena burguesia citadina de origem européia. Durance algum tempo, o empenho maior do grupo foi reagir pas- sionalmente contra o cinema do pés-guerra, notadamen- te 0 italiano, que dignificava uma humanidade que Ihes era biograficamente proxima mas & qual desesperavam em dar as costas. Seus filmes revelam no melhor dos casos. um ta-lento de feitura perdido na indigéncia dos argu- mentos ¢ roteiros. ‘A influéncia do cinema italiano do pés-guerra no teve apenas o efeito negativo acima registrado. Cineastas do Rio e de So Paulo adaptaram a ligo ao nosso cinema, tendo resultado obras profundamente nacionais sem a menor semelhanga com eventuais modelos originais. Os autores desses filmes provinham do Partido Comunista, to medfocres no terreno politico brasileiro quanto o fas- cismo ou o liberalismo, Um jovem intelectual comunista encontrava, porém, no Brasil do pés-guerra, estimulo para 4 imaginagio e gosto pela realidade nos livros de alguns auténticos grandes escritores membros do Partido. Essa formasao literéria, aliada ao método cinematogréfico ita- liano de identificagéo com 0 universo social circundante, condicionou a eclosio de quase todos os filmes significati- 7 vos realizados durante a década de 1950. A ressalva € para permitir a inclusio de alguns éxitos isolados e para mar- car 0 reaparecimento de um veterano do cinema mudo com um filme regional saboroso e maduro. No fim da dé- cada, a produgio, quantitativamente considerivel, quase s6 apresenta filmes vulgares, de natureza cémica ou, em ‘niimero menor, sentimental. O cinema de 1959 era tio fuim que, num dado momento, as expectativas se cristali- zaram em tomo de uma bobagem bem-cuidada e custosa do grupo dos arrivistas do espitito. No fim da década de 1950 e inicio da de 1960, 0 Brasil vivia momentos de aguda esperanga e tornava, pot ‘ontraste, ainda mais desalentador o panorama cinemato- gréfico. Jé estavam, porém, agindo os jovens desconheci- dos que iriam provocar uma reviravolta no cinema brasi- Ieito, sintonizando-o com o tempo nacional ¢ conferin- do-lhe, pela ptimeira vez, um papel pioneiro no quadro de nossa cultura 18 PANORAMA DO CINEMA BRASILEIRO: 1896/1966 1 EPOCA: 1896 a 1912 Em 1896, 0 cinema chegou ao Brasil. Ignora-se 0 nome do empresirio, mas a méquina chamava-se ‘Omniographo, e as exibigdes desenrolaram-se numa sala da rua do Ouvidor, 0 coragdo do velho Rio antes da inau- _guracio da avenida. Longamente os jornais comentaram a novidade e 0 aparelho deve ter funcionado duas ou trés semanas. Depois disso 0 Omniographo se eclipsou para provavelmente ressurgir mais tarde, com outro nome. A partir das primeiras semanas de 1897, aparelhos denominados Animatographo, Cineographo, Vidamo- togeapho, Biographo, Vitascopio, ou mesmo Cinemato- grapho, sio apresentados no Rio, em Petrépolis, ¢ logo tem seguida em Sao Paulo e outras cidades importantes Os prestidigitadores acrescentam o cinema aos seus nii- eros € torna-se freqiiente a presenca das fitinhas curtas de entio nos programas dos teatros de variedades e dos cafés-concertos. A nova invengio € manipulada por artis- 19 tas ambulances, em geral estrangeitos, dotados de algum conhecimento mecanico. ‘A primeira sala fixa foi instalada no nf 141 da rua do Ouvidor, em 31 de julho de 1897, e chamou-se “Salo de Novidades”. Cinema era novidade francesa € 0 local passou logo a ser 0 “Salio Paris no Rio”, nome com que cumpriu seu papel na histéria do cinema no Brasil e do filme brasileiro. O principal dono do empreendimento era Paschoal Segreto, Eram os Segreto um grupo de irmios imigrados da Ieélia, em épocas diversas, e no momento que nos ocupa vamos encontrar quatro deles no Rio: Gaetano, Afonso ¢ Luiz, além de Paschoal. £ de se presumir que Gaetano devia ser 0 mais velho: ndo traduziu o nome ej constieui- ra familia, Tinha um servico de distribuigéo de jornais € participava igualmente das atividades do “Salo. Paschoal devia andar pelos trinta anos e os dois outros itmios, cer- tamente mais jovens, trabalhavam para ele. Moravam to- dos nos andares superiores do salio de diversées da rua do Ouvidor. Além de cinema, 0 "Saldo Paris no Rio” oferecia gran- de variedade de divertimentos visuais e mecinicos. Con- tudo, as “vistas animadas” consticufam a principal atragio , como havia necessidade de se renovar constantemente 0 repert6rio, emissérios de Paschoal Segreto seguiam com freqliéncia para Nova York ou Paris, a fim de obter vistas 20 novas e aparelhamento mais aperfeigoado. Afonso era em zgeral o encarregado dessas missbes. Em 1898, voltando ele de uma das suas viagens, ti- rou algumas “vistas” da Bafa da Guanabara com a cimara de filmar que comprara em Paris. Nesse dia — domingo, 19 de junho —, a bordo do paquete francés “Brésil”, nas- ‘eu o cinema brasileiro.’ Dai por diante, sucedem-se as filmagens. Dia 29, Afonso registrou o cortejo que condu- ‘tiv ao cemitério os despojos de Floriano Peixoto e, no dia 5 de julho, o desembarque de Prudente de Morais ¢ comi- tiva no Arsenal da Marinha. Os pontos importantes da cidade foram focalizados: o Largo do Machado, a Praia de Santa Luzia, a Igreja da Candelaria, 0 Largo de So Fran- cisco de Paula... A rua do Ouvidor, apesar de sua impor ‘ncia, era estreita e demasiado sombreada para se prestar a filmagens que exigiam luz natural, Chegaram, pois, até nés, e razoavelmente bem, as circunsténcias em que foram rodadas no Brasil as primei- ras dezenas de metros de pelicula virgem. Muito mais di- ficil seré fixar quando foram projetadas pela primeira vez as “vistas” nacionais. Os jornais cariocas de julho e da pri- 1. Esse e muitos ouros dadosrelativos aos primsdios do cinema brasi- Ieiro encontram-se no importante trabalho, ainda inédito, de Vicente de aula Arasjo, O cinematégrafo no Rip de Jamie (1896-1912). (N. do E. — Publicado pela Editora Perspectiva, 8. Paulo, 1976, com o teulo: A (ela pea do cinema brasieir.) 21 ‘meira semana de agosto de 1898 noticiam com freqiiéncia 1 préxima apresentagao de vistas locais no Animatographo do “Salo Paris no Rio”; contudo, nenhuma dessas anun- ciadas exibig6es se realizard até 8 de agosto, data em que o escabelecimento foi totalmente destruido por um incén- dio, $6 alguns meses depois, em janeiro de 1899, € que se reabriu o “Salo”, tornando-se a exibicdo de filmagens de assuntos brasileiros ento habitual. Mas é possfvel que as primeiras atualidades de Afonso Segreto tenham sido pprojetadas no ano anterior, se ndo no Rio, pelo menos em Campos, no Estado do Rio de Janeiro, onde por ocasiio do incéndio estava Paschoal Segreto montando uma su- cursal de sua préspera empresa de diversdes. Durante alguns anos foram 0s irmios Segreto os prin- cipais exibidores de filmes e, até pelo menos 1903, os ini- cos produtores dos escassos filmezinhos nacionais de atua- lidades. Prosseguiu Afonso Segreto nas suas viagens de negécios aos Estados Unidos e a Europa ¢, ao que tudo indica, lé pelos meados de 1900, nao mais voltou ao Bra- sil. As tarefas técnicas de filmar e revelar foram entdo as- sumidas por outros colaboradores de Paschoal Segreto, ‘cujos nomes a pesquisa ainda no descobriu. O desaparecimento de Afonso Segreto, € 0 siléncio que ‘0 parentes guardaram em torno dele, fez com que seu nome caisse num quase total esquecimento; ¢fécil tragar os dados biogréficos de qualquer um dos seus itmaos, mas precisa 22 mente os dele tornam-se obscuros e no final se perdem com suas pegadas. Teria prosseguido com seus trabalhos no ex- terior? Ou tetia voltado para cd se dedicado a outras ativi- dades? Paschoal e Gaetano deixaram muitos sulcos na vida carioca até 0 dia em que foram levados ao Cemitério Sio Jodo Batista, onde se encontram sob o jazigo em marmore de Carrara, com figuras simbolizando a Arce Teatral ¢ a Imprensa amparadas pelo Anjo da Morte. Jéa passagem de Luiz Segreto foi mais modesta nos meios artisticos nacio- nais. Masa respeito de Afonso Segreto, o primeiro nome do cinema brasileiro, nio se sabe rigorosamente nada 5 dez primeitos anos de cinema no Brasil sfo pau- ppérrimos. As salas fixas de projegio sio poucas, e pratica- mente limitadas a Rio e Sa0 Paulo, sendo que os numero- 505 cinemas ambulantes nao alteravam muito a fisionomia de um mercado de pouca significaséo. A justificativa prin- cipal para o ritmo extremamente lento com que se desen- volveu 0 comércio cinematogréfico de 1896 a 1906 deve set procurada no atraso brasileiro em matéria de eletrici- dade. A utilizagio, em margo de 1907, da energia produ- zida pela usina do Ribeirdo das Lages teve conseqiiéncias imediatas para-o cinema no Rio de Janeiro. Em poucos ‘meses foram inscaladas umas vinte salas de exibigio,? sen- 2, Vicente de Paula Arasjo registra 18 inauguragSes de sas novas, ‘entre 10 de agosto ¢ 24 de dezembro de 1907, 23 do que boa parte delas na recém-construida Avenida Central, que ja havia desbancado a velha Rua do Ouvi- dor como centro comercial, artistico, mundano e jorna- istico da capital federal, Esse stibito florescimento do comércio cinematogréfico em 1907 influiu diretamen- te na producao de filmes brasileiros. Seguindo a erilha aberta pelo pioneiro Paschoal Segreto, alguns dos no- vos empresarios cinematogréficos procuraram se dedi- car simultaneamente a importagio, exibigo e produ- sao de filmes. Assim fizeram os italianos José Labanca ¢ Jécomo Rosario Staffa, até entéo empresirios do “jogo do bicho"; assim fizeram os franceses Marc Ferrez e fi- Ihos, instalados como fordgrafos. O mesmo caminho ain-da foi seguido pelo alemao Cristévao Guilherme Auler, fabricance de méveis da Rua do Ouvidor, e pelo espanhol Francisco Serrador. Tal entrosamento entre 0 comércio de exibigio cinematografica e a fabricagdo de filmes explica a singular viralidade do cinema brasilei- ro entre 1908 ¢ 1911 Todas as filmagens brasileiras realizadas até 1907 li- mitavam-se a assuntos naturais. A ficgo cinematogrifica, ou melhor a fita de enredo, 0 “filme posado”, como se dizia entdo, s6 apareceu com 0 surto de 1908. Pairam ain- da diividas sobre a primeira fita de ficgo realizada no Bra- sil, masa tradigéo aponta Os estranguladores, filme de grande relevo na histéria do cinema brasileiro. Nao sio levados 24 em muita consideragdo os filmezinhos produzidos por Francisco Serrador em Sao Paulo, provavelmente em 1907, filmes posados por um duo de cantores que sonorizavam a projecio escondidos atrés da tela, Nao se tratava propria mente de fitas de enredo. Vicente de Paula Araijo localizou uma comédia pro- jetada em junho de 1908, no Grande Cinematographo Pathé: Nbi Anastdcio chegou de viagem. ¥ uma sétia con- corrente ao titulo de primeira fita brasileira de ficgao. “Narrava as peripécias de um matuto que veio passear no Rio de Janeiro, desembarcou na estagdo da Central, andou pelas ruas, viu a caixa de conversio, entrou no Palacio Monroe, visicou o Passeio Pablico, enamorou-se de uma cantora, mas tudo se complicou com a chegada siibita da esposa. Por fim, a série de qiiiproqués, a perse- guigio cmica, a reconciliagéo geral, 0 happy end...” Foi filmada por Julio Ferrez, e interpretada por José Gon- alves Leonardo. “E a primeira vez, escreveu um cronista da época'; que se fazem entre nés fitas dese género.” Devia ser NAé Anastdcio uma fita curta, com uns quinze minutos de duragio no méximo. Vinte dias apés 0 langa- mento de Nhé Anastdcio, jé estava pronto um filme bra- 3. Vicente de Peule Aratjo— Cap. XVIII da obra citada 4, Figueiredo Pimentel, in Gazeta de Nori, de 20/junho/1908. Cia da por V. P, Aradjo 25 sileiro de mais de meia hora, o celebrado Os estrangula- dores, de Anconio Leal. Durante muito tempo foi o portugués Antonio Leal apresentado e aceito como o fundador e criador do cinema brasileiro. Teria ele, no s6 realizado o primeito filme de enredo, mas sido ainda o operador das primeiras filma- ‘gens feitas no Brasil. A dissipacio dessas lendas nao dimi- nui em nada a importancia de Leal. Em 1904 ainda o en- contramos como fordgrafo de O malbo e com atelié insta- lado & Rua do Ouvidor. Sem diivida foi no ano seguinte que comecou a filmar, mas s6 decorrido algum tempo € que se criaram condigdes para que ele se transformasse ‘num cinegrafisca profissional, o melhor da época na opi- rio da imprensa contemporinea. Em maio de 1907, re- cebe Leal o dificil encargo de cinematografar, por conta talvez do empresério Jécomo Rosario Staffa, a operagio das xif6pagas realizada pelo Dr. Chapot Prévost. No ano seguinte, associa-se ele a José Labanca para fundar a firma “Photo Cinematographia Brasileira”, inicialmente apenas uma “fébrica de vistas”, mas que logo em seguida se con- centraria nos filmes de enredo. Duas comédias curtas de Leal, Os capadcios da cidade nova € O comprador de rates, io quase contemporineas de NAi Anastacia, comédias esti- muladas certamente pelo éxito que o filme de Julio Ferrez alcangou. A realizagio, porém, de Os estranguladores colo- coua empresa de Labanca e Leal na lideranga da auspiciosa produgio de 1908. 26 Dois anos antes um crime cerrivel havia causado pro- funda impressio no Rio: dois adolescentes, os irmios Paulino € Carluccio Fuoco, sobtinhos ¢ empregados de um joalheiro da Rua da Carioca, foram estrangulados por uma quadrilha composta de Gerénimo Pegatto, proprie- tario do barco “Fé em Deus”, de Carletto Epitécio, dois comparsas, ¢ do contrabandista Eugenio Rocca, apelidado “occaborino do crime”, devido ao seu tipo enfatuado, cheio de recursos histriGnicos. Fothetos de literatura de corde! Circularam logo com versos sobre a crueldade de Rocca € sobre 0 destino trigico dos jovens Fuoco. Um cinegrafista de Paschoal Segreto filmou Rocca, Carletto e Pegatto, na Casa de Detencio. O Teatro Lucinda apresentou no palco Os estranguladores on Fé em Deus. Figueiredo Pimentel ¢ Rafael Pinheiro, ambos conhecidos jornalistas, escreveram odrama A quadrilha da morte, que serviu de roteiro para 0 filme Os estranguladores do Ria, conhecido depois como Os Estranguladores, que Leal devia langar em julho de 1908. Contornadas algumas dificuldades que surgiram com a policia, a fita iniciou sua carteira triunfal no cinema de Labanca, 0 “Palace” da Rua do Ouvidor, nos primeiros dias de agosto. Calcula-se que Os estranguladores foi exibida mais de oitocentas vezes, constituindo um empreendimento sem. precedentes no cinema brasileiro, Tinha setecentos metros, isto é, quase quarenta minutos de projesdo, e compunha- 27 se de dezessete quadtos: — 1* Trama do crime; 2° Na Ave- nida Central; 3 Embarque na Prainha; 4° Na Itha dos Ferreiros; 5# Primeiro estrangulamento; 6* A procura da pedra; 7# Desembarque em So Cristévio; 8 O assalto; * Segundo estrangulamento; 10* Divisio das jéias; 11° A pega; 12*O informante; 13° Prisio do primeiro bandido; 14* Nas matas de Jacarepagud; 15* Prisio do segundo ban- dido; 16° Dois anos depois; 17* Na prisio. Entre os colaboradores e intérpretes que Leal reuni em Os estranguladores encontram-se varios nomes que esta- rio sempre presentes nessa fase primitiva do cinema bra- sileiro: Emilio Silva, Francisco Marzulo, Joio de Deus, Antonio Serra e Jodo Barbosa’, Notadamente Antonio Serra voltard a aparecer como diretor de cena de quase todos os filmes de enredo da “Photo Cinematographia Brasileira”. Encorajados diante do sucesso desse filme, resolve- ram 0s produtores aumentar a metragem de suas fitas, lan gando-se a moda de aproveitar hist6rias calcadas nos cri- mes mais espetaculares da época. A filmografia de Leal, ‘cujo momento dureo parece ser 0 ano de 1909, contém titulos que resumem toda a cténica policial do tempo: a professorinha de Sio Paulo que anavalhou 0 noivo na ter- ga-feira de Carnaval é evocada em Noivado de sangue ou Tragédia paulinta. Um assassinaco que ficou famoso nos * Ndo E, — Em 70 Anu, consta também o nome de Eduardo Leite, 28 ‘irculos mundanos do Rio inspirou Um drama na Tijuca. Quando o estrangulador Miguel Trad esquartejou sua vi- ima Elias Farhar e a despachou dentro de uma mala, no s6 Leal e Labanca sentiram-se atraidos pelo macabro tema: Marc Ferrez também enviou seu filho Julio acompanhado de artistas a Sio Paulo e Santos com 0 objetivo de recons- tituir os fatos nos préprios locais da tragédia. Tiveram as fitas rivais titulo idéntico, A mala sinistra, foram langadas ‘quase ao mesmo tempo. Houve uma terceira fita sobre 0 mesmo epis6dio, filmada por Alberto Botelho’, jovem fo- t6grafo da Gazeta de Noticias, e que iniciava sua carreira ‘cinematogeéfica em Sio Paulo. cinema brasileiro no se especializou, porém, 56 em enredos de crimes. De 1908 a 1911, foram ensaiados no Rio todos os géneros de espetéculo cinematogréfico: melodramas tradicionais como A Cabana do Pai Tomds, O remorso vieo e Jodo José; dramas hist6ricos como Dona Inis de Castro, A Restauragio de Portugal em 1640 ¢ A Repiblica Portuguesa; pactidticos como A vida do Bardo de Rio Branco ‘ou abordando temas religiosos como Os milagres de Santo ‘Antonio e Os milagres de Nossa Senbora da Penba. Os temas ‘carnavalescos tiveram inicio com os filmes Pela vitbria des lubes e 0 corddo, Numerosas foram também as comédias, 5. Peri Ribes — "I cinema in Brasil fino al 1920", in Cinema Brasilia, Silva Bditore, Génova, 1961, p. 24, nota 2. 