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FRANCISCO DE OLIVEIRA A PRODUCAO DOS HOMENS: NOTAS SOBRE A REPRODUGAO DA POPULACGAO SOB O CAPITAL* Nao existe, acabada, uma teoria marxista da populacdo; de inicio, essa ressalva é importante, ndo apenas para, hones- tamente, ndo se dar a impressdo de que se tem algo muito concreto para dizer, mas principalmente para pér em relevo, o que é uma séria lacuna da teorid marxista. O inacabamento tedrico do tema populagdo, na obra de Marx, é explicdvel apenas parcialmente pelo fato de que sua preocupacdo dirigiu-se a explicar © capital. Imediatamente, pois, sua atengao estava voltada para o entendi- mento e a compreensao do nascimento do capital que arrancava do momento inicial da expropriagao e da separacao do trabalhador dos meios de produgao: neste preciso momento, pois, a populagdo em si ja existia, a metamorfose do sistema, no que ele tinha de original, consiste precisamente, naquela separacao, isto é, a transformagao do trabalho em forga de trabalho; estabe- lece-se, a partir daquele momento, a populagdo para o capital. A recusa de Marx a ver “leis de populacdo” no sentido malthusiano é apenas a enunciacao de sua propria “lei” de populagdo: a de que a reprodugdo da populagdo esta indissoluvelmente ligada ao modo de producdo social. Em termos do proprio Marx: “..., por tanto, al producir la acumulacién del capital, la poblacion obrera produce también, en proporciones cada vez mayores, Jos medios para su propio exceso relativo. Es esta una ley de poblacion peculiar del régimen de produccién capitalista, pues en realidad todo régimen histérico concreto de produccién tiene sus leyes de poblacién propias, leyes que rigen de um modo historicamente concreto. Leyes abstractas de probla- cién solo existen para los animales y las plantas, mientras al hombre no inter- viene historicamente en estos reinos”." Para tomar dois exemplos, na teoria -- esta também inacabada — do modo de produgdo asidtico esta presente uma “lei” de populagao desse modo, que se expressa na proporcionalidade entre terra e familias que formam a comunidade, mediada pela redistribuigdo do excedente a partir do Estado; assim como a teoria do “exército industrial de reserva” faz parte da “lei” de populagdo no modo de produgdo capitalista. Com esses dois exemplos, quer-se dizer apenas que ha “leis” de populagdo na teoria marxista, ndo gerais, mas especificas de cada modo de produgao social. A dificuldade de uma teoria marxista da populagdo reside precisa- mente na especificidade que ela deve tomar em cada modo de produgdo social. Seu desvendamento apenas pode dar-se quando se consegue isolar 0 que é que especificamente determina a teprodugéo do modo de produgao social, qual é sua circularidade e o que é essencial para sua reposicao. No entanto, seria lamentavel nado reconhecer que se dispde do ponto de partida: o de que o especifico do modo de produgao capitalista é a sua forma 7 de gerar valor a partir da apropriagao do trabalho ndo-retribuido, isto é, da mais-valia. A valorizagdo do valor, contetido fundamental da produgdo capitalista, € 0 processo dessa apropriag¢o do trabalho nio-retribuido e, ao mesmo tempo, seu resultado. Ora, esse processo tem como pressuposto fundamental a existéncia e a reprodugdo ampliada de uma populagdo para o capital. Esta populagdo para o capital é a forga de trabalho; no entanto, € aqui precisamente que a teoria marxista se separa radicalmente, nao apenas do malthusianismo, mas de toda a moderna demografia. Pois a pesquisa que a teoria marxista requer para dar conta da relagao entre esta populagao para © capital e a populacéo como um todo nado comega a partir desta ultima mas a partir do capital como um todo e, especificamente, a partir do capital varidvel e de seu posicionamento na equacao geral do capital.” Esse afastamento radical ndo pode ser menosprezado, se se almeja realmente um confronto tedrico entre correntes de pensamento distintas e mais, se se quer fazer desse confronto um fator de vivificagéo da teoria e da pesquisa sobre a populagdo. O afastamento entre Marx e Malthus é, em primeiro lugar, de natureza tedrica propriamente dita, e em segundo, € claro, de natureza ideolégica. Mas seria anticientifico nio reconhecer o Status tedrico de Malthus: sua teoria da populagao ou, mais rigorosamente, sua “lei de populagdo” é conseqiiéncia de sua teoria dos saldrios e de sua teoria do valor, é, em sintese, uma elaboragdo que se fundamenta sobre a natureza e o cardter de relagées sociais, distinguindo atores e agentes sociais especificos. E é sobre essa fundamentagao tedrica que Marx dirige seu ataque a Malthus. Que a teoria malthusiana tenha sido transformada numa mera e vulgar “‘aritmética dos coelhos” é uma responsabilidade que se deve imputar aos proprios seguidores de Malthus, velhos e novos, no a seus criticos. No que diz respeito 4 demografia, o afastamento em relagdo ao marxismo é mais radical: é de natureza cientifica e nao apenas tedrica e ideologica. Pois ndo ha teoria na velha e nova demografia. Partindo exata- mente da populacao como um todo, a demografia nao trabalha sobre relagdes sociais, quaisquer que elas sejam. Toma a populagdo como uma abstracao e, portanto, ndo é paradoxal mas inerente a esse método que a demografia estude a populagao da mesma forma que estuda qualquer outro conjunto de seres vivos: seu tamanho, sua morte, sua estrutura de idades, sua fertilidade, sua fecundidade. A sofisticagado instrumental progressiva nao altera os termos do proprio método, e os esforgos de introduzir e correlacionar fatos sociais com as chamadas varidveis demograficas ndo solucionam nenhuma das ques- tées. A demografia, nestes termos, no passa de uma genética aplicada ao social, mas nfo consegue chegar a ser uma genética do social. Ora, na sociedade —- e nao digo sociedade humana propositalmente — 0 genes é a relagao social e nao esta nos individuos. Isto néo é uma aportagio do marxismo, diga-se de passagem, mas uma conquista muito antiga da 8

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