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K 7 Temporalidade: aqui e agora LIZABETH Si ‘TEMPORALIDADE: PERSPECTIVA FILOSOFICA Nada nos é mais familiar que o tempo que passa, nos consome e nos conduz para a frente. Nada é mais natural que a personi- ficacdo do tempo pelo monstro Cronos (em grego, tempo se diz Khronos) que devorava seus filhos 4 medida que sua esposa, Rhéa, os colocava no mundo. Entretanto, conforme enfatiza ‘Augras (1993), na verdade o tempo nos devora, nao porque rele vivemos, mas porque acreditamos na sua realidade. ‘Todavia, como questiona Piettre (1997}, 0 tempo pode ser considerado uma entidade, a ponto de poder ser personi- ficado? Segundo esse autor, a experiéncia do tempo antecede a de um nio ser: 0 passado no é mais, o futuro ainda nao ée © instante presente ja passou. Faz sentido, portanto, conceber um tempo do mundo, conferir alguma realidade o permeia as interrogagées decisivas de Aristételes ¢ de Santo ‘Agostino e posteriormente as de Bergson e de Husserl, autor ‘que neste capitulo sera apontado em sua articulago com a xiva ao tempo? Essa questio a3 Lilian Meyer Frazso e Karina Okajima Fuku (ores) Gestalt-terapia, nfo isentando a Heidegger, Van den Berg, Minko Esse percurso, iportancia das obras de Luijpen. ialmente historico, guiard nossas refle- xes com 0 objetivo de contextualizar as questées relativas & compreensio do que se entende por consciéncia do tempo. Segundo Augras (1993), desde a Antiguidade o ser huma- no buscou analisar racionalmente o fluir do tempo, objetivan- do sua marcha, seu curso, verificando suas repeticdes relacionando-as ao espago. Husser! (1994) também se preocupou com os modos de viver 0 tempo. A ideia de vincular ao presente a modifica- 40 do passado ¢ o conceito de tal modificago como algo continuo, expostos por Brentano, so conservados por Husserl em sua propria descri¢ao da temporalidade, quan- do afirma que a consciéncia de uma temporalidade que apa- rece, a exemplo da que surge ao se ouvir uma melodia, nfo seria possi | apenas com a consciéncia de um Presente. Esse mesmo filésofo tentou distinguir um tempo percebido de outro sentido: J se denominarmos sentido um dado fenomenoligico que, vés da apreensio, nos torna conscientes de algo objetivo como dado de came ¢ osso (Leibhaft),a que chamamos entao objetiva- ‘mente percebido, assim temos nés que distinguir também entre um temp “sentido” e um “tempo percebido”. O 10 € 0 tempo ivo. Contudo, o primeiro nao é ele préprio tempo abjetivo {erapia~ Conceitos fundamentals Portanto, para Husserl (1994), 0 tempo sentido nao é aquele percebido objetivamente, mas um dado fenomenolégi- co que a ele se refere. O tempo objetivo pertence a conextio da objetividade da experiéncia, na qual coisas ¢ acontecimentos, cozpos ¢ propriedades fisicas, psiqué e seus estados psiquicos tém suas posigdes determinadas pelo cronémetro; os dados temporais sentidos nao so apenas percebidos, mas investidos de caracteres de apreensdes a eles relacionados. E pelas vivéncias temporais (Zeitauffassungen) que o tempo- ral, no sentido objetivo, aparece. Ao ouvirmos uma melodia, te- mos a consciéncia de um processo sonoro que, sem diivida, nos ‘mostra uma sucesso, apreensdes do tempo que se fundem. Assim, captar um contetido tal como ele € vivido nao significa fazé-lo em tum sentido objetivo. Esse filésofo alerta, entéo, para a duragio e a sucessiio de sensagdes que sofrem modificagées, Durante todo 0 fluxo de consciéncia, o mesmo som esti consciente como dura- douro, como agora duradouro, fruto da retencio. O “depois” diz zespeito a um tempo ainda na retencio, Husserl (1994, p. 62) prossegue: “O som agora se muda em som que foi e a conse impressional converte-se em corrente permanente, numa cons- ciéncia retencional sempre nova”. Para Husserl, a consciéncia pri- maria do tempo constitui-se na apreensio do momento com suas fases de retensio e protensio. O fragmento decorrido de uma me- lodia, por exemplo, é fruto da recordagao (retengio), mas decorre também da expectativa antividente (vorblickenden Enartung). cia Por conseguinte, ougo, de cada vez, apenas a fase atual do ividade cotal duradoura const parte, ecordagdo, em outra, poquenisima, pontual, percepcio e, em outra parte, é ainda expectativa. (Husserl, 1994, 133 ian Moyer Frazio e Karina Okajima Fukumitsu (org) Portanto, Husserl (1994) retoma a psicologia deseritiva de seu mestre, Brentano, ¢ avanca no sentido de uma psicolo- gia fenomenolégica mais origindria, dirigida a uma andlise fenomenolégica da consciéncia primaria do tempo, tal como é percebida nas suas fases de retensio ¢ protensio, Um tempo do mundo da experiéncia, on seja, um tempo imanente do curso da consciéneia. Assim, na perspectiva da Gestalt-terapia, o interesse do terapeuta se direciona para 0 acontecer da presenga do pa- ciente, que, em sua esséncia, contém a dimensio da tempora- idade na busca de compreender sua historicidade. Como en- fatiza Costa (2004), a pratica clinica interessa como essas retengdes € protensdes se manifestam na experiéncia do pa- ciente aqui e agora, pois 0 passado significative é 0 que apa- rece retido no agora. Afinal, o passado que tem significdncia é aquele retido presente. ‘TEMPORALIDADE E 0 AQUIE AGORA Nesta seco, serio apresentadas as ideias que abarcam os principais aspectos relacionados & temporalidade, segundo os seguintes autores: Costa (2004), Perls (1977a, b ¢ e, 2002); Perls, Hefferline e Goodman (1997); Yontef (1998) e Polster ¢ Polster (1979). Perls (2002), corroborando com os filésofos supramen- cionados, enfatiza