29 baseadas algumas na atualidade politica, como Zé Bolas € © Famosoielegrama n 9 — onde era ridicularizado 0 chan- ler argentino Zeballos, adversirio de Rio Branco — € Pega na chaleira, sétita aos bajuladores mais em evidéncia na politica do pais. Outras comédias como Os capadécos da cidade nova, O comprador de rato, 0 9* mandamento, Uma liga de maxixe e Um cavalbeiro deveras obsequios” seguiaen uma linha mais do género de sketches criticando os costu- mes da época, Oportuno destacar aqui, entre as comédias mais longas, As aventuras de Zé Caipora, com oitocentos ‘metros e mais de vinte quadros narrando as peripécias de ‘um matuto. ‘A maior parte desses filmes — cdmicos ou draméti- 0s, curtos ou longos — foi realizada por Antonio Leal ¢ José Labanca, que dominaram a produgio nacional du- ance 08 dois anos que permaneceram juntos na “Photo Cinematrographia Brasileira”. Mas houve um género no ‘qual foram vencidos pelos concorrentes, notadamente Cris- t6vio Guilherme Auler ¢ Francisco Serrador: 0 dos cha- mados filmes cantantes ou falantes Desde os primeiros anos do século foram numerosas as apresentagdes no Rio, em Sao Paulo ¢ em outras capi- tais, de espetéculos de origem estrangeita, e nos quais ha- IN do E, —Em 70 Ama, consta também 0 tiulo Pasiapere ¢ compa hia 30 via a combinagio de cinematégrafo ¢ gramofone. Jé 0 fil- me cantante brasileiro exigia que os artistas se escondes- sem atrés das telas ¢ acompanhassem com @ voz a movi- mentagio das imagens. Esse tipo de espetaculo, que Serrador teria iniciado em Sio Paulo no ano de 1908, ad- quiriu no Rio de Janeiro, de 1909 @ 1911, um desenvol- vimento verdadeiramente surpreendente. Eram de inicio filmezinhos curtos: Eduardo das Ne- ves cantava um mimero de seu repert6rio, ou endo Santia- g0 Pepe e Claudina Montenegro interpretavam € canta- ‘vam em dueto um trecho de 6pera. Fitas curtas desse género foram produzidas as centenas; contudo, logo comecou a moda das operetas mais ou menos completas, mais ricas de enredo € movimentagio. Nao escapou nenhum titulo prestigioso do repertério internacional: A vitiua alegre, O conde de Luxemburgo, A geisha, Sonbo de valsa, A condessa descalga.. Algumas dessas fitas — com a trupe completa de ineérpretes atrés da tela — foram apresentadas cente- nas de veves. Intensa era a rivalidade entre os produtores, € assim houve um momento em que nada menos de trés ‘verses cinematogrificas de A viiiva alegre disputavam 0 favor do paiblico: uma de Leal, outra de Auler, e uma ter- ceira do tipo brejeiro, fabricada talvez por Serrador’, que +N. do E.— Em 70 Anas, em lugar do nome de Serrador esté 0 de aschoal Segreto. 31 se dedicava cada vez mais aos programas picantes, impr6- prios para menores, senhoras e senhoritas. Nido faltou uma parédia, O visivo alegre, de Mauri. (© que houve porém de mais interessante no género falado e cantado foram os filmes-revistas de atualidade po- litica, Retornava-se, assim, & antiga tradigdo da revista de fim de ano, ilustrada no havia muito por Artur de Aze- vedo, Em 0 chantecler, o titulo jé era uma alusio a Pinheiro ‘Machado, o chefe da vida politica na época. 0 cometa, es- ctito por Raul Pederneiras, fez também bastante sucesso, bem como 606, cujo titulo completo era 606 comtra 0 spirocbeta pdlido. Mas nenhum desses filmes teve 0 &xito financeiro e artistico de Paz e amor. Exibida mais de mil veves, a partir de marco de 1910, e saudada por toda a imprensa, essa produgio de Auler, filmada por Alberto Botelho, foi a primeira verdadeiramente a se enquadrar no género de filme-revista, focalizando as principais figu- ras € acontecimentos politico-sociais. Com roteiro e ver- 08 de José do Patrocinio Filho, o filme mal poupa o Pre- sidente Nilo, que aparece sob o transparente pseudénimo de “El Rei Olin”. Jé Rui Barbosa e Hermes da Fonseca surgem como tais, disputando a principal personagem fe- minina, a “Presidéncia”, Outras personagens femininas ‘como “A Imprensa”, a “Banda Alema” e a “Vitiva Alegre” tm atuagio destacada como simbolos da sociedade de entio, ao lado de “Compadre Xicara” e “Pajé-Acioly”, 32 reconhecidos imediatamente como os politicos Pires Ferreira e Nogueira Acioly. A ado era conduzida por ‘Tibtircio da Anunciagio, personificagio do matuto que a A Carta cornara popularissimo: chega 0 her6i para co- nhecer 0 Mundo da Lua, entdo sob o governo do Rei Olin ‘Como cicerone, é-Ihe oferecida "A Imprensa”, que ele te- ‘cusa por ser essa senhora sabidamente faladeira e venal Quem o acompanha entio nas aventuras é “Mussid Baboseira”, em quem o ptiblico imediatamente reconhece © poeta-profeta Mticio Teixeira. Terminava o filme com uma apoteose ao “Minas Gerais”, navio de guerra recente- mente adquirido que fizera do Brasil — na opinito de alguns patriotas — a terceira poténcia naval do mundo. Ismenia Mateos era a intérprete da principal perso- nagem feminina de Paz ¢ amor. Seria ela ainda a figura central de A geisha, Sonbo de valsa, A marcha de Cadiz, O cordan e intimeras outras fitas de menor importancia. Enor- me era 0 entusiasmo do piiblico por essa sua deusa que — segundo consta — tinha bela voz. “uma pléstica maravi Ihosa”, como muitos anos depois ainda recordaré um cro- nisea*, Mas nfo foi o cinema que a popularizou, pois quando Auler foi procuri-la para posar nos tais famosos filmes cantados, Ismenia Mateos estava no auge de sua carreira artistica. Os lineamentos de sua biografia assemelham-se 6, Pedro Lima — SELECTA — Ano X — nt 44, Ifnoverbro/1924, 33 aos de muitas atrizes de entio: nascida no estrangeiro, a _meninice nos meios teatrais, as andangas pela América do Sul, 0 encontro do amor no Rio... Perdurando ou nao 0 amor, foi no Brasil que tantas daquelas “divas” prolonga- ram suas carreiras no teatro, com incursdes no cinema, de mistura as vezes com 0 mundanismo elegante de boémio da belle ogue. Nos primérdios de 1911, reinava ainda animagio nos meios da produgio cinematogrifica: enquanto Serrador lan- ava A serrana, opereta de costumes porcugueses “inteira~ mente bailada ¢ cantada, sem nenhuma declamagio””, era exibida a revista 606, filmada por Paulino Botelho, o it- ‘mao mais velho de Alberto, também fotégrafo de imprensa ‘que 0 cinema acabara por conquistar. Continuava inten- saa concorréncia entre Auler e Serrador, cada qual apre~ sentando 0 seu Conde de Laxemburgo. Alberto Moreira — principal criador do filme-revista — realizou um drama cinematogrifico declamado: A Repiblica portuguesa ou 5 de autubro, Salvatore Lazzaro, um empresirio que até ento no cuidara de cinema, produziu pot sua vez O guarani, ‘em quatro partes", com intérpretes-cantores contratados em Buenos Aires. A publicidade apresentava ofilme como 7. Giada por V. P Atasijo. 8. ¥.P. Arai informa que Leal hava flmado ern 19080: Guarens, pega do palhago negro Benjamim de Olivera, baseada na obra de Alencat. 34 “a tinica épera lirica completa feita até hoje" Todo esse esforco era porém um canto de cisne. Em junho de 1911 era exibida A dangarina descalza, de Auler, 0 Gltimo filme ‘cantante. Os dois tiltimos filmes mudos de enredo, co média O casamento de Esteves © 0 drama Triste fim de wma vida de prazeres, jf datavam de 1910. Encetrava-se assim, em meados de 1911, um ciclo particularmente movimen- tado, talvez brilhante mesmo do cinema nacional. Em 1912, foi realizado apenas um filme de enredo no Rio de Janeiro, ¢ que nem foi exibido, censurado pela Marinha ‘de Guerra por ter focalizado a vida do cabo Joxo Candido, lider da rebelio dos marinheiros contra 0 uso da chibata como punigao. Intensifica-se a crise: quase todos aqueles que parti~ cipavam ativamente da fabricagio de filmes nacionais aban- cdonam as lides cinematogréficas. Argumentistas, roteiristas e diretores de cena que haviam surgido, 20s poucos vio retornando as suas origens jornalisticas e teatrais. O de- sinteresse generalizado atinge também os primeiros pro- dutores ¢ dele nio escapa nem um Paschoal Segreto, que cada ver mais se dedicaré apenas ao teatro ligeiro. Agrava~ se a deserglo: Labanca abandona definitivamente a profi siio cinematogrifica. Permanece Serrador, mas sua frutuosa carreira no cinema apéia-se agora exclusivamente no co- 9. Gitado por V.P. Arai, pp. 42:3. 35. meércio do filme produzido no estrangeiro. Rompe-se a antiga solidariedade de interesses entre os fabricantes de filmes nacionais 0 comércio local de cinematografia. Os ‘que persistem em fazer filmes nacionais encontram ctes- cente dificuldade em exibi-los. Entre esses teimosos, en- contramos Leal, os irmos Borelho, ¢ alguns outros pou- 0s técnicos e cinegrafistas que ndo desistem. Viriam eles ‘ assegurar um mfnimo de continuidade entre a época que se encerra em 1912 € a seguinte, que cobriré os préximos dez anos. 2 EPOCA: 1912 a 1922" Apés 0 colapso assinalado em 1911-12, a continui- dade do cinema brasileiro repousou inicialmente na ativi- dade de alguns cinegrafistas, ou seja, eécnicos em filma- ‘gem. Nio foi, entrecanto, realizando filmes de enredo que esses profissionais conseguiram ganhar a vida: tanto An- tonio Leal — veterano com sete anos de atividades cine- matogrificas — como Paulino ¢ Alberto Botelho dedi- cam-se sobretudo aos documentatios jornais cinema- ‘ograficos. E quando evencualmente filmam um enre- do, niio € por terem encontrado um empresétio interes- *N. do E, — Em 70 Ama, a 2 época se inicia em 1913, 36 sado em seus servigos técnicos, pois serdo seus préprios pprodutores nessas raras investidas no campo do cinema de ficgio. ‘A idéia de que o crime compensa — pelo menos como ‘enredo de filme — deve ter inspirado os responsiveis pela produgdes que tentaram artancar 0 cinema nacional do ‘marasmo em que mergulhara por volta de 1912. Histori- camente, a idéia é certa, € havia sido testada entre nds com o grande éxito de Os estranguladores, de Leal, e de ou- tras fitas de crime, nacionais ou estrangeiras. De qualquer forma, os tinicos trés filmes de enredo realizados no Brasil em 1913 giram em torno desse tema: 0 caso das caxotes, O crime de Paula Matos ¢ 0 crime dos Banbades, trindade de crimes famosos e recentes, como convinha para atingir maior pablico. 0 caso dos caixotes, também conhecido como 0 roubo des 1400 contes, inspirou-se num assalto sensacional. 0 crime de Paula Matos focaliza o assassinato do industrial Adolfo Freire por Augusto Henriques, nomes que encontravam muito eco na imaginacio popular. Ambos esses filmes, rea- lizados no Rio pelos irmios Botelho, eram filmes médios, em tr@s partes, isto, davam cerca de quarenta minutos de projegio. Jé 0 terceiro filme, O crime das Banbades, era uma supermetragem, com quase duas horas de projegio. O produtor desse filme foi o velho ator portugués Francisco Santos, que se aposentara do palco ¢ resolvera, 37 por desfastio, fazer cinema na cidade gaticha de Pelotas. Inspirava-se a fita num barbaro episédio de recentes lutas politicas que haviam culminado no massacre de uma fa- milia inteira, na Fazenda de Passo da Estiva. Os nomes dos personagens sio ficticios, 0 mével do crime aparece como sendo 0 roubo, mas no se podia iludir o piiblico com esses e outros disfarces diante de um episédio que Ihe cera extremamente familiar; foi, sem diivida, devido a tal reconhecimento que 0 filme teve assegurada uma longa carreira Na prospera Pelotas da industrializagdo do charque, © patriarca Francisco Santos, dono de uma sala de cinema ¢ ligado ainda a outros negécios, escrevia, produzia, dit Bia, filmava e interpretava seus filmes. Além de O crime de Banhados, chegou a completar mais duas produgdes, A/- bum maldito ¢ a comédia Os éeulas do avd, supondo-se que ambos nio atingiram a importante metragem do primei- 10, Informa Peri Ribas que Francisco Santos era afilhado de Camilo Castelo Branco, ¢ assim teria aproveitado o fa- ‘moso romance Amor de perdigdo para um filme, como ho- ‘menagem ao padrinho. Isso em 1914. Com a eclosio da Primeira Guerra Mundial e devido a restrigio de filme vvirgem, o trabalho teve que ser interrompido.' 1. Peri Ribas, “I Cinema in Brasile ino al 1920" in Cima Brasilien, spit 38 Nesse ano, com efeito, em conseqiiéncia ou no da ‘guerra, as atividades cinematogrficas no Brasil foram mi- nimas. Além dos esforgos de Francisco Santos, s6 encon- tramos registro de mais de uma fita de enredo, A Estran- sgeira, esctita e dirigida em Petrpolis por um adolescente de quinze anos: Henrique Pongetti. Aos poucos, porém, recomesou 0 movimento. Enumera Peti Ribas mais de uma diizia de firmas produtoras criadas no Rio e em Sao Paulo durante os quatro anos que durou o conflito. Os ‘novos nomes sio em geralitalianos: Michele Milani, Franco Magliani, Italo Dandini*, Arturo Carrari, Guelfo Andal6, 0s irmaos Lambertini, Eduardo Vitorino, Vittorio Capel- laro, Paulo Aliano, Gilberto Rossi, Paulo Benedetti, Wil- liam Jansen... Os diretores desse grupo eram na maioria homens com alguma experiéncia teatral, quando no at- tistas profissionais que vieram para o Brasil em. tournée, como Vittorio Capellaro. Os cinegrafistas, as vezes muito bons, como Benedetti ou Rossi, pertencem a categoria daqueles imigrantes ricos de habilidade arcesanal, sem 0s quais o desenvolvimento tecnolégico brasileiro seria sem diivida mais precirio, A essa lista de estrangeiros — sem diivida incompleta — devem ser acrescentados alguns brasileiros que vieram ampliar 0 grupo nacional, até en- ‘Go representado quase que exclusivamente pelos Botelho. N do E.—Em 70 Ams em lugae de Ialo Dandini eseé Cesare Dandi. 39 Pouco mais de meia diizia dio uma idéia aproximada do novo contingente: Simées Coelho, Fausto Muniz, Salva- dor de Aragio, Antonio Campos, Joao Stamato, José Medina, Luiz de Barros... A esses cinegrafistas e diretores, acrescentemos o jornalista Irineu Marinho, que pelo me- ‘nos durante o ano de 1917 teve um estimulante papel de produtor. Mas até aproximadamente 1922-23, os cineas- tas de maior relevo serio Luiz de Barros, no Rio, e José ‘Medina, em Sio Paulo. Luiz de Barros nasceu no Rio, em 1893. Aos 19 anos. ‘vamos encontré-lo em Paris, estudando pintura na Aca- demia Julien. Acompanhou igualmente as aulas de ceno- srafia de Francesco Mallerba, na Academia Brera de Mi- ao. Em Paris, freqiientou assiduamence os estiidios de Leén Gaumont, onde aprendeu junto ao diretor Dubois os ru- dimentos da profissio; de volta ao Rio, aproximou-se de Italo Dandini e Joo Stamato, com os quais em 1914 ini- ciou-se profissionalmente em cinema. Da longa carreira de'Luiz de Barros, que se prolonga até nossos dias, os dez primeiros anos terio maior significago para o cinema bra- sileiro, verificando-se que de 1915 a 1920 foi ele cerea- mente a figura mais positiva no Rio. José Medina nasceu em 1894, em Sorocaba, Estado de Sao Paulo. Estudou pintura decorativa no Liceu de Artes ¢€ Oficios de Sio Paulo. Em 1910, interessou-se pelo cine- ‘ma ao ver Alberto Botelho realizar algumas filmagens, na 40 Fabrica Vororantim, nos arredores de Sorocaba: a entrada para a profissio cinematogréfica data de seu encontro.com o cinegeafista Gilberto Rossi, em 1918. ( faro de termos facilmente enumerado cerca de vinte novos cineastas pode levar a cter que foi grande a flores- céncia dos filmes de ficgdo no perfodo do cinema brasilei- ro que ora focalizamos. Contudo, a média anual entre 1912 € 1922 foi de apenas seis filmes. Da quase paralisagio dos anos 1912-14, chegamos a uma produgio relativamente abundante de dezesseis filmes em 1917, para haver uma brusca queda no ano seguinte, com uma mediocre reagio até 1922. ‘Ja nos referimos aos raros filmes dos anos 1912-14 Na produgio que se desenvolve a partir de 1915, 0 que chama logo a atengio é 0 ntimero de fitas inspiradas na nossa liveratura. Inocincia e A retirada da Laguna foram ba~ seadas nos romances de Taunay; de Bilac foi aproveitado (0 cagador deesmeraldas, ¢ de Macedo, A moreninha, Bernardo Guimariies foi lembrado para as bases de O garimpeiro, en- quanto de Aluisio Azevedo aproveitou-se O mulato, apre- sentado com 0 titulo 0 envzxio do sul. A obta de José de ‘Alencar foi naturalmente o ponto de partida para maior niimero de filmes: O guarani (duas verses), Iracema, Ubirajara e A viuvinba. Um conto de Monteito Lobato set- vviu de inspiragio para 0 Farolcir. Jé Medeiros Albuquerque, Cliudio de Sousa e Coelho Neto escreveram enredos espe- Al cialmente para o cinema, sendo que o de Coelho Neto era para um filme em série, Os Mistérios do Rio de Janeiro, do qual foi realizado s6 0 primeiro episédio. AA participacio do Brasil na guerra provocou um ni- mero razodvel de filmes, sobretudo se levarmos em conta ‘que essa participagio foi exclusivamente simbélica: Pd- tia ¢ Bandeina, com histéria escrita por Cléudio de Sousa, focalizando a espionagem alema em nosso territério, foi ‘uma das produgées que contou com a cooperacio das For- 6@5 Armadas, inclusive da nossa incipiente aviagio mili- tar. A essa ingénua veleidade patristica feita no Rio corresponde outra realizada em Sio Paulo, Patria brasilei- 1a, cuja filmagem foi seguida de perto por Olavo Bilac. Mais cutiosa ainda deveria ter sido a fita que recebeu um titulo ftancés, Le Film du Diable, com letreios em versos de Bastos Tigre, a acio desenrolando-se no Rioe na Bélgi- ca invadida pelos alemaes. A mesma inspiracio presidiu 0 primeiro desenho animado brasileiro, O Kaiser, do catica- ‘turista Seth, e que no deve ser confundido com 0 castigo do Kaiser, filme posado em 1918, Datam também desse perfodo alguns ensaios patri6ticos, como O grito do Ipiranga € Tiradentes, Com esse surto de filmes mais ou menos his- t6ricos, a crénica criminal perdeu aquela antiga vitalida- de, mas em 1920 retorna com O crime de Cravinbos, filme baseado num famoso assassinato que teria sido encomen- dado por uma fazendeira paulista, conhecida como a rai- 42 nha do café. O assalto a um banco italiano de Sio Paulo inspira também os cineastas da época, que no tardam em levar a hist6ria para a tela sob 0 titulo de 0 furto dos 500 milbies. ‘Apesar do interesse documental, ressentiam-se essas ficas da pressa nas filmagens de hist6rias que néo podiam esperar para nio perder a oportunidade. Muito mais ela- borados deveriam ser os filmes A quadritha do esqueleto ou Rosa que se desfolba, cujos crimes eram imagindrios, exi- _gindo assim uma ordenacio mais trabalhada ¢ licida. Fo- ram essas duas fitas produzidas pela empresa Veritas- Film, de Irineu Marinho, jornalista, diretor de A Noite, personalidade importante, cujo ingresso no mundo do fil- me deve ter significado uma grande esperanga para 0 nos- so cinema. Poderia ter sido 0 Auler do novo perfodo que se iniciava. Mas apés quatro fitas Irineu Marinho abando- na definitivamente as atividades cinematogrificas. Luiz de Barros é 0 responsével por mais de meia di- zia de filmes do periodo que ora focalizamos. Perdida, 0 primeiro a ser realizado, teve larga repercussio na crOnica da época, por contar talvez.com a participacio de Leopoldo Frées, ator jé famoso nos meios teatrais. Sobre Vivo on mor- 10, 0 segundo filme de Luiz de Barros, 0s testemunhos que ficaram foram undnimes em reconhecer seu grande inte- resse: é a hist6ria de uma mulher extremamente elegante ¢ vaidosa, abandonada pelo amante, A dama — interpre- 43 tada pela atriz italiana Tina d’Arco — jura que ele hé de voltar. Desenrola-se entdo a intriga em meio das mais com- plicadas peripécias até 0 momento em que o cadaver do amante é-lhe entregue afinal. Triunfance, com uma taca de champanhe na mao, ela exclama: “Ele voltou!” Esse melodrama eivado de sicuagies ridiculas teve um elenco de artistas de prestigio e foi filmado em cenografias cui- dadosamente montadas. Os documentos forograficos evo- ‘cam o cinema francés de antes da guerra; contudo, 0s con- temporineos foram surpreendidos pela vivacidade agilidade da interpretacio. Para o leitor de hoje, a maior parte dos velhos filmes de Luiz de Barros nao passa de simples eftulo com alguns rnomes de intérpretes, e uma ou outra foro. Mas, sempre ue se aprofundam as investigagBes a respeito dos traba- Ihos que realizou até aproximadamente 1920, avulta aim- portdncia de sua contribuigdo ao cinema brasileiro. Nao é pois de estranhar que na ocasiao fosse ele o cineasta mais procurado pelos jovens como os cariocas Pedro Lima Ademar Gonzaga ou o paulista Antonio Tibiriga. José Medina, diferentemente do que sucedeu com Luiz de Barros, s6 mais tarde dard sua melhor medida. Dentro do perfodo que nos ocupa, realizou ele, em erés anos, uma dtizia de filmes. Como Deus castiga era uma lon- ‘ga histéria em dez partes, situada na Espanha de 1850, toda feica de carrascos e inocentes. A acio de Perversidade 44 jd era mais moderna: um patrio simula um roubo, com 0 ineuito de provocar a prisio de um empregado, por cuja mulher se enamorara. Baseada num roteiro do estudance de direito, Canuto Mendes de Almeida, Do Rio a Sdo Pan- Jo para casar, ao contrétio das outras, vern a ser uma fita de historia leve e acio rdpida, sem resquicio de melodrama. ‘Mas de todos os filmes de Medina realizados nessa época 56 chegou até nossos dias Exemplo regenerador, datado de 1919, Teata-se de um filme de curta-mettagem, cujo en- redo todo moralizante se desenvolve com relativa fluidea: ‘um mordomo exemplar simula um romance com a patroa a fim de provocar citimes no marido negligente, alertando- © para o cumprimento dos deveres conjugais. Aparente- ‘mente, a estrutura dos filmes nacionais por volta de 1919 cera baseada ainda numa rigida compartimentagio em epi- sédios; desejando demonstrar ao seu companheiro de equi- pe, Gilberto Rossi, a possibilidade de se praticar no Brasil 1a continuidade cinematogréfica, Medina teria realizado Exemplo regenerador em algumas horas apenas, Contudo, ‘nos filmes Como Deus castiga ou Perversidade, de maior du- ragio e mais ambiciosos, nada indica que tenham sido apro- veitados os recursos que ele revelou na pequena experién- cia da ligio do mordomo. Depois de Luiz de Barros e José Medina, cabe igual- ‘mente uma mengio especial a um terceiro cineasta do pe- iodo: Vittorio Capellaro. Foi esse italiano o principal res- 45 ponsivel pela voga dos filmes inspirados em obras literé- tins brasileiras. Entte 1915 € 1918, adaptou Inocéncia, Ira cema, O guarani, O mulato e O garimpeiro; num outro perio~ do do cinema nacional, vamos encontré-lo como autor de nova versio de O guarani. Nenhum filme de Capellaro foi preservado, excetuando-se O cagador de diamante, de 1933. Lamentavelmente, a critica hist6rica tende a julgar as primeiras obras desse autor luz do pesado academicismo dessa produgio tardia, pois € bem provavel que suas fitas prtimitivas, baseadas nos romances brasileiros, tivessem a graca € 0 frescor que faltou a esse Gagador de diamantes. Mas da colegio de filmes inspirados na nossa litera- tura, 0 que provocou na época maior impressio foi sem diivida Luciola. Produzida e cinematografada pelo vetera- no Leal, a fita adquiriu as caracteristicas de um melodra- ‘ma mundano, com algumas semelhangas com View ou mor- 10, Coube a atriz. Aurora Fulgida viver na tela a heroina de Alencar, Alguns cronistas viram Lueola quando ainda ado- lescentes, € anos mais tarde registravam com calor suas impressdes, fazendo-nos vislumbrar 0 encantamento de toda uma geracio de estudantes pela erdtica atriz dos anos 1916-17. Durante 0 perfodo que abordamos neste capstu- lo, além de em Lucila, trabalhou ela no filme O dominé ‘misteriaso, uma das produgées de Irineu Marinho. Seu nome verdadeiro era Amélia Cocaneanu, Nascida em Bucareste, fugiu de casa aos dezessete anos para ser bailarina. Alcan- 46 ‘cou o objetivo, ¢ por ocasido de uma tournée pela América do Sul, para no fugir & regra, encontrou no Rio um amor, e ficou pelo Brasil. O fato de ter posado apenas para duas firas aumenta a singularidade do impacto que causou. ‘Antonia Denegti, atriz preferida de Luiz de Barros, teve momentos de alguma popularidade, mas nem sem- pre vinculados aos filmes ou pegas que interpretou. Nas- ida na California em 1901, veio pequena para o Brasil, onde fez um curso de bailarina, ao mesmo tempo em que se iniciava no teatro, na Companhia Lucinda; reve algum mérito, porém modesto, Maior fama alcangaram no teatro as atrizes Abigail Maia —a Cecy de uma das verses de O ‘quarani — ea portuguesa Orflia Amorim, que participou igualmente de alguns filmes de Luiz de Barros, entre os quais A/ma sertangja,em 1919. Nesse filme, Orilia Amorim aparecia nua, 0 que no foi esquecido; sua precursora foi Miss Ray, que tivera a audécia de aparecer também ua numa seqiiéncia com 0 deménio no Le Film du Diable brasileirissimo apesar do ticulo. E aqui convém lembrar que entre as atrizes que mais se destacaram no periodo incluem-se duas brasileiras, Jolanda Diniz’ e Iracema de Alencar, precisamente a heroi- nna de Iracema, Seu nome real era Ida Kerber, nascida em. IN. do B, — Esta frase € do texto 70 Ams. No original conta apenas Iracema de Alenca, “a nica brasileira ata” aT 1899 no Rio Grande do Sul. Aos dezessete anos, foge com ‘© namorado para tentar 0 teatro. Ingressou na Companhia Ieélia Fausca ¢ estreou no Rio de Janeiro no papel de Hamedryada. Quanto aos atores, nada hé de especial a registrar. guns veteranos da primeira fase, como Leonardo Loponte € Joio de Deus, reaparecem aqui com freqiiéncia, assim como alguns diretores, entre os quais Vietorio Capellaro e Franco Magliano’, como intérpretes das préprias fitas. Re- petindo o fenémeno das atrizes principais, quase todos os. astros sio estrangeiros oriundos do teatro, predominando no Rio os portugueses, ¢ em Sao Paulo, os italianos. Esta segunda época do cinema brasileiro esta bem longe da importancia e do brilho da primeira. Embora entre 1912 € 1922 0 comércio cinematogréfico tivesse se desenvolvido consideravelmente, cornou-se cada vez mais dificil 0 acesso da produgio nacional aos circuits de salas. De um modo geral, 0s filmes conseguem ser exibidos gra- 428 apenas & benevoléncia de um ou outro proprietério de cinema. Uma certa aproximagio de homens de prestigio como Irineu Marinho, Olavo Bilac, Coelho Neto ou ‘Medeiros Albuquerque, durou pouco, desde que essa apro- ximagio fora suscitada pela breve animagio que reinow em 1917, ano em que a producio atingiu 0 seu ponto 1N. do E.— © nome de Franco Magliano foi cortado em 70 Ama 48 mais alto. Tomada em conjunto, a realizagio de filmes de enredo foi precéria e escassa; os sessenta filmes posados encerram uma porcentagem considerével de curtas- metragens, destinados as vezes a mais variada publicidade comercial, indo desde a propaganda de loteria até a divul- gagio de remédios contra a sifilis. Por outro lado, a im- prensa que poderia colaborar exercendo sua influéncia na opiniio do piblico acaba por no tomar mais conheci- mento da produgio cinematogrifica que se define cada ‘vex mais como uma atividade marginal. Em 1922, o Presidente Epitacio Pessoa encarrega uma ‘comissio de organizar as comemoragées do Centenério da Independéncia, e entre os planos elaborados esté incluido o.cinema, Falou-se entéo muito na realizacio de um gran- de filme hist6rico, cujo roteiro seria escrito por Coelho Neto, sendo que o diretor da Exposigio do Centenério, Dr. Pinto de Almeida, chegou a sugerit um projeto divi- dido em quatro partes. A idéia foi tomando vulto: 0 em- ptesétio Mocchi, arrendatério do Teatro Municipal, dis- pés-se a participar do empreendimento, o deputado Cincinato Braga, em nome de toda a bancada paulista, propés que fossem produzidas varias fitas, para dar maior realce as festas programadas... Apesar de todo esse movi- ‘mento, 0 “filme do Centenério” nao foi feito. Observaram as pessoas bem-informadas que o governo deveria ter en carregado do trabalho uma companhia estrangeira. Tudo 49 ‘ocorreut como s¢ niio existissem no Brasil pessoas capazes de realizar um filme posado, cinema acabou por participar intensamente das comemoracdes do Centendrio, mas em forma de docu- mentérios ¢ jornais de atualidade. Nao houve cinegra- fista do Rio, de Sio Paulo ou de qualquer outra cidade que nao tivesse recebido encomendas de trabalhos nesse ano de 1922: ficou claro que no Brasil 0 tinico cinema possivel era o natural. E a partir dessa melancélica situa- ‘fio de fato que se iniciard a terceira época do filme bras leiro de enredo. 3* EPOCA: 1923 a 1933 Paratodos Selecta exam em 1923 as duas revistas bra- sileiras que mais se interessavam por cinema. O que no impediu que Mério Behring e Paulo Lavrador, respectiva- ‘mente 0s redacores principais, nutrissem pelo nosso filme de entedo 0 maior desprezo. "Esse fantasma que é a cine- ‘matografia nacional”, escreve Behring, “sem artistas, sem ‘€cnicos, sem direrores de cena, sem esttidios,e, finalmente, sem dinheiro.”' E conclui Paulo Lavrador: "Seria melhor ‘que niio existisse".? Paradoxalmente, a0 mesmo tempo que 1. Paratudor — \fmaego/1924 e 18ioutubro/1924. 2, Selecta — 1Olmaios924 50 difundiam essas idéias, tanto Selecta quainto Paratodos ‘transformavam-se nos maiores veiculos da primeira cam- panha continua sistematica em favor do cinema brasilei- r0 de ficgio. O que tornou possivel essa curiosa contradi- fo foi sem diivida o liberalismo daquelas publicacées, bem como a tenacidade e paixdo com que alguns jovens se dispuseram a lutar pelo cinema no Brasil. Pedro Lima em Selecta, ¢ Adhemac Gonzaga em Paratades, ambos mais tar~ de na revista Cineart, procuraram orientar e conjugar a ago de grupos em geral jovens, ignorando-se uns aos ou- tos, dispersos pelo pais. E desse momento em diante que se manifesta uma verdadeira tomada de consciéncia cine- matogrifica: as informagdes ¢ os vinculos fornecidos por essas revistas, 0 estimulo do didlogo e a propaganda tece- ram uma organicidade que se consticui como um marco partir do qual ja se pode falar em um movimento de cine- ‘ma brasileiro, Mesmo as manifestacées hostis — justas ou injustas — contra o filme de enredo revelaram 0 interesse pela nossa produgio, praticamente ignorada num passado préximo. Entre 1923 ¢ 1933, foram completados cerca de cento e vinte filmes, isto é, 0 dobro da década anterior. Qualita- sivamente, o avango foi ainda mais considerivel, surgindo nessa época os nossos clissicos do cinema mudo. A coexis- téncia do cinema mudo ¢ falado de 1929 a 1933 justifica por certo 0 fato extraordinério de terem sido feitas no ano 51 de 1930 cerca de vinte fitas. Realmente, 0 cinema falado desempenhou um papel estimulante na nossa produgio, mas isso antes de 1934, quando entio houve um colapso ‘quase to radical quanto o de 1911 ou de 1921. ‘Outra caracteristica da pujanga deste terceiro peri do é 0 aparecimento de focos de criagao em pontos diver- 305 do tertitério, além de Rio ¢ Sao Paulo, Em 1923, fil- ma-se em Campinas, Recife e Belo Horizonte, estenden- do-se 0 movimento ao Rio Grande do Sul e diversas cida- des mineiras do interior, sendo que numa delas, Pouso Alegre, jem 1921 haviam sido ensaiadas fitas de enredo. © homem de Pouso Alegre é Francisco de Almeida Fleming, nascido em Ouro Fino, no ano de 1900. Perten- cendo a uma famflia de recursos, dona de alguns cinemas na regio, bastante cedo Almeida Fleming maneja uma camara; aos vinte anos realiza seu primeiro filme posado, de curta-metragem, A cangao do bandido, seguindo-se In ‘ac signo vines, fita mistica mais longa ambiciosa, com reconstituigées de época. Essa ambicio nao se desmentiu ras duas outras fitas que fez.com alguns anos de intervalo, Paulo ¢ Virginia € 0 valle dos martyrios. Os precérios recur- 308 técnicos disponiveis em Pouso Alegre e Ouro Fino, somados & bisonha adaptacao do entio popularissimo ro- ‘mance de Bernadin de Saint Pierre e ao argumento origi- nal de Almeida Fleming, redundaram em melodramas que beiravam 0 cémico involuntério. Contudo, apesar de to- 52 das as falhas ¢ imperfeigdes, foi com esses dois filmes que Francisco de Almeida Fleming ingressou de forma honro- sa na histéria do cinema brasileiro. O talento inaco de Fleming em dirigir as cenas — fazendo esquecer.o grotes- co de certas cenografias ou tom carregado das sieuagdes —, bem como a sutileza que soube imprimir & pancomi- mae & mimica-dos incérpreces, parece ter salvo todo 0 conjunto, ¢ até o elenco, no qual figurava apenas um pro- fissional, Paulo Rosanova, de So Paulo. Em Belo Horizonte, o pioneiro dos filmes de ensedo foi Igino Bonfioli, nascido em 1886 na provincia de ‘Verona, chegando ao Brasil antes do fim do século: é bem © exemplo do artesio italiano imaginoso e hébil, to pre~ sente no amanhecer do nosso cinema. O dinheiro que ga- hou filmando documentatios para a Exposicio do Cen- tenério foi gasto na producio de Canpdo da primavera, seguida alguns anos mais tarde por A tormenta. Esses fil- mes, bem como mais uns quatro ou cinco realizados em Belo Horizonte até 1934, nio passaram de um esforgo sem maiot tepercussio, mesmo local. José Silva foi o responsé- vel por trés dessas producées, Boémias, Perante Deus © Calvério de Dolores’, cendo apelado para a colaboragio dos veteranos Antonio Leal e Paulino Botelho, e em seguida IN. do E. — 70 Anas nto inci este dltimo filme. 