que tudo tem extensio e duragio, uma vez que medimos extensio em comprimento, altura ¢ largura, ¢ duragdo em tempo. Ressalta também que, embora nao saiba- mos muito a respcito do tempo, a ndo ser que ele € uma das quatro dimensdes de nossa existéncia, podemos considerar 0 134 Gestalt-terapia — Concetos fundamentais tempo presente um ponto zero, em constante movimento dos opostos passado e futuro. Para expressar essa ideia de movimento temporal, Petrelli (1999) utiliza a metéfora do péndulo de um relégio que, ao transitar livremente para a esquerda, pelo centro ¢ para a direita, pode representar a fluidez. temporal neces- séria ao que considera satide existencial na_perspectiva fenoménico-existencial. Apesar do fluxo temporal, Perls (2002) afirma que 0 cen- tro temporal de nds mesmos, como eventos espago-tempo hu- manos conscientes, é o presente, nao havendo outra realidade senao ele. A falta de contato com 0 presente, a nao sensagio de quem somos, leva a fuga para o pasado (pensamento histéri- co) ou para o faturo (pensamento antecipatério). Mas como definir esse ponto, denominado aqui e agora? Perls (1977a) 0 compara a um termo do budismo Rinzai Zen denominado Koan. Nesse sentido, © autor apresenta 0 Koan como uma questdo insoltivel, pois se refere a ele con derando que nao seja possivel viver no aqui e agora, uma vez que ao se estar no presente ele passa a ser pasado. Entretan- to, nada existe exceto o aqui c agora, ou seja, s6 existe o aqui € agora ¢ por estarmos no aqui ¢ agora ele j4 nao é, pois é passado e passado nfo é presente. Assim, 0 aqui e agora é a Sinica possibilidade e, ao mesmo tempo, nao existe. O agora é © presente, o ponto zero; é o momento percebido, carregado pelas memérias e pelas antecipagoes. Perls (1977a, p. 69) salienta que a Gestalt-terapia exige uma disciplina rigida, como no zen, para compreender o sig- nificado do agora e do como, deixando de lado tudo que no 135 jan Mayor Fao Karina Okalima Fucumitsu (orgs) esteja contido nestas palavras: “Agora engloba tudo que exis- te, O pasado ja foi ¢ o futuro ainda nao é. Agora inclui 0 equilibrio de estar aqui, € 0 experienciar, 0 envolvimento, 0 fendmeno, a consciéncia”. Essa disciplina rigida se deve ao fato de esse conceito de “agora” ser um dos menos compreendidos na Gestalt-terapia, segundo Yontef (1998). Considerado um conceito funcional, que se refere 20 que 0 organismo esté fazendo, mudando a cada momento, atribuindo novo significado ou ainda reconfi- gurando 0 que foi feito ha cinco minutos, nio é visto como estético ou absoluto, mas a coincidér levam ao quadro de situagdes semelhantes ao caleidoseépio, sempre mudando, mas nunca idénticas (Perls, 2002; Yontef, 1998). Afinal, a existéncia ¢ considerada atualidade (actu- ality), € um tornar-se presente, uma experiéncia da especifici- de muitas causas que dade na qual nos redimensionamos e produzimos outras pos- sibilidades (Perls, Hefferline e Goodman, 1997; Perls 19771 Porém, é preciso pensar o presente como uma movimenta- io entre o pasado eo futuro, Nesse sentido, so considerados distirbios de awareness do tempo a falta de referéncia ao pas- sado e/ou ao futuro e a vivencia estagnada em um desses mo- mentos temporais, 0 que acaba por ofuscar as possibilidades existenciais (Yontef, 1998; Polster e Polster, 1979). Uma vivéncia eq bbrada, ao nao abandonar © ponto zer0, considera passado e o futuro, uma vez que relembrar ¢ antecipar sio movimentos esperados no existir humano que sc apresentam como precipitagdes de funcdes anteriores como meméria, arrependimento e tensio corporal ou como processos de planejar, almejar, temer e/ou fantasiar, Passado ¢ fururo sio, portanto, presencas ausentes, embora, do pon- 136 Gestat-terapia ~ conceit Fundamentals tode ta da experigneia, nao exista presente sem referéncia intrinseca ao passado e ao futuro (Costa, 2004; Perls, 20025 Yontef, 1998). No entanto, muitas escolas de pensamento concebem 0 presente como resultado do passado, buscando a “causa pri- mordial”, seja no criador, na constituigao herdada, na influén- cia ambiental, na economia e na infancia reprimida, entre ou- tras, desconsiderando alteragées do comportamento a no ser quando trabalhada a causa oculta, negligenciando 0 compor- tamento que ocorre no “aqui e agora”, ressaltando a cognigao “14 e entdo” do paciente (Perls, 2002; Yontef, 1998). A Gestalt-terapia representa uma nova metodologia, que no se alicerga na busca das causas, daquilo que o paciente nao sabe ou nao pode saber a nao ser pela interpretagdo da transferéncia psicanalitica, mas no que ele pode saber, apren- der c focar no aqui e agora de sua vivéncia, assumindo a res- ponsabilidade pela sua existéncia, o que favorece seu proces- so de amadurecimento (Perls, 1977a, 2002; Yontef, 1998). Evitar assumir responsabilidade, culpando forgas exter- nas, 08 P: mento encontrado com muita frequéncia na pratica clinica ~ ‘© que instrumentaliza o Gestalt-terapeuta a convidar 0 a genética etc., provoca o autoengano, funciona- paciente a aprender a experimentar ea observar-se para des- cobrir ¢ perceber seus prdprios objetivos de modo ativo e res- ponsavel. Afinal, entregar-se as reminiscéncias verbais ligadas a0 passado que abrange detalhes imutaveis ¢ algo drido e des- provido de vida, ao passo que enfatizar o carter prospective pode contribuir para antecipacdes fantésticas que talvez. con- sumam o interesse pelo presente (Perls, 2002; Yontef, 1998; Petls, Hefferline e Goodman, 1997). 