53 para de Almeida Fleming. E provavel que Entre as mon- tanbas de Minas, de Manuel Talon, tenha conseguido alcan- ‘gar maior repercussio do que as outras que passaram qua- se despercebidas Apresenga de Almeida Fleming e do ator Paulo Rosa- nova no genético de algumas produces belo-horizontinas indica o liame existence entre as tentativas de Pouso Ale- gre € 0 movimento da capital do Estado. Jé o mesmo en- trelagamento nio se verificou em Guaranésia, onde Américo Masotti — durante sua breve vida — animou tum grupo que produziu pelo menos Coragies em Supli- «io; aliés, o8 nomes conhecidos que se destacam no niicleo dessa cidade so os de pitorescos aventureiros como um Rolando ou um Kerrigan, que ainda aparecerio neste ca- pitulo. Mas a cidadé mineira que deu real importancia cine- matogrifica ao Estado foi Cataguases. Encontramos af Pedro Comello, tipo humano que jé nos é familiar: 0 do artesio italiano experiente e empreendedor. Foi ele o ini- ciador de Humberto Mauro em cinematografia, a primei~ ra personalidade de primeiro plano revelada pelo cinema brasileiro. Filho de pai italiano e mie mineira, nasceu ele em 30 de abril de 1897, na Fazenda Sio Sebastiio, em Volta Grande, distrito de Além Parafba. Iniciam-se em 1925 as experiéncias de Comello € Humberto Mauro. Munidos de uma Pathé-Baby, filmam. 34 uma histéria de cinco minutos, Valadido, 0 Cratera, onde hé um bandido que rouba uma mocinha e a leva para uma pedreira, No segundo ensaio, Os srét irmans, hd uma jo- ‘vem com amnésia e um incéndio, sendo que nessa altura ji trabalham com uma cimara comprada no Rio. Jé em 1926, realizam Na primavera da vida, historia de contta- bando de cachaga pelo Rio Pomba, ¢ que € exibida com éxito nas cidades da regio. Entusiasmados com os resul- tados dessas produgées, dois comerciantes de Cataguases asseguram os recursos para o prolongamento da aventura artistica de Comello e Mauro. Entretanto, desentendem- se no inicio das filmagens de Tesouro perdido: afasta-se Comello, produzindo mais tarde Senborita agora mesmo, €3- pecialmente para sua filha Eva Nil, artista sensivel € vibrévil, principal intérprete feminina de Na primavera da vida. Vémo-la figurar ainda em vérios filmes do Rio € Belo Horizonte. Humberto Mauro, que completara sua formagio gra- gas a0 grupo da revista Cinearte, no era mais um apren- diz. Com Tesoura perdido, iniciou ele em 1927 a primeira carreira continua, coerente ¢ bela que 0 cinema do Brasil conheceu. Além de Tesouro perdide, a fase de Cataguases compreende mais dois filmes igualmente importantes, Brasa dormida e Sangue minciro. Jé participava entdo de sua equipe Edgar Brasil, o primeiro cinegrafista brasileiro a igualar ¢ ulerapassar os melhores artesios estrangeiros, 35 como Rossi ou Benedetti. A préxima etapa de Humberto Mauro seré no Rio de Janeiro; s6 quando lé chegarmos é ‘que poderemos avaliar 0 que ele representou para 0 noss0 cinema mudo. (© movimento gaticho ceve importancia bem me- nor do que o mineiro, tanto em quantidade como em qualidade. Apés as tencativas de Pelotas — anteriores a Primeira Guerra Mundial — s6 em 1927 serio real zados novamente filmes de enredo no Estado. Concer tra-se a produgo em Porto Alegre, limitando-se até 1933 a meia diizia de filmes, alguns com razodvel dis- tribuigdo sobrecudo no interior. Mas nenhum deles al- cangou exibigao comercial fora do Rio Grande do Sul. Destacam-se trés nomes: José Picoral, Eduardo Abelim ¢ Eugénio Kerrigan. Enquanco o primeiro foi apenas um esforgado cinegrafista, Abelim, chauffeur de téxi, desdobrou-se em atividades de ator, produtor, diretor € eventualmente fordgrafo. “Sobretudo foi um sedutor”, segundo o definiu uma atriz que apés trabalhar ao seu lado em Castigo do orgullbo ou Pecado da vaidade envere- dou pelo mau caminho. Antes de se fixar em Niterdi, com uma reduzida empresa de cinema publicitério, Abelim foi palhago de pequenos circos ambulantes. A modesta aventura de sua vida aproxima-o de numero- 05 tipos semelhantes que episodicamente transitaram pelo pobre cinema nacional 56 Kertigan possui, certamente, maior envergaduta; jé imos seu nome no ciclo mineiro ¢ quando focalizarmos Campinas, onde iniciou sua carreira, procuraremos deli- near sua fisionomia; acrescentemos apenas, por ora, que 0 filme Amor que redime, resultado da associaio entre Kerrigan e Abelim, foi talvez a produgio gaticha de maior relevo. £ 0 que se deduz dos artigos esctitos na €poca por Pedro Lima e Fridolino Cardoso. Na mesma linha de Cas- tigo do orgulbo ox Pecado da vaidade — sem falar de Em defesa do irmao —, Amor que redime devia set um melodra- ma urbano, moralista e sentimental. Conhece-se methor, pelo menos o enredo, de Revelagd, cuja primeira parte gi- rava em corno de uma situacio bem moderna de conflito industrial, para cair em seguida — apesar de cerca preo- cupagio com a cor local — numa caricatura de filme de aventuras. A hist6ria foi de Lobo da Costa, responsivel também pelo argumento de Um Drama nos Pampas, varnos lo ainda como produtor de Ranchinbo do Ser que forma com a anterior a dupla mais tipicamente gati- cha de todaaa série. Ao movimento cinematogrifico tegio- nal acrescente-se pois o nome desse escritor rio-grandense. Quanto aos artistas mais constantes desses elencos, salien- tam-se Ivo Morgova, Nely Grant e Roberto Zango, ator carateristico que causou impressio. Dentre os ciclos regionais, o que mais produziu foi pernambucano, com um toral de treze filmes em oito anos. 37 No centro das atividades encontramos dois jovens ouri- ves, Edson Chagas ¢ Gentil Roiz. O circulo no tardou em se alargar, participando da realizacio de filmes cerca de trinta jovens, entre vinte e vinte e cinco anos: jornalis- tas, pequenos funcionérios, comerciantes, atesios, oper tins, atleras, mtisicos, atores de teatro... Em meio de polé- micas e divergéncias, apés muita briga, fundaram nada menos de nove firmas sucessivas, diferentes e rivais. Es- trelas surgitam, como Almeri Esteves ¢ Rilda Fernandes, ‘nome que se cornaram familiares dos leitores de Cinearte, outro nome que deve set registrado € 0 do ator, argu- ‘mentista e diretor Jota Soares, mais tarde o cronista do ciclo cinematografico de Recife. Os primeiros filmes, Retribuigao © Jurando vingar, cram de aventuras € tesouros escondidos, figurando al- guns personagens que lembravam cowboys, Os temas regi- ‘onais aparecem com os jangadeiros de Aitaré da praia ou com 0s coronéis e cultivadores de cana de Revezes e Sangue de irmdo; a nota iriosa de Filho sem me € que nessa fira aponta um cangaceiro. Com seus melodramas mundanos de grande cidade, Recife é assunto em A fitha do adngado, bem como teria sido alvo da comédia satitica Heri do seu Jo XX, onde Pedro Neves imitava Buster Keaton. Jé 0 ambiente de Danga, amor e ventura busca exotismo de ‘um acampamento de ciganos onde se passa intriga. Quan- to.ao drama religioso, pagou também Recife o seu tributo 58 com Histiria de uma alma, reconstituigdo fiel da vida de Santa Teresa de Lisieux Eram demasiado precérias as condigbes técnicas, ar- tisticas e econémicas dessas produgdes pernambucanas; s6 mesmo o fervor juvenil e o orgulho regional de fazer cine- ‘ma explicam a continuidade do esforgo, que no foi em vo, diance de alguns resultados alcangados. As fitas eram. exibidas num pequeno cinema da Rua Nova, 0 “Royal”, onde o co-proprietério Joaquim Matos transformava cada cestréia de fita pernambucana numa verdadeira festa, com a rua embandeirada, a fachada enfeitada com rosas ¢ a sala perfumada com folhas de canela profusamente espalhadas pelo chao. No trabalho ainda inédico de Lucila Ribeiro Bernardet sobre cinema pernambucano, conta-nos ela que algumas dessas estréias tinham tanta repercussio quanto as mais importantes regatas, partidas de futebol ou bailes de carnaval. O custo de algumas das produgées foi pago com esses langamentos no “Royal”, o que muito impressio- nou o grupo de Cinearte, preocupado com a dificuldade de se exibirem as fitas brasileiras. Mas sempre que o cinema pernambucano tentava transpor as fronteiras do Estado, fracassava; apenas um filme logrou ser apresentado comer- cialmente no sul do pats. Nos varios ciclos regionais que percorremos, a inicia~ tiva de realizar filmes foi tomada em geral por pequenos artesios ou jovens técnicos. Em Campinas, foi um intelec- 59 tual em plena maturidade que se fez pioneiro: Amilar Alves. Esse cineasta, que em 1923 ja tinha mais de qua- renta anos, teve uma infancia dspera: menino ainda, per- dew o pai, vitima da febre amarela. Sem recursos, chegan- do a alcangar apenas o 2° ano do Grupo Escolar, foi num absoluto autodidatismo que se tornou jornalista, flélogo, poeta e dramaturgo, Suas comédias, Qui, quae, quod ¢ Ta garelices de papagaio foram bastante divulgadas entre os amadores do interior, sendo que a primeira ainda é solici- tada a SBAT, por pequenos grupos teatrais. Ensaiador pre- dileto de Dom Nery, 1* Bispo de Campinas, liderava todo ‘© movimento campineiro de teatro amador, Jazo da Mata, um drama regional com diflogos impregnados de dialeto caipira, era sua pega mais importante; quando resolveu adapté-la ao cinema, encontrou na cidade tudo de que necessitava em matéria financeira, artistica e mesmo téc- nica, Seu fordgrafo, Tomas de Tullio, sera o cinegeafisea de quase todas as fitas do ciclo campineiro. A julgar pelos poucos fragmentos que chegaram até nossos dias, o filme Joao da Mata no s6.conservou ¢ transmitiu a visio da realidade cabocla que a pega continha, mas realcou os seus valores. O éxito de bilheteria em Campinas ¢ redondezas. cobrit largamente os oito contos que a fita custou; em Sio Paulo, mesmo numa apresentagio descuidada houve Iu- ro, € no Rio, embora nao tenha sido explorada comercial mente, numa exibigdo especial no Cinema Central, em 60 3 de novembro de 1923, valeu-lhe a mais calorosa critica ‘nos jornais cariocas. ‘Tal sucesso comercial ¢ artistico da fita de Amilar Alves ateou fogo na imaginagio campineira: fundaram-se companhias produtoras, terrenos foram adquiridos para a construgao de estiidios... Foi nesse clima propicio que sur- giu um personagem que se fazia chamar conde Eugenio Maria Piglinioni Rossiglione de Farner, e que logo apés preferiu adotar 0 nome de Eugenio C. Kerrigan. Afinal, seu nome verdadeiro seria Eugenio Centenaro, segundo afirma Georges Sadoul, baseando-se nas pesquisas de Caio Scheiby sobre o cinema campineiro’, Mas é como Kerrigan que prolongard sua carreira até 0 Rio Grande do Sul, con- forme ja foi visto. Dirige em Campinas Sofver para gozar — melodrama rural brasileiro que se desenvolve em parte num saloon provido de roleta ¢ croapier chinés —¢ colabo- ra numa versio de A came de Jilio Ribeiro. Contudo, neste diltimo filme a figura predominance é Felipe Ricci, (que jd dirigira Mocidade louca; juntamente com Tomés de Tullio, vem ele a ser 0 principal cineasta do movimento ‘campineiro desde que Amilar Alves — apesar de todo 0 sucesso de Jao da Mata — nao voltou & experiencia cine- matogrfica 5. Georges Suoul. Histria do Cinema Mundial Martins Ediora S, Paulo, 1963, vol. I, p. 498. 61 Acrescentando-se Alma gentil, de Antonio Dardes Neto, temos cinco produgdes completas entre 1923 ¢ 1926. Depois de quatro anos de intervalo, em 1930, Felipe Ricci € Tomés de Tullio conseguirdo realizar ainda Os faludvis, Essa meia diizia de ficas modestas, pouco vistas, com exe cego da primeira, constituem a coneribuigdo de Campi- nas 20 cinema mudo nacional. E chegamos a capital paulista, onde a produgio cine- matogrifica € relativamente intensa entre 1923 ¢ 1933. Com cingiienta filmes aproximadamente, Sio Paulo ul- trapassa o Rio durante esses dez anos, pelo menos em quan- tidade, Em macéria de qualidadade, tem-se a impresséo de que so numerosas as fitas de mérito razosvel, mas ex- tremamente raras as obras marcantes. A equipe formada por José Medina, Gilberto Rossi € Canuto Mendes de Almeida, que jé tinha nos dado Do Rio a Sao Paulo para casar, realiza ainda Gigi, baseada num conto de Viriato Corréa. Hi em seguida uma certa dispetsio do grupo, indo Canuco Mendes de Almeida associar-se a Jaime Redondo, produtor de Passe? minha vida num sonbo; para esse produtor, ditige Fogo de palha, comédia dramética em corno de um caca-dotes, vindo ainda a participar mais tarde da realizacio de Escrava Isaura. Nesse periodo, Canuto Mendes de Almeida faz ctiticas de filmes em jornais, vindo a ser 0 autor do pri- ‘meito livro importante sobre cinema publicado no Bra- 62 sil’. Nao se conclua, dai, que os filmes nos quais colabo- rou cenham sido algo de excepcional; mas nao resta di- vida de que foi ele uma das personalidades mais consis- tentes do cinema na época. Quanto a José Medina, acompanhado sempre do cinegrafista Rossi, realizou naqueles anos Fragmentes da vida, sua obra-prima ¢ 0 melhor filme paulista de entio; adaptando a cidade de Sio Paulo um conto de O. Henry, Soap, construiu Medina um trabalho extremamente sim- ples, de uma graga comovente, que é hoje revisto com crescente ineeresse pelos estudiosos. Muito contribuiu tam- bbém para a alta qualidade de Fragmentos da vida 0 gosto fotogeafico de Gilberto Rossi; jé alguns anos antes fora ele uum fator decisivo na valorizacdo de O segredo do corcunda, drama sieuado numa fazenda de café e dirigido por Alberto ‘Traversa, italiano que chegou ao Brasil com alguma expe- riéncia cinematografica, e que realizou ainda Risose igri- mas, em Niter6i. nome seguinte do cinema paulista que provocou maiores esperancas foi certamente o de Alberto Almada Fagundes. Proprietério da Fabrica Santa Catarina —con- siderada a maior indiiscria de lougas da América do Sul —,era figura destacada no mundo dos negécios. O estt- dio que fez construir na Barra Funda foi o primeiro do 4, Cinema Contra Cinema, Cia, Edivora Nacional, S. Paulo, 1931 63 Brasil a merecer realmente essa denominacio. Ligou-se a varias rodas cinematogrificas, inclusive ao inefavel Kerrigan, afirmando-se que depois de lancada sua pri- meira producdo, Quando elas querem, conseguira aumen- tar consideravelmente o capital da sua empresa, gracas a0 interesse de um grupo do qual participaria 0 velho Matarazzo, que era entdo o simbolo da prépria indéstria paulista. Por outro lado, Almada Fagundes no queria ser apenas um fabricante de lougas e de filmes: tinha preo- cupagies artisticas, gostava de ceorizar sobre a obra de arte, escrevendo alguns textos que impressionaram mui- too grupo de Cinearte, Mas tudo se limitou afinal aQuan- doelas querem, filme de média mecragem. Industrialmente, foi um parto da montanha. Resta-nos destacar a modernidade do tema, girando em torno de conflitos industriais, bem como @ linguagem, provavelmante a mais evoluida no seu tempo. Jé devia parecer entao bastante antiquado o estilo do veterano Vittorio Capellaro, que em 1926 realizou uma nova versio de O guarani, e em 1933 0 tardio Cayador de diamantes. Nao é ele todavia o Ginico a insistir nessa trilha: dois israelitas que se iniciam na produgao, Jorge Konchin ¢ Isac Saindemberg, escolhem respectivamente Iracema € Eserava Isaura, Na mesma linha ainda de reconstituigao, anote-se 0 insdlito Anchieta entre o amor e a religido e um filme bem primétio, Abnegagdo do gentio. 64 Alna do Brasil, de Libero Luxardo e Alexandre Willfes,filmado em Mato Grosso, moderniza 0 género de reconstituicao histérica, associando habilmente um documentério sobre as Forgas Armadas & evocagio da Re- tirada da Laguna. Inspirados na vit6ria da Revolugio de 1930, no tardaram a aparecer filmes cfvicos militares, como 0 Amore patriotism ou Alvorada de gliria. As Armas jd foi anterior ¢ se ocupava do servigo militar obtigatério; seu diretor era um jovem critico de prestigio crescente, ligado ao grupo de Cinearte: Otavio Gabus Mendes. Nem a presenca de generais importantes como Hastinphilo de Moura ou Bertholdo Klinger faltou a essas fitas pacriéti- cas, concordando eles em posar eventualmente para algu- mas das cenas. Anos antes José del Picchia havia abordado a revolugio de 1924 em 0 trem da morte, cuja incérprete principal era a esposa do célebre Tenente Cabanas, a atriz Olga Navarro. A fita religiosa — outra constante da hist6ria do ci- ‘nema brasileiro — estava na ocasifo representada em Sio Paulo por Rosas de Nossa Senbora, de Pascuale di Lorenzo, (© mesmo que dez anos antes j4 produzira um filme com idéntico titulo. No interyalo, s6 conhecemos de Pascuale i Lorenzo um filme policial situado no carnaval paulista, 0 mistério do dominé negro. Ainda com inspiragio mistica, temos0 Descrente, de autoria de Francisco de Simone, nome relativamente obscuro, apesar de o reencontrarmos no elen- co de Enguanto So Paulo dorme, de Francisco Madrigano. 65 Era este tiltimo conhecido vilio de numerosos filmes ¢ diretor de alguns deles, como Exphemia, nome da heroina, aproveitado num titulo de mau gosto que chegou a irritar ica da época, As fitas enumeradas neste parigrafo, bem como outras que seré desnecessério mencionag, rece- beram severo julgamento da crénica, na modestissima medida em que foram vistas ‘Quem conseguiu vasto puiblico para algumas das suas produgdes foi Antonio Tibirigé. Esse jovem advogado, como jé vimos, comesara sua carreira com Jéia maldita, dirigida por Luiz de Barros, responsavel também por Hei- de vencer, a segunda produgio de Tibirigé. Esce era um fil- me de aventuras, com avides pilotados por Anesia Pi- ttheiro Machado e Jodo Ribeiro de Barros, que com seus famosos reides logo se transformariam em herGis nacio- nais. Nao foi contudo essa fita que assegurou notoriedade € dinheiro a Antonio Tibirigé, mas a seguinte, dirigida por ele préprio, ¢ que se chamou Vicio¢ beleza. A publici- dade acentuava: “Incoveniente para senhoras” ou “S6 para homens”. O género nao era novidade, pois numerosos fil- ‘mes estrangeiros apresentados como cientificos, e ocasio- rnalmente proibidos, jé haviam provocado ésperos protes- tos da imprensa. Vicio e beleza era, porém, mais ambiguo do que 0s congéneres de outros paises, conseguindo sem ‘mmiores empecilhos fazer uma rendosa carreira, nao s6 em todo territério nacional, mas igualmente no Uruguai e na 66 Argentina, O préximo éxito de Tibirigé serdO orime da mala, baseado no drama de Pistone e Maria Fea, que também ins- pirou a Madrigano um filme com titulo idénti co. Enquan- 10 isso, Vici e Beleza fazia escola, € em pouco tempo sucede- ram-se Depravago, morfina, veneno branco, Messalina, Luiz de Barros — a quem se devem Messalina ¢ De- ravage — tudo tentou em matéria de géneros cinemato- gréficos. Num s6 ano, precisamente em 1923, vémo-lo filmar uma farsa no gosto americano, uma peca tipica bra- sileira, e uma aventura sem nacionalidade: Augusto Anibal quer casar, A capital federal e O cavaleiro negro. O chamado “ género livre” nao the foi, contudo, favordvel. Afastou-se temporariamente do cinema e, apés cuidar da publicida- de de uma agéncia americana, vem a ser o gerente da “Cia. de Variedades Tré-l muito sucesso ditigindo Genésio Arruda e Tom Bill, numa série de filmes falados, os primeitos produzidos no Brasil, ainda pelo sistema de discos. Dirigiu sucessivamente Aca- baram-se os otérias, Lua-de-mel ¢ O babe, Alcangou éxito duradouro o personagem encarnado por Genésio Arruda, oriundo — como tantos outros caipiras do cinema e do ‘teatro — do popular Jeca Tatu, criaglo de Monteito Lobato. Outro tipo de farsa cinematogréfica surgi naqueles anos, no Rio e em Sao Paulo, em filmes como A lei do inguilinato, de William Schocair, ou Filmando fitas, de Retornando ao cinema, teve or Antonio Rolando. Préximas das tradigdes do circo e do teatro ligeiro nacional, € possivel que essas comédias cur- ‘tas ¢ despretensiosas contivessem sugestdes aproveitéveis, pois tanto Schocair quanto Rolando eram personalidades pitorescas e com alguma experiéncia em comum nos meios Cinematogrificos norte-americanos. Antonio Rolando che- zou mesmo a trabalhar em varios filmes nos Estados Uni- dos; quando voltou ao Brasil, anunciou que um grupo de magnatas estava disposto a investir dois milhdes de déla- res para fundar definitivamente o cinema nacional. Dissi- pada a fantasia, seguiu para Campinas a fim de orientar a produgio local. Lé desentendeu-se, durando pouco sua fungio de orientador. Logo apés fez entio Filmando fitas — 0 iinico filme que conseguiu de fato realizar na sua vida repleta de lendas e boémia. Entre 1923 € 1933, a produglo carioca foi pouco expressiva em quantidade. Houve temporadas em que 0 Rio nao s6 produziu menos filmes do que Sio Paulo, mas ainda ficou atras inclusive de Minas e Pernambuco. Quan- do Luiz de Barros entrou em crise e partiu para Sio Paulo, © tinico produtor carioca que trabalhou com cerca conti- nuidade foi Paulo Benedecti, um daqueles dltimos técni- 0s italianos da vetha raga dos pioneiros. No passado, Benedetti ja produzira um filme de experiéncia, Uma ‘sransformista original, tendo sido cinegrafisca de vérias equi- 68 pes. Em 1924, torna-se 0 proptietétio do melhor labora- t6rio do Rio, obtendo bons luctos como encarregado dos letreiros para filmes estrangeiros. Quando achou finalmen- te que chegara a hora de produzir, langou A gigoltte, e a seguit, O dever de amar e Esposa do solteire, ditigidas por italianos da sua confianga: Vitorio Verga responsabilizou- se pelas duas primeiras, ficando a terceira a cargo de Carlo Campogalliani, vindo especialmente da Iedlia para esse fim. Contudo, o que Benedetti fez de mais importante, artisti- camente, foi criar condigées para a realizagao de Barro Humano, pelo grupo de jovens estusiastas de Cinearte: ‘Adhemar Gonzaga, Pedro Lima, Paulo Wanderley e Al- vvaro Rocha. Barro bumano — feito em condigdes amado- risticas, desde que a eqnipe s6 trabalhava aos domingos € feriados — e Brasa dormida, que Humberto Mauro pro- duziu na mesma ocasido, em Cataguases, vieram demons- trar que o cinema brasileiro comegava a dominat 0s recur s0s narrativos. Isso porém ocotria em 1928, quando toda a linguagem cinematogréfica, laboriosamente construida durance vinte anos na Europa ¢ ha América do Norte, ja se encontrava condenada pela revolugio sonora. Entretanto, Brasil faria ainda cinema mudo durante cinco anos, até aproximadamente 1933. Muitos desses filmes mudos fo- ram exibidos sonorizados pelo sistema de discos, 0 que no alterava em nada o fato de terem sido concebidos den- ‘tro das normas do cinema silencioso. 69 E dentro dese perfodo que nasce a companhia Cinédia, até certo ponto conseqiiéncia e prolongamento da revista Cinearte ¢ da campanha em favor do cinema na- cional. Foi a Cinédia um centro de atracio: Gabus Men- des veio de Sio Paulo, Gentil Roiz de Pernambuco, e— principalmente — de Cataguases Humberto Mauro, que assina 0 primeiro filme da companhia, Labios sem beijos. Estard também até certo ponto vinculada a esse esttidio a produgio de um filme que adquiriu prestigio quase len- dario: Limite, realizado por um jovem de dezoito anos, Mirio Peixoto. E sera finalmente ainda no quadro da Cinédia que Humberto Mauro apresenta em 1933 Ganga Sruta, 0 melhor filme que realizara até eno, e uma das indiscutfveis obras-primas do nosso cinema. ‘Além de Ganga brata, 0s langamentos de 1933 fo- ram: Onde a terra acaba, de Gabus Mendes e Carmen San- tos, presenga atuante no mundo cinematrogréfico; Honra ecitimes, feito por Tibirigd em Sao Paulo; Casamento é Negé- «io, eco tardio do cinema pernambucano em Macei6; ¢ Capador de diamantes, de Capellaro. Lamentavelmente, a tealizacio dessas fitas se arrastou durante dois anos, perfo- do que foi de transformagées decisivas para o cinema: mesmo uma fita excelente como Ganga bruta era um belo exemplo em 1933 de um cinema morto. ‘Ainda uma tiltima fita foi langada em 1933,A voz do carnaval, improvisada por Adhemar Gonzaga e Humberto 70 Mauro no estiidio da Cinédia. Nela estreou a cantora Carmem Miranda. Na nova crise de produgio em que entrava 0 nosso cinema, A Voz do Carnaval anunciava agudamente uma das principais diregdes que tomaria o filme brasileiro na sua luta pela sobrevivéncia num mercado invadido pelas. fitas importadas. 4 EPOCA: 1933 a 1949 No perfodo de 1933 a 1949, a produgdo & quase ex- clusivamente carioca. Delineia-se em Sao Paulo um proje- to industrial ambicioso, esttidios chegam a ser levanta- dos, mas 0 resultado do esforco redunda apenas num filme, A eterna esperanza... Numa busca mais profunda, encon- traremos ainda uma fita com o palhago Arrelia, filmada pelo veterano Gilberto Rossi, e uma outra de Oduvaldo Vianna. As demais cento e vinte e tantas fitas de enredo, realizadas durante esses dezesseis anos, sio todas produzi- das no Rio, com excegio de uma em Minas e outra em Pernambuco. Artisticamente, permanece Humberto Mauro a fi- gura de maior relevo; deixa a Cinédia e se associa inicial- mente a Carmem Santos, atriz e empreséria de origem portuguesa atuando no cinema brasileiro desde 1919. No 1 comeco da década de 1930, consticui ela sua propria com- panhia, a Brasil Vita Film, e constr6i estddios onde anos depois conseguiré completar seu empreendimento de maiores proporgdes: A inconfidéicia mineira. Humberto Mauro dirigiu trés filmes para Carmem Santos: Favela dos meus amores, Cidade mulher e Argila. Com Favela dos meus amores — 0 mais importance dos trés — volta o nosso ci- nema aos morros cariocas, nifo para procurar celerados, como fez a policia de A jéia maldita, mas para simples- ‘mente contemplar com simpatia e lirismo uma parcela do povo. Os filmes de Humberto Mauro que se seguiram, Descobrimento do Brasil € Os handeirantes, io teconstiui- Bes hist6ricas, encomendadas por instituicées piblicas O primeiro tem um frescor de tratamento hist6rico que é raro em qualquer cinematografia. Dai por diante, Humberto Mauro s6 realizaré documentétios e filmes educativos, com excecio da fita de enredo 0 canto da sau- dade, que se situa fora do perfodo ora examinado; sua producio para o Instituto Nacional do Cinema Educativo inclufra, entretanto, alguns curcas-metragens posados, de iniciagio literéria, como por exemplo 0 apélogo Wallace Downey, americano responsével pela re- percussio de Cousas nossas', produzia exclusivamente 1, Filme produzido em Sio Paulo e compostoexclusvamente de nime- ros de vatiedades e muscss, Foi o primeieo grande éxito do cinema falado brasileiro, 72 ia, Dessa apro- ximagZo surgiram muitos filmes, que tiveram 0 mético de langar cinemacograficamente atores como Mesquitinha, Oscarito ou Grande Otelo, que assegurario ao filme nacio- nal um contato com 0 piblico hé muito perdido, A década de 1930 girou em torno da Cinédia, em cujos estidios firmou-se uma f6rnula que asseguratia a continuidade do cinema brasileiro durante quase vinte anos: a comédia musical, tanto na modalidade carnavales- ca quanto nas outras que ficaram conhecidas sob a deno- minagio genérica de “chanchada”. Apesar do interesse ¢ comunicabi-lidade de Bonequinha de seda, de Oduvaldo Vianna, esse tipo de comédia nfo foi tentado muitas vezes entre nés, Tampouco o melodrama musical fez escola — como seria de esperar — embora tenha sido prodigioso € duradouro o éxito popular de 0 éério de Vicente Celestino Gilda de Abreu. Eventualmente, a Cinédia langava uma fica dramética de nivel mais alto, como Pureza, baseada no romance de José Lins do Rego. Revelaram também alguma preocupagio de quali- dade 0s filmes Grito da mocidade e Aves sem ninbo, as pri- meiras produgdes de Roulien, de volta a0 Brasil apés ob- ter relativo sucesso em Hollywood. Produziu ele ainda dois ou trés filmes que no chegaram a ser exibidos, por ‘uma curiosa fatalidade de sucessivos incéndios que provo- caram a perda de todas as cépias negativas € positivas. filmes musicais, associando-se is vezes & Cine 3 A produgio de fitas de enredo— que ja ndo fora gran- de na década de 1930 — quase cessou nos primérdios da década de 1940. Em 1942 houve apenas dois filmes; entre- tanto, a partir do ano seguinte avoluma-se o ntimero, até atingir cerca de vinte filmes em 1949. Nesse periodo, a recém-fundada Atlantida foi a companhia de maior impor- tancia, criagfo de Moacir Fenelon, Alinor Azevedo e José Carlos Burle, Estréia com Moleque Tido, filme que deu 0 ‘om das primeitas produgGes: procura de temas brasileitos ¢ relativo cuidado na feicura dos trabalhos. Logo porém pre- dominou a chanchada, particularmente apés a associagio da Atlantida poderosa cadeia de exibigdo de Luis Severiano Ribeiro. Esse encontro entre a produgio ¢ o comércio exibidor lembra a harmoniosa e nunca repetida conjuncura econémica que reinou no cinema brasileiro entre 1908 € 1911. Em 1947, porém, 0 resultado mais evidente da al- ‘mejada confluéncia de interesses industriais ¢ comerciais fj a solidificacio da chanchada e sua proliferagio durante mais de quinze anos. O fendmeno repugnou aos crfticos e estudiosos. Contudo, um exame atento € possvel que nos conduza a uma visio mais encorajante do que significou a popularidade de Mesquitinha, Oscarito, Grande Otelo, Ankito, Zé Trindade, Derci Gongalves, Violeta Ferraz... Os personagens grotescos foram naturalmente o centro de gra- vvidade da chanchada, o que no impediu que se configuras- se pelo menos um tipo de gala: Anselmo Duarte. 74 Durante o periodo que estamos focalizando, foi a vi- da nacional sacudida por episédios politicos draméticos golpe comunista, golpe integralista, golpe de Getilio Vargas, golpe contra Getilio Vargas, nossa participacéo nna Segunda Guerra Mundial... Mas s6 esse iltimo aconte- cimento inspirou nossa ficgio cinematogrifica no drama 0 Brasileiro Jado de Sousa; duas chanchadas também foram feitas, Samba em Berlim ¢ Berlim na batucada, de Luiz de Bacros, cuja fecundidade nessa época foi extraordindria, pois realizou cerca de vinte e cinco filmes. Uma larga ex- perigncia e desenvoltura fez dele o homem ideal para 0 ‘ipo de fita produzida as pressas e sem maiores preocupa- ses. Ocasionalmente, aceitava a incumbéncia de dirigit firas de mais responsabilidade, como 0 corto ou Inacén- cia, ¢ af entio resultado era penoso. Em todo caso, a centativa de filmar o romance de Alufsio Azevedo ou o de ‘Taunay exprime uma intengdo de cinema mais alto, in- tengo que animou igualmente os projetos baseados em textos de Jorge Amado, Terra violenta e Estrela da manbi, que no passaram de experiéncias melancélicas. Em Vinse e quatro boras de sonho, apelouse para 0 que possuia 0 tea- «10 nacional de mais prestigioso no momento: 0 autor Juracy Camargo e o grupo de Dulcina, Uma aventura aos ‘quarenta, do ator € autor teatral Silveira Sampaio — entao em plena ascensio — sugeriu a possibilidade de uma co- média cinematogrifica mais leve e sofisticada. Contudo, a 15 experiéncia ficou como simples exemplo isolado, sem con- seqiiéncias, Nao hd razdo para esconder que nos ileimos ‘anos do periodo que estudamos era mesmo a chanchada que havia de mais estimulante e vivo no cinema nacional. 