137 Lilian Meyer Frazdo e Karina Okajima Fukumiteu (orgs) © experimento no aqui e agora surge, nesse contexto, como um instrumento metodolégico dessa abordagem que evita a énfase nas fixages introjetadas, na meméria passada, nna busca de causas e/ou nas formas fixadas de idealizagées ¢ antecipagGes futuras ~ consideradas neuréticas ~, favorecendo © contato com possibilidades de vivenciar o presente, Este é considerado o centro da existéncia humana, no qual se encon- tram as responsabilidades existenciais (Perls, 1997, 2002; Perls, Hefferline e Goodman, 1997). Afinal, preencher 0 vazio entre 0 agora e 0 depois com plano fixos, entre outras possibi- lidades, é evitar a vivéncia do vazio produtivo no qual a solu- cio pode ser encontrada, desde que, no agora, todas as fun- ges de contato estejam a servico da criatividade (Perls, 19774). A experimentagZo fenomenolégica focada no aqui e ago- ra também constitui uma ferramenta que pode resgatar a de- sordem provocada pela orientagao exclusiva em qualquer um dos trés tempos ~ pasado, presente ou futuro ~ ou no isola- mento dos trés entre si, uma vez que a propria experiéncia presente produ simbolos que s4o afirmagées validas e se es- tendem para além do contexto terapéutico (Yontef, 1998; Polster e Polster, 1979). retorno experigncia presente, favorecida pela atitude fenomenolégica, ¢ considerado um antidoto para a pessoa com funcionamento neurético, que com seu modo de viver anacr6nico tem dificuldade de vivenciar 0 presente, autoin- terrompendo-se com situagdes inacabadas do passado, embo- ra seus problemas existam no aqui ¢ agora (Perls, 1977; Pols- ter e Polster, 1979). Entretanto, é importante considerar que nao falar do pasado quando necessério no presente, uma vez que pode aaa rapa ~ Conceltos fundamentals surgir como uma série de situagdes inacabadas, é tdo disfun- cional quanto falar do pasado para evitar algum aspecto do presente, Da mesma forma que falar do futuro pode ser um guia para novos planejamentos ¢ nao necessariamente uma forma de sublimagao ¢ um substituto para a aco (Perls, 2002; Yontef, 1998). A pratica gestiltica da vivéncia no aqui e agora, portanto, nstigar © integrar situages inacabadas, no assimiladas, que no se tornaram parte de nés. Estas so consideradas uma Gestalt incompleta, que pode evidenciar aspectos do passado do futuro que permanecem como figuras de interesse no contex- to atual. Afinal, “nao é pela inércia, mas pela fungao que uma forma persiste, ¢ nfo é pela passagem do tempo, mas pela falta de fungdo que uma forma é esquecida” (Perls, Hefferline ¢ Goodman, 1997, p. 101). Assim, aquilo do passado que est presente nao pode ser considerado passado ~ como a vivéncia de uma experiéncia infantil recordada vividamente no aqui e agora, sem anélises historicas de suas “causas” ~, pois, embora as forcas tenham se iniciado em algum campo anterior, o poder da saiide e da patologia esté no campo atual, isto é, no presente. Dito de outra forma, o passado esta presente no presente. Nesse as- pecto, faz-se necessario refletir a respeito da utilidade da and- lise hist6rica da vida do paciente, que pode estar a servigo de ‘ocupar algumas horas vazias de sua vida, como qualquer pas- satempo poderia preencher (Perls, 1977a, 2002). Como salienta Costa (2004), 0 paciente acaba por sofrer as prefergncias do seu terapeuta: esse sentido, j4 no se sabe, na realidade, quem so os princi- pais adversérios do presente e do futuro: 0 terapeuta ou o cliente, lo contrrio, nao poderia sarar. 139 Lilian Meyer Fraate e Karina Okajima Fukui AQUI E AGORA NO CONTEXTO TEORICO E CLINICO DA GESTALT-TERAPIA Analisando os dados fenomenolégicos matéria-prima da experiéncia, a Gestalt-terapia € considerada vertente do existencialismo interessada na natureza ontol6gica do ho- mem, por colocar em destaque 0 primado da experiéncia concreta, a singularidade de cada existéncia humana, a no- gio de responsabilidade, expressando nao apenas seu caré- tet filos6fico de estar no presente, mas também um conjun- to de operacées que, com a pritica, aperfeigoa a aptidio de viver no presente (Zinker, 2007; Ginger ¢ Ginges, 1995; Resnick, 1997). Embora cada autor enfatize algumas das raizes filosGficas e tedricas que alicercam a Gestalt-terapia, Yontef (1998, p. 42) salienta que todos os estilos ¢ modalidades dessa abordagem tém em comum “a énfase na experiéncia direta ¢ na experi- mentagio (fenomenologia), uso do contato direto © presenga pessoal (existencialismo dialégico) énfase nos conceitos de campo, “do que’ ¢ do ‘como’ e do ‘aqui e agora”. Considerada a linguagem do pensamento existencial, a fenomenologia se propde a desenvolver uma descrigio fiel ¢ no interpretativa da natureza mutivel da experiéncia huma- na, contribuindo para alicergar filos6fica e teoricamente 0 in- teresse pelo “eu e tu, aqui e agora, o que e como”, superando a perspectiva da causalidade ¢ inaugurando o carater revolu- Giondrio da Gestalt-terapia — que nao leva uma pessoa que se supoe saber mais a se impor a outra que se presume saber menos, influenciado pela psicologia da Gestalt ¢ pela teoria de campo (Yontef, 1998; Zinker, 2007). Gestalt-terazia ~ Conceitos fundamentals A perspectiva de campo, por exemplo, afirma nao existir efeito a distdncia, uma vez. que aquilo que o produz esté con- temporanea ¢ concretamente presente, contrariando a nogao de causalidade e enfatizando a perspectiva de olhar 0 mundo como um proceso continuo, em curso, como afirmava o fil6- sofo Heréclitos tudo é fluir. Na Gestalt-terapia, a contempora- neidade € definida em termos da fenomenologia de uma pes- soa, do seu experienciar no aqui e agora, o que justifica a investigagdo a respeito do que esta sendo percebido € vivido no momento, por meio de interrogagdes como: “O que vocé estd fazendo?”, “Para que voce faz isso?”, “A servigo de qué faz isso?”, “O que voc® sente?”, “O que voce quer?”, “O que voc# evita?”, “O que voc’ espera?” Também se solicita a0 paciente que permanega com 0 que est acontecendo, explo- rando 0 que se faz. presente, pedindo-lhe que perceba 0 que pode aprender no agora {Yontef, 1998; Perls, 1977a). ‘Termos como “aqui e agora” ou “agora estou consciente de” evidenciam escolhas que tanto trazem 4 tona a camada superior da formagao de caréter do paciente © algumas de suas resisténcias mais primitivas como clareiam o caminho para 0 reconhecimento de todas as suas fungGes ~ em especial suas disfungGes, seus conilitos e suas atitudes de escape. Isso favorece a awareness, compreendida como um fato sensorial que ocorre no aqui e agora e constitui um processo de orien- tagio que se renova a cada instante, em cada agora, evoluindo ¢ transcendendo (Yontef, 1998; Perls, 1977a). Nese sentido, 0 continuum de awareness leva a pessoa a aprender a utilizar sua propria awareness em qualquer situa- ¢40, favorecendo a autorregulagao organismica no campo ex- perienciado. Ela percebe coino esta provocando suas dificul- fn Meyer FrazSo e Karina Okajena Fukumitsu (orgs) dades e como enfrenté-las e resolvé-las no presente, no aqui ¢ agora, sendo assim capar. de aprender que cada novo “agora” é diferente do anterior (Yontef, 1998; Perls, 1997) Essas indagagdes tornam a terapia gestéltica mais expe- riencial que verbal ou interpretativa, integrando princjpios da experiéncia. Ao solicitar ao paciente que reexperiencie seus problemas e traumas ~ situagées inacabadas no presente ~ no aqui e agora, INVESTIGANDO como ELE se impede de “ser” agora e os modos utilizados para se interromper -, ele pode simultaneamente experienciar o si mesmo que se interrompe- rae ter awareness, objetivo da Gestalt-terapia (Yontef, 1998; Perls, 1997). Nesse sentido, Ribeiro (1999) ressalta que 0 te- rapeuta pode ajudar o cliente a verse como ser temporal, lo- calizado no aqui e agora, e a perceber como o prazer € 0 tédio interferem na sensacao de durago do tempo. ‘Assim, recordar a infancia pode ser objeto de awareness, pois ela acontece aqui e agora, quando ocorre a cooperagio dos sistemas sensorial, muscular e vegetativo, valorizando a primazia da experigncia - na qual reside a superioridade do presente (Perls, Hefferline © Goodman, 1997; Perls, 1977; Polster e Polster, 1979). Ginger ¢ Ginger (1995) também mencionam a importan- cia da tomada de consciéncia da experiéncia atual (0 “aqui e agora”), gue reabilita a percepgdo emocional e corporal e fa- vorece uma perspectiva unificadora do ser humano, uma vez que integra as dimensGes sensoriais, afetivas, intelectuais, so- ciais e espirituais e permite uma experiéncia global na qual 0 corpo possa falar ¢ a palavra, encarnar. No processo terapéutico, portanto, é fundamental colo- ‘car a pessoa, 0 tempo todo, diante de sua experiéncia imedia- Gestalt-terapia ~ Concetos fundamentals ta, uma vez que ela aquilo que est sendo naquele momento €, assim, qualquer focalizagao que realce aquilo que esta acontecendo fornece uma base para a mudanga, favorecendo © contato com o seu processo autorregulador ¢ a percepgio de si mesma e do mundo (Ribeiro, 1999; Polster ¢ Polster, 19793 Joslyn, 1977). Entretanto, Polster e Polster (1979) assinalam que uma pessoa que esté aprendendo a estar no presente nao pode ser obrigada a nele estar até que descubra como fazé-lo, Se forga- da ao presente pela técnica gramatical - ou por qualquer ou- tra forma imposta -, ela pode até consentir, mas seré uma. concordancia estereotipada, mais uma forma vazia do que uma presenga vital. Faz-se necessdrio também focalizar ndo apenas a descri- io do sentimento subjetivo do cliente (sua awareness), mas também a tomada de consciéncia por parte do terapeuta (sua awareness interna), de seu sentir, de tudo que se passa a sua volta ~ e, em particular, ao redor de seu cliente ~ no aqui e agora, assim como do processo intersubjetivo, partilhando o que Ihe parece util ao processo terapéutico. Afinal, o terapeu- ta nao esté alhnres, num mundo de saber te6rico, nem no lu- gar do cliente, muito menos usurpando suas emogies. Ele esta, afinal, diante do cliente, sendo ele mesmo em relagio com 0 mesmo, numa troca de pessoa a pessoa, num diélogo auténtico a dois, num “eu-tu” (Ginger, 2007; Ginger e Ginger, 1995; Perls, 1977). Essa atitude nos semete & atitude fenomenol6gica do cuida- do—que, a0 se dirigir As coisas, aos outros ea si mesmo, articula- -se com a existéncia, Scgundo Fernandes (2011, p. 342), “o sen- tido desse cuidado se da, no entanto, como temporalidade”. 