5* EPOCA: 1950 a 1966 O ano de 1950 assinala a volta de Sio Paulo ao cené- tio cinematogréfico brasileiro. A Companhia Vera Cruz — empreendimento grandioso— e iniciativas ponderéveis como a Maristela ea Multifilmes, conferiram ao retorno paulista um tom sensacional. Tudo levava a cret que a inddstria de Sd0 Paulo — 0 setor mais avancado da pro- dutividade nacional — resolvera se ocupar do cinema, até entio manipulado por modestos artesios e jovens idealis- tas. E verdade que no Rio, durante os diltimos trés ou qua- ‘£0 anos, a producto cinematogréfica, estimulada pelos co- merciantes da Atlantida, nfo mais dependia de artesios e muito menos de sonhadores. Os paulistas, entretanto, re- jeitaram qualquer paralelo entre 0 que pretendiam fazer € aquilo que se fazia no Rio: renegando a chanchada, ambi- cionaram realizar filmes de classe € em muito maior nii- mero, Com esse objetivo, contratou a Vera Cruz técnicos da Itélia € da Inglaterra, trazendo de volta Alberto Cavalcanti, 0 patticio que se ilustrara no cinema frances € 76 inglés. Numerosos outros estrangeitos, vindos por conta prépria e com maior ou menor experiencia de cinema nos paises de origem, constituiram ou completaram 05 qua- dros técnicos e artisticos da Maristela e da Multifilmes. Esse periodo da cinematografia paulista foi rico em filmes ¢ acontecimentos: os meios intelectuais, artis- ti-cos € de negécios romaram afinal conhecimento do nosso cinema, que ficou sendo assunto constante nas rodas. Nao hi diivida de que as promessas de melhoria do padrio técnico e artistico foram razoavelmente cum- pridas, a partir de Caigara, confirmando-se em muitos outros: Angela, O comprador de fazendas, Terra € sempre ter- ra, Veneno, Sinhd Moca, Uma pulga na balanga... Contudo, diferencemente de Lima Barreto — que com 0 cangacei- ro inaugurou um género que permanece ainda vivo ¢ fe- ‘cundo — os diretores desses filmes, quase todos estran- geiros, nfo deixaram marcas duradouras da sua pas- sagem pelo cinema nacional. Afastou-se Cavalcanti dos grupos que o haviam contratado, mas antes de volear para o estrangeiro logrou realizar uma comédia pau- liseana, Simao, o caolho, e um drama nordestino, O canto do mar — trabalhos que nio comprometem a sua filmogeafia e enriquecem a nossa. Com O saci, inspi- rado numa histéria de Monteiro Lobato, Rodolfo b ni ensaiou um cinema brasileiro muito promissor no gé- nero juvenil. 7 A esse variado ¢ estimulante cinema paulisca correspondia uma situagio carioca igualmente animado- ra, surgindo sintomas de methoria geral e renovagio até da propria chanchada, notadamente em Tudo azul, de Moacir Fenelon e Alinor Azevedo. Outros filmes procu- ravam inserir drama ¢ comédia num contexto fiel da cr6- nica carioca, Citam-se como exemplos Agulha no palbei~ 10, ptimeiro filme do jornalista e critico do cinema Alex Viany, ¢ Amei um bicheiro, ditigido pelo estteante Jorge eli e por Paulo Wanderley, da geragio anterior, inte- grante da velha equipe de Cinearte ¢ um dos responséveis por Barro humano. Como se niio bastassem tantas atividades vilidas, nes- se inicio da década de 1950, eis Humberto Mauro que rea- parece com um novo filme de enredo, apés cer-se ocupado durante dez anos exclusivamente de cinema educativo. Vol- tando ele a regido de Minas, onde nasceu e viveu, realizouO Canto da saudade, obta inspirada ¢ plena, que permanece distante do burburinho de Sao Paulo e Rio. A grande euforia provocada pelo surto paulista des- vaneceu-se em 1954; malograra a tentativa de produzit industtialmente cinema no Brasil. O fracasso dos grandes empreendimentos nio provocou, porém, o colapso temi- do por muitos. Durante a década de 1950, 0 aumento da produc foi constante, chegando a se estabilizar em tor ‘no de mais de crinta filmes anuais tio fim do petiodo. Nao 78 esmorecia a vitalidade da fita musical ¢ da comédia popularesca, ao contririo das previsdes; houve certa diver- sificagio na chanchada, sobretudo com o aparecimento de ‘Amécio Mazzaroppi que trouxe de volta a figura do caipi- ra representado por Genésio Arruda. Durante dez anos, foi Mazzaroppi a principal contribuigio paulista & chan- chada brasileira, embora nao tivesse aquela crueza burlesca do seu antecessor, compondo um Jeca impregnado de um sentimentalismo que Genésio evitava. No mesmo perio do, delineia-se no Rio a silhueta muito mais atual de Zé ‘Trindade, personagem bizarra e rica de cafajeste maduro € sem 0 menor encanto, mas cuja confianga em si prOprio fascina as mulheres. desapareceu o filme com intengGes artisticas, € entre 1955 1959 sio produzidos: Ri 40 graus, O sobra- do, A estrada, O1s0, Amor e papagaios, Rio zona norte, Estra- tho encontro, grande momenso, Cara de fogo, Fronteiras do inferno, Ravina... Dois realizadores se destacam: Nelson Pereira dos Santos e Walter Hugo Khouti Rio 40 graus, a fita de estréia de Nelson Pereira dos Santos, foi considerada na época principalmente uma uti- lizagio das liges do neo-realismo italiano. Prossegue cres- cente 0 interesse despertado por esse filme, niio se cogi- tando mais hoje em vinculé-lo a qualquer tendéncia estética estrangeira; ao contrério, o que surpreende agora em Rio 40 graus € constatar a profundidade da impreg- 79 ‘agdo brasileira, canto nos personagens como nas situa- ses. Apés alguns filmes desiguais, Nelson Pereira dos Santos realizou Vidas secas em 1963. A adaptagao do texto antolégico de Graciliano Ramos resultou num filme que, pesquisando e refletindo a condigo subumana do vaquei- £0 nordestino, coloca-se pela sua universalidade entre os melhores jd realizados no Brasil. E outra tendéncia artis- tica de Walter Hugo Khouri: preocupa-se pouco com a sociologia que 0 envolve, procurando exprimir sentimen- 0s universais em filmes enraizados nos padrdes escrangei- tos, Dentre 0 grupo paulista-—- no qual estteou foi o inico a atingir uma obra continua e pessoal. Sua filmografia relativamente extensa revela uma pertinécia exemplar ¢ rara coeréncia estilistica. Desde O gigante de pedra Estranbo encontro, seus dois primeiras filmes, até A mite wazia © Corpo andente, realizado em 1966, cada fita vem significando para Khouri uma aproximagio do ideal estético a que se propds. O rigor, contudo, nao o impede de fazer promessas de concessio & bilheteria, promessas de atureza erética, que o cineasta aliés nao cumpre. Os filmes de Nelson Pereira dos Santos e Walter Hugo Khouri constituem uma parcela apenas do todo ‘complexo, variado e rico que € 0 cinema brasileiro con- temporineo, Os trinta filmes anuais produzides a partir de 1960 distribuem-se de forma equilibrada entre os mais variados géneros. A farsa popularesca cede terreno aos fil- 80 mes ligeiros de Carlos Hugo Christensen ou aos melodra~ mas modernizados de Nelson Rodrigues. O ciclo do cangaco adquire novo alento, enquanto 0 cinema urbano estrutura um personagem convincente no gal mestigo € vulgar encarnado por Jece Valadao. (s cinco primeitos anos da década de 1960 sfo do- minados, entretanto, pelo fendmeno baiano, que se cons titui de um conjunco de filmes realizados na Bahia, pro- duzidos alguns por baianos ¢ outros por sulistas: Bahia de todos 0s santos € O pagador de promestas destacam-se sobre- maneira, o primeito pelo pioneirismo da sua funcio, ¢ © segundo pelo equilibrio de sua fatura. Projeta-se entio, no cinema propriamente baiano, a figura de Glauber Ro- cha, que em 1961 estreou com Barravento ¢ a seguit rea~ lizou esse poderoso Deus ¢ 0 diabo na terra do so. Ea erupgio do chamado Cinema Novo, movimento notadamente carioca, que engloba de forma pouco discriminada tudo 0 que se fez de-melhor — em matéria de ficgio ou documentario — no moderno cinema brasi- leito, Seu quadro de excelentes diretores de fitas de enre~ do jé € grande, tendendo sempre a aumentat dia « dia: Glauber Rocha, Paulo Cesar Sarraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Luiz Sérgio Person, Leon Hireman, Carlos Diegues, Sérgio Ricardo, Walter Lima Jinior. Depois de Cinco vezes fave, filme desigual mas revelador, produzido em 1962, tornou-se o Cinema Novo 0 respon- 81 savel por quase todos os filmes nacionais importantes que ‘ém aparecido nos tiltimos anos: Os cafajestes, Porto das cai- xas, Deus e 0 diabo na terra do sol, Os fuzis, Esse mundo é meu, ‘Menino de engenbo, A grande cidade, O desafio, Sdo PauloS.A., 0 padre e a moga Dois filmes importantes esto fora das fronteiras do Cinema Novo: Vereda da salvagio e A bora e Vez de Augusto ‘Matraga. Anselmo Duarte aprofundou no primeiro a serie- dade da busca iniciada em 0 pagador de promessas, A hora e ‘ez de Augusto Matraga assinala a volta de Roberto Santos ao cinema de ficgio. Em 1958 fora o autor do admirével 0 grande momento, equivalence em So Paulo ao que reali- zava Nelson Pereira dos Santos no Rio. Algumas das melhores fitas realizadas atualmente renovam a antiga tradigéo de encontros da literacura bra- sileira com o cinema e confirmam que desapareceu final- ‘mente o abismo que durante décadas divorciou o cinema nacional das elites intelectuais e arristicas do pais ‘A produgdo em nossos dias aparece razoavelmente Aiversificada. Entre os filmes artisticamente mais ambicio- 808 € aqueles enderegados ao pablico das antigas chancha- das, desenvolve-se uma produgio intermedidria corrente ‘cujo bom nfvel & assegurado por profissionais como Carlos Coimbra, Roberto Farias ou Roberto Pires. A razodvel continuidade do filme brasileiro de enredo durante os ‘imos anos pode levar 0 observador superficial & conclusio 82 de que existe uma indiistria cinematografica funcionando normalmente em nosso pais. Tal ndo acontece. Os interes ses do comércio cinematogrifico nacional giram em torno do cinema importado, prosseguindo o mercado actual sa- turado pelo produto estrangeiro. Sao obrigados 0s nossos filmes a enfrentar o desinteresse € conseqiiente mé vonta- de do comércio, conseguindo exibigio gragas apenas a0 amparo legal ‘Uma das conseqiiéncias dessa situagio injusta é levar produtores e cineastas a se preocuparem demasiadamente com a exportagio dos respectivos filmes, superestimando a imporcincia dos festivais internacionais. As inteligén- cias ¢ energias ficam assim distraidas do tinico objetivo que realmente importa a0 nosso filme: o piblico e 0 mer cado brasileiros. O problema nio é aumentar 0 niimero de filmes a serem apresentados no exterior, mas sim dimi- nuit 0 ntimero de fitas estrangeiras aqui exibidas. Seré preciso reconquistar, em modernos termos industriais, a harmoniosa situagéo que existiu no Brasil de 1910: a de solidariedade de inveresses entre os donos das salas de ci- nema e os fabricantes de filmes nacionais. 83 CINEMA: TRAJETORIA NO SUBDESENVOLVIMENTO cinema norte-americano, 0 japonés e, em geral, 0 europe. nunca foram subdesenvolvidos, ao passo que 0 hindu, o arabe ou o brasileiro nunca deixaram de ser. Em cinema subdesenvolvimento ndo é uma etapa, um esté- gio, mas um estado: os filmes dos paises desenvolvidos ‘nunca passaram por essa situago, enquanto os outros ten- dem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si préprio energias que the permitam escapar & condenagio do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuncura particularmente favordvel suscita uma expan- so na fabricagio de filmes. No caso da india, com uma produgio das maiores do mundo. As nagées hindus possuem culturas préprias de tal maneira enraizadas que criam uma barreira aos produ- tos da inddstria culeural do Ocidente, pelo menos como tais: os filmes americanos e europeus atrafam moderada- ‘mente o piblico potencial, revelando-se incapazes de cons- truir por si um mercado, Abriu-se assim uma oportunida- de para os ensaios de produgio local que durante décadas no cessou de aumentar e em fungio da qual teceu-se a 85 rede comercial da exibicdo. Teoricamente a situagio era ideal: uma nacZo ou um grupo de nagées com cinema pré- prio. Tudo isso ocotria, porém, num pafs subdesenvolvi- do, colonizado, ¢ essa atividade cultural aparentemente tio estimulante, na realidade refletia e aprofundava um estado cruel de subdesenvolvimento. Farei abstragdo aqui do papel de capital metropoli- tano inglés na florescéncia do cinema hindu, para sé me deter na significagio cultural do fendmeno. Pelos assun- 0s abordados, 0 filme hindu permanece fiel as eradigdes artisticas do pais ¢ 0 ritmo majestoso com que sio tratadas —notadamente quando os temas sio mitolégicos —even- ‘ualmente confirma essa impresslo. A raiz mais poderosa dessa producio é, entretanto, constituida por idéias, ima- gens € estilo jé fabricados pelos ocupantes para consumo dos ocupados. O manancial de onde derivam os filmes hindus em nosso século foi fabricado nas Gltimas décadas do XIX pela indiistria gréfica inglesa — e respectiva lite- ratura — através da vulgarizacio de uma alta tradigo plis- tica, de espetéculo e literdria, A massa de oleogravuras € textos, impregnada pelo culto da "Mother Indi mente escapa do mais conformista e esterilizante co- ‘metcialismo, herdado tal qual pelos filmes produzidos no pais. Os cineastas hindus que depois da independéncia Procuram reagir contra a tradigio coagulada pela mani: pulacdo do ocupante, voltam-se necessariamente para te- 86 mas ¢ ritmos inspirados pelo cinema estrangeiro. O esfor- ode progresso apenas cultural num quadro de subdesen- volvimento geral leva os cineastas a se debaterem diante da adversidade, ao invés de realmente combaté-la. No Japiio, que nio conheceu o tipo de relacionamen- to exterior que define o subdesenvolvimento, 0 fendmeno cinematogeéfico foi totalmente diverso. Os filmes estran- _geiros conquistaram de imediato uma imensa audiéncia e foram de inicio o estimulo pencipal na estruturacéo do mercado consumidor do pais. Essa produgio de fora era ‘no entanto, por assim dizer, japonizada pelo “benshis"— 0s artistas que comentavam oralmente o desenrolar dos filmes mudos — que logo se transformaram no principal atrativo do espeticulo cinematogrifico. Na verdade, 0 piiblico japonés nunca aceicou o produto culeural estran- ‘geito tal qual, isto, 0s filmes mudos apenas com os le- tteiros traduzides. A producéo nacional, ao se desenvol- ver, no encontrou dificuldades em predominar princi- palmente depois da chegada do cinema falado que dis- pensou a atuacio dos “benshis". Diferentemente do que ‘ocorreu na {ndia, o cinema japonés foi feito com capitais nacionais e se inspirou na tradicS0, populatizada mas di- reta, do teatro e da liveratura do pats. No mundo do cinema subdesenvolvido o fenémeno frabe — que foi inicialmente sobretudo egipcio — nfo possui a nitidez do hindu. Nos paises norte-africanos ¢ do 87 Oriente Préximo a carapaca de cultura propria ndo foi pro- picia a0 alastramento do filme ocidental, mas o resultado aqui foi um desenvolvimento da exibigdo incomparavel- mente mais lento do que na {ndia. O pouco interesse pelo filme ocidental nao foi acompanhado no mundo érabe pelo florescimento da producio local. A penetrasio imperial tendeu naturalmente a fornecer ao habitante dessas regides uma idéia de si proprio adequada aos inceresses do ocu- pante. Se aqui isso nao levou a criagio de um cinema equi- valente ao hindu, deve-se provavelmente & tradigio antiicénica nas culcuras derivadas do Corio. A inddstria cultural do Ocidente encontrou escassa imagem original para servi de matéria-prima na produgio de ersats desti- nados aos préprios drabes. A fabricagio de imagem érabe foi ineensa, mas destinada ao consumo ocidental: 0 mode- lo nunca se reconheceu. O eixo do espeticulo coriinico — ‘mesmo dancado — é 0 som e o cinema drabe s6 se desen- volveu realmente a partir do falado, O cinema islimico & primeira vista parece mais subdesenvolvido do que o da India. Esta muito longe de ser presenga dominante inclu- sive nas salas do Egito e do Libano, os principais produto- tes, mas em compensagio € provével que sua economia seja mais independente. Como suas matrizes no sio as oleogravuras exéticas de fabricago européia, mas a técni- ca forogréfica do Ocidente — através da qual os drabes acabaram pot aceitar a imagem como componente de sua 88 autovisio — os filmes egipcios ¢ dos outros paises drabes tomaram diretamente como modelo a produsio ociden- tal, Parecem menos auténticos do que os hindus masa na- tureza do vinculo com o espectador é a mesma: dentro da maior ambigitidade e amesquinhados pela impregnagio