143, Lilian meyer Frazdo e Karina Okajima Fukuiteu (orgs) Para esse autor, em decorréncia da temporalidade, a exis- téncia se dé como Ek-stdtica, sempre aberta a0 mundo ~ quer © mando circundante, quer o da convivéncia, quer 0 mundo préprio. A existéncia j4 € sempre um ser fora de si. Portanto, © existir acontece na dinamica da temporalidade origindria, que se estrutura em trés ekstases: a do futuro, a do pasado e a do presente, que, em sintese, somos n6s mesmos, Na verdade, na prética terapéutica, essas trés estruturas temporais sao mobilizadas sem cessar, afirma Ginger (2007), num vaivém, nama emergéncia sucessiva de “figuras” sobre 0 “fundo” do continuum da consciéncia, da construgtio e da des- truigio de Gestalten, entre os fantasmas internos intrapsiqui- cos, 0s comportamentos externos ¢ as relagdes interpsiquicas. Ribeiro (2011) também enfatiza que somos feitos de on- tem, de hoje e de amanha; somos feitos de tempo e de espagos portanto, o fundamento bisico da existéncia é a temporalida- de, Como projeto existencial, apenas o homem € capaz. de cui- das, modificar ou interrompé-lo. Ele, como aqui e agora, existe como antecipagio de si mesmo (Ribeiro, 1999, p. 28). Cuidar do porvir (futuro) ou da facticidade (pasado) corre apenas no presente: a atencio ao que vigora aqui e agora. “Quando esta temporalidade acontece em sua origina- lidade, entio 0 cuidado se recolhe na graca do instante em que 0 tempo se torna pronome do ser” (Fernandes, 2011, p. 346). O cuidado com a temporalidade é sinénimo de zelo com a historicidade da existéncia, que é 0 cuidado com o se. Nesse sentido, na pritica clinica, nfo se trata de questionar “O que ¢ isto, o tempo?”, mas de focar o modo de viver exis- tencialmente na temporalidade € na historicidade do real vivi- do, Portanto, o terapeuta no tem como tema de investigagdo 14a Gestat-terapia —Concetos fundamentals © tempo objetivo nem o tempo em si, mas modos de viver tem- poralmente, construindo espacialidades e temporalidades. Nessa perspectiva, é necessdrio que o tempo seja concebi- do e tratado nao de forma objetiva, segundo uma simples se- quéncia linear. E preciso se deslocar para uma concepgaio de tempo vivido, em circulos, envolvendo presente, pasado ¢ futuro em uma totalidade dindmica No meu aqui ¢ agora, consigo vivenciar esse momento que € a coincidéncia entre o que vivenciei escrevendo 0 texto €a minha expectativa do que esta por vis, quando o leitor se dispuser a investir seu tempo refletindo a respeito do tempo. REFERENCIAS BIBLIOGRATICAS Avcnas, MO ser da compreensio: fonomenoloia da situagdo de picodisgusstico. 1993, Costa, \-E,$. M.“O agui e agora em uma perspectiva contro Goiano da Abordagem Gestitica, 2004, p, 29-32 Perxannes, M.A clayeira do ter da fonomenologia da intencionalidade & abertura dda existéncia. Rio de Jancco: Daision, 2011 GinceR, As Giveun, S. Gestalt, uma torapia do contato, Sio Paslo: Sumamus, 1995, Gincex, S. Gestalt: a arte do contato. Sto Paulo: Summus, 2007. Hussent, E.Ligdes para wns fowomenologia da consciénca intaraa da tempo. Lis Moca, 1994, Ins Stevens, J. O.(org)- Isto & Gestalt. 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Processo dlogo e awareness: ensais em Gestalt-terapia. Sto Paulo: Suramus, 1998, Zuvean, J. Process crativo om Gestal-teapia, Sho Pavlos Sammus, 2007. 8 Autossuporte e heterossuporte “Amadurecer é transcender ao apoio ambiental para 0 au- toapoio” (Perls, 1977, p. 49). a partir dessa afirmagao de Fritz Perls, considerado por muitos principal fundador da Gestalt-terapia, que este capitulo se desenvolvera. Buscar-se-4 compreender o significado dos conceitos de autossuporte ¢ hetcrossuporte, também denominados autoapoio e apoio am- biental, sua relagao com outros conceitos intimamente liga- dos a eles — como crescimento, autorregulacio, teoria paradoxal da mudanga, contato ¢ amadurecimento ~ ¢ suas implicagdes no processo psicoterapéutico. Segundo o dicionério Houaiss (2001, p. 2643), “suporte” significa “qualquer coisa cuja finalidade é sustentar (algo); aquilo que dé suporte, que auxilia ou reforga”. Nesse sentido, 0 vocabulo volvidos pela pessoa ao longo de sua existéncia que estao dis- poniveis a servigo de si mesmo e do outro. Comporta de as- pectos muitas vezes despercebidos pela pessoa, como a suporte” refere-se ao conjunto de recursos desen- Lien Meyer Fraato e Karina Okajima Fukumitsu (oes) respiraco e outras fungdes fisioldgicas, até costumes, habili- dades, experigncias, bem como formas de contato adquiridas a longo da vida (Perls, 1988). Existem dois tipos de suporte, 0 autossuporte e o heteros- suporte, ¢ eles se intercomunicam por toda a vida. Em pales- tza publicada no livro Gestalt-terapia: teoria, téenicas e apli- cages, de Fagan ¢ Shepherd, Perls (apud Perls, 1977) relaciona 0 desenvolvimento do autossuporte ao potencial da ‘pessoa, & independencia pessoal ¢ ao proceso de amadureci- mento, equiparando 0 funcionamento neurético & falta do aurossuporte. © suporte é essencial para qualquer contato, ¢ a sua falta desencadeia sentimentos ¢ comportamentos dis- fancionais, como ansiedade, vergonha, inseguranga, rigidez, timidez, baixa autoestima ¢ dependéncia do outro. Perls (1977a) exemplifica os conceitos de autossuporte € heterossuporte utilizando como referencial 0 desenvolyimen- to humano. O autor assevera que, observando o desenvolvi- mento do feto e, depois, o da crianga, pode-se claramente compreender a passagem, nunca definitiva, do apoio ambien- tal (heterossuporte) para o autoapoio (autossuporte): Consideremos 0 feto. Ele recebe todo apoio da mae ~ oxisénio, comida, calog, tudo. Assim que a crianga nasce ja ¢ obrigada a res- pirar por si mesma. [..] bebé nao consegue respirar sozinho ~ rio ha mais suprimento de oxigénio pela placenta. Nao podemos dizer que o bebé tem uma escolha porque nio hi uma tentativa deliberada de pensar o que fazer, mas o bebé ou morre ou aprende a respirat. Deve existiralgum apoio ambiental préximo ~ uma pal- ‘mada ou provisio de oxigenio. [.] © bebé comega a crescer,Preci- sa ainda ser cuidado. Depois de algum tempo aprende algum tipo 148 Gestat-terapla ~ Conceitos fundamentals de comunicasfo [...] pouco a pouco mobiliza cada vez mais seu potencial, os seus recursos internos. (Perls, 1997a, p. 49-50) ‘A partir da fecundagao, para que o feto se desenvolva, 0 suporte da mae é imprescindivel, e ainda assim seu desenvol- vimento também depende dele mesmo. Esse intercambio organismo-ambiente em que se est4 inserto desde o principio, em graus e situagdes muito distintos, demonstra que a pessoa necessita, desde o ventre materno, perceber onde € quando deve buscar o suporte para seu crescimento, amadurecimento € para a realizagao de suas necessidades. Em muitas circunstincias, ¢ dificil distinguir entre 0 es- sencial, 0 supérfluo e © dispensavel. © movimento de abrie mao do que ja nao serve nao ¢ facil, pois além de a pessoa nao ter certeza de que nao serve mais ela j4 aprendeu a viver com aquilo que, apesar de nao a nuts, Ihe permite sobreviver. Ela se pergunta: “Sera uma boa opcio viver sem esse habito ou costume? E se for pior?” Ir em busca de algo desconhecido vivenciado como um risco; por isso, para o cliente consegui dar qualquer passo nessa dirego ele precisa se conscientizar de que o seu jeito habitual de funcionar jé esta desatualizado € se tornou disfuncional. No momento em que o cliente diz “Chega!”, ele passa a no mais se apegar a0 que poderia per- der, pois jd est diferente e comega a vislumbrar 0 que poderia se tornat. Assim, pode iniciar a mobilizagao de energia em busca da satisfago da nova necessidade, Petls, Hefferline e Goodman (1997}, por meio do concei- to de desprendimento criativo, asseguram que, na despedida de algo antigo, a pessoa tem a oportunidade de adquirir no- vos conhecimentos ¢ vivencias, deixando 0 conhecido e per- Lilian Meyer Fraafo e Karina Okajima Fukumiteu (ores.) mitindo seu crescimento no diferente, E a partir do proceso de desprendimento que, paradoxalmente, advém a experi cia da ampliagao de recursos pessoais, a que podemos chamar de vivencia de crescimento Em resumo, 0 que de fato dificulta o caminhar do cliente em diregao a0 autossuporte € 0 principio da caminhada, pois Enesse momento dos primeiros passos que “o impasse de até onde 0 apoio ambiental ou © obsoleto apoio interno nao é mais suficiente, ¢ 0 autoapoio auténtico ainda no foi obtido” (Perls, 1977a, p. 50). F uma estrada nova, muitas vezes bas- tante desconhecida, que, a mesmo tempo, dé medo e vontade de conhecer. Perls, Hefferline e Goodman (1997) entendem que, por intermédio do desprendimento criativo, a pessoa tem a chance de abandonar suas muletas que nio servem mais, ou seja, suspender antigos sentimentos, pensamentos ou acdes disfuncionais e acreditar que existem outras possibilidades. Assim, & preciso favorecer que © paciente esteja atento a0 momento em que pode abrir mio dessas muletas e andar com as proprias pernas. Para alcangar 0 objetivo de andar com as préprias per- nas de modo auténtico, a pessoa necessita conhecer a si mes- ma, acreditar em seu potencial ¢ se apossar do que € seu, nunca se esquecendo de que também existem recursos exter- nos ¢ de que pode usé-los, desde que necessario c/ou deseja- do, Afirma Perls (1988, p. 122): “A terapia gestaltica estabe- lece 0 postulado basico de que falta ao paciente autoapoio, € que 0 terapeuta simboliza o si mesmo incompleto do pa- ciente. © primeiro passo na terapia, portanto, é descobrir © que 0 paciente necesita”. Gestaltsterapia - Concetos fundamentals Segundo Perls (19772), a pessoa tem dois caminhos a es- colher, © primeiro refere-se a crescer, superar suas frustragées © assumir-se como pessoa que pensa, sente ¢ age, O autor acrescenta que crescimento é a experiéncia da ampliagéo de possibilidades existenciais, que se do pelo contato da pessoa com ela mesma ¢ com © ambiente que a circunda, em uma visio de totalidade. No contato consigo mesmo € com 0 outro, varios senti- mentos, crengas e emogdes desvelam-se e precisam ser inte- grados para formar um novo todo, visto que partes alienadas, quando reencontradas, passam a ter uma nova configuragao ¢ revelam outro sentido a existéncia, Crescer estar cada vez mais perto de si mesmo, de suas possibilidades, enfim, do seu proprio tamanho. ‘0 segundo caminho que a pessoa pode escolher & conti- nuar manipulando o mundo e ficar onde esta. Essa atitude ocorre por receio de enfrentar 0 mundo, as pessoas, e se mos- trar como é realmente, A consequéncia € tornar-se refém do outro e de si mesmo, Exercendo 0 papel de manipulador, ela ctia uma dependéncia, pois transfere para o outro decisdes da propria vida, Aquele que torna a pessoa dependente tem 0 poder de t@-la de acordo com suas expectativas, de dirigir sua vida, ¢ nem sempre se di conta de que em nada ajuda um desenvolvimento auténtico. © terapeuta deve tomar cuidado para nao assumir esse papel, pois o cliente, quando chega a0 consultério, tende a repetir sua histéria naquele novo encon- 110, ou seja, continuar usando o heterossuporte. Perls (1977a, p. 54-6) descreve essas duas maneiras de a pessoa se posicionar no mundo: Lilian Meyer Frazto © Karina Okajima Fukumites (orgs) A ctianga pode crescer e aprender a superar frusteag6es ou pode set mimada, [..] Sem frustragio nio existe necessidade, nfo existe Fazio para mobilizar os proprios recursos, para descobrit a pr6- pria capacidade, para farer alguma coisas e, a fim de nao se frus- tat, o que é uma experidneia muito dolorosa, a erianga aprende a ‘manipular 0 ambiente. [..] Em vez de usar seu potencial para cres- cet, ela agora usaré seu potencial para controlar 0 mundo. Fm vez de mobilizar seus proprios recursos, ela eria dependéncias. ‘Com 0 crescimento, a pessoa reduz suas dependéncias ex- tetnas € mobiliza seu potencial. A busca de crescimento ¢ in- fluenciada pela atitude do Gestalt-terapeuta, que é a de capa- citar o cliente a descobrir, por conta propria, a