imperial, uns e outros asseguram a fidelidade do piblico ‘por refletirem, mesmo palidamente, a sua cultura original Essa evocacio de alguns tragos das situagiies cinema- ogrificas subdesenvolvidas mais importantes do mundo pode servir de introducio til 8 nossa. A diferenga e a parecenga nos definem. A situagio cinematografica brasi- leira no possui um terreno de cultura diverso do ociden- tal onde possa deicar raizes. Somos um prolongamento do ‘Ocidente, nio hé enere ele e nés a barreira natural de uma personalidade hindu ou érabe que precise ser constante- mente sufocada, contornada e violada, Nunca fomos pro- priamente ocupados. Quando ocupante chegou 0 ocu- ado existente ndo Ihe pareceu adequado ¢ foi necessério criar outro. A importagio maciga de reprodutores seguida de cruzamento variado, assegurou o éxito na criagio do cocupado, apesar da incompeténcia do ocupante agravar as adversidades naturais. A peculiaridade do processo, 0 faro de o ocupante ter criado o ocupado aproximadamente & sua imagem e semelhanga, fez desse Giltimo, até certo ponto, ‘seu semelhante. Psicologicamente, ocupado ¢ ocupante nio se sentem como tais: de fato, o segundo também € 89 nosso e seria sociologicamente absurdo imaginar a sua ex- pulsdo como os franceses foram expulsos da Argélia. Nos- 0s acontecimentos histéricos — independéncia, repabli- a, Revolugio de 1930 — sdo querelas de ocupantes nas ‘quais 0 ocupado nio tem vez. O quadro se complica quan- do lembramos que a metr6pole de nosso ocupante nunca se encontra onde ele esté, mas em Lisboa, Madri, Londres ou Washington. Aqui apontaria algum parentesco entre 0 destino hindu ou arabe € 0 nosso, mas a luz que o seu aprofundamento langaria sobre os respectivos cinemas se- ria indireta demais. Basta por ora atentar para a circuns- tincia de o emaranhado social brasileiro nao esconder, para quem se dispuser a enxergar, a presenca em seus postos respectivos do ocupado e do ocupante. ‘Nao somos europeus nem americanos do norte, mas destituidos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo 0 €. A penosa construgio dle nds mesmos se de- senvolve na dialética rarefeita entre o ndo set e 0 er outro. filme brasileiro participa do mecanismo ¢ o altera atra~ vés de nossa incompeténcia criaciva em copiar. O fendme- no cinematogréfico no Brasil testemunha e delineia mui- ta vicissitude nacional. A invengio nascida nos paises desenvolvidos chega cedo até nés. O intervalo é pequeno entre o aparecimento do cinema na Europa e na América do Norte € a exibigio ou mesmo a produgio de filmes entre nds nos fins do século XIX. Se durante aproxima- 90 damence uma década o cinema tardou em entrar para 0 habito brasileiro, isso foi devido ao nosso subdesenvolvi- ‘mento em eletricidade, inclusive na capital federal. Quando a energia foi industrializada no Rio, as salas de exibicéo proliferaram como cogumelos. Os donos dessas salas co- merciavam com 0 filme estrangeiro, mas logo tiveram a idéia de produzir e assim, durante trés ou quatro anos, a partir de 1908, o Rio conheceu um periodo cujo estudio- so Vicente de Paula Aratijo no hesita em denominar “A Bela Epoca do Cinema Brasileiro.”' Decalques canhestros do que se fazia nas metrépoles da Europa e da América, esses filmes em torno de assuntos que no momento inte- ressavam a cidade — crimes, politica e outros divertimen- tos — no eram fautores de brasilianismos apenas na es- colha dos temas, mas também na pouca habilidade com que era manuseado 0 instrumental estrangeiro. As fitas primitivas brasileiras, tecnicamente muito inferiores a0 similar importado, deviam aparever com maiores atrati- ‘vos aos olhos de um espectador ainda ingénuo, nio inici- ado no gosto pelo acabamento de um produto cujo consu- mo apenas comegara, O fato € que nenhum produto importado conheceu no periodo o trinfo de bilheteria des- se ou daquele filme brasileiro sobre crime ou politica, sendo de anotar que 0 piiblico assim conquistado inclufa a 1. Bditoa Pesspectiva, Sio Paulo ” ‘intelligentsia que citculava pela Rua do Ouvidor e pela re- ccém-inaugurada Avenida Central. Essa florescéncia de um cinema subdesenvolvido necessariamente artesanal coinci~ diu com a definitiva transformagio, nas metrépoles, do in vento em indiistria cujos produtos se espalharam pelo mun- do suscitando e disciplinando os mercados. O Brasil, que importava de tudo — até caixio de defunto e palito —, abriu alegremente as portas para a diversio fabricada em ‘massa e certamente niio ocorreu a ninguém a idéia de socor- ter nossa incipiente atividade cinematogrifica. O filme brasileiro primitivo foi rapidamente esque- ido, rompeu-se 0 fio € nosso cinema comegou a pagar 0 seu tributo & prematura e prolongada decadéncia tao tipi- ca do subdesenvolvimento. Arrastando-se na procura da subsisténcia, tornou-se um marginal, um péria numa si- tuasdo que lembra a do ocupado, cuja imagem refletiu com freqiiéncia nos anos 1920, provocando repulsa ou es- panto, Esse tipo de documento, quando verdadeiro, nun- ‘ca belo e tudo ocorria como se a inabilidade do cinegra- fista concorresse para revelar a dura verdade que trauma- ‘izou nao s6 0s cronistas liberais da imprensa carioca mas também um conservador como Oliveira Viana. Essas ima- ‘gens da degradagio humana afloravam também aos fil- ‘mes de enredo que iam sendo produzidos ocasionalmente € que vez ou outra obtinham exibigio normal gracas 3 complacéncia, sempre passageica, do comércio norte-ame- 92 ricano. Era pela forga das coisas que essas fitas se mostra- vam contundentes, pois os denodados lutadores do filme brasileiro que surgiram na era do mudo se esforgavam em impedie a imagem da pendiria, substituida pela forogenia. de inspiragio norte-americana. Logo apés o estrangulamento do primeiro surto ci- nematogrifico brasileiro, os norte-americanos varreram os concorrentes europeus ¢ ocuparam o terreno de forma pra- ticamente exclusiva. Em fungao deles e para eles 0 comér- cio de exibigio foi renovado e ampliado. Produces euro- péias continuaram a pingar, mas durante as trés geracbes em que o filme foi o entretenimento principal, cinema no Brasil era fato norte-americano e, de certa forma, também brasileiro. Nao € que tenhamos nacionalizado o espetécu- lo importado como os japoneses o fizeram, mas acontece que a impregnacio do filme americano foi tao geral, ocu- pou tanto espaco na imaginagio coletiva de ocupantes € ‘ocupados, excluidos apenas os iltimos estratos da pirémi- de social, que adquiriu uma qualidade de coisa nossa na linha de que nada nos € estrangeito pois tudo 0 é A amplissima satisfago causada pelo consumo do filme ame- ricano nio satisfazia porém o desejo de ver expressa uma cultura brasileira que, sem ter uma originalidade bésica — como a hindu ou a drabe — em relagio ao Ocidente, fora se tecendo com caracteristicas préprias indicativas de vigor e personalidade. A penetracéo do cinema amesqui- 93 nhou muito as artes do espetéculo tradicionalmente to vvivas em todo o pais, mas elas sempre encontraram meios de permanecer, 0 que faz pensar quescorrespondem a ne- cessidades profundas de expressio cultural. A chegada do ‘dio deu novo alento 3s formas ou elementos sonoros dessas artes de espeticulo. Na primeira oportunidade que se ofe- receu a cultura popular violou 0 monopélio norte-ameri- cano € se manifestou cinematograficamente. Por ocasiéo da implantagio do cinema falado, que coincidiu com a grande crise de Wall Street, houve um transitério alivio da presenca norte-americana, seguido imediatamente pelo recrudescimento de nossa producao. Durante cerca de dois anos a cultura caipira, originalmente comum a fazendei- fos € colonos e de larga audiéncia nas cidades, tomou for- ‘ma cinematogréfica, 0 mesmo sucedendo com nossa ex- ressio musical urbana. Esses filmes tiveram imensa audiéncia em todo Brasil, mas em breve as coisas cine- ‘matograficas do pafs voltaram ao eixo noree-americano e 0 cinema brasileiro mais uma vez pareceu morter, isto é, retornou a condigio de marginal rejeitado apesar da qua- lidade areistica crescence de algumas de suas obras da dé- cada de 1930. A obrigatoriedade de exibicio forneceu uma base s6lida para a produgio de filme curto documental, destitufdo agora da fungio reveladora que anteriormente © caracterizara to agudamente. Continuo em todo caso a refletit com melancolia a érea do ocupante, notadamente 94 as ceriménias oficiais. De uma maneira geral, entretanto, © cinema falado foi, mais do que o mudo, propfcio & ex- pressio nacional O fendmeno cinematogréfico que se desenvolveu no Rio de Janeiro a partir dos anos 1940 € um marco. A produgio ininterrupta durante cerca de vinte anos de fil mes musicais e de chanchada, ou a combinagio de ambos, se processou desvinculada do gosto do ocupante e contra ria ao interesse estrangeito, O piblico plebeu ¢ juvenil que garantiu o sucesso dessas fitas encontrava nelas, mis- turados e rejuvenescidos, modelos de espeticulo que pos- suem parentesco em todo o Ocidente mas que emanam. diretamente de um fundo brasileiro constituido e tenaz fem sua permanéncia. A esses valores relativamente esté- veis 0s filmes acrescentavam a contribuicdo das invengBes. cariocas efémeras em matéria de anedota, maneira de di- zer, julgar ¢ de se comportas, fluxo continuo que encon- ‘rou na chanchada uma possibilidade de cristalizagdo mais completa do que anteriormente na caricatura ou no teatro de variedades. Quase desnecessério acrescentar que essas cobras, com passagens rigorosamente antol6gicas, traziam, como seu publico, a marca do mais cruel subdesenvolvi~ ‘mento; contudo o acordo que se estabelecia entre elas ¢ 0 espectador era um fato cultural incomparavelmente mais, vivo do que 0 produzido até entdo pelo contato entre 0 brasileiro eo produto cultural norte-americano. Neste caso 95 © envolvimento era inseparivel da passividade consumi- dora 20 passo que o pubblico estabelecia com o musical e a cchanchada lagos de tamanha intimidade que sua partici- pagio adquiria elementos de criatividade. Um universo completo se construfa através da sucessio de filmes noree- americanos mas a absorgiio feita através do distanciamento © tornava abstrato, enquanto os fragmentos irrisérios de Brasil propostos por nossos filmes, delineavam um mun- do vivido pelos espectadores. A identificacio provocada eld cinema american modelava formas superficiais de comportamento em mocas e rapdzes vinculados aos ocu- pantes; em contrapartida a adogio, pela plebe, do malan- dro, do pilantra, do desocupado da chanchada, sugeria uma polémica de ocupado contra ocupante. © eco do lucro alcancado por essa produgio carioca despretensiosa ¢ artesanal teve, nos primérdios de 1950, ‘um papel determinante na tentativa paulista de um cine- ‘ma mais ambicioso ao nivel industrial e areistico. Alguns motivos do malogro sio claros. Os produtores cariocas eram comerciantes da exibigdo e a conjuntura criada nos anos 1940 lembrava a bela época do cinema brasileito no co- mego do século. Os empresérios pauliseas que se langaram aventura vinham de outras atividades ¢ nutriam ailusio ingénua de que as salas de cinema existem para passat qualquer fita, inclusive as nacionais. Culeuralmente o pro- jeto foi igualmente desastrado. Nao reconhecendo a vir- 96 tude popular do cinema carioca, 05 paulistas resolveram —encorajados por quadros técniicos ¢ artisticos chegados recentemente da Europa — colocar o filme brasileiro num rumo totalmente diverso daquele que estava seguindo de maneira tio estimulante. Quando descobritam, mais ou menos 20 acaso, o veio do cangaco ou apelaram conscien- temente para a comédia do ridio, nascida nos mambem- bes do interior e do subsirbio, jé era tarde. ‘A animacio provocada pela tentativa industrial foi, porém, positiva e 0 seu fracasso nao alterou a ascensio ‘quantitativa e qualitativa do filme brasileiro. A margina- lizagio de nosso filme de enredo nao era mais, como anti- gamente, um fenémeno aparentemente to natural que ninguém tomava conhecimento dele a no ser os direta~ mente interessados. O fato de setores ponderdveis da rea cocupada terem se chamuscado com o cinema nacional fez dele um assunto mais sensibilizante. Sua mediocridade no impedia sua fungdo € no escondia sua presenga. As ocasionais ¢ paternalistas medidas de amparo do poder piiblico comesaram a ser cobradas com exigéncia crescen- te. Mais de uma vez 0 governo forneceu a ilusdo de que estava sendo delineada uma politica cinematografica bra- sileira, mas a situacZo basica nunca se alterou. O mercado permaneceu ocupado pelo estrangeito de cujos interesses © nosso comércio cinematogréfico €, no conjunto, 0 fepre~ sentante direto. A agio governamental, pressionada pelo o7 desejo de lucro dos produtores brasileiros, representando na circunstdncia o interesse dos ocupados, se limitou sem- pre a procurar obter junto aos ocupantes estrangeiros € nacionais uma pequena reserva de mercado para o produ- +0 local. Como a solidariedade fundamental do poder pi- blico € com o ocupante, do qual emana, é claro que a pres- so do iltimo sempre foi decisiva, Mesmo depois do cinema ter perdido em favor da televisio a predominancia no cam- po do entretenimento, nao se alterou substancialmente 0 escandaloso desequilibrio entre o interesse nacional € 0 estrangeiro. De qualquer maneira a concessio, por mais modesta que fosse, asegurou uum respiradouro para o nos- so cinema de ficgio. A habitual impregnaco estrangeira ‘do impediu que os filmes continuassem nos refletindo muito. A voga do neo-realismo, logo apés 0 término da guerra, teve conseqiiéncias extremamente frutuosas para rigs. Aconteceu que o difuso sentimento socialista que se alastrou a partir do fim dos anos 1940, envolveu muita gente de cinema e particularmente as personalidades mais ctiativas surgidas apés 0 malogro do surto industrial em Sao Paulo. O préprio comunismo politico, ortodoxo e ¢s- treito, acabou tendo uma fungio culcural na medida em que por um lado procurava, mesmo desajeitadamente, compreender a vivéncia dos ocupados e por outro encora- java a leitura de grandes escritores membros ou simpati- zantes do partido, Jorge Amado, Graciliano Ramos ou 98 Monteiro Lobato. Esse clima intelectual e mais a priica do método neo-realista conduziram & realizagio de alguns filmes do Rio e Sao Paulo que glosavam artisticamente a vida popular urbana. O antigo herdi desocupado da chan- cchada foi suplantado pelo trabalhador, mas nos espetécu- los cinematograficos que essas fitas proporcionavam, os cocupados estavam muito mais presentes na tela do que na sala, Em matéria de construgéo dramética consistence € eficaz, essas obras deixaram longe nio s6 a renaz chancha- da carioca mas também os produtos mais ou menos dire tos da efémera industrializacio paulista. No terreno das ideias a coneribuigdo que trouxeram foi ainda maior. Sem set propriamente politicas ou didéticas, essas fitas expri- miam uma consciéncia social corrente na literatura pés- modernista mas inédita em nosso cinema, Além de um vvasto elenco de méritos intrinsecos esses poucos filmes realizados por dois ou trés diretores constitufram 0 tronco poderoso do qual se esgalhou o Cinema Novo. O Cinema Novo é, depois da Bela Epoca e da Chan- chada, 0 terceiro acontecimento global de importéncia na hist6ria de nosso cinema, cabendo notar que apenas 0 se gundo teve um desenvolvimento harmonioso, devido a sua melhor adequagio € submissio & condigdo geral do subdesenvolvimento, Como o da Bela Epoca, o Cinema Novo viveu uma meia diizia de anos sendo que ambos tiveram 0 seu destino truncado, 0 primeiro pela pressio 99 econdmica do império estrangeiro, o segundo pela impo- sigdo politica interna. Apesar da diversidade de circuns- tdincias o que sucedeu a um e outro se insere no quadro sgeral da ocupacdo. O Cinema Novo € parte de uma cor- rente mais larga e profunda que se exprimiu igualmente através da misica, do teatro, das ciéncias sociais e da lite- ratura, Essa corrente — composta de espiritos chegados a uma luminosa maturidade e enriquecida pela explosio ininterrupta de jovens talentos — foi por sua vez a ex- pressio cultural mais requintada de um amplissimo fen‘ ‘meno hist6rico nacional. Tudo ainda esta muito perto de ‘és, nenhum jogo fundamental