compreensio. do que é seu. Miller e Fromm, na Introdugao & edigao do The Gestalt Journal editada no livro Gestalt-terapia, de Perls, Hef- ferline e Goodman (1997, p. 25), esclarece que “o crescimento surge da metabolizagio do desconhecido, que é assimilado do ambiente, tornando-o conhecido, o que o transforma em um aspecto do self”. A assimilagao faz parte do processo de crescimento: “O organismo cresce ao assimilar do ambiente 0 que precisa para © seu proprio crescimento, [...] Somente por meio da assimi- lacdo completa € que substncias heterogéneas podem set unificadas em um novo Todo” (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p, 32). movimento entre a novidade c a rotina resulta em assimilagio ¢ crescimento. Como j4 vimos, nem sempre o caminho para o crescimen- to é simples. Andar com as préprias pernas ¢ buscar 0 au- toapoio auténtico em geral sao situagdes por vezes complica- das. Se, de um lado, a pessoa quer se realizar, de outro, esté Gestalt-terapia ~ Concetos fundamentals inserta em uma sociedade que faz exigéncias diferentes das suas, 0 que impede um crescimento espontaneo. A capacidade de obter esse crescimento espontineo é, muitas vezes, perdida ao longo da vida, fendmeno em que se deixa de lado quem se é ¢ passa-se a ser 0 que 08 outros es- Pperam que se seja. Muitas vezes o ambiente exige que a pes- soa seja aquilo que nao é, que se torne um modelo ideal em vex de autorrealizar-se. A pessoa aprende a no questionar quem é, 0 que quer, em que acredita. Muitas vezes, quando crianca, escuta de seus pais, babas, professores etc.: “E assim e pronto”, “E assim porque eu quero”, para voce”, a, de seu potencial e, em consequéncia, deixa de acreditar em si mesma. Alguns clientes podem chegar a terapia sem saber quem sio e, portanto, relutam em reconhecer suas verdadeiras difi- culdades, suas potencialidades, seus projetos. A falta de niti- dez do que é figura dominante pode tornar as escolhas mais dificeis. Muitas vezes, elas seguem caminhos alheios as suas ‘Nao discuta, pois eu sei o que € melhor Com isso, cada vex mais, distancia-se dela mes- reais vontades ou necessidades; outras tantas vezes, assumem outros projetos como se fossem seus. afastamento de si mesmo e o caminhar em diregio dife- rente das suas reais necessidades dao-se pelo medo de néo ser accito e, até mesmo, de ser rejeitado. Esse risco leva o individuo a uma atitude que o distancia de si mesmo para ser amado, mesmo que condicionalmente. Miller (1986, p. 41) afirma que [.-] 86 nao percebemos que é um “amor” que exige provas de reci- procidade, que exige rentincias, enfim, que exige. Por esta razi0, 153 Lilian Meyer Frazto Karina Okajima Fukumitsu (ores) ante de qualquer ameaga percebida, vislumbrada, sentida ou pressentida, nés nos abandonamos, cedemos is pressdes, 38 mani- pulagdes, ds chantagens emocionais e fazemos 0 que quetem que fagamos, passamos a ser a crianga bem-dotada, O contato com 0 outro € com o ambiente forma a pessoa, mas também pode deforms-la, a0 exigir obediéncia e adequa- go em detrimento da sua expresso pessoal. Em decorréncia, a pessoa, na finsia de ser aceita e, por sua vez, protegida e amada, a tudo se submete, em busca da sobrevivéncia emo- cional. Para sobreviver de modo digno, cocso ¢ auténtico, € necessério resgatar a pessoa, identificar quem ela esta sendo e como pode interagir de com criatividade. O individuo saudé- vel desenvolve seu autossuporte de forma continua e em con- tato com o ambiente, Quanto mais saudavel se encontra a pessoa, mais criati- vamente cla se ajusta ao meio, mais autossuporte ela tem & sua disposigao. Nos ajustamentos criativos, existe uma transi- ‘cdo sempre renovada entre a novidade e a rotina que resulta em assimnilagio e crescimento. © grande conflito da pessoa consiste em conciliar 0 que ela acredita que deveria ser ¢ como se percebe sendo. Para tal, é preciso investigar quem cla é 0 que deseja para sua vida, suas possibilidades ¢ 0 melhor que pode ser feito naquele momento ou em um tempo futuro. O cliente precisa deixar de lado o que deveria ser ¢ encarar quem est sendo, mesmo que esteja em um local desagradavel aos préprios olhos. ‘A psicoterapia tem esse caréter libertador. A liberdade consiste em propiciar ao outro a possibilidade de olhar para si mesmo, expetimentar novas formas de ser, para nao ficar 154 Gestalt-torapia — Cenceitos fundamentals restrito a uma tinica forma de existir ¢, pios, permanecer em um modo de vida determinado pelo outro. Por isso, nao é simples aleangar o autossuporte, pois em geral o ambiente na familia e na sociedade leva a pessoa a fazer 0 contrério. Segundo Perls (1977a, p. 50), “o objetivo da terapia é fazer com que © paciente niio dependa dos outros e descubra desde 0 primeiro momento que ele pode fazer muito mais do que ele acha que pode”, on seja, acreditar nele mesmo, no que ele percebe, gosta, concorda, e no que de fato acredita, Enfim, usar seu potencial e arriscar ser amado como a pessoa que ele realmente & Conforme Perls (1977a, p. 52-3), _] todo individuo, toda planta, todo animal tem apenas um obje- tivo inato ~ realizar-se naquilo que & Uma rosa é uma rosa. Uma rosa no pretende ser como canguru, [..] Na natureza, com exce~ g40 do ser humano, a constituigao, a sanidade, o ctescimento, 0 potencial, sio todos alguma coisa unificada. Uma pessoa é ela mesma e nio outra, e precisa distinguir 0 que é seu do que é do outro, o que é autossuporte € 0 que é heterossuporte, Nessa distingdo, a pessoa autorrealiza-se. Perls (1977b) afirma que o cliente que se autorrealiza espera o possi- vel ¢o cliente que quer realizar um conceito tenta 0 impossivel. Se a pessoa estiver centrada em si mesma e integrada, ela naturalmente sera um todo unificado, ou seja, seus sentimen- tos, pensamentos e agdes formario uma unidade em contato com o outro. Ela no mais se ajustard de maneira automatica ou aparente, mas se tornard cénscia do que acontece com ela centre ela e o ambiente, apropriando-se de sua vida. 155 Lilian Meyer razso e Karina Okalima Fukumitsu (ores) paradoxo consiste em “para mudar, eu preciso ser”, visto que a mudanga € uma aproximagao de si mesmo. Para Beisser (1977, p. 110), que formulou a teoria parado- xal da mudanga, [.] a mudanga ocorre quando uma pessoa se torna 0 que é, nto quando tenta converter-se no que nao & A mudanga nao ocorre através de uma tentativa coerciva por parte do individuo ou de coutra pessoa para mudé-lo, mas acontece se dedicarmos tempo € esforgo a ser 0 que somos. [..] Ao rejeitarmos o papel de agente de ‘mudanga, tornamos possivel a mudanga significativa e ordenada. Yontef (1998, p. 138) relaciona a teoria paradoxal da mudanga ao desenvolvimento do autossuporte, pois ter au- tossuporte é aceitar-se como se é: “Quanto mais vocé tenta ser quem nio é, mais permanece o mesmo. Crescimento, incluin- do a assimilagao da ajuda e do amor dos outros, requer autos- suporte. Tentar ser quem nfo se é nao é autossuporte”. O autossuporte deve incluir tanto © autoconhecimento quanto a autoaceitagdo. Nao existe a possibilidade de ter su- porte adequado sem se conhecer, sem conhecer sua experién- cia, assumir seu comportamento, suas necessidades, suas ca- pacidades e incapacidades, enfim, quem aquela pessoa est sendo naquele momento. No entanto, nem sempre esse conta- to € possivel sem a ajuda do terapeuta; o que nfo significa que © cliente também nao seja ativo nessas descobertas. Por isso, terapeuta ¢ cliente, juntos, por intermédio de uma investiga- io fenomenolégica, ampliam a awareness do que se revela no encontro de ambos. A nogéo da importancia da dupla ~ terapeuta ¢ cliente ~ no processo psicoterapéutico é funda- 136 Gestat-terapia ~ Conceitos Fundamentals mental para o cliente compreender que, a despeito da ajuda do terapeuta, sem ele nada seria possivel. Yontef (1980, p. 139] também alerta que se 0 terapenta realiza a tarefa pelo cliente ele nao promove autossuporte, mas dependéncia, pois transmite nas entrelinhas a mensagem: “Vocé nao é suficiente como vocé &”. Sair do heterossuporte para 0 autossuporte envolve risco, pois o conhecido é abando- nado rumo ao desconhecido. f papel do terapeuta caminhar com 0 cliente nessa direedo, pois 0 diferente, quando experi- mentado na companhia do terapeuta, é mais fécil de vivenciar, E preciso lembrar que existe o limite do cliente no proces- so psicoterapéutico e este precisa ser respeitado. Se o cliente precisa de ajuda, 0 terapeuta deve fornecer-Ihe o suporte ne- cessirio, om seja, deve, assim que possivel, facilitar-Ihe desco- brir maneiras de buscar a satisfagio de suas necessidades ¢ a ampliagio de suas possibilidades, enriquecendo, assim, seu suporte. Enfim, o terapeuta ndo deve fazer a tarefa pelo clien- te, mas facilitar a recuperagao de partes que pareciam nfo existir ou mesmo auxiliar na aquisigao do que ainda nao exis- te, Ribeiro (2006, p. 149) alerta que, muitas vezes, o cliente quer algo, mas nao acredita que pode consegui-lo, o que reve- la um paradoxo: © paradoxo nos remete a lugares muito negados, porque muito desejados, mas sentidos como impossiveis. Trabalhar paradoxal- ‘mente € colocar o cliente diante de suas possibilidades reais para, a0 vivenciar suas contradigdes internas, descobrir que o risco é 0 cotidiano da existéncia, © que a palavra “ficil” nao pertence 20 vocabulério dos adultos, ¢ sim ao das criangas. 1 Mayer Frazo Karina Otajima Fukuitsu (orgs) Nessa situagio, 0 heterossuporte € imprescindivel. Aos poucos, quando o cliente vai se descobrindo, percebendo suas necessidades e alcangando-as, recupera a autoestima e passa a tomar suas préprias decises de mancira mais consciente ¢ confiante. Muitas vezes, o cliente chega a terapia nao para encontrar ou decidir algo, mas para compartilhar 0 que en- controu ou decidiu, © terapenta pode, entdo, compreender que cle cresceu, que adqniriu 0 autossuporte para ser ele mes- mo na relagio com o outro. De acordo com Perls (1988, p. 75), 0 autossuporte aumenta a autoestima ¢ vice-versa, estan- do um dos objetivos do processo terapéutico relacionado ao desenvolvimento de tais recursos: © objetivo da terapia, enti, deve ser the dar [a0 cliente} meios para que possa resolver seus problemas atuais e qualquer outro problema que susja amanha ov no préximo ano. Fsteinstrumento é a autoestima e cle a adquire lidando consigo e seus problemas, com todos 0s recursos de que dispe no momento. Ha uma fase da terapia em que o cliente se liberta das cexigéncias externas, volta-se para si mesmo € torna sua vida mais verdadeira, desmascarando sua representagao de falsos papéis, Nessa fase, sua autoestima esta presente ¢ o alimenta nao para temer 0 que ele se tornou, mas para arriscar-se no novo, para abandonar o yelho conhecido que ja nao o satis- faz. A pessoa recupera, entio, sua espontaneidade, ou seja, seu “processo de descobrir e inventar & medida que prossegui- ‘mos, engajados e aceitando o que vem” (Perls, Hefferline Goodman, 1997, p. 182). Ela passa a correr atras do que acre- dita, mobiliza seus préprios recursos, tem coragem de buscar as . Aceso em: 11 jun. 2013, von

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