foi feito ou desfeito os dias que correm nao facilitam a procura de uma perspec- tiva equilibrada sobre 0 que aconteceu. Resta a possibi- lidade de uma visto genérica em termos de ocupadoe ocu- ante que nos aptoxime da significagio do Cinema Novo ‘no processo. Qualquer estatistica de variada origem que a impren- sa divulga confirma o que percebe a intuigio ética a res- peito da deformidade do corpo social brasileiro. Toda a vida nacional em termos de produgao ¢ consumo que pos sam ser definidos envolve apenas trinta por cento da po- pulagio. A fora produtora urbana e rural com identidade nitida, 0s estratos medianos em sua complexa graduacio, as massas dos comicios de ancigamente e que hoje s6 0 fatebol € autorizado a estruturar, tudo est englobado na 100 minoria hoje de trinta milhées, 0 tinico povo brasileiro a respeito do qual alcangamos um conceito e sobre 0 qual podemos pensar. A impressdo que se tem é a de que o ocu- pante s6 utiliza uma parcela pequena de ocupados e aban dona o resto ao deus-dari em reservas ¢ quilombos de novo tipo. Esse resto, hoje de setenta milhes, vai fornecendo a conta-gotas 0 reforgo de que 0 ocupante langa mao para ccertas atividades como por exemploa construgio de Brasflia ou a intermindvel reconstrugio do monstro urbano paulistano, a face mais progressista de nosso subdesenvol- vvimento, Nessas ocasides as poucas centenas de milhares ‘que escapam ao universo informe das muitas dezenas de milhdes, adquirem uma identidade: candango ou baiano. Foi precisamente de iniciativas governamentais na segunda metade dos anos 1950 que surgiu « procura de um melhor equilibrio nacional, O ocupante sem imagi- nagio libelou a animacao social que daf decorreu com um slogan: a subversio em marcha. E possivel que 0 préprio cocupante otimista, desejoso de ver integrados & nasio os setenta por cento de marginais, nao atinasse para a singu- laridade da situagdo criada. O fenémeno brasileiro é da- ‘queles cuja originalidade esté a exigir uma expressio nova. A palavra subversio, tacanha e em iltima andlise inge- nua, pode ser oposta a nocio de superversdo, que resume com maior probidade as ocorréncias que se desenvolve- ram até meados de 1964. A realidade que ento se impés 101 foi a de que os verdadeiros marginais sio os trinta por cento selecionados para constituir a nacao. O estabeleci- mento de canais comunicantes entre esta minoriae o uni- verso imenso dos restances estava a exigir 0 deslocamento dos eixos habituais da histdria brasileira. Um primeiro asso consistia em encorajar 0 descobrimento ativo por parte de rodos do que possa ser a vida humana. O poder piiblico participou da nobre esperanga — notadamente através de um método de alfabetizagio cuja prética che- gou a ser delineada — que impregnou até uma mensa- gem presidencial, documento que por esse motivo seré um dia um dos cléssicos da democracia brasileira. O setor artistico jovem, inseparivel do pablico intelectual igual- mente jovem que suscitou, foi sem diivida o que melhor refletiu o clima criativo e genetoso entéo reinante, inclu- sive através de obras dotadas de valores permanentes. Nesse terreno foi grande o papel do cinema. Os quadros de realizacio e, em boa parte, de absor- ‘80 do Cinema Novo foram fornecidos pela juventude que tendeu ase dessolidarizar da sua origem ocupante em nome de um destino mais alto para o qual se sentia chamada. A aspiragio dessa juventude foi a de ser 20 mesmo tempo alayanca de deslocamento e um dos novos eixos em torno do qual passaria a girar a nossa hist6ria. Ela sentia-se re- presentante dos inceresses do ocupado ¢ encarregada de fangio mediadora no aleance do equilibrio social. Na rea- 102 lidade esposou pouco 0 corpo brasileiro, permaneceu subs- tancialmente ela prépria, falando e agindo para si mesma. Essa delimitagio ficou bem matcada no fendmeno do Ci- nema Novo. A homogeneidade social entre os responsé- veis pelos filmes ¢ 0 seu piiblico nunca foi quebrada. O espectador da antiga chanchada ou o do cangago quase rio foram atingidos e nenhum novo piiblico potencial de ‘ocupados chegou a se constituir. Apesar de ter escapado to pouco ao seu circulo, a significagio do Cinema Novo foi imensa: refletiu e criou uma imagem visual e sonora, continua e coerente, da maioria absoluta do povo brasilei- 10 disseminada nas reservas ¢ quilombos, e por outro lado ignorou a fronteira entre o ocupado dos ‘rinta € 0 dos se- enta por cento. Tomado em conjunto 0 Cinema Novo monta um universo uno € mitico integrado por sertio, favela, subitbio, vilarejos do interior ou da praia, gafieira ce estédio de futebol. Esse universo tendia a se expandir, @ se complementar, a se organizar em modelo para a reali- dade, mas 0 processo foi interrompido em 1964. O Cine- ‘ma Novo nao morreu logo e em sua iiltima fase — que se prolongou até golpe de estado que ocorteu no bojo do pronunciamento militar — voltou-se para si pr6prio, isto 6, para seus realizadores e seu piblico, como que procu- rando entender a raiz de uma debilidade subitamente re- velada, reflexio perplexa sobre 0 malogro acompanhads de fantasias guerrilheiras ¢ anotagdes sobre o terror da tor- 103 ura, Nunca alcangou a identificagio desejada com o orga rismo social brasileiro, mas foi até o fim 0 termémetro fiel da juventude que aspirava sera intérprete do ocupado. Desintegrado o Cinema Novo, os seus principais parti- cipantes, agora drgios de puiblico caralisador, se dispersararn em carreiras individuais norteadas pelo temperamento € gos- to de cada um, dentro do condicionamento estreito que en- volve todos. Nenhum deles, porém, se instalou na falta de esperanga que cercou a agonia desse cinema. A finha do de- sespero foi retomada por uma corrente que se opés frontal mente a0 que tinha sido o cinemanovismo € que se autodenominou, pelo menos em Sio Paulo, Cinema do Lixo. © novo surto situou-se na passagem dos anos 1960 para os 1970 e durou aproximadamente trés anos. A vintena de fil- mes produzidos se sieuou, com raras excegdes, mima maior ‘ou menor érea de clandestinidade decorrente de uma opgio fortalecida pelos obstéculas habituais do comércio € da cen- sura. O Lixo nfo € claro como a Bela Epoca, a Chanchada ou © Cinema Novo, onde se formou a maior parte de seus qua- dros. Estes poderiam, em outras circunstancias, ter prolon- gado e rejuvenescido a agéo do Cinema Novo cujo universo € ‘tema retomam em parte, masagoraem termos de aviltamen- to, sarcasmo ¢ uma crueldade que nas melhores obras se tor- ‘na quase insuportavel pela neutra indiferenga da abordagem. Conglomerado heterogéneo de artistas nervosos da cidade € de artesios do subvirbio, o Lixo prope um anarquismo sem 104 qualquer rigor ou culeura andrquica e tende a transformer a plebe em ralé, o ocupaco em lixo. Esse submundo degradado percottido por cortejos grotescos, condenado ao absurdo, rmutilado pelo crime, pelo sexo € pelo trabalho escravo, sem esperanga ou contaminado pela falécia, é porém animado € remido por uma inarticulada célera. O Lixo teve tempo, an tes de perfazer sua vocagio suicida, de produzir um timbre |humano tinico no cinema nacional. Isolada na clandestinida- de, essa iltima corrente de rebeldia cinematogréfica compée de certa forma um grifico do desespero juvenil no tlsimo Giiingiignio. Nao foi porém somente através do Lixo que 0 nosso filme se vinculou de maneira aguda as preocupagies brasileiras do perfodo. O setor documental com intengies, cculcurais © didléticas reassumiu, em nivel de consciéncia e realizacio mais alto, a fungio reveladora que o género desem- penhara anteriormente. Focalizando sobretudo as formas ar- caicas da vida nordestina e constituindo de certa forma o pro- Jongamento, agora sereno e paciente, do enfoque cinemano- vista, esses filmes documentam a nobreza intrinseca do ocu- pado € a sua competéncia. Quando se voleou para 0 cangago «esse cinema o evocou com uma profundidade — s6 igualada ‘num recente programa de televisio” — de que a melhor fic- «fo fora incapaz. 2. Ganfromo, de Humberto Mesquita. Emissfo do Canal 11 em julho de 1973, 105 ‘Qualquer filme exprime ao seu jeito muito do tem- po em que foi realizado. Boa parte da produgio contem- poriinea participa alegremente do atual estégio de nosso subdesenvolvimento: milagre brasileiro. Apesar do ocu- pante permanecer desinteressado em relagio a0 nosso ci- nema’ a presente euforia dos donos do mundo encontra meios de se transmitir a muitos de nossos filmes. Ela se manifesta sobrecudo em comédias ligeiras — também em situadas quase sempre em invélucros coloridos e luxuosos que espumam prospe- ridade. O estilo € préximo dos documentos publicitérios cheios de fartura, ornamentados por imagens fotogenica- mente positivas do ocupado e pelo bamboleio amavel de quadris nas praias da moda, combinadas ao louvor de au- ‘oridades militares e civis. Essa simultaneidade audiovi- sual um pouco insblita nfo significa que um setor qual- quer do poder piblico tenha inspirado — dentro da f6r- mula de que hoje 0 citco complementar do pio é 0 sexo ‘um ou outro drama epidérmico — co erotismo que irrompeu no cinema brasileiro de uns anos para ci. A idéia divertida infelizmente nao é verda- deira; foi cercamente propalada por espiritos desconfiados 3. A reciproca nunca foi verdadeiea. O ocupante foi tratado, em geral, dde manera respeitosa pelo cinema mudo, foi gozado pela Chanchada ¢ fustigado pelo Cinema Novo, a0 mesmo cempo que uma tendént cia do malogeo industrial paulsta se inceressava pelo tédioexiseencial do ocupante acioso, 106 € insensatos, mas chegou a intrigar as altas esferas. Essa facilidade de circulacio da tolice nos tempos que correm esclarece em todo caso a relutancia oficial diante do con- dimento mais atraente que possui o espeticulo de um Brasil milagroso, com muito apetite e tendo como satisfazé-lo, ‘motando bem e vestindo-se melhor, trabalhando pouco € sem problemas de locomogio. O erotismo desses filmes, apesar do afobamento, da vulgaridade ineficaz, da tendén- cia aurodestruidora em acentuar nos quadris a nddegas € no seio.a mama, é com efeito o que tém de mais verdade +0, particularmente quando retratam a obsessio sexual da adolescéncia, De qualquer maneira ¢ apesar de tudo vio ‘essas fitas cumprindo bem a missio de centar substieuir © produto estrangeiro, Nao obstante a proliferagao, cons- tituem elas apenas uma parte da centena de filmes bra- sileiros produzidos anualmente dentro do tecido habi- tual de embaragos, ainda intato, criado”pelos interesses das metrépoles. leque extremamente variado de produtos que cinema nacional de hoje propde ao mercado, confirma a sua vocagio em exprimir e satisfazer a complexa geadacio de nossa cultura. Se a chanchada e parcialmente 0 melo- drama foram aspirados pela televisio, o filme caipira nio perdeu vigor nas cidades grandes e pequenas. Estas ti ‘mas alentam dramas e comédias associadas a cantores ser- tanejos € outros filmes sentimentais de diversa nacureza 107 que percorrem quase despercebidos os mercados mais den- sos. A safra atual de aventuras rurais derivada do cangaco € vista exclusivamente no interior ou, calvez, numa ou noutra capital menor. Um piiblico dificil de definir e lo- calizar exatamente assegura a continuidade de dramas ps col6gicos situados na esfera mais alta — a figura do ocu- ante no encarnada apenas pelo frascério da comédia erética — ou procura espelhar a crise no relacionamento familiar e no comportamento social da populacio media- na. Filmes hist6ricos nascem de uma superprodugao faustosa ou de um empenho intelectual ¢ artistico exem- plar e as duas categorias, tio discrepantes, tém fungio titi a primeira fornece uma sucesso de cromos convencionais que correspondem, porém, a uma de nossas mattizes, a cultura civica priméria, enquanto a segunda suscita refle- xdo critica a respeito do que fomos e somos. A autoridade piiblica encoraja uma com benevoléncia ¢ recua vivamen- ce diante da outra. A legislagio paternalista — promulgada para com- pensar a ocupagio do mercado pelo estrangeiro — pode ter conseqtiéncias econdmicas de algum vulto ¢ a freqiien- te retragio governamental diante de nossos melhores fil- mes inclina os seus autores a buscar financiamento nas meteOpoles culturais, onde adquiriram prestigio intelec- tual desde os tempos do Cinema Novo, em parte gragas & moda Terceiro Mundo nos paises do Primeio. Os melho- 108 res quadros de nosso cinema ainda derivam, com efeico, do cinemanovismo e de suas adjacéncias ou mesmo dos precursores imediatos. A ruprura na natureza do processo criativo em que se envolveram, entre doze e dezoito anos atrés, impediu qualquer amadurecimento coletivo. O sal- ‘ve-se-quem-puder ideolégico e artistico iniciado em 1968 deslocou o eixo da criatividade, a crise individual substi- tuindo a social e permitindo que quarentées vividos expe- rimentassem uma nova juvenilidade. Os fragmentos da renga antiga foram manipulados e triturados pelo deus ‘ou deménio fntimo de cada um, mas continuou fecun- dante a poeira da construgao coletiva sonhada por todos. As obras individuais das maiores figuras que o cinema brasileiro jd conheceu esto longe de cerem sido comple- tadas, elas continuam a se cecer diante de nossos olhos setia prematuro tentar abarcéclas. A amizade teve papel importante na constituigdo do cinemanovismo e a perma- néncia da camaradagem nascida na idade do ouro indica- ria a persisténcia de uma comunhio cuja face nova ainda nio se revelou. Hé um clima nostalgico no moderno filme brasileiro de qualidade e é possivel que esteja se delinesn- do em tomo do indio o sentimento nacional de remorso pelo holocausto do ocupado original. O que hé de mais profundamente ético na culeura brasileira nunca cessaré de dessoldar-se do ocupante. Cabe ainda sublinhar o fato de que melhor cinema nacional nao tem mais como an- 109 ‘igamente um destinacario certo e assegurado, Seus auto- res defrontam um pablico nfo identificado envolvido pela rede do comércio e sio constrangidos a conviver com @ burocracia ocupante desconfiada, quando nao hostil. A ‘ocorréncia de uma larga comunicagio com 0s espectado- tes € por demais ocasional para dissipar o intrincado mal- «estar em que se debatem. Nos piores momentos a alterna~ tiva para a opacidade € 0 vacuo. Nessas condigdes nao é de espantar que na busca de reconhecimento se voltem para a cultura das metrépoles ¢ com isso prejudiquem a nossa Se em determinado momento 0 Cinema Novo fi- cou 6rfio de piblico, a recfproca teve conseqiiéncias ainda mais aflitiva, O niicleo de espectadores recrutados na intelligentsia — particularmente em seus setores juvenis tendia por um lado a se ampliar socialmente e por ou- tro se interessar por oucras faces do filme brasileiro além, da cinemanovista, A deterioragdo da conjuntura estimu- lance dos inicios de 1960 fez. com que 0 piblico intelec- tual que corresponde hoje ao daquele tempo se encontre Grfio de cinema brasileiro € voltado inteiramente para 0 eserangeiro onde julga as vezes descobrir alimento para sua inconfidéncia cultural. Na realidade ele encontra ape: nas uma compensagio falaciosa, uma diversio que 0 im- pede de assumir a frustragio, primeito paso para ulerapassé-la, Rejeitando uma mediocridade, com a qual possui vinculos profundos, em favor de uma qualidade 110 importada das metrpoles com as quais tem pouco 0 que ver, esse priblico exala uma passividade que é a prépria negagio da independéncia a que aspira. Dar as costas a0 cinema brasileiro € uma forma de cansaso diante da pro- blemética do ocupado e indica um dos caminhos de reins- talaglo na ética do ocupante. A esterilidade do conforto incelectual e artistico que o filme estrangeiro prodiga faz da parcela de paiblico que nos interessa uma aristocracia do nada, uma entidade em suma muito mais subdesen- volvida do que o cinema brasileiro que desertou. Nao hé nada a fazer a nio ser constatan Este setor de espectadares ‘nunca encontraré em seu corpo miisculos para sai da pas- sividade, assim como 0 cinema brasileiro no possui forga répria para escapar ao subdesenvolvimento. Ambos de- pendem da reanimagio sem milagre da vida brasileira ese Feencontratio no processo cultural que